1 Introdução
Imagem corporal é a representação mental do próprio corpo (SCHILDER, 1999). Esse constructo pode ser compreendido como um fenômeno multifacetado, complexo e individual que abarca características da personalidade tanto positivas como negativas (CASH; SMOLAK, 2011). A imagem corporal negativa se refere à preocupação demasiada com a aparência corporal e aos sentimentos de desgosto profundo com o próprio corpo (STRACHAN; CASH, 2002; CASH; SMOLAK, 2011), enquanto a imagem corporal positiva se caracteriza pelas atitudes de amor e respeito ao próprio corpo (MORGADO et al., 2013; TYLKA; WOOD-BARCALOW, 2015).
No que tange à imagem corporal positiva, a autoaceitação, um dos temas de ampla relevância a ser investigado nos mais variados públicos, é entendida como a aceitação de si mesmo da maneira que se é por meio do reconhecimento das próprias características positivas e negativas e da valorização das consideradas positivas (CHAMBERLAIN; HAAGA, 2001; RYFF; SINGER, 2008).
Deficiência visual consiste em qualquer alteração no sistema óptico que pode levar tanto à baixa visão como à cegueira (BOURNE et al., 2017; RIBEIRO, 2017; OTTAIANO et al., 2019). Em adolescentes com essa condição, especialmente, o estudo da autoaceitação é essencial. Além de a autoaceitação ser considerada uma importante atitude que reforça as características positivas da imagem corporal (MORGADO; CAMPANA; TAVARES, 2014; MORGADO et al., 2017), diferentes estudos têm apontado que adolescentes com deficiência visual podem ser considerados um grupo de risco para o desenvolvimento de alterações relacionadas com a imagem corporal. Insatisfação corporal (ASHIKALI; DITTIMAR, 2010; HALDER; DATTA, 2011), anorexia (EIRAS et al., 2012) e checagem corporal (GULER; ARMAN; GENSEN, 2012) são alterações já identificadas na literatura prévia, todavia há escassez de investigações sobre a autoaceitação, a qual é uma característica positiva da identidade que pode contribuir para otimizar a imagem corporal positiva em adolescentes com deficiência visual (MORGADO; CAMPANA; TAVARES, 2014).
Nesse contexto, a escola e, particularmente, as aulas de Educação Física escolar são espaços pedagógicos de ampla relevância para abordar a autoaceitação. Há registros na literatura que destacam que a prática de atividade física é vista como uma importante iniciadora e mantenedora da autoaceitação (NEUMARK-SZTAINER et al., 2003; CRONE; SMITH; GOUGH, 2005; MORGADO; CAMPANA; TAVARES, 2014). As diferentes possibilidades de experiências corporais que são oferecidas nas aulas de Educação Física escolar podem viabilizar uma relação de afeto e amor com o próprio corpo a partir do reconhecimento das próprias capacidades e limitações e da valorização das características positivas da personalidade. Outrossim, compreender as percepções de adolescentes com deficiência visual sobre a autoaceitação pode contribuir para que projetos socioculturais e políticas públicas na área sejam mais significativos, sobretudo, nas aulas de Educação Física escolar.
Desse modo, este estudo teve por objetivo investigar percepções acerca das atitudes relacionadas com a autoaceitação de adolescentes escolares com deficiência visual, com atenção especial ao contexto das aulas de Educação Física escolar.
2 Método
Este estudo caracterizou-se por uma abordagem qualitativa, de corte transversal e do tipo descritiva.
2.1 Aspectos éticos
O presente estudo foi aprovado no Comitê de Ética na Pesquisa da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), sob o protocolo nº 23083.026274/2019-70. Os participantes maiores de idade assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), os adolescentes com menos de 18 anos assinaram o Termo de Assentimento Livre e Esclarecido (TALE) e seus representantes legais foram informados acerca da pesquisa pelo TCLE.
2.2 Participantes
Participaram deste estudo 16 adolescentes com deficiência visual regularmente matriculados em instituições escolares, como exemplo: o Instituto Benjamin Constant (IBC), o Centro Educacional Municipal de Atendimento a Deficientes Visuais de Resende (CEDEVIR), ambos no Rio de Janeiro, e o Instituto Paranaense de Cegos de Curitiba (IPC), no Paraná. A escolha dessas instituições se deu pelo fato de trabalharem com a faixa etária e o público-alvo de interesse desta pesquisa. Alguns participantes foram contatados pelas redes sociais. Foram incluídos adolescentes de ambos os sexos, na faixa etária de 11 a 19 anos, que autorreportaram possuir algum tipo de deficiência visual e ter acesso à internet para o momento on-line de coleta de dados. Foram excluídos adolescentes escolares com outro tipo de deficiência além da visual.
2.3 Instrumentos
Um questionário sociodemográfico foi utilizado para recolher informações sobre os participantes, como faixa etária, estado, sexo, tipo de deficiência visual, escolaridade e prática de atividade física. Também foi aplicado um roteiro de entrevista semiestruturada on-line, o qual continha diferentes questões relacionadas com a autoaceitação no contexto da Educação Física escolar, como, por exemplo: Poderia falar, com suas palavras, o que você entende por autoaceitação?; Na escola, você se lembra de alguma situação que o levou a conversar/refletir sobre autoaceitação? Poderia nos contar como foi? Nas aulas de Educação Física escolar, você se lembra de ter passado por alguma situação em que precisou conversar/refletir sobre autoaceitação? Poderia falar um pouco mais sobre isso?
2.4 Procedimentos de coleta de dados
Inicialmente, fora feito contato com as instituições mencionadas, as quais autorizaram a realização da pesquisa, para solicitar o contato dos responsáveis legais dos adolescentes menores de 18 anos e o contato dos adolescentes maiores de idade (18 e 19 anos). Os responsáveis e/ou os participantes foram convidados a participar do estudo após o estabelecimento do contato pela pesquisadora. Os participantes que aceitaram o convite também indicaram outros participantes, caracterizando o modelo de coleta snowball (VINUTO, 2014). Devido ao cenário pandêmico associado à COVID-19, toda a coleta de dados foi feita de modo remoto pela plataforma virtual Google Meet, a qual foi reportada pelos participantes como acessível para a realização de videoconferências e afins. As entrevistas on-line foram realizadas individualmente, com data e horário marcados, apenas com a presença do responsável, caso o participante fosse menor de idade e tivesse interesse, além das pesquisadoras. O TCLE e o TALE foram lidos pelas pesquisadoras aos participantes no momento da entrevista e todas as dúvidas sobre os procedimentos éticos foram sanadas.
2.5 Análise dos dados
Depois da conclusão de todas as entrevistas e de suas respectivas transcrições, foi utilizada a técnica de análise de conteúdo (BARDIN, 2016), cujas seguintes etapas foram adotadas: (1) pré-análise (2) exploração do material e (3) tratamento dos resultados, inferência e interpretação. O conteúdo das entrevistas foi, portanto, interpretado considerando-se a formação de categorias, as quais apresentaram similaridades entre os relatos da população alvo. Para caracterizar a amostra, realizou-se uma análise descritiva dos dados, e, para caracterizar os participantes, eles foram numerados de um a 16, sendo utilizadas, neste estudo, as abreviações “fem.”, representando as participantes do sexo feminino, e “masc.”, referindo-se aos do sexo masculino.
3 Resultados
Entre os 16 adolescentes com deficiência visual que participaram deste estudo, seis são do sexo feminino e a média de idade foi de 17,31 anos (desvio padrão [DP] = 2,06). Outras características da amostra podem ser visualizadas na Tabela 1.
Tabela 1 Características amostrais.
Características | Total (n= 16) |
---|---|
Média idade (anos) Idade mínima – máxima (anos) |
17,31 anos (DP = 2,06) 12/19 |
Sexo (masculino/feminino) | 10/6 |
Estado (CE/PB/PR/RJ/SC/SP) | 1/1/2/5/2/5 |
Tipo de deficiência visual (BV/CA/CC) | 1/5/10 |
Escolaridade (EFI/EMI/EMC/ES) Ensino (turma regular/segregada) |
2/10/3/1 9/7 |
Prática de exercício físico (sim/não) | 12/4 |
DP = desvio padrão; CE = Ceará; PB = Paraíba; PR = Paraná; RJ = Rio de Janeiro; SC = Santa Catarina; SP = São Paulo; BV = baixa visão; CA = cegueira adquirida; CC = cegueira congênita; EFI = ensino fundamental incompleto; EMI = ensino médio incompleto; EMC = ensino médio completo; ES = ensino superior.Fonte: Autoria própria.
A partir da análise de conteúdo das entrevistas realizadas, três categorias foram elaboradas: (1) autoaceitação – refere-se às crenças e aos sentimentos relacionados com a autoaceitação, bem como a percepção dos participantes sobre o conceito; (2) ambiente escolar e autoaceitação – situações como o bullying vivenciadas pelos participantes no ambiente escolar e o papel do professor nesse processo; (3) Educação Física escolar e autoaceitação – abordagem a respeito da autoaceitação percebida pelos participantes durante a realização das aulas de Educação Física (Figura 1).
4 Discussão
4.1 Autoaceitação
Nesta categoria, os participantes reportaram suas percepções, seus sentimentos e suas crenças a respeito da autoaceitação. Ao serem questionados sobre o que entendem como autoaceitação, algumas percepções foram ao encontro do que tem sido apresentado na literatura (CHAMBERLAIN; HAAGA, 2001; MORGADO et al.,2014), como percebido nos seguintes relatos dos participantes 02, 03 e 09: “Ah, se aceitar do jeito que é” (participante 02 fem.); “É, pra mim, é uma parte que as pessoas se aceitam, né, do jeito que é” [sic] (participante 09 fem.); “Ah, eu entendo como aceitar eu mesmo do jeito que eu sou sem ficar me preocupando muito, sem ficar com tanta frescura... eu entendo dessa forma” (participante 03 masc.).
De modo mais detalhado, Chamberlain e Haaga (2001) e Ceyhan e Ceyhan (2011) definem a autoaceitação como a aceitação individual, completa e incondicional dos próprios atributos, positivos e negativos. Ela está relacionada a índices maiores de felicidade e menores declínios de humor frente às situações emocionalmente desafiadoras.
Em continuidade, dois participantes expandiram a definição, demonstrando que a autoaceitação envolve tanto características físicas como da própria personalidade:
[...] é uma expressão pra você se aceitar do jeito que é [...] da questão de ah, você é gordo... eu não me importo com isso, se sou magro demais também não me importo com isso, com esse tipo de cabelo, com esse tom de pele, não me importo com isso. Esse é o conceito de autoaceitação que eu entendo. [sic]
(participante 04 masc.)
Bom, autoaceitação é quando a pessoa se aceita do jeito que ela é. Eu, digamos que eu me aceito do jeito que sou. Claro que às vezes uma coisa ali, uma coisa aqui me incomoda, mas eu me aceito do jeito que sou. [sic]
(participante 05 fem.)
A fala da participante 05 corrobora o estudo de Tylka (2011), pois a autora salienta que aceitação do corpo está ligada às atitudes de afeto e conforto pelo próprio corpo, mesmo que não haja satisfação com todas as partes desse corpo. Achados subsequentes revelam que a autoaceitação é considerada um mecanismo psicológico vital para o quadro de imagem corporal positiva e, por conseguinte, um importante componente para o desenvolvimento integrado da personalidade, sobretudo em se tratando de sujeitos com alguma deficiência (WOOD-BARCALOW; TYLKA; AUGUSTUS- HORVATH, 2010; MORGADO et al., 2014).
Nesse sentido, algumas falas apresentam de forma clara que a autoaceitação está diretamente ligada à aceitação da deficiência, como relatado em:
[..] em questão da visão, sim, várias vezes, até porque meu irmão também já sofreu com isso, em aceitar a deficiência dele e eu também já sofri com isso. Então, eu entendo que a autoaceitação seria a gente aceitar a nossa deficiência, sabe? Ter a consciência que a gente tem a deficiência, que temos que saber lidar com isso com sabedoria, paciência e que é uma coisa que Deus colocou na nossa vida pra gente poder seguir, entende? Então, eu coloco isso na cabeça, se eu vim com essa deficiência é porque sou capaz de viver com ela, lidar com ela. Claro que tem momentos que é chato que a gente pensa por que veio com essa deficiência, eu mesma não penso mais nisso [...] então eu entendo como isso, a gente aceitar a nossa deficiência, como a gente é, entende? [sic]
(participante 08 fem.)
Assim, na minha concepção, é você se aceitar da forma que você é, por exemplo, tem pessoas que perdem a visão e não se aceitam, acabam virando ateias ou ateus, pensam que Deus não existe porque perderam a visão, saem da presença de Deus e tal. Então, assim, não só na área da pessoa perder a visão, mas a pessoa que também nasceu cega né, tem muitas pessoas que passam a vida inteira pedindo pra Deus curar porque não se aceita como deficiente né. [sic]
(participante 12 masc.)
Também presente na fala:
“Eu acho que é o nível que você não se incomoda com as coisas da deficiência, sabe? O nível de costume também, saber lidar com a deficiência, entende?” (participante 10 masc.).
As falas dos participantes 08 e 12 chamam a atenção para o aspecto da presença da figura divina. O participante 12 menciona que muitas pessoas pedem para ser curadas da deficiência, atribuindo-a, presumivelmente, a uma doença ou maldição. Esse aspecto da “cura” da deficiência norteou as discussões do modelo médico da deficiência, cujos focos são a “cura” e/ou a reabilitação, na tentativa de fazer que o sujeito alcance o estado de “normalidade” (BISOL; PEGORINI; VALENTINI, 2017). Dessa forma, com base nessas falas, evidencia-se que o modelo médico ainda perdura na sociedade. Compreende-se a importância dos pressupostos da saúde na vida do indivíduo com deficiência, sobretudo porque atuam como norteadores para o trabalho interdisciplinar, especialmente na escola. Há, no entanto, a necessidade de considerar as potencialidades e características de cada sujeito para além da esfera biológica, a fim de que ele se desenvolva integralmente, pois, conforme postula Vigotski (1995), o desenvolvimento cultural é o campo em que é factível potencializar o desenvolvimento da pessoa com a deficiência.
Quando se trata de pessoas com deficiência visual, o contato com a família e os pares é essencial no desenvolvimento global da criança (NUNES; LOMÔNACO, 2010), no entanto Jenks (2005) salienta algumas emoções que mães de crianças com cegueira podem sentir em relação à condição de seus filhos: tristeza, medo, ressentimento, ansiedade e negação. Isso ocorre porque, conforme Barnett et al. (2003), criar um filho com deficiência congênita é desafiador para muitas famílias.
Essa questão desafiadora pode ser observada também no seguinte relato do participante 12, em que ele revela a possível negação dos pais sobre a deficiência:
[...] eu passei minha vida inteira, vida inteira não, eu orava pra Deus me curar, era mais porque meus pais pediam mais do que eu queria. Só que teve um dia que eu parei, e eu falo que cancelei a cura. Dele, tanto que Ele não me cura por conta disso, porque a gente concordou que não precisa ser curado, porque Ele me fez entender que minha deficiência não precisa ser curada, não é uma maldição, uma doença, é algo que faz parte de mim, então eu me auto aceitei, aceite o que eu sou. [sic]
(participante 12 masc.)
O fato de os pais do participante 12 pedirem para que ele orasse a Deus com o objetivo de obter a cura pode revelar uma ruptura de expectativas de um filho considerado ideal. Conforme Morgado et al. (2014), alguns pais vivenciam desgosto e estresse psicológico porque o filho real, com deficiência visual, não corresponde aos anseios do filho previamente idealizado. Embora os pais possivelmente concordem com as normas médicas da deficiência, a explanação do participante demonstra que a deficiência não é algo a ser curado, e, sim, aceito como característica e parte integrante do sujeito, que é histórico e social (QUINTANILHA et al., 2021).
Outro aspecto salutar analisado na fala dos depoentes foi o conceito de autoaceitação vinculado à influência dos pares. Gonçalves e Martínez (2014) e Copetti e Quiroga (2018) atestam que as transformações decorrentes do período da adolescência impactam na autoaceitação, a qual também está condicionada aos padrões sociais determinados pelos pares, os quais, juntamente com os familiares, por vezes, colaboram para a necessidade de os adolescentes se sentirem aceitos dentro dessas expectativas sociais. Os relatos dos participantes 11 e 15 exemplificam essa questão:
“A forma que você se vê, acho que é isso. A forma a qual você se vê e outra coisa também já que é minha opinião, como você é incluído em alguns grupos também” (participante 11 masc.) e “[...] e eu me preocupo com a opinião dos outros e eu acho que autoaceitação seria não me preocupar” [sic]
(participante 15 masc.).
Percebe-se que ambos os participantes atribuem a autoaceitação ao aspecto social. O participante 11 revela que a autoaceitação também está associada ao senso de pertencimento a um grupo, a se sentir aceito.
Em suma, é possível depreender, a partir dos relatos da maioria dos participantes, que os sentimentos, as crenças e as percepções relacionados com a autoaceitação estão vinculados à aceitação da deficiência como parte da experiência diária, por mais que ainda se perceba a concepção médica da deficiência entre familiares e pares. Além disso, também se observou a influência dos pares no processo de autoaceitação e como isso impacta na busca por identidade e desejo de pertencer a um grupo social. Outrossim, de acordo com Quintanilha et al. (2021), há uma escassez de estudos recentes no Brasil acerca da temática imagem corporal e deficiência visual, urgindo a necessidade de que mais pesquisas sejam produzidas. Posto isso, ratifica-se a indispensabilidade de ações pedagógicas nesse âmbito, maiormente no ambiente escolar, onde debates acerca de aparência, comparação social e preocupações com a imagem corporal são comuns entre os alunos.
4.2 Ambiente escolar e autoaceitação
Nesta categoria, os participantes foram estimulados a responder se, no ambiente escolar, já haviam passado por alguma situação em que precisaram pensar sobre a autoaceitação. À vista disso, formaram-se duas subcategorias: bullying e o papel do professor. Alguns participantes externaram nunca ter vivenciado uma situação de bullying, como observado em: “Não, nunca tive, graças a Deus” (participante 07 masc.); “Na verdade, não, porque desde quando eu perdi a visão, eu sempre pensei, né? (participante 04 masc.).
Nota-se que, na fala do participante 04, o processo de aceitar a deficiência pode ter ocorrido antes de entrar na escola, diferentemente do que foi apresentado pela participante 06: “Olha, aconteceu muitas coisas sim, poucas eu lembro, né? Mas precisei pensar em me aceitar do jeito que eu sou né? Até então eu não me aceitava não” (participante 06 fem.), o que corrobora a fala da participante 09: “Sim, porque eu não aceitava ser deficiente” (participante 09 fem.).
Em indivíduos com deficiência visual, o processo de autoaceitação pode ser complexo e marcado por conflitos, especialmente após a entrada no meio escolar, onde crianças e adolescentes aprendem a conviver com as diferenças e experimentam esse processo tanto de forma positiva como negativa (NUNES; LOMÔNACO, 2010). Corroborando esse pensamento, quanto ao campo social, desde a mais tenra idade, a criança socializa-se na família e fora dela, ou seja, na creche, na escola, nas brincadeiras e nos contatos informais com os indivíduos.
À vista disso, na escola, as relações interpessoais podem assumir formas específicas, como o bullying entre os pares. Alguns participantes detalharam as situações de bullying vivenciadas dentro da escola por conta da deficiência:
Eu tive uma época, que eu estudei em uma escola que era todo mundo praticamente igual, né. No [nome da instituição], eu passei 17 anos da minha vida lá, então, tipo, minha vida praticamente inteira foi lá. Daí eu saí de lá e fui pra um colégio normal que é onde eu tô agora, [nome da instituição], e eu não fui bem recebido da forma que eu esperava, eu sentia muita... assim, não que eu ligue, ah, o (nome do participante) é cego, ai ele não enxerga, eu não ligo pra nenhum tipo de pergunta em relação a minha deficiência. Só que eu sempre senti no meu colégio distanciamento das pessoas por conta disso, entendeu? Tipo assim, se aproximavam de mim, por exemplo, quando eu chegava lá com meu celular e meu celular fala, aí vinha um pessoal, nossa, você mexe no celular e aí eu fazia questão de apresentar e tal [...] então, eu acho que esse foi o momento que eu tive que refletir sobre autoaceitação. [sic]
(participante 15 masc.)
No começo, sempre tem aquelas brincadeiras de adolescente de ficar botando apelido nos outros, zoando um com a cara do outro e de começo tinha alguns colegas meus que ficavam zoando com a minha cara pela minha deficiência [...] [sic]
(participante 04 masc.)
As elocuções dos participantes certificam os achados de Ball et al. (2021), em que o bullying é predominante entre crianças e adolescentes com deficiência visual em comparação com os pares sem deficiência. Diante do exposto, conhecer os episódios de bullying e sua relação com autoaceitação dentro dos espaços formativos possibilita elaborar estratégias que visem à prevenção desse fenômeno recorrente.
Em conjunto com essas elocuções, um fato interessante foi apresentado pelo participante 03, o qual demonstra que o processo de autoaceitação dentro da escola ocorreu devido à necessidade de aceitar que precisa utilizar a bengala, como demonstrado a seguir:
É que eu sempre deixei muito aberto pras pessoas, mas no ensino fundamental eu notava bastante da parte ah, da criança normal né, uns adolescentes. Ah, ó o ceguinho, ah que feio usando bengala, eu ouvia comentários assim, isso foi uma aceitação pra mim, porque eu preciso aceitar que eu preciso e não ficar pensando nos comentários a respeito. [sic]
(participante 03 masc.)
Conforme explicitam Roentgen et al. (2009), as pessoas com cegueira podem dispor de algumas formas de auxílio para a obtenção de uma locomoção segura, das quais a bengala é a mais usual e de custo acessível, contudo, e apesar da importância desse dispositivo, alguns usuários ainda apresentam resistência para sua utilização (Santos, 2019). De acordo com Lugli et al. (2016), isso ocorre porque há um estigma associado a esses dispositivos, pois a bengala é vista como um instrumento identificador da deficiência, o que pode impactar a autoestima do usuário. No caso do participante 03, pode ter influenciado o processo de autoaceitação.
Ainda na esfera estudantil, a figura do professor merece destaque. De acordo com Ibrahim e Zataari (2019), a relação entre professor e aluno é a mais marcante e afetiva dentro do ambiente escolar. Tendo em vista esse enfoque, dois participantes relataram a importância do professor no processo de autoaceitação:
Assim, nessa escola regular entre aspas como, literalmente, 99,9% das pessoas que estudam lá enxergam normal, só praticamente eu de deficiente visual na escola toda, é... existe um professor que ele também me ensinou daqui do [nome do instituto], ele demonstrou isso não pra mim, mas pras outras pessoas da minha sala como era difícil né a situação, ele pegou o alfabeto em braile e entregou pra todos os alunos e pediu pra que todos os alunos fechassem os olhos e tentassem ler da mesma forma que eu fazia, eles sentirem na pele como era que eu vivia, né, aquela situação pra eles literalmente me aceitarem, literalmente, como uma pessoa normal na sala. [sic]
(participante 04 masc.).
[...] só um dia que a professora chegou em mim comentando que, assim, que ela viu que eu tava bem cabisbaixa porque eu não conseguia enxergar a lousa e tem pessoas na sala que não aceita ajudar, acha que incomoda e tudo mais. E eu me atrasava muitas vezes e aí eu tinha que fazer tudo correndo depois, chegar na professora e pedir tudo pra professora e isso me incomodava muito e, por conta disso, eu ficava bem triste. Não conseguia me aceitar e uma professora chegou em mim falando que eu era capaz e que a vida é assim, feita de dificuldades e é aonde a gente consegue aceitar, nas dificuldades, que a gente aceita o que a gente é. E aquilo me fez pensar muito, sabe? [sic]
(participante 08 fem.).
E, quando indagada pela entrevistadora se, naquele momento, o posicionamento da professora lhe havia ajudado, a participante 08 pontualmente explanou: “Ajudou, não só naquele momento, eu levei a frase pra vida inteira” (participante 08 fem.).
Em síntese, dentro dos espaços escolares há situações que impactam negativamente a imagem corporal, como o bullying, sobretudo no processo de autoaceitação de adolescentes com deficiência visual, no entanto os relatos apresentados nessa categoria evidenciam que há figuras importantes nesse processo, como o professor, o qual impacta e deve continuar impactando de modo positivo a vida de cada estudante para além dos muros escolares.
4.3 Educação Física escolar e autoaceitação
Nesta categoria, os entrevistados foram questionados se, nas aulas de Educação Física, já havia sido debatida a autoaceitação. Conforme Morgado et al. (2013) salientam, as aulas de Educação Física necessitam viabilizar o maior repertório motor aos alunos, objetivando a autonomia dos movimentos corporais, podendo contribuir para o desenvolvimento de uma imagem corporal integrada, positiva e com projeção para a vida adulta. Sendo a autoaceitação considerada precursora da imagem corporal positiva, abordar esse constructo nas aulas é essencial.
Os participantes revelaram, no entanto, a ausência de desenvolvimento da temática, como visto em: “Não, nada” (participante 11 masc.); “Não, que eu me lembre não” (participante 12 masc.); “Não, não é um tema muito comum em escola, né?” (participante 03 masc.). A fala do participante 03 demonstra que, na visão dele, a autoaceitação não é um conteúdo dos ambientes escolares, contudo, Yager et al. (2013) afirmam que a escola é o principal local para se trabalharem as experiências corporais relacionadas com o corpo, o que contribui de modo importante para fomentar as características positivas da imagem corporal, como a autoaceitação.
Um aspecto interessante foi observado na fala da participante 16 quando ela diz que nenhuma aula abordou o constructo autoaceitação: “Não, nenhuma, apesar de agora a gente tá tendo aula de filosofia, projeto de vida e ensino religioso, nenhuma delas falou disso [...]” (participante 16 fem.). Diante dessa explanação, percebe-se que a participante atribui a autoaceitação ao campo das ciências humanas, numa perspectiva mais teórica. Essa fala pode suscitar indícios de uma compreensão de que há um distanciamento da Educação Física referente aos assuntos considerados “teóricos”. As pesquisas de Crone, Smith e Gough (2005) e Morgado, Campana e Tavares (2014) demonstram, entretanto, que a prática de atividade física, presente nas aulas de Educação Física, é elementar no processo de autoaceitação.
Corroborando o entendimento desses autores sobre a importância da abordagem da autoaceitação dentro das instituições escolares, o participante 12 salientou: “Não, a gente nunca teve essa aula sobre autoaceitação e é até uma coisa que eu bato nessa tecla de trabalharem essas questões, educação psicológica, uma coisa que é pra ter nas escolas e não temos” [sic] (participante 12 masc.). Vale destacar que este estudo se preocupou em conhecer as percepções dos estudantes acerca das atitudes relacionadas com a autoaceitação. Assim, não é possível inferir que a temática da autoaceitação não tem sido trabalhada nas aulas de Educação Física, porém inferimos que os relatos dos estudantes demonstram que eles não percebem a abordagem pedagógica dessa temática nas aulas, ou seja, talvez algumas abordagens propostas pelo professor considerem o constructo de autoaceitação dentro da organização das suas atividades; entretanto os participantes incluídos neste estudo não as percebem ao ponto de as mencionarem como representativas para eles. Esse fato configura uma questão importante que deve estar sob foco de atenção de professores, pesquisadores e estudiosos da área.
Para além do ambiente escolar, a entrevistadora perguntou ao participante 07, o qual pratica goalball num centro de treinamento esportivo, se já foi abordado algo sobre a autoaceitação, e que ele sucintamente respondeu: “Também não” (participante 07 masc.). Essa fala chama atenção para a necessidade de se trabalhar a autoaceitação para além dos espaços escolares, de modo que os estudantes reconheçam o conteúdo nas aulas.
Ainda na esteira escolar, mais dois participantes responderam que em nenhuma aula de Educação Física foi abordada a autoaceitação, todavia ambos explanaram sobre a adaptação de uma atividade feita pela professora, possibilitando que participassem da aula:
Então, em nenhuma aula teve. A professora fez um vôlei toalha, ela pediu pra todo mundo levar toalha e cada um segurava numa ponta da toalha e aí ela explicou pra gente que aquilo ali seria pra mim pro (nome do irmão dela) porque, assim, como a gente não enxerga a bola, vamos supor, a bola está vindo pra esquerda, eles puxam a toalha pra esquerda e eu e meu irmão a gente vai junto com eles, entende? [sic]
(participante 08 fem.)
Ah, não. Mas tinha uma coisa que era muito legal era que a professora adaptava, por exemplo o vôlei, essa matéria saiu até no jornal de São Paulo que eu esqueci até o nome e a minha professora tava passando o vôlei e eu não conseguia jogar né e aí ela pegou uma toalha, juntou o pessoal da turma e fez um vôlei de toalha pra gente jogar. [sic]
(participante 10 masc.)
Quanto às aulas de Educação Física escolar, Morgado et al. (2017) salientam que as atividades pedagógicas podem ser adaptadas com o fito de ofertar oportunidades motoras distintas e acessíveis às diferentes condições individuais. Essa afirmação dos autores é sustentada com a adaptação da atividade realizada pela professora dos participantes. Em continuidade, Garrahy (2015) salienta a relevância da Educação Física adaptada para alunos com deficiência, uma vez que os estudantes podem adquirir habilidades motoras fundamentais por meio de jogos, esportes e atividades recreativas.
Pode-se depreender a partir do relato do participante 10 o quão significativo e prazeroso foi realizar a atividade com toda a turma. Igualmente, a participante 08 ainda acrescentou: “Sim. Eu gostei e vi que assim a professora teve uma consideração, sabe? Com a gente” (participante 08 fem.). Com esses dois relatos, evidencia-se a inevitabilidade de o professor ressignificar sua prática ante as necessidades encontradas na rotina escolar, especialmente quando há alunos com deficiência.
5 Considerações finais
Este estudo objetivou investigar percepções acerca das atitudes relacionadas com a autoaceitação de adolescentes escolares com deficiência visual, com atenção especial ao contexto das aulas de Educação Física escolar. A partir dos dados coletados e discutidos neste estudo, identificou-se que as percepções acerca do conceito de autoaceitação dos participantes são condizentes com a literatura na área. Quanto aos sentimentos e às crenças, foi possível constatar que a autoaceitação, por parte de alguns participantes, estava diretamente relacionada com a aceitação da deficiência visual. Evidenciaram-se concepções históricas sobre a deficiência, como o modelo médico, em algumas explanações. Além disso, observou-se a influência dos pares no processo de autoaceitação.
No que tange ao ambiente escolar, demonstraram-se aspectos como o bullying, o qual, na maioria dos casos, relaciona-se com a deficiência visual e impacta na autoaceitação; no entanto também se constatou a influência positiva do professor nesse processo. Em função das aulas de Educação Física, salienta-se que, na percepção dos participantes deste estudo, a autoaceitação não é uma atitude comumente abordada diretamente nas aulas. Esse quadro indispensavelmente necessita ser transformado, sobretudo porque é nessa disciplina que o corpo é o foco de trabalho, podendo contribuir para a construção de uma imagem corporal positiva, plena e integrada.
Em síntese, como implicação prática, este estudo aponta para a necessidade de mais pesquisas no âmbito da imagem corporal, especialmente a imagem corporal positiva em adolescentes com deficiência visual. Em complemento, é necessário investigar cientificamente questões de interseccionalidade (gênero, etnia, classe social, entre outros) na formação da imagem corporal de adolescentes com deficiência visual, o que pode contribuir para o desenvolvimento de pesquisas futuras mais consistentes, fornecendo subsídios para pesquisadores e professores. Além disso, é importante que a autoaceitação seja abordada no ambiente escolar, notadamente nas aulas de Educação Física, visando ao desenvolvimento pleno e integrado da identidade corporal de adolescentes com deficiência visual por meio de ações socioeducativas e políticas públicas assertivas e eficazes.