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Educação: Teoria e Prática

versión impresa ISSN 1993-2010versión On-line ISSN 1981-8106

Educ. Teoria Prática vol.33 no.66 Rio Claro  2023  Epub 31-Dic-2023

https://doi.org/10.18675/1981-8106.v33.n.66.s16071 

Artigos

Permanência de jovens em projetos sociais por meio da teoria da autodeterminação

Permanence of young people in social projects by the self-determination theory

Permanencia de jóvenes en proyectos sociales a través de la teoría de la autodeterminación

Eduardo Pereira Alves1 
http://orcid.org/0000-0003-0138-2218

Charlene Fernanda Thurow2 
http://orcid.org/0000-0002-9462-1320

1Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Santa Catarina – Brasil

2Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, Santa Catarina – Brasil


Resumo

O presente artigo apresenta a proposta pedagógica utilizada pelo Programa de Esporte e Educação Campeões da Vida do Instituto Guga Kuerten. Evidencia a problemática que o programa tem enfrentado desde 2015 em relação à evasão de seus participantes, assim como versa sobre os tipos de motivação e de regulações do comportamento presentes na teoria da autodeterminação. No sentido de aumentar a motivação intrínseca e a adesão de seus participantes, sugere algumas possibilidades de aplicação prática dos conceitos da teoria da autodeterminação a serem testadas em projetos sociais.

Palavras chave: Educação; Esporte; Projetos Sociais; Desigualdades; Motivação

Abstract

This article presents the pedagogical proposal used by the Programa de Esporte e Educação Campeões da Vida do Instituto Guga Kuerten. It highlights the problems that the program has faced since 2015 in relation to the evasion of its participants, as well as dealing with the types of motivation and behavior regulations present in the Self-Determination Theory. In order to increase the intrinsic motivation and adherence of its participants, it suggests some possibilities for practical application of the concepts of the Self-Determination Theory to be tested in social projects.

Keywords:  Education; Sport; Social Projects; Inequalities; Motivation

Resumen

En este artículo se presenta la propuesta pedagógica que utiliza el Programa de Esporte e Educação Campeões da Vida do Instituto Guga Kuerten. Destaca los problemas que ha enfrentado el programa desde 2015 en relación con la evasión de sus participantes, así como aborda los tipos de motivación y de regulaciones del comportamiento presentes en la teoría de la autodeterminación. Con el fin de incrementar la motivación intrínseca y la adherencia de sus participantes, sugiere algunas posibilidades de aplicación práctica de los conceptos de la teoría de la autodeterminación para ser probadas en proyectos sociales.

Palabras clave:  Educación; Deporte; Proyectos Sociales; Desigualdades; Motivación

1 Introdução

A desigualdade social em nosso país pode ser atribuída, em grande parte, à defasagem educacional do ensino público. Enquanto as pessoas economicamente favorecidas frequentam as escolas privadas e têm acesso ao conhecimento e à cultura, os filhos dos mais pobres frequentam uma escola pública voltada para o acolhimento social e de aprendizagens mínimas para a sobrevivência. Essa lógica oferece uma formação desigual para as pessoas, contribuindo para perpetuar a exclusão social e econômica vivenciada por milhares de brasileiros ( VIANA, 2021).

Os projetos sociais do terceiro setor surgem com a promessa de atender às problemáticas sociais e criar oportunidades iguais para todos os cidadãos. Na área da educação existem projetos sociais que utilizam o esporte como instrumento para facilitar o acesso à cultura e ao conhecimento. O Programa de Esporte e Educação Campeões da Vida do Instituto Guga Kuerten (IGK) é uma dessas iniciativas do terceiro setor que associa o esporte à educação para oferecer oportunidades de transformação social para crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade e/ou risco social ( MENDES; MARCOMIM, 2020).

No ano de 2015, a problemática referente à evasão de seus participantes comprometeu parcialmente os objetivos do programa. Foram registrados 211 desligamentos das 885 matrículas realizadas, sendo uma grande parte desses desligamentos por falta de interesse em continuar no projeto.

A teoria da autodeterminação (TAD), desenvolvida por Deci e Ryan (1985), tem sido um dos referenciais teóricos utilizados pelo IGK para compreender a motivação dos educandos em participar do programa. Essa teoria busca entender o que regula e direciona a energia do comportamento motivado. Segundo a TAD, as pessoas são movidas por três necessidades psicológicas básicas: vínculo, competência e autonomia. Elas seriam os nutrientes necessários para um comportamento intrinsecamente motivado e autodeterminado.

Com o objetivo de repensar suas práticas pedagógicas e enfrentar a demanda da evasão de educandos, as áreas de Psicologia, Pedagogia e Educação Física uniram esforços e se debruçaram sobre a TAD para pensar estratégias que pudessem potencializar a adesão dos educandos ao Programa de Esporte e Educação Campeões da Vida.

Este artigo traz um ensaio com possibilidades de aplicação prática dos conceitos da TAD em projetos sociais de esporte e educação. Como produtos deste artigo são sugeridas intervenções focadas em ações para aumentar a sensação de vínculo, competência e autonomia do educando e, consequentemente, o seu desejo de estar no projeto. Os dados de evasão do ano de 2015 acionaram a equipe interdisciplinar para a reflexão e produção posterior dessa proposta. Este trabalho se ocupa da base teórica e da construção de uma proposta de intervenção e, por este motivo, não apresenta dados conclusivos a respeito de seus resultados. Compreendemos, contudo, que a reflexão teórica a respeito das estratégias apresentadas é um primeiro caminho – imprescindível – para uma práxis mais adequada às demandas de qualquer projeto social.

2 Programa de Esporte e Educação Campeões da Vida: proposta de superação

A desigualdade social tem sido, em nosso país, fonte de sofrimento para milhares de brasileiros que vivem em situação econômica desfavorável. A educação tem sido apontada como um dos meios mais poderosos para a transformação das disparidades econômicas e sociais que temos presenciando no Brasil. Formar cidadãos com conhecimento e capacidade para provocar transformações sociais e mudar esse quadro de exclusão se torna, então, um dos grandes desafios dos espaços de educação ( ALMEIDA; XAVIER, 2021; VIANA, 2021), no entanto os dados mostram que o cenário da educação nacional avança em passos lentos e não tem conseguido cumprir a função formativa desejada.

Em 2015, período do surgimento da demanda tema deste trabalho, o Brasil era a sexta maior economia do mundo e tinha uma população de 20 milhões de analfabetos, 32 milhões de alfabetizados que cursaram apenas até a 4ª série e 60 milhões que não conseguiram concluir o ensino médio ( ARELATO, 2014). Na última Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios realizada em 2019 (pré-pandemia COVID-19), constataram-se cerca de 11 milhões de pessoas analfabetas com 15 anos ou mais de idade, o que equivale a 6,6% da população. Esses dados apresentaram um avanço em relação aos anos anteriores. Em 2016, a taxa de analfabetismo nessa faixa etária era de 7,2% e, em 2018, já havia diminuído para 6,8% ( IBGE, 2020a).

Apesar dessa redução, o Brasil passou a ser a 21ª maior economia do mundo em 2020, demonstrando um regresso no desenvolvimento do país. O Brasil ocupa a mesma posição (21ª lugar) na lista da maior taxa de pobreza do globo. Os indicadores demonstram avanços, mas também dificuldades do país, e os índices de pobreza extrema, que já haviam reduzido, voltaram a aumentar. Recentemente, o total de pessoas na situação de pobreza triplicou, de 2018 a 2019, e superou 51 milhões. Em 2019, 29,2% da população brasileira entraram para os critérios do CadÚnico do Governo Federal ( IBGE, 2020b). O Brasil é um país desigual e possui elevada disparidade na distribuição de renda. O ambiente escolar constitui um lócus privilegiado para a construção de conhecimentos e de preparo para a vida social. A defasagem dos processos de ensino e aprendizagem nesse ambiente explica – em parte – o quadro das desigualdades econômicas e sociais instaladas em nosso país ( ALMEIDA; XAVIER, 2021).

O terceiro setor, a partir da década de 1990, ganhou grande ascendência nos países da América Latina e América do Sul, inclusive no Brasil, com a promessa de intervenção nas crescentes problemáticas sociais que surgiram diante da escassez de recursos estatais para atender a essas demandas ( ARAÚJO, 2014). Segundo Falconer (1999), o terceiro setor é um conjunto de iniciativas privadas, porém públicas, de organizações sem fins lucrativos, práticas de intervenção e projetos sociais que buscam o resgate da solidariedade e da cidadania, a humanização do capitalismo e a superação da pobreza.

Mesmo diante do quadro de miséria econômica e social que grande parte da população brasileira está vivenciando, o investimento público em políticas sociais é cada vez menor. Com o enxugamento do Estado, os projetos sociais do terceiro setor têm surgido como estratégias de enfrentamento das mazelas sociais ( MENDES; MARCOMIM, 2020; PAIVA; YAMAMOTO, 2010). Em decorrência dessas condições políticas e sociais têm-se cada vez mais espaços para experiências de aprendizagem que vão além do lugar formal da escola tradicional. Se, por um lado, essas ações acabam de certa forma desonerando o Estado de suas obrigações, por outro, são movimentos de fortalecimento da sociedade civil que visam a oferecer oportunidades de desenvolvimento integral para todos os cidadãos ( EIDELWEIN, 2005).

O esporte e a atividade física em projetos sociais como elementos de formação e socialização vêm sendo bastante valorizados em nossa sociedade (SILVA, 2018). O esporte é uma ferramenta eficiente para discutir, refletir e interpretar a realidade. Ele pode atuar como facilitador do processo educativo e, ao mesmo tempo, desenvolver a socialização do público alvo ( SILVA, 2007). Utilizar o esporte como ferramenta pedagógica também é importante para ajudar a reverter o quadro de ociosidade que temos presenciado entre os jovens ( DUARTE, 2019). Apesar dos conhecidos benefícios físicos, psicológicos e sociais oriundos da atividade física (SILVA, 2018), em 2019, a média de pessoas classificadas na condição de insuficientemente ativos no Brasil ainda era de 40,3% ( IBGE, 2020c). O jogo e a brincadeira promovem momentos divertidos para os jovens, constituindo-se em poderosos recursos de atração e promoção dos processos formativos, desenvolvimento da sociabilidade e da saúde integral de crianças e adolescentes ( SIMÕES, 2021).

O IGK é uma instituição do terceiro setor que atende, por intermédio do Programa de Esporte e Educação Campeões da Vida, em sete núcleos, estudantes de escolas públicas de 7 a 15 anos que se encontram em alguma situação de vulnerabilidade econômica, social e/ou educacional. Em 2014, atendia cerca de 700 crianças e adolescentes e em 2019 o número subiu para 12.576 ( IGK, 2014; IGK, 2019). A missão do instituto é oferecer oportunidade de transformação social para esses jovens por meio do impacto na sua formação pela aquisição de habilidades, competências e valores. Os jovens frequentam o projeto duas vezes por semana em sistema de contraturno escolar e participam de oficinas esportivas e culturais que são planejadas, executadas e avaliadas por uma equipe interdisciplinar de educadores: Educação Física, Pedagogia, Psicologia, Serviço Social e Teatro ( IGK, 2019; STEIN, 2018; VIEIRA, 2018).

Os educadores do IGK orientam suas práticas pedagógicas a partir dos Quatro Pilares da Educação: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser. Esses pilares foram extraídos do relatório da UNESCO “Educação: um Tesouro a Descobrir” ( DELORS et al., 1998) com a finalidade de construir um aporte conceitual consistente que pudesse auxiliar na elaboração de estratégias pedagógicas capazes de desenvolver, com os educandos, as habilidades cognitivas, produtivas, relacionais e pessoais necessárias para se viver com qualidade no século XXI. Utilizar os Quatro Pilares da Educação como fundamentação teórica é uma maneira de amparar as necessidades sociais de crianças e adolescentes que convivem com a pobreza, a fome, os maus-tratos, o consumo de drogas e as violências em geral, mas sem lhes negar o estímulo fundamental para o desenvolvimento de suas capacidades intelectuais. É possível construir um ambiente de ações socioeducativas mais amplas que reúne, em um mesmo espaço e ao mesmo tempo, estratégias pedagógicas de acolhimento das mazelas sociais e também de formação cultural e científica do educando ( DANIELLI, 2017; IGK, 2014).

Com o objetivo de tornar a construção do conhecimento alegre, leve e prazerosa, o Programa de Esporte e Educação Campeões da Vida tem como proposta de intervenção oferecer oficinas lúdicas para atrair os jovens e desenvolver com eles os conceitos dos Quatro Pilares da Educação. Mesmo contando, entretanto, com recursos materiais (esportivos e pedagógicos), humanos (equipe interdisciplinar) e logísticos (quadras, ginásios e locais para atividades culturais) favoráveis, verificou-se um número importante de desligamentos dos educandos durante o ano. O projeto visa a oferecer oportunidades de construir um futuro melhor para seus participantes por meio da educação pelo esporte, porém, para efetivar essa proposta, é necessário que os educandos permaneçam e participem ativamente das atividades oferecidas pelo programa ( DANIELLI, 2017; IGK, 2014).

Os projetos sociais buscam incessantemente democratizar o acesso à cultura, ao conhecimento e ao lazer a fim de contribuir para a formação e o desenvolvimento integral de crianças e adolescentes, mas têm enfrentado, assim como as escolas, uma quantidade significativa de evasão dos educandos ( DUARTE, 2019; STEIN, 2018). Soares, Silva e Prado (2012) constataram em suas pesquisas um alto número de faltas e abandono em projetos sociais. Seus estudos mostraram que os índices de desligamento dos educandos por desistência e faltas excessivas sem justificativa chegaram a 45,55% ao longo de um ano. Esses autores apontaram a escassez de pesquisas e a importância de mais estudos sobre essa temática.

Preocupados com o aumento de desligamentos no projeto, o Setor do Serviço Social do IGK criou um procedimento para mapear, registrar e compreender os motivos que levaram os educandos a se desligarem do Programa de Esporte e Educação Campeões da Vida ( MENDES; MARCOMIM, 2020). Durante os sete primeiros meses do ano de 2015 foram registrados 211 desligamentos. Considerando-se que, nesse mesmo período, foram realizadas 882 matrículas, o índice de desistência foi de 23,9%, ou seja, aproximadamente a cada quatro crianças matriculadas no projeto, uma desiste. Dos 211 educandos que deixaram o projeto, 60 o fizeram por falta de interesse, seis pelo excesso de faltas, 36 buscaram outra atividade em contraturno escolar e 109 por outros motivos (mudança de escola e de bairro, doença, entre outros). 1

O programa do IGK apresentou dados de desligamento inferiores aos encontrados nos estudos de Soares, Silva e Prado (2012), mas ainda são números consideráveis, uma vez que as estatísticas são apenas uma representação numérica objetiva de dados que não traduzem a importância da dimensão individual e subjetiva que cada educando representa. Uma criança ou um adolescente que pode se beneficiar com alguma ação educativa já é justificativa suficiente para a preocupação e para o investimento na construção de estratégias pedagógicas que possam ajudá-los a construir um futuro melhor ( STEIN, 2018; VIEIRA, 2018). Os dados apresentados levantaram um questionamento sobre a efetividade dos métodos utilizados pelo IGK para inserção, adaptação e adesão dos educandos ao seu programa de esporte e educação.

3 Teoria da autodeterminação: conceitos

Com a intenção de enriquecer o pensar e o fazer pedagógico no Programa de Esporte e Educação Campeões da Vida e enfrentar a demanda da evasão de educandos do projeto, as áreas de Psicologia, Pedagogia e Educação Física uniram suas diferentes modalidades de conhecimento para pesquisar o fenômeno e pensar estratégias que pudessem amenizar a problemática. Após uma extensa revisão bibliográfica sobre fatores motivacionais do comportamento, a teoria da autodeterminação (TAD) ( DECI; RYAN, 1985) foi escolhida como fonte de recurso teórico e prático para lidar com a questão. Ao socializar este estudo, esperamos oferecer alguma contribuição que seja útil para qualquer projeto social de esporte e educação que também lide com essa demanda.

A motivação é o fator mais importante e determinante no comportamento do ser humano, é o que desperta, fornece energia, dirige e regula a ação. É o mecanismo psicológico que governa a direção, a intensidade e a persistência do comportamento. A motivação é a chave que determina o início e a continuação de qualquer comportamento, como também de sua redução e desistência ( MURCIA; COLL, 2006).

A base para a TAD é a concepção do ser humano como organismo ativo e dirigido para o crescimento. Nessa perspectiva, as ações autodeterminadas são consideradas essencialmente voluntárias e endossadas pessoalmente, e as ações controladas, o resultado de pressões decorrentes de forças externas ( DA SILVA; CHIMINAZZO; FERNANDES, 2021; GUIMARÃES; BORUCHOVITCH, 2004).

Com o objetivo de compreender a energia e a direção do comportamento motivado, a TAD postula a existência de algumas necessidades psicológicas básicas que movem os seres humanos. Autonomia, competência e vínculo são considerados, pela teoria, as três principais necessidades psicológicas básicas, definidas como os nutrientes necessários para um relacionamento efetivo e saudável das pessoas com seu meio ambiente e para o desenvolvimento do comportamento motivado. Quando elas são satisfeitas, temos a sensação de bem-estar e de um efetivo funcionamento do organismo ( DA SILVA; CHIMINAZZO; FERNANDES, 2021; GUIMARÃES; BORUCHOVITCH, 2004).

Para a TAD, o conceito de autonomia é vinculado ao desejo ( MURCIA, COLL, 2006) e compreende os esforços de uma pessoa para estar na origem de suas ações, para ter voz ativa e determinar o próprio comportamento. Isso quer dizer que as pessoas seriam naturalmente mais propensas a realizar uma atividade por acreditarem que estão desejando e fazendo por vontade própria. As pessoas que vivem a experiência de realizar com êxito uma tarefa desafiadora sentem emoções positivas e tendem a querer repetir essa ação de domínio ( GUIMARÃES; BORUCHOVITCH, 2004).

Não há como negar que temos também uma necessidade de estabelecer vínculos e estar emocionalmente ligados a pessoas significativas ( GUIMARÃES; BORUCHOVITCH, 2004). A necessidade de vínculo faz referência ao esforço que fazemos para estabelecer relações e encontrar satisfação com o mundo social. O sentimento de pertencimento está relacionado com a sensação de segurança que nos deixa mais confiantes para realizar alguma ação ( MURCIA; COLL, 2006).

A TAD estabelece um modelo teórico bem detalhado no qual a motivação segue um continuum de autodeterminação para o comportamento. Esse continuum divide-se em três tipos de motivação: amotivação, motivação extrínseca e motivação intrínseca ( DA SILVA; CHIMINAZZO; FERNANDES, 2021; DECI; RYAN, 2000).

Em um extremo do continuum de autodeterminação temos a amotivação, que é caracterizada pelo sujeito que não tem intenção de realizar um comportamento por não sentir-se capaz ou por não esperar o resultado desejado. Murcia e Coll (2006) afirmam que, nesse estado, o comportamento não sofre qualquer tipo de regulação – sem lócus de causalidade. No outro extremo do continuum encontramos a motivação intrínseca, caracterizada por escolha pessoal, satisfação e prazer. A pessoa executa um determinado comportamento pelo desfrute de realizá-lo. A regulação do comportamento é intrínseca – o lócus de causalidade é interno. Entre esses dois extremos encontra-se a motivação extrínseca. Diferentemente da maioria das teorias sobre motivação, a TAD considera que a motivação extrínseca de um comportamento pode se manifestar de diferentes maneiras ( VIANA, 2009).

A motivação extrínseca é regulada externamente – o lócus de causalidade é externo. Ela pode sofrer três tipos de regulação: externa, introjetada e identificada. Na regulação externa, a pessoa geralmente se compromete com uma atividade para adquirir uma recompensa ou evitar uma punição. Na regulação introjetada, existem uma cobrança interna e um sentimento de obrigação para realizar o comportamento. E, na regulação identificada, apesar de o comportamento começar a ser regulado mais internamente – pois a pessoa começa a considerar importante e a apreciar os resultados da ação –, ainda é considerada extrínseca, porque a pessoa não executa a ação por satisfação e prazer. A regulação identificada está no limiar entre a motivação extrínseca e a motivação intrínseca. Podemos dizer que já se tem algo de interno no seu lócus de causalidade ( DECI; RYAN, 2000; MURCIA; COLL, 2006).

Como se percebe, a TAD entende que um comportamento tem, na sua origem, um lócus de causalidade que pode ser interno ou externo ( DECI; RYAN, 2000). Quanto mais um comportamento é internamente determinado, maior a motivação para realizá-lo, ao ponto que o comportamento motivado por demandas externas pode levar o indivíduo a experimentar sentimentos de fraqueza e ineficácia por estar sendo guiado por essas demandas ( GUIMARÃES; BORUCHOVITCH, 2004). Nutrir as necessidades psicológicas básicas das pessoas favorece o lócus de causalidade interna para um comportamento mais motivado.

4 Teoria da autodeterminação: possibilidades de aplicação prática

Uma vez esclarecida a TAD, trataremos a seguir de analisar algumas possibilidades de como ela poderia ser aplicada a um programa de esporte e educação a fim de alcançar maior adesão de seus participantes. Com base no exposto anteriormente, a chave do compromisso está em se alcançar um comportamento que seja o mais autodeterminado possível, ou seja, mais motivado intrinsecamente. Uma pessoa que se sente autônoma para realizar uma ação, que se sente competente para desempenhar alguma atividade e que seja valorizada pelas outras pessoas por alguma prática se sentirá mais motivada a repetir esse comportamento. A Tabela 1 contém sugestões de estratégias que podem ser utilizadas pelos educadores na busca de atender às necessidades psicológicas básicas dos educandos. E posteriormente faremos uma breve análise dessas estratégias.

Tabela 1 - Exemplos de estratégias para aumentar a motivação autodeterminada dos jovens que participam de projetos sociais de esporte e educação. 

Aumenta a sensação de: VÍNCULO Aumenta a sensação de: COMPETÊNCIA Aumenta a sensação de: AUTONOMIA
Acolhimento na adaptação Oferecer feedback positivo Possibilitar a eleição de atividades
Técnicas lúdicas de integração grupal Estabelecer objetivos de dificuldade moderada Explicar o propósito da atividade
Observação ativa dos processos de adaptação Evitar comparações de desempenho Evitar uma linguagem controladora
Espaço de escuta para os afetos Oferecer metas orientadas ao processo Utilizar recompensas de forma cuidadosa
Jogos cooperativos Vivência de êxito na tarefa Empowerment

Fonte: Os autores, modificado e adaptado de Murcia e Coll (2006).

Acolhimento na adaptação: o ato de educar não pode estar separado do ato de cuidar. Nessa perspectiva, o educador deve ter disponibilidade afetiva para oferecer aconchego e calor humano ao educando que está chegando para que ele se sinta cuidado, seguro e confortável no novo ambiente. Isso ajuda a reduzir o nível de tensão e ansiedade inicial. Deve haver uma decisão institucional e o envolvimento de todos os educadores para estruturar esse processo ( MURCIA; COLL, 2006).

Técnicas lúdicas de integração grupal: o momento do encontro de um membro com um novo grupo e do grupo com esse novo membro pode ser mediado por uma atividade lúdica com o objetivo de produzir prazer enquanto se faz a apresentação do educando a seus novos pares. A promoção saudável das relações contribui para que o educando desenvolva um sentimento de pertencimento ao grupo ( MURCIA; COLL, 2006).

Observação ativa dos processos de adaptação: ao chegar a um novo ambiente, o educando se depara com pessoas estranhas, regras e limites diferentes daqueles dos espaços aos quais ele está acostumado. É importante observar atentamente como ele está reagindo a esse processo e ter um educador mais próximo para mediar esse momento. Também é preciso paciência até que ele possa interiorizar o modus operandi do novo lugar ( MURCIA; COLL, 2006).

Espaço de escuta para os afetos: é comum os projetos sociais receberem crianças e adolescentes vítimas de violência urbana e doméstica, vindos de famílias excluídas da cadeia produtiva e que vivem na pobreza. Essa realidade pode gerar os mais diversos tipos de sofrimento. Seria ingenuidade esperar que esses jovens chegassem transbordantes de amor e alegria. É importante se vincular emocionalmente e oferecer uma morada solidária para as manifestações socioafetivas desses educandos até que eles possam mobilizar energias e recursos pessoais próprios para lidar com essa realidade. Essa ação é um exercício de humanidade e constrói um laço afetivo entre educador e educando ( MURCIA; COLL, 2006).

Jogos cooperativos: essa modalidade de jogo ameniza a individualidade e incentiva o comportamento cooperativo. O grupo precisa entrar em consenso para tomar decisões e realizar a tarefa. Ter um objetivo em comum e trabalhar em equipe favorece o desenvolvimento das relações entre os educandos ( MURCIA; COLL, 2006).

Oferecer feedback positivo : identificar e elogiar as habilidades do educando contribui para melhorar sua autoimagem e elevar sua autoestima. Esse reconhecimento desenvolve uma sensação de capacidade e autoconfiança ( MURCIA; COLL, 2006).

Estabelecer objetivos de dificuldade moderada: essa estratégia torna mais fácil alcançar sucesso em curto prazo, aumentando a sensação de competência e a motivação ( MURCIA; COLL, 2006).

Evitar comparações de desempenho: utilizar educandos que tenham alto rendimento em alguma tarefa como padrão a ser alcançado pode não ser um bom recurso motivador para os outros. Geralmente as pessoas tentam evitar maus julgamentos e parecer inferiorizadas. Em situações assim, é possível até mesmo que algum educando apresente desculpas para não participar da atividade. Essa pode ser uma estratégia encontrada por ele para se proteger e não se expor ( MURCIA; COLL, 2006).

Oferecer metas orientadas ao processo: é mais provável que o educando se comprometa com a atividade quando as metas estiveram focadas em sua melhoria pessoal, e não comparativamente com outros ( MURCIA; COLL, 2006).

Vivência de êxito na tarefa: experimentar o sentimento de satisfação por executar uma tarefa com êxito é muito motivador. O educando se sentirá mais confiante e motivado para enfrentar novos desafios. O educador pode criar situações em que educandos aparentemente amotivados tenham a oportunidade de vivenciar essa experiência ( MURCIA; COLL, 2006).

Possibilitar a eleição de atividades: é importante estimular o educando a tomar decisões. Ter voz ativa na eleição da atividade é uma forma de envolver o educando no processo e aumentar sua percepção de autonomia. Ele provavelmente vai estar mais motivado para realizar uma atividade que ajudou a escolher ( MURCIA; COLL, 2006).

Explicar o propósito da atividade: quando os objetivos da atividade são explicados com estímulo positivo e com clareza, é mais provável que o educando desenvolva uma percepção positiva da atividade e maior sensação de autonomia, uma vez que ele recebeu todas as informações necessárias para realizar a tarefa ( MURCIA; COLL, 2006).

Evitar uma linguagem controladora: esse tipo de linguagem reduz a percepção de autonomia porque leva o educando a sentir-se como um boneco obedecendo a ordens e sem qualquer controle sobre a própria ação ( MURCIA; COLL, 2006).

Utilizar recompensas de forma cuidadosa: o uso inadequado de recompensas pode reduzir a percepção de autonomia, já que essa é uma forma extrínseca de controlar o comportamento. A recompensa deve ser utilizada como ferramenta temporária enquanto o comportamento ainda não é determinado intrinsecamente ( MURCIA; COLL, 2006).

Empowerment : essa estratégia visa a criar no educando uma sensação de empoderamento pela participatividade na elaboração das normas, regras e decisões dentro do projeto. O educando pode ficar mais inclinado a se relacionar melhor com o modo de funcionamento do projeto, uma vez que este é fruto de suas próprias escolhas. Essa estratégia só terá efeito positivo na motivação do educando se o empoderamento for genuíno e sua participação tiver efeito de mudanças verdadeiras no projeto ( MURCIA; COLL, 2006).

O estilo motivacional do educador exerce importante influência no desenvolvimento da motivação intrínseca do educando. Segundo Guimarães e Boruchovitch (2004), algumas pessoas têm um perfil mais autoritário, enquanto outras teriam a tendência de respeitar o outro em suas interações. Educadores com estilo controlador estabelecem formas de comportamento específico, oferecem incentivos extrínsecos e punições para aqueles que não correspondem às suas expectativas, reduzindo o comportamento motivado. Educadores com estilo menos controlador criam situações para nutrir as necessidades de seus educandos, potencializando o comportamento autodeterminado. Além do mais, para se trabalhar e efetivar as propostas educativas dos projetos sociais que atendem crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade, é fundamental um perfil de educador que se identifique com esse público e seja engajado nessa causa. Se o educador não tem prazer com esse trabalho, jamais poderá desenvolver a motivação intrínseca de seus educandos em participar do projeto. As expectativas do educador de envolver o educando com as atividades podem ser concretizadas exatamente à medida que ele mesmo esteja motivado internamente para essa tarefa ( GUIMARÃES; BORUCHOVITCH, 2004).

5 Considerações finais

Gostaríamos de tecer, ainda, duas considerações que nos parecem relevantes para se pensar a educação em projetos sociais. Elas se referem à postura das instituições de ensino e à consciência política nos projetos sociais. Entendemos que essas questões fazem uma amarração ideológica que complementa os objetivos deste estudo.

As instituições educacionais, em sua maioria, ainda mantêm uma postura opressora na formação humana com o objetivo de tornar as pessoas mais submissas ao nosso modelo político e econômico capitalista ( FERREIRA; ACIOLY-RÉGNIER, 2010). Em suas críticas às instituições de ensino, Foucault (1995) destaca a simetria disciplinar dessas instituições com os modelos de quartéis, fábricas e hospitais. Segundo o autor, o poder disciplinar desde o século XVIII foi aperfeiçoado como técnica de gestão governamental e se fez presente também nos ambientes educacionais com o objetivo de alcançar a obediência da população e torná-la mais resignada e governável mesmo diante das injustiças sociais. Ora! Educar para a cidadania não é docilizar e aniquilar a capacidade de revolta dos educandos, é ajudá-los a canalizar essa indignação para transformá-la em uma energia que os torne capazes de enfrentar e reverter situações adversas impostas pelas injunções desse outro capitalista dominador.

Os projetos sociais do terceiro setor vêm crescendo absurdamente a cada dia que passa. Essas iniciativas precisam estar preparadas para não caírem nas armadilhas capitalistas que objetivam combater. Acontece que o seu atrelamento a recursos financeiros de diversas fontes paradoxalmente criou um “nicho” de mercado ( SILVA, 2007). As ações que nascem para amenizar as desigualdades sociais acabam muitas vezes disputando a mesma lógica de mercado que criou a necessidade de seu surgimento. Os projetos sociais são muito valiosos na atual conjuntura econômica e social do nosso país. É importante que eles tenham uma consciência política para não serem capturados pelos discursos neoliberais. Somente assim conseguirão efetivar com coerência o compromisso e a responsabilidade social que desejam. Sabemos que precisamos de financiamentos para o projeto funcionar e, também, preparar os jovens que deles participam para o mercado de trabalho; desse enredamento ninguém escapa. Só estamos alertando para que a lógica mercadológica não distancie os projetos sociais de sua essência transformadora e de resgate da dimensão humana. É preciso que se pergunte a todo o momento: a serviço do quê e de quem nós estamos?

Acreditamos verdadeiramente no potencial transformador que os projetos sociais têm na vida das pessoas, especialmente nas oportunidades de desenvolvimento integral que os projetos de esporte e educação podem oferecer para crianças e adolescentes vítimas da fragilidade dos processos de ensino aprendizagem oferecidos pelas escolas públicas. Foi com tal convicção e inspirado em diversos trabalhos de investigação teórica e prática sobre a TAD que este estudo apresentou algumas estratégias para aumentar a sensação de vínculo, competência e autonomia dos participantes de projetos sociais de esporte e educação e, consequentemente, aumentar também sua permanência e compromisso com o projeto. O desenvolvimento da motivação, a partir do viés da TAD, é entendido como um fim não somente para as demandas do projeto, mas para todas as realidades vividas pelos educandos.

Nosso sonho é concretizar uma práxis em educação que coloca crianças e adolescentes como sujeitos de direitos e desejos, e não como objetos a serem modelados. Esse nos parece um bom caminho para reinventar os mapas de emancipação social e da subjetividade dos nossos educandos. Como próximos passos para essa pesquisa, entendemos a necessidade de uma avaliação da implementação e dos resultados dessa estratégia para verificar se apresenta potencial de reduzir os índices de evasão e pode ser replicada em outros projetos, validando, então, a sustentação dessa base teórica para a proposta e verificando se há impacto significativo para transformar a realidade.

Referências

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1Fonte: banco de dados do Setor de Serviço Social do IGK.

Recebido: 18 de Junho de 2021; Aceito: 17 de Maio de 2022

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