1 Introdução
Este trabalho discute os dados da pesquisa1 que teve como foco principal a investigação de como o método Teatro do Oprimido pode contribuir na construção do projeto de vida de jovens em cumprimento de medidas socioeducativas (Liberdade Assistida) no Centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS) em um município do interior paulista. O artigo descreve brevemente a relação entre o Teatro do Oprimido e a Educação em Direitos Humanos e como se sucede a construção do projeto de vida com jovens em cumprimento de medidas socioeducativas.
Nessa perspectiva, o estudo insere-se no contexto da socioeducação, uma vez que as medidas socioeducativas são aplicadas aos jovens (aos quais foi atribuída a autoria de atos infracionais) e estão determinadas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, 1990) e regulamentadas pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE, 2012) (COSTA, 2018).
O projeto de vida é integrante do processo de jovens em cumprimento de medidas socioeducativas e deve ser proposto no Plano Individual de Atendimento (PIA). Segundo Costa (2017), projeto de vida é um artifício que corresponde à construção, por atribuição do indivíduo, de propósitos de ações direcionados ao futuro, associando-se à identidade e às circunstâncias dos contextos econômicos, culturais e sociais. É necessário, todavia, elencar o futuro como tempos diferentes: curto, médio e longo prazos. Problematizamos essa forma dominante de compreender o projeto de vida, sendo necessário considerar a historicidade e a materialidade das vivências dos sujeitos para se prospectar o futuro.
Nesse sentido, na pesquisa empregou-se os processos sobre palavra, imagem e som (BOAL, 2019), para verificar quais questões constituem e compõem o(s) projetos de vida dos jovens em cumprimento de medidas socioeducativas e quais intervenções existem em suas projeções vivenciais e existenciais.
2 Teatro do oprimido e educação em direitos humanos
A Educação em Direitos Humanos (EDH) é, de acordo com Tavares (2007), um dos principais instrumentos de combate às violações de direitos humanos, uma vez que se orienta na valorização da dignidade e nos princípios democráticos. A EDH permite a afirmação dos direitos e das responsabilidades, preparando sujeitos conscientes de seu papel social na luta contra as desigualdades e injustiças, significando que é imprescindível atuar na formação de sujeitos ativos na luta por seus direitos e na efetivação de suas responsabilidades, mobilizando e conscientizando os indivíduos sobre o respeito ao ser humano e os problemas sociais.
Portanto, “educar em direitos humanos significa ter a vida cotidiana como referência contínua. É um aprendizado que não ocorre de forma pontual ou isolada, mas que, sistematicamente, faz parte da ação educacional” (TAVARES, 2007, p. 500). Logo, é necessário que a Educação em Direitos Humanos se aproxime de outras tendências, a cumprir a premissa de estar presente no cotidiano dos sujeitos. Por conseguinte, partimos do pressuposto de que o Teatro do Oprimido e a Educação em Direitos Humanos podem conceber essa circunstância.
O Teatro do Oprimido (TO) é um método cênico-pedagógico em constante conflito, luta, movimento e transformação. Concernente como uma composição da linguagem, é possível de se executar falas e escutas de todos os temas que se referem à vida social humana. Em vista disso, o Teatro do Oprimido, idealizado na segunda metade do século XX, originou-se em reação à alienação do Teatro Tradicional e como mecanismo de descolonização dos saberes (CAMPOS; PANÚNCIO-PINTO; SAEKI, 2014, p. 553).
O Teatro do Oprimido, portanto, proposto na década de 1970 pelo diretor e teórico teatral Augusto Boal, orientou-se a ser desenvolvido buscando os caminhos de libertação, por meio da transformação, modificando, assim, a sociedade, e não apenas interpretando-a, uma vez que o TO é para os oprimidos, sobre os oprimidos e com os oprimidos, no qual o drama é real, estético, teatral e cotidiano. Nessa perspectiva, conforme Boal (2014, p. 20) “o teatro é isso: a arte de nos vermos a nós mesmos, a arte de nos vermos vendo!”.
Neste seguimento, o método utilizado apresenta o debate, o conflito de ideias, a dialética, a argumentação e a contra-argumentação como preparação ao espect-ator agir na vida real (BOAL, 2014, p. 345) mediante o conjunto de técnicas que compõe a metodologia. De acordo com Boal (2019, p. 13), “todo teatro é necessariamente político” e “teatro é uma arma”; por essa perspectiva, a estética envolvida no processo, denominada estética do oprimido, visa ao desenvolvimento dos que a praticam, à capacidade de perceber o mundo e transformar por meio de todas as artes, e não apenas do teatro, centralizando o processo na palavra, no som e na imagem, uma vez que o TO é uma poderosa ferramenta de mudança de concepções sociais.
A estética do oprimido é a expressão da ligação entre o conhecimento e a arte, uma vez que “Cultura e a Arte (...) são, essencialmente, manifestações concretas da aesthetos – Estética” (BOAL, 2009, p. 26). Nesse sentido, a estética do oprimido busca redescobrir os ritmos de cada um mediante a produção da cultura e de ideias, transformando-as em atos sociais, concretos e continuados.
A metodologia do TO tem como representação o símbolo de uma árvore, em razão da planta estar em constante processo de transformação e de multiplicação, como o método cênico-pedagógico, representado na Figura 1.
A Árvore do Teatro do Oprimido possui ramificações coerentes e interdependentes, que visam cada técnica concebida por meio das experiências coletivas e concretas das demandas sustentadas pela sociedade. A base desse pensamento é a ética e a solidariedade, na qual as raízes da árvore se alimentam dos diversos conhecimentos humanos, oferecendo os saberes e grandes possibilidades para as criações dos atores. Ademais, a Filosofia, Economia, História, Multiplicação e Política contribuem para a sustentação da reflexão dos sujeitos, visto que é preciso conhecer não apenas as suas próprias, mas também as opressões alheias (BOAL, 2019, p. 14).
O tronco e as ramificações são representados pelos meios estéticos e pelas técnicas, respectivamente. Os meios estéticos proporcionam a produção criativa e a capacidade de representar a realidade, com a finalidade da palavra, som e imagem, impulsionando o autoconhecimento, a autoestima e a autoconfiança dos agentes. Ainda, Boal afirma,
No tronco da Árvore surgem, primeiro, os jogos, porque reúnem duas características essenciais da vida em sociedade: possuem regras, como a sociedade possui leis, que são necessárias para que se realizem, mas necessitam de liberdade criativa para que os jogo, ou a vida, não se transforma em servil obediência
(BOAL, 2019, p. 14-15).
Além disso, a “Arte é busca de verdades através dos nossos aparelhos sensoriais” (BOAL, 2019, p. 15), portanto as técnicas são compostas por: Teatro Jornal, Teatro Invisível, Teatro Imagem, Teatro Fórum e Arco-íris do Desejo. Cada uma detém características diferentes entre si, mas que se interligam, buscando sempre a transformação da sociedade, no que se refere à libertação dos oprimidos.
A metodologia de caráter político, social e artístico baseia-se na concepção de que todos os seres humanos são atores, mesmo que não realizem teatro, em virtude de o homem carregar dentro de si o agire o observar nas suas ações cotidianas, sendo movido pela consciência, sentimento, ação e o desejo de impulsionar a si e aos outros, conforme Boal explica:
Todo mundo atua, age, interpreta. Somos todos atores. Até mesmo os atores! Teatro é algo que existe dentro de cada ser humano, e pode ser praticado na solidão de um elevador, em frente de um espelho, no Maracanã ou em uma praça pública para milhares de espectadores. Em qualquer lugar… até mesmo dentro dos teatros
(BOAL, 2014, p. 9).
Nesse sentido, o Teatro do Oprimido relaciona-se diretamente com a Educação em Direitos Humanos, uma vez que
O Teatro do Oprimido jamais foi um teatro equidistante que se recusa a tomar partido - é teatro de luta! É o teatro dos oprimidos, para os oprimidos, sobre os oprimidos e pelos oprimidos, sejam eles operários, camponeses, desempregados, mulheres, negros, jovens ou velhos, portadores de deficiências físicas ou mentais, enfim, todos aqueles a quem se impõe o silencio e de quem se retira o direito à existência plena
(BOAL, 2019, p. 24).
Em outras palavras, a metodologia busca ajudar os espect-atores a conhecerem de forma reflexiva as situações de opressões nas quais seus direitos são violados e, também, a ensaiar as ações que podem gerar tensões e quebras das opressões enraizadas na sociedade. Nesse sentido, a Educação em Direitos Humanos promove a formação de uma cultura de respeito, pautada na ética e na promoção de uma vivência acompanhada de atitudes, hábitos e valores que concebem a dignidade humana como elemento primordial da sociedade.
É, portanto, mediante a ética e a promoção de uma cultura de respeito aos oprimidos que o Teatro do Oprimido e a Educação em Direitos Humanos se relacionam, uma vez que as duas concepções visam à dignidade humana como elemento essencial de seus princípios.
3 Medidas socioeducativas e projeto de vida
O Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990) representa um avanço legal e social, na medida em que estende a proteção integral e preferencial de todas as crianças e adolescentes, inaugurando-os como sujeitos de direitos e de deveres (AMORIM; ALBERTO; AZEVEDO, 2017; CARVALHO, 2019). Nesse sentido, de acordo com os autores, a violência praticada por uma parcela da população tem sido alvo de grande preocupação. Portanto, em paralelo a esse cenário, jovens e adolescentes são apresentados como principais vítimas de violências executadas pelo Estado e seus representantes, promovendo violações de seus direitos.
Dessa maneira, de acordo com Costa; Alberto; Silva (2019), a partir da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, o atendimento aos jovens a quem se atribui a prática de atos infracionais passou a ser orientado a partir da perspectiva da proteção integral de seus direitos. Em vista disso, o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE, 2012) move-se como um instrumento jurídico-político que possibilita a concretização dos direitos dos jovens e adolescentes autores de atos infracionais.
Desse modo, as medidas socioeducativas estabelecidas no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, 1990) são aplicadas aos adolescentes e jovens entre 12 e 18 anos (aos quais foi conferida a autoria de atos infracionais) (COSTA; ALBERTO; SILVA, 2019), sendo regularizadas pelo Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE, 2012).
“As medidas socioeducativas visam a reinserção social, fortalecimento de vínculos familiares e comunitários'' (FRANCISCHINI; CAMPOS, 2005, p. 269), concebendo o adolescente como pessoa em uma condição peculiar de desenvolvimento (BRASIL, 1990). De acordo com Souza (2019), o planejamento acerca do atendimento socioeducativo é de que o foco não corresponda à infração, mas sim ao adolescente que comete a infração, percebido como sujeito de direitos, direcionando-o à escola e possibilitando o oferecimento de atividades profissionalizantes, esportivas, de lazer e culturais.
Essa concepção é visionada no ECA (BRASIL, 1990), em que os jovens em conflito com a lei são compreendidos como sujeitos de direitos (SOUZA, 2019). Segundo Souza (2019), a efetivação e a compreensão da socioeducação estão intrinsecamente vinculadas às contradições, uma vez que o conceito oferece o entendimento de uma política pública voltada à efetivação e à humanização do atendimento ao jovem e adolescente em conflito com a lei, mas carrega marcas do sistema capitalista neoliberal que prioriza o sujeito econômico e legitima as desigualdades sociais (CARDOSO, 2022).
Nesse sentido, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 1990), as medidas socioeducativas passíveis de serem aplicadas pelos serviços públicos, são
I. Advertência; II. Obrigação de reparar o dano; III. Prestação de serviços à comunidade; IV. Liberdade Assistida; V. Inserção em regime de semiliberdade; VI. Internação em estabelecimento educacional; VII. Qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI
Nesta pesquisa, a medida socioeducativa (MSE) investigada foi a de Liberdade Assistida (LA), em que, de acordo com Souza (2019), os jovens e adolescentes são acompanhados por uma equipe responsável pelo atendimento, sem restrição de suas liberdades.
Nessa perspectiva, para a efetivação da medida socioeducativa, deve-se construir o Plano Individual de Atendimento (PIA) previsto no SINASE (2012). O PIA constitui-se em um instrumento significativo, tendo em vista que inaugurou-se uma grande mobilização na reflexão em torno de um plano de atendimento individualizado, em que se considere as especificidades de cada adolescente e que assegure o acesso aos direitos fundamentais. Conforme Moreira et al. (2015), no entanto, o PIA deve ser analisado sob uma ótica de construção da subjetividade expressa e criativa dos jovens e adolescentes, articulando os eixos e norteando o cumprimento da medida socioeducativa.
Assim, durante a sua elaboração, as metas e compromissos das medidas socioeducativas serão visionadas, envolvendo o adolescente, sua família e os profissionais do serviço executor de medida socioeducativa. É imprescindível, todavia, compreender que o PIA deve conter os objetivos e compromissos a serem cumpridos, verificando elementos norteadores para a construção de novos projetos de vida dos jovens e adolescentes (SOUZA, 2019).
Desse modo, segundo Costa; Alberto; Silva (2018), as medidas socioeducativas devem possibilitar aos jovens a construção de seus projetos de vida, mediante a proposta de ações organizadas que impulsione o desenvolvimento integral, partindo do pressuposto dos interesses, objetivos e ressignificação. Contudo, os autores mostram que a realização desse elemento tem um caráter genérico, na qual o objetivo é apoderar-se do tempo em que os jovens permanecem nos serviços de execução de medidas.
Essa característica da MSE revela, portanto, a carência de um projeto pedagógico na execução do PIA, visto que a construção do projeto de vida depende diretamente da qualidade das mediações realizadas. Ainda, a construção desse elemento exige um exercício consciente dos jovens em estabelecer objetivos e metas em curto, médio e longo prazos (COSTA; ALBERTO; SILVA, 2018). Isso significa que, mediante as vivências e os contextos social, cultural e econômico dos jovens, a construção do projeto de vida é planejada, avaliada e reorganizada pelos sujeitos em tempo integral.
Ademais, de acordo com Costa; Alberto (2020), o projeto de vida representa um conceito fundamental na obra de Vigotski para compreender a juventude, dado que o desenvolvimento psicológico depende da atividade social, sendo cada período do processo marcado por uma atividade dominante, além de tangenciar novos interesses e motivações.
Na transição de um período a outro, os sujeitos vivenciam uma crise que incidirá na reestruturação dos conteúdos psicológicos. Na juventude, a crise está relacionada com a habilidade de elaborar planos e de efetivar os objetivos da vida. Essas atividades demandam do jovem uma grande reflexão sobre a sua vida e a necessidade de estabelecer planos para o futuro, portanto a elaboração de um projeto de vida é uma das questões centrais no desenvolvimento psicológico dos jovens.
Por esse motivo, a construção e a efetivação do projeto de vida não dependem exclusivamente deles, mas também de outros sujeitos. As políticas sociais têm, por conseguinte, um papel fundamental de impulsionar a capacidade dos jovens para elaborar o projeto de vida de forma consciente e autônoma.
Além disso, a edificação do projeto de vida não é inerte, dado que considera as primordialidades e as possibilidades da vivência de cada cidadão, abrangendo o seu presente e passado (COSTA, 2017). A elaboração do plano individual envolve-se com uma ou mais das diversas dimensões, bem como com as áreas profissional, educacional, afetiva e familiar, distanciando-se, assim, de um projeto de vida visionado pelo neoliberalismo, que tenciona apenas a área profissional, atualmente propiciado nas escolas públicas de tempo integral da rede estadual de ensino de São Paulo.
4 Metodologia
Trata-se de uma pesquisa qualitativa, que, de acordo com Minayo (2002), responde a muitas questões particulares, demonstrando um trabalho com universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, distanciando-se da operacionalização de variáveis, uma vez que corresponde a um profundo espaço das relações sociais.
Ainda, apresenta um caráter empírico e de pesquisa-ação (THIOLLENT, 2011), como método de investigação, e, de acordo com o autor:
pesquisa-ação é um tipo de pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo.
(THIOLLENT, 2011, p. 20).
A coleta de dados ocorreu no Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS) em um município do interior paulista, com aproximadamente 85 jovens e adolescentes autores de atos infracionais, discentes de escolas públicas e que são atendidos pelo serviço de execução de medidas socioeducativas naquele momento da pesquisa (CAAE: 31088720.9.0000.5465).
A divisão dos participantes, no período de oito meses, ocorreu sob a responsabilidade do serviço de execução da medida (CREAS). Devido aos abandonos, regressos e sanções sofridas pelos jovens, os grupos se reorganizavam, compondo novas formações frequentemente, o que tornava o trabalho complexo, uma vez que as oficinas tiveram que ser pensadas e repensadas, mediante a cada característica e momento de cada grupo.
A pesquisa foi realizada por intermédio de 15 oficinas, realizadas com intervalos quinzenais, com três grupos de participantes. As atividades foram pensadas e idealizadas pelo grupo de pesquisadores, utilizando-se dos processos e ideias de Boal (2019), sobre a palavra, imagem e som, permeando as metáforas, como demonstrado no Quadro 1.
Quadro 1 Características das oficinas realizadas.
Oficina | Tema | Classificação | Atividades Realizadas |
---|---|---|---|
1 | Identidade | Imagem, Som e Palavra | “Quem é você?” |
2 | Identidade | Som e Palavra | Músicas: Valeu Amigo (MC Menor); Diário de um detento (Dexter); Boate Azul (Bruno & Marrone); Toma Juízo (Mc Menor) |
3 | Identidade Família Cultura Gênero Ética |
Imagem, Som e Palavra | Filme: Pantera Negra |
4 | Identidade Cultura |
Imagem, Som e Palavra | Experienciação da capoeira |
5 | Identidade Cultura |
Imagem, Som e Palavra | Criação de uma horta coletiva |
6 | Identidade | Imagem, Som e Palavra | Oficina do Hambúrguer |
7 | Identidade | Imagem e Palavra | Criação da tag – Graffiti |
8 | Identidade Cultura |
Imagem e Palavra | Experienciação do basquete |
9 | Identidade | Imagem, Som e Palavra | Diálogo |
10 | Identidade Família Cultura Gênero Ética Trabalho |
Palavra | Leitura: A Estória do Severino e a História da Severina – Ciampa |
11 | Identidade |
Imagem, Som e Palavra | Diálogo provocado por imagens e representações (visita do professor Antoine Kattar) |
12 | Identidade | Imagem, Som e Palavra | Experienciação com jogos e exercícios do Teatro do Oprimido |
13 | Identidade Sexualidade Gênero |
Imagem e Palavra | Palestra sobre sexualidade |
14 | Direitos Humanos Identidade |
Imagem e Palavra | Diálogo provocador sobre os direitos e responsabilidades das crianças e e dos adolescentes |
15 | Direitos Humanos Identidade |
Imagem e Palavra | Diálogo provocador sobre as medidas socioeducativas |
Fonte: Elaborado pela autora (2022).
Nesse sentido, as oficinas foram estabelecidas refletindo-se sobre a concepção de que “Arte não é adorno, Palavra não é absoluta, Som não é ruído e as Imagens falam” (BOAL, 2009, p. 5), uma vez que a tríade que forma a estética do oprimido permeia a vida social desde jornais, escolas, fotos até rádios, cinema e televisão. E ainda, mediante todas as outras formas de expressões e linguagens, foram estabelecidos temas que levassem em consideração metáforas para relacionar as vivências, ponderadas as identidades e os projetos de vida dos espect-atores participantes da pesquisa.
A criação - de poesias, músicas, desenhos, pinturas, danças, esculturas e espetáculos - ratificava o novo conceito e impulsionava radicalmente a habilidade dos integrantes dos grupos em criar metáforas, em representar a realidade a partir de suas próprias perspectivas.
(BOAL, 2009, p. 12)
Em outras palavras, isso expressa que as oficinas foram construídas a partir das ideias e percepções boalianas sobre imagem, palavra e som, permeando as metáforas, a fim de que os jovens participantes da pesquisa, isto é, os espect-adores, pudessem realizar uma observação crítica do real com a produção de saber, atrelando as suas vivências e resistências.
Os dados coletados foram registrados em diário de campo pelos membros e pesquisadores integrantes da pesquisa e pelas atividades desenvolvidas com os adolescentes, organizados e analisados conforme Bardin (2010), mediante a análise de conteúdo, uma vez que “a análise de conteúdo procura conhecer aquilo que está por trás das palavras sobre as quais se debruça” (BARDIN, 2010, p. 45).
Além disso, foram atribuídos nomes fictícios aos jovens, objetivando garantir o sigilo e anonimato aos participantes da pesquisa. A escolha dos nomes foi inspirada em cantores do cenário musical do Funk e Rap, haja vista que os jovens manifestaram gostar desses estilos musicais.
5 Resultados e discussões
5.1 Projeto de vida e identidade
À medida que se analisam os projetos de vida e curto, médio e longo prazos, é fundamental estabelecer reflexões sobre a vida, principalmente no que diz respeito à identidade. Em outras palavras, é imprescindível avaliar as trajetórias de vida e de tudo aquilo que a permeia, como interesses e orientações.
Nesse sentido, mediante as falas e escutas desenvolvidas pelas oficinas, verificou-se que os jovens apresentam correspondências em relação às suas identidades, como trajetória escolar árdua e o sentimento desfavorável em relação à escola; visões de recusas aos governos atuais e à polícia; existência de violências e de direitos violados pela sociedade; concepções de sexualidade, raça, gênero e classe; e, ainda, a relação entre estilo e cultura.
Em vista disso, os participantes da pesquisa demonstram, em seus vestuários e em suas peles, as marcas de quem são e do que gostam, sendo um estilo visionado como diferente e que é excluído pela sociedade. Em suas roupas, os meninos utilizavam chinelos e tênis, calças jeans e bermudas tactel, camisetas de times de futebol e de marcas. Ainda, as meninas utilizavam shorts e calças jeans, blusas regatas e cropped.
Nesse sentido, o vestuário apresentado pelos jovens remete ao estilo “chavoso”, revelando uma pequena fração de suas identidades, destinando-se a identificar em suas peles, desenhos e palavras que apresentam simbologias e significados de quem são, de onde vieram e o que almejam, como é possível observar na imagem abaixo:
Conforme Guimarães (2014), os adolescentes autores de atos infracionais estão inseridos em contextos marcados pela vulnerabilidade, violência, solidariedade, exclusão de direitos e pobreza, em que as circunstâncias agem diretamente na constituição da identidade. Essas identidades sociais, contudo, são e estão estigmatizadas, permeando a criação de estereótipos aos jovens e transpondo intervenções em suas subjetividades, como nas autoconcepções e noções sociais.
Nesse sentido, a identidade têxtil, unida ao interesse musical do cenário do funk e do rap, produz a estigmatização e o estereótipo desses jovens e dos lugares de onde vieram, classificando-os como “criminosos”, “menores” e “marginais”. Na oficina 8 – Experienciação do Basquete, a pesquisadora indagou os jovens sobre o Racismo e o Preconceito na sociedade, e os adolescentes relataram que sofrem desse fenômeno social em suas vidas, principalmente por conta de seus vestuários, como é destacado no trecho adiante.
Nesse momento, voltou-se a discutir o racismo e o preconceito.
-Pesquisadora: "Já sofreram preconceito ou racismo?"
-Diogo: "Todo dia"
-Israel: "Claro, por conta da roupa, de onde nois vem"
(Diário de Campo, Grupo 2, 01/02/2022)
Nessa mesma oficina, o adolescente Diogo comentou que foi seguido durante a sua permanência em um centro comercial da cidade, uma vez que necessitava de atendimento público para a aquisição da segunda via de seus documentos e o serviço ficava localizado nesse estabelecimento comercial. Outro jovem participante também destacou que sofreu preconceito em lojas do município. De acordo com os jovens, devido às discriminações constantes em razão das suas identidades estigmatizadas, eles preferem frequentar espaços com os quais se identificam, como os ambientes localizados em seus bairros, bem como as rodas de pagode e as partidas de futebol. Assim, torna-se evidente que os estigmas contribuem para a segregação socioespacial de uma parcela da juventude pobre.
Nesse sentido, a identidade social estigmatizada orienta a vida desses jovens, apesar de não determinar que e quais caminhos eles devem seguir, todavia, limita as alternativas que possuem (GUIMARÃES, 2014). Em outras palavras, os jovens modificam os seus percursos em virtude dos estereótipos da sociedade, além de inserirem uma imagem rejeitada de si e de seus pares, autodefinindo-se como “burros” e fortalecendo os seus "defeitos" pessoais.
Em suas falas, a percepção sobre si expressa apenas seus “defeitos”, e não suas qualidades, revelando novamente a estigmatização e a influência social em suas autopercepções, em outras palavras, os jovens se declaram como: “ruim”, “imperfeito”, “antissocial”, “arrogante”, “quero ajuda de ninguém”. Quando, porém, perguntados sobre suas qualidades, eles afirmam: “não sei”, “só tenho coisa ruim”. Fica explícito que suas visões se modificam quando algum outro jovem revela a qualidade do colega, mostrando que a aceitação de pares é importante para eles. Isso indica que a interação social, isto é, a interação com outros sujeitos e com o meio social, influencia diretamente a constituição da identidade dos jovens e, posteriormente, a construção de seus projetos de vida.
A estigmatização de suas identidades está presente nas transformações de suas Individualidades, principalmente a têxtil, em função das projeções sociais, como demonstra Diogo,
Finalizando o encontro, os meninos comentaram sobre as vestimentas, em que muitas vezes precisam mudar seus estilos, mesmo que seja difícil por conta das tatuagens.
-Diogo: “Pra trabalhar uso um tipo de roupa, pra quebrada é outro. Meu pai nem gosta que uso bermuda jeans para trabalhar”.
(Diário de Campo, Grupo 2, 01/02/2022)
Ainda quando discutido sobre as suas identidades, os adolescentes participantes da pesquisa apresentaram demandas em utilizar-se de produtos ostentação, como roupas e sapatos de marcas, bebidas, automóveis e casas, no sentido de demonstrarem a ostentação e o poder envolvido em seus estilos de vida, em que alguns desses bens constituem-se como "símbolos da juventude", abrangendo itens de vestuário e de lazer, tendo elevado valor simbólico para os adolescentes (WATARI; ROMANELLI, 2010) e que são valorizados pela sociedade do consumo.
Nessa perspectiva, ao terem suas identidades estigmatizadas desde a infância, os jovens apresentam interesses no futebol, como é mencionado no seguinte trecho,
Os meninos – Kleber, Gustavo e Leandro – se conhecem desde pequenos, porque eles jogaram juntos na mesma escola de futebol até os 13 anos. Os meninos falaram que o Gustavo era esquentado e brigava com todo mundo por isso. A pesquisadora traz uma reflexão sobre o futebol e o trabalho em equipe, fazendo uma relação com a vida, na qual os jovens riram e disseram que o Gustavo era muito fominha. O Leandro, atualmente, só joga como armador aos domingos.
(Diário de Campo, Grupo 3, 01/03/2022).
O futebol apresenta-se como um fator constituinte da identidade dos jovens, sendo um aspecto presente nas vivências de lazer, aprendizagem e socialização com seus pares, mas também é exposto como um elemento na construção de seus projetos de vida. Em diversos momentos, quando perguntados sobre desejos e anseios a respeito de profissões, os jovens mostraram propósitos em seguir na carreira esportiva, como se observa no trecho adiante:
A pesquisadora pergunta o que os meninos almejam e eles responderam que:
-Kleber: Não sabe;
-Leandro: Jogador (meio de campo);
-Pedro Paulo: Não sabe
(Diário de Campo, Grupo 3, 01/03/2022)
Segundo Gonçalves (2018), uma sociedade voltada para o consumo, na medida em que seu acesso é subordinado ao dinheiro e limitado ao poder aquisitivo, as atividades de lazer também são consideradas mercadorias. O futebol como fenômeno sociocultural reflete a identidade cultural, transmitindo os costumes e valores da sociedade em que está inserido.
Portanto, por intermédio dos meios de comunicação de massa, o futebol tornou-se uma grande possibilidade lucrativa, na lógica consumista do esporte e do lazer. É neste sentido que o futebol é habitado nas periferias brasileiras: o grande sonho do adolescente de se tornar jogador de futebol. Conforme Gonçalves (2018), esse anseio reflete uma identidade cultural local dos bairros em que os jovens estão inseridos, além de expor a segregação socioespacial, a inexistência ao respeito dos direitos e o fracasso da escola, colocando essa profissão como uma das poucas alternativas a serem sonhadas.
Outro agente influenciador na constituição de suas identidades é a localidade em que vivem e que estão inseridos. Ao longo das oficinas, os jovens revelaram que os lugares são esquecidos pela administração pública, faltando áreas de lazer para todos. No entanto, os adolescentes comentaram que existem algumas ocupações, como roda de pagode, alguns “rolês” e a caixa d’água, que consiste em abrir a torneira da caixa d'água para se refrescar no calor, como revelou a jovem Liliane.
Ainda, mediante as falas dos jovens, é perceptível que as pessoas que residem em seus bairros exercem grande influência em seus pensamentos, falas e ações, como declarou Wagner, que revelou não poder comentar algumas coisas por conta do lugar de que vinha e também como ilustra o trecho a seguir:
Pesquisadora: “Mas se vocês tivessem dois amigos que quisessem namorar. O que vocês achariam?”. O grupo (meninos) como um todo riram e o Wagner respondeu: “o que o bairro todo acharia”.
(Diário de Campo, Grupo 1, 19/09/2021).
Em vista disso, os indivíduos que fazem parte do contexto social em que estão inseridos também exercem grande influência na constituição de suas identidades, principalmente em seus desejos, anseios e expectativas, isto é, na construção e constituição dos projetos de vida, uma vez que a efetivação do projeto da vida não depende exclusivamente dos jovens, mas também de outros sujeitos.
O projeto de vida, como elemento imprescindível no cumprimento da medida socioeducativa, é orientado sob uma perspectiva de construção de uma instituição familiar, trabalho e aquisição de bens materiais pelos jovens, como é expresso no seguinte fragmento,
Em um certo momento, a Pesquisadora perguntou ao Kevin:
-Pesquisadora: “Você já se imaginou com 35 anos?”
-Kevin: “Milionário”
O Gabriel também respondeu:
-Gabriel: “Não me vejo milionário. Tendo saúde e trampo fixo”.
A partir disso, Kevin reformulou sua fala:
-Kevin: “Um carrinho, uma casa, tá bom”
(Diário de Campo, Grupo 3, 08/02/2022)
O trecho apresenta que os jovens almejam dinheiro e bens materiais em longo prazo, mas que, a partir do contato com seus pares, tendem a reformular seus pensamentos. De acordo com o Teatro do Oprimido, o debate, o conflito de ideias, a dialética, a argumentação e a contra-argumentação são estimuladores que aquecem, enriquecem e preparam os participantes a agirem na vida real. Isso significa que, mediante o diálogo com outros jovens e espect-atores, os adolescentes inclinam-se às transformações e a um processo de estimulação de novas e antigas noções, uma vez que “é preciso conhecer não apenas as suas próprias, mas também as opressões alheias” (BOAL, 2019, p. 14).
Ainda no que concerne ao projeto de vida, alguns jovens apresentavam vontade em sair do tráfico de drogas, revelando o desejo de seus familiares e uma necessidade de transformar sua vida, por conta da violência diária vivida. No entanto, outros revelavam fazer uso e viver desse universo, como é destacado na fala de João, utilizando-se do dinheiro do tráfico para investir,
Outro ponto importante a ser comentado é acerca das falas de investir dinheiro do tráfico. Como pensa João:
-João: “tem que ter cabeça diferente. Tem que investir, guardar. A geração de agora não pensa, só quer pegar o dinheiro e gastar com muié e uísque. Não quer guardar dinheiro até os 18 anos e depois investir em um negócio".
(Diário de Campo, Grupo 2, 01/02/2022)
Simultaneamente, o tráfico é visto como um elemento de mudança de vida para os jovens e suas famílias, em decorrência da falta de oportunidade e tendo seus direitos violados, necessitam ocupar-se de outras formas. É nesse sentido que a constituição e a idealização do projeto de vida afirmam-se, atendendo às vivências e às necessidades dos jovens, seja pelas resistências ou pela estigmatização de suas identidades.
5.2 Família, escola e trabalho
Como já mencionado anteriormente, Família, Escola e Trabalho fazem parte diretamente da constituição da identidade e do projeto de vida dos jovens em cumprimento de medidas socioeducativas. Quando tratado sobre família, Romanelli (1998) afirma que existem inúmeros estudos que diferem as composições familiares, mas que família é uma unidade de reprodução social e principal instituição socializadora quando os adolescentes procuram a construção da própria identidade, realizando o desejo do desconhecido, atravessam e experimentam situações que demarcam situações de conflito entre os familiares. É nessa perspectiva que os jovens apresentam respostas e visões distintas sobre Família, como é demonstrado no trecho a seguir:
Nesse momento, a pesquisadora fez um gancho com o tema “família”, perguntando a todos: “o que é família?”. Algumas respostas: “Morar junto”; “Minha mãe”; “Com quem tá comigo”; “Quem tá comigo a todo momento”; “Considero quem não é de sangue… Porque quem é de sangue é o pior”; “Minha mãe, meu pai”; “Quem me fortaleceu, não me abandona”
(Diário de Campo, Grupo 2, 19/09/2021).
Revelou-se, assim, que existe uma diversidade de pensamentos acerca da instituição familiar, uma vez que os jovens veem a família como base de grande importância na construção de seus projetos de vida, não importando a maneira que essa família é constituída e vivenciada. Nesse sentido, a família apresenta-se como um elemento a ser construído ou de mudanças, quando pensado sobre projeto de vida.
Segundo Araújo (2013, p. 5), “a família é um lócus de potencialidades, espaço de construção de afetos, solidariedade, interdependência e reciprocidade, trata-se de ponto de apoio, mas, que também possui conflitos”. Isso significa que a instituição familiar é um constituinte de afetos e de conflitos.
Nessa perspectiva, os jovens participantes apresentam estes dois polos para referirem-se às suas famílias. Em partes, nas falas de alguns adolescentes, a família é fomentadora de violência, permeando e difundindo os abusos. A instituição familiar, contudo, é promotora e elemento importante na construção do projeto de vida, como, por exemplo, para a saída do “mundo” dos atos infracionais, constituição da própria família e mudança de vida dos familiares, principalmente no que diz respeito às figuras femininas e maternas, como mães e avós.
Ademais, é nesse sentido em que se é marcada a ética na constituição de identidade desses jovens, haja vista que a família é a unidade de integração e de correspondência, isto é, os jovens não trairiam ou deixariam seus familiares em prol da riqueza.
Outro elemento presente na construção de seus projetos de vida é orientado no sentido do trabalho, sendo revelados anseios pelos ofícios mais corporais e mecânicos. Ainda, quando os jovens veem outra coisa, é possível considerar uma exclusão pelos contextos em que estão inseridos, como encaminhou-se na oficina 3 – Filme: Pantera Negra,
Terminada a discussão sobre o filme falamos sobre sonhos e projetos. Cada um respondeu o que sonhava em ser no futuro:
Igor – jogador de futebol;
Gustavo – jogador de futebol;
Pedro – não sabe;
João – engenheiro;
Jeferson – bem-sucedido, com uma família longe dos perigos e do sufoco. A profissão poderia ser qualquer uma;
Emerson – empresário;
Tássia – veterinária e bióloga marinha.
É interessante destacar que quando João deu as respostas os demais riram. Vimos essa reação como um sinal de que não acreditam na capacidade de um futuro “promissor” para os colegas e, por consequência, para si. O riso não foi ignorado por nós, que falamos sobre acreditar nas possibilidades da vida e dos sonhos para o futuro.
(Diário de Campo, Grupo 3, 26/10/2021)
É nesse sentido que o trabalho como necessidade é orientado na vida desses jovens, uma vez que pela falta de direitos garantidos, os jovens precisam trabalhar para garantir suas sobrevivências, seja no mundo da criminalidade ou do trabalho formal. Além disso, de acordo com Watari; Romanelli (2010), a transição da infância para a vida adulta implica uma série de mudanças nas condutas do indivíduo, buscando uma postura mais independente e autônoma, ou seja, mais ativa e questionadora do mundo. Isso significa que diante da violação de seus direitos e a busca de seus anseios, esses jovens buscam alternativas para alcançar seus sonhos, que muitas vezes está atrelada a ostentação, “símbolos de juventude” e riqueza no modelo capitalista.
Segundo Watari; Romanelli (2010, p. 555), muitos jovens observam a escola como uma necessidade, isto é, o “ingresso no mercado de trabalho, assim como a necessidade estrutural, imposta pelo sistema produtivo, de conquistarem certo grau de escolaridade, é frequentemente citado pelos sujeitos como motivação para os estudos”. Os jovens participantes da pesquisa, porém, não apresentam pensamentos semelhantes, principalmente devido à existência de direitos violados; assim, a escola não parece se constituir como necessidade.
A maioria dos jovens está matriculada na Educação de Jovens e Adultos (EJA), na rede pública de ensino, mas acaba não frequentando a instituição devido a uma série de motivos, como período em que estão matriculados, distância percorrida, violências e direitos violados dentro das escolas, como, falta de professores, aulas vagas e falas preconceituosas.
A conversa se sucedeu para o tema Escola. Sobre isso, a pesquisadora disse: “Você precisa exigir seu direito de aprender”, ao que os adolescentes responderam: “de que jeito? nem os professores vêm pra escola”; “deveria ter terminado o ensino médio já, mas fui preso”; “o cara olhou pra minha cara e disse que não tinha vaga (referindo-se a uma vaga para EJA), a Técnica da Medida perguntou e ele disse que tinha”; “o professor de matemática escreve na lousa e fica sentado, não explica nada, não explica a correção dos exercícios”. Ainda mais, um jovem relata que "você aprende mais na FEBEM do que na escola”, uma vez que os meninos explicaram que na Fundação Casa você é obrigado a ir para a aula porque você está lá, mas pode escolher não fazer as atividades (participar da aula). Diogo cita que “tu pode comprar certificado”. O Pedro fala: “Tô no 2º (EM) e não aprendi nada desde o 9º ano. Os professores nem vem na escola”
(Diário de Campo, Grupo 2, 12/04/2022).
Em outras palavras, os jovens não encontram sentidos na educação formal, uma vez que a instituição escolar é um espaço em que seus direitos não são respeitados e os jovens são constantemente oprimidos, principalmente devido às suas identidades, o que incide na estigmatização de quem são. Estes mesmos adolescentes não se reconhecem no seu PIA e nem sobre qual é o objetivo em torno da socioeducação, demarcando novamente a violação aos seus direitos, mesmo quando estão sob controle direto do Estado, no cumprimento de uma medida socioeducativa.
Ainda nessas mesmas oficinas, foi possível compreender que a polícia contribui na formação da identidade desses jovens, uma vez que a relação é complicada e penosa, no sentido da estigmatização dos jovens, utilização e consumo de drogas, corrupção e, principalmente, opressão.
A opressão parece que se mantém como constituinte durante o cumprimento da medida socioeducativa em razão de que alguns funcionários do CREAS utilizam-se de falas moralistas e utilitaristas, sem levar em consideração os contextos de vivência e existências dos jovens.
Podemos nomear como exemplo a oficina 7 – Criação da Tag2 (Graffiti), na qual trabalhou-se a criação de tags atreladas à identidade. Nesse sentido, os jovens construíram uma arte que fizesse sentido em suas vivências, utilizando-se de símbolos e cores que constituem a sua identidade, como a representação da planta Maconha e o símbolo Yin-Yang, como é revelado na imagem,
As profissionais envolvidas no serviço do cumprimento das medidas utilizaram argumentos para oprimir os jovens, como, por exemplo, que eles não poderiam desenhar símbolos que fazem parte da constituição de suas vivências cotidianas na rua devido às significações que a sociedade depositou neles. Os jovens, contudo, utilizaram a resistência em suas artes para reorientar o domínio de suas identidades, como ficou grafado no muro da instituição.
6 Considerações finais
A partir da análise realizada, pode-se compreender que os jovens possuem uma identidade estigmatizada, na qual seus corpos detêm uma mecanização e estão subordinados ao estado, aos serviços públicos e a outras instituições que violam seus direitos. Sobre a metodologia do TO, o corpo é o elemento principal do teatro por ser o que materializa as “resistências” e a “liberdade” que fluem nas veias do oprimido. Concluímos, assim, que é necessário um processo de desmecanização de seus corpos e mentes para que a mudança de concepção sobre si mesmos possa se suceder.
Ainda nessa perspectiva, quando tratado de resistência, os jovens apresentaram em diversos momentos esta atitude, ora revelando o que eles achavam que seria o que os pesquisadores gostariam de ouvir, ora pelo simples fato de estarem entediados. Logo, é preciso compreender que é imprescindível que ocorram oficinas e discussões na socioeducação que considerem os anseios e as identidades reais dos jovens, como músicas, brincadeiras, jogos, atividades corporais e manuais de manifestações artísticas. Com a liberdade de expressão e a resistência da arte, os jovens encontram espaços para afirmar as suas vivências e existências.
OTO mostrou-se, portanto, um instrumento potente por promover o diálogo, o conflito de ideias e a participação coletiva, uma vez que a constituição do projeto de vida ocorre também com a interferência de outros espect-atores. Restou como indicativo a necessidade de espaços dialógicos e reflexivos durante a execução das medidas socioeducativas, para que os adolescentes e jovens possam, de fato, durante a medida socioeducativa, (re)pensar seus projetos de vida, incluindo-se a participação da família.