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Educação: Teoria e Prática

versão impressa ISSN 1993-2010versão On-line ISSN 1981-8106

Educ. Teoria Prática vol.33 no.66 Rio Claro  2023  Epub 31-Dez-2023

https://doi.org/10.18675/1981-8106.v33.n.66.s15889 

Entrevista

Sim… eu sou travesti! Entrevista com a professora Herbe de Souza

Yes… i am a travesti! Interview with teacher Herbe de Souza

Si… soy travesti! Entrevista al profesor Herbe de Souza

Rogério Drago1 
http://orcid.org/0000-0001-8998-6299

Jamille Panetto Blandino Gobetti2 
http://orcid.org/0000-0002-3478-4208

Laise Amorim da Luz3 
http://orcid.org/0009-0001-0024-449X

Herbe de Souza4 
http://orcid.org/0009-0002-9087-685X

1Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, Espírito Santo – Brasil

2Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, Espírito Santo – Brasil

3Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, Espírito Santo – Brasil

4Prefeitura Municipal de Caieiras, Caieiras, São Paulo – Brasil


Esta entrevista é fruto da disciplina de Estágio Supervisionado dos Anos Iniciais do Ensino Fundamental, ministrada no segundo semestre de 2020 para o curso de Pedagogia da Universidade Federal do Espírito Santo. Com o advento da pandemia de covid-19, tivemos que readequar a disciplina para o Ensino-Aprendizagem Remoto Temporário Emergencial, pois adentrar os espaços escolares para observações in loco tornou-se impossível, já que as escolas de ensino fundamental também estavam fechadas. Nesse sentido, organizamos a disciplina em três momentos: no primeiro convidamos professores dos anos iniciais para fazer um relato das experiências vividas em suas carreiras; no segundo, os discentes optaram por realizar em dupla ou individualmente uma entrevista a partir de um roteiro semiestruturado com algum(a) professor(a) da referida etapa de ensino para, posteriormente apresentá-la, o que seria o terceiro momento da disciplina. Os alunos ficaram livres para escolher o docente a ser entrevistado. Vale esclarecer que, para além da graduação, temos trabalhado na orientação de trabalhos de conclusão de curso, dissertações e teses de doutorado que têm focado processos inclusivos de pessoas consideradas público-alvo da educação especial e também pessoas que têm sido excluídas dos processos formais de ensino por características diversas, como sociais, culturais, entre outras.

Dentre o rol de entrevistas realizadas, uma nos chamou muito a atenção: aquela com a professora Herbe de Souza, que se apresenta como travesti e autorizou a realização e publicação da entrevista. Esse encontro trouxe elementos que cremos essenciais a esta publicação, dadas algumas considerações. A profissão docente dos anos iniciais do ensino fundamental tem sido, historicamente, um lugar ocupado essencialmente por pessoas do gênero feminino, mais especificamente mulheres. Ter homens atuando nesse segmento ainda parece ser um tabu, visto que temos percebido que a sociedade ainda concebe a função do magistério nos primeiros anos escolares como algo muito maternal, feminino. Além disso, ter uma professora que se apresenta como travesti transgride padrões impostos pela sociedade – não só a brasileira –, que ainda vê nos travestis o estigma da prostituição, promiscuidade ou outros substantivos (e também adjetivos) que não cabem neste momento. Neste contexto de pandemia, de exclusão, de genocídio, de mortes de pessoas com preferências sexuais diferentes das tidas como normais, em que nunca se falou tanto em inclusão e, paradoxalmente, nunca se excluiu tanto, pensamos que a divulgação numa revista científica qualificada da entrevista realizada seria um modo de mostrar ao meio acadêmico que há rupturas, há burlas, há resistências, há outros modos de vida e de profissão para pessoas que fogem ao padrão socialmente estabelecido. Esta entrevista nos mostra que romper com estereótipos é possível. Ser travesti não é só um corpo. Ser travesti é ser humano, ser cidadão de direitos e deveres, ser profissional, inclusive da educação. A professora Herbe de Souza é formada no curso de Magistério (técnico-profissionalizante), licenciada em Geografia e História, possui cursos em Direitos Humanos, Questões de Gênero, Sexualidade e Raciais, atua como docente efetiva nos anos iniciais do ensino fundamental na cidade de Caieiras/SP e atuava, em 2020, com a turma do quarto ano.

E 1 : Nosso roteiro começa com algumas informações básicas. Poderia nos falar um pouco sobre você, como chegou até sua profissão?

H: Meu nome é Herbe de Souza, sou conhecida como Herbe Discórdia, porque discordar é muito bom. Eu me considero travesti, sou uma mulher trans ou travesti politicamente. Como já falei anteriormente, a palavra “travesti” nos remete a prostituição e marginalidade, então, eu gosto de bater de frente com isso, mostrando que travesti pode ser qualquer coisa além de garota de programa. Me identifico como travesti há pouco tempo, desde os meus 34 anos; até então eu acreditava que era apenas uma essência, então a parte do travesti e da política veio há pouco tempo na minha vida. Mas me identifico com o gênero oposto ao do meu nascimento desde pequeno. Desde os 5 anos de idade eu sabia que alguma coisa ali estava errada, pois eu já tinha um namoradinho… estava falando sobre isso esses dias. Infelizmente não continuamos juntos, pois o pai dele traiu a mãe dele e ela ficou sozinha com os filhos e teve que voltar para a Paraíba. Então já tive minha primeira desilusão amorosa aos 5 anos. A gente brincava de Adão e Eva. Eu era a Eva e ele o meu Adão. Corríamos pelos cantos atrás da nossa casa, completamente nus, a gente lia a Bíblia da testemunha de Jeová e gostávamos… então, a gente brincava de Adão e Eva, e isso foi durante muito tempo. Depois que ele foi embora, eu comecei a ter meus outros namoricos. Aos 18 anos… não, aos 17 eu saí do ensino fundamental, 8ª série, e em 1997 eu entrei na escola Doutor Emílio Hernandez Aguilar, que era uma escola que tinha magistério em Franco da Rocha. Então as meninas e os meninos passavam 10 horas por dia fazendo o magistério, que hoje é a pedagogia. Então eu sou formada no magistério, mas até chegar ao magistério demorou um tempinho. Em 1997 eu entrei na escola como aluna normal de ensino médio e em 1998 tinha o vestibulinho para entrar. No ano que eu entrei a concorrência foi de 600 alunos para 90 vagas, então foi bem concorrido. Eu consegui passar, mas logo de início, em 1998, eu não quis a vaga e cedi para outra pessoa. Só que passou uns dois meses, eu quis entrar no magistério. Uma menina havia desistido e eu solicitei a minha vaga que tinha cedido. Eu consegui fazer essa maracutaia e entrar no magistério.

E: Com quantos anos você entrou na escola?

H: Eu tinha 18, entrei na escola em 1997 com 17 e com 18 eu entrei no magistério. Só que eu já tinha feito um ano de ensino médio normal… aí o que eu fiz… entrei no magistério, que era das 7h30 até as 18h30 da tarde e eu não queria perder o ano, então continuei à noite o ensino médio normal. Então eu fazia o primeiro ano no magistério das 7h30 às 18h30 e das 19h até as 22h30 eu fazia o segundo ano do ensino médio. Então de 1998 a 1999 eu estudei no noturno, me formei em 1999 no ensino médio normal e em 1999 eu continuei no terceiro ano do magistério… não, em 2000 foi o terceiro e 2001 o quarto ano e me formei no magistério. Em 2002 eu já comecei na cadeira, propriamente dita, com minha coordenadora… sempre falo dela, Maria Elena Correia Maia, mais conhecida como Preta, e dona Heda. Fiz dois anos de estágio nessa escola ininterruptos. Tanto é que, assim que me formei, em março, dia 27, elas me chamaram para assumir as turmas de reforço. Ou seja, o pontapé inicial da minha carreira, o começo da jornada, começou na Escola Batista em Franco da Rocha. Uma escola tradicional, de gente, na época, de poder aquisitivo bom… isso lá em 2001.

E: Ela era municipal ou privada?

H: Do estado, estadual. Na minha vida inteira foi escola estadual e municipal. Porque aí entra um outro parênteses, pois escola particular eu nem mando o meu currículo, porque se o pai paga, ele acha que pode escolher o professor que vai dar aula para o filho dele. Então a Heda e a Preta… eu sei que elas compraram muitas brigas, porque em uma escola tradicional de vila, onde toda nata de Franco da Rocha estudou lá, entrar uma travesti com 1 metro 85 centímetros de altura para dar aulas para os pequenos, elas compraram bastantes brigas… que elas nunca me contaram… mas eu sei o que elas passaram. Então, nunca chegou até mim, elas sempre me blindavam até chegar nessas questões.

E: Então em 2002 você já se apresentava como travesti?

H: Não, ainda me apresentava como Herbe. A questão do travesti é muito nova na minha vida. Eu não queria ter o meu nome ligado à palavra “travesti”, porque é uma palavra que nos remete a marginalidade e prostituição… e eu não me via como. Tanto é que a palavra “trans” é uma coisa mais recente, nova… uma coisa limpinha. Fala: “ah, eu sou uma mulher trans”, você não se prostitui… aquela coisa bem bonitinha. Agora, ultimamente, as mais novinhas falam que são trans… não… teve as travestis lá atrás que compraram muitas brigas, que morreram para eu estar assumindo esse papel, que estou hoje aqui. Então, depois de muito tempo, eu fui estudar e percebi que tinham várias mulheres trans e travestis que compraram essa briga, para que eu pudesse estar me apresentando aqui perante a vocês. Aí eu assumi com uns 34 ou 35 essa postura de… sim… eu sou travesti. E não há problema nenhum nisso, mesmo com os novos linguajares: é trans… não, é travesti! Eu me identifico com isso e não tem problema algum, então com esse embasamento, as meninas, Heda e Preta, compraram muitas brigas… o Eduardo também. E nessa escola eu também entrava às 7h30 e comecei a trabalhar na secretaria. Dava aula de reforço e substituição. Então eu ficava na escola das 7h30 até as 23h. Foi quando eu consegui sair de casa. Assim que eu consegui meu primeiro emprego saí da casa da minha mãe e voltei para a casa onde a gente sempre morou… porque meu pai e minha mãe são separados, cada um foi para um lugar, e com meu primeiro salário eu consegui reformar a casa e voltar para morar sozinho. Então desde 2002 eu moro só.

E: Essa era uma profissão que você sempre quis exercer? Que você sentia desejo, ou não? Como foi essa descoberta do magistério e ser professora?

H: Bom, não foi uma profissão que eu quis, porque eu lembrava dos meus professores e falava: “imagina que eu vou dar aula para os alunos fazerem o que eu fazia com o professor, jamais!” Aí, no primeiro ano de estágio, quando eu fui estagiar no terceiro ano, quando as crianças começaram a me reconhecer na rua, e falar: “a prof., a prof.”… aí eu pensei: “é isso que eu quero”. Eu comecei a gostar do magistério. No ano 2000 que eu me identifiquei mesmo. Antes eu estava fazendo por fazer, porque eu estava querendo o dinheiro, porque o magistério aqui em São Paulo dava uma bolsa de um salário-mínimo na época. Eu estava pelo dinheiro.

E: Sim… com certeza.

H: Imagina, eu com 18 anos e tendo um salário para estudar algumas horas por dia e ainda poder fazer o que quiser com o dinheiro… eu queria mais dinheiro. Não vou mentir! A gente já entra na carreira sabendo que não é fácil, e o que me levou a gostar da profissão foi o reconhecimento das crianças e da sociedade. Porque ainda na sociedade, quando você fala que é professora, eles falam: “nossa, sério?! Mentira”. Se você está de branco ou você é macumbeiro ou cabeleireira… você nunca será a médica ou a enfermeira… já levam para o outro lado. Então quando me veem, eu dava um espanto no povo. Com este reconhecimento, quebrava a cara de algumas pessoas e me sentia revigorada. Porque eles esperam tudo da gente, menos que eu dê aula.

E: Sem falar que a profissão de ser professor e professora já carrega a característica da formalidade, do tradicional… tem professores que saem e não têm coragem de beber, porque têm medo de encontrar pais de alunos.

H: Olha, eu ainda tenho esse receio. Eu trabalho com os pequenininhos. O meu linguajar e o que eu falo com eles é completamente diferente, de acordo com a idade. No segundo ano eu era de um jeito, no terceiro de outro, agora no quinto eu já estou despachada com eles, porque eles estão despachados comigo. Eu sempre falo em sala de aula que minha vida fora da escola é MINHA vida fora da escola. Eu não bebo e não faço muita coisa, porém, com essa pandemia, eu tive que limitar um pouco minhas publicações, porque meus alunos têm acesso ao meu número, aí eu publicava nos meus status, de vez em quando eu postava no status do meu WhatsApp besteira, então eu tive que me policiar, porque eles podiam ver. Não que eles não saibam o que faço, mas eu não posso escrachar para eles. Tenho até hacker agora, me ofenderam! Tem uma mulher me xingando horrores nas redes sociais.

E: Sério?

H: Estou processando. Criaram um perfil fake. Estou até pagando uma advogada. Não podem ficar me xingando… não… pode até me xingar, só não podem falar mal da minha profissão e nem do meu trabalho. Eu deixo bem claro: quer falar mal de mim? Fique à vontade, porque isso até eu faço, mas não fala da minha profissão. Não menospreza, porque isso eu não aceito. Eu lutei muito para chegar onde estou.

E: Está lutando… ainda.

H: AINDA… todo dia.

E: Você poderia falar quais são as maiores barreiras e dificuldades que você enfrentou, desde o início do magistério até hoje?

H: No início eu não posso dizer que tive muitas barreiras, posso dizer para vocês que sou uma pessoa privilegiada. Eu saí de casa para estudar porque eu quis, mas me mantive na casa dos meus pais até os 21 anos. Então, eles não me colocaram para fora de casa.

E: De certa forma eles te apoiaram? Você teve um suporte familiar?

H: Acho que eu não posso dizer que eles me apoiaram, porque até hoje eu não contei para a minha mãe que eu sou travesti. Eu estou na casa dela quase todo final de mês, mas ainda não contei nada para ela. Então nunca tivemos esse diálogo de falar, não… teve só uma vez com 15 anos que ela me perguntou se eu gostava de menino. Porém, se eu dissesse que sim, ela me ameaçou dizendo que iria se matar. Então na hora eu falei que não… não queria ficar sem mãe naquela hora. Então teve toda aquela questão de chantagem. Então, eu fui me virando como dava. Fui me escondendo até onde deu. E me revelei quando saí de casa. Não me revelei, me ASSUMI! Eu passei a usar meu salto alto, minha maquiagem. Até que a maquiagem eu estou usando faz pouco tempo, porque eu não gostava muito. Mas, quando eu estou com muita raiva, eu me maquio para esconder um pouco a cara. Quando eu cheguei na escola, as primeiras barreiras que eu via, não era só com os alunos em si. Porque com os alunos eles me aceitaram de boas, era novidade e eles queriam saber, e eu tentei trabalhar com eles como eu trabalho na vida social… não tem aquela formalidade, falo de igual para igual. Não quero ficar me sentindo uma jovem misturada com as crianças, porém o diálogo é o mesmo. Não tenho papas na língua. Que é um dos grandes problemas que de vez em quando eu enfrento, porque tanto para o pai e para o filho, eu falo igual. Se chegar aqui eu precisar brigar com o filho, eu brigo com o filho na frente da mãe, e se eu precisar brigar com a mãe na frente do filho, eu faço. O grande problema que eu vejo até hoje não é nem a questão da criança, mas são os pais e, dentro da escola, as professoras. A sala do professor é o pior lugar. Um dos piores lugares para se estar, apesar de gostar muito da simbologia da sala dos professores. Mas para quebrar todas as barreiras, logo que eu comecei, havia um combinado para que eu pudesse receber, que as professoras abonassem pelo menos uma vez por mês, para que eu pudesse substituir elas. Eu só recebia se elas faltassem, porque eu comecei em uma época que não tinha muita sala de aula. O governo de São Paulo estava fechando algumas escolas e passando algumas escolas para o município, e, fazendo isso, as professoras ficavam ativas, até encontrar outro lugar. Então elas não queriam faltar muito. Tinha algumas professoras que não faltavam de jeito nenhum, apesar de ser um acordo interno e a gente ter direito a seis horas de abono por ano. Eu só recebia se elas faltassem. Algumas me ajudaram bastante nessa fase, até chegar o salário. Porque além de tudo, quando a gente escolhia dar aula no estado, o salário demorava três meses para cair. Por exemplo, começava em março, e o salário iria cair em junho e vinha com todos aqueles descontos. Então, esse acordo foi uma maneira de conseguir pagar minha passagem, me alimentar e pagar as contas. Na época, meu primeiro salário alto, que foi em 2002, foi R$ 690, que na época dava para fazer muita coisa.

E: Você passou nesse concurso quando, em Caieiras?

H: Caieiras foi em 2010 e assumi em 2011. No estado eu comecei como professor substituto, que não é concursado. Teve um concurso no qual eu não passei, em 2003. Eu acertei 39 questões de 80. Apesar de ter estudado, eu não tinha experiência, não tinha como passar. Só que aí em 2015 eu fiz de novo para o estado e passei, escolhi o cargo, mas eu não fui assumir. Eu passei muito bem, tinham 5 mil vagas, 100 mil professores inscritos, e eu passei em 2.117. Escolhi meu cargo no terceiro dia. Então, é o que eu sempre falo: a gente vai passando nos concursos com tempo de concurso. Você vai fazendo tantos concursos que você aprende a fazer. E eu já tinha mais experiência, de 2002 para 2015 eu passei em alguns. Só que eu fiquei nesse que estou agora, da prefeitura de Caieiras. Porque em 2011 eu troquei de diretoria. Saí da diretoria de Caieiras e fui para uma bem mais longe, quase 30 km da minha casa. E como eu tinha um concurso em aberto aqui, em fevereiro eles me chamaram, recebi um telegrama na casa da minha amiga e no dia 23 de fevereiro de 2011 eu assumi o cargo que estou até hoje… há 10 anos na mesma escola. Não vou dizer que foi fácil, porque o cargo também é meu, mas, porém, quando eu cheguei na escola, eu cheguei em um grupo que já estava formado há muito tempo. Eu fiquei uma semana na sala dos professores e eles nem olhavam para a minha cara. Eles só passavam por mim. Eu cheguei loira, lisa, bem Barbie e magra, e eles olham aquela coisa e não sabiam o que era. Tudo bem, ninguém é obrigado a saber, porque quando eu cheguei aqui eu entrei como apoio e não tinha uma sala de aula minha; depois, eu consegui uma sala. Nessa sala deu confusão, teve professora evangélica que não olhava na minha cara, não queria que eu desse aula para os alunos dela… aquela papagaiada. E, em 2013, eu virei a Discórdia, porque essa mesma professora que não quis que eu desse aula para os alunos dela, em uma discussão que tivemos, ela disse: “bem que você falou que veio aqui para causar discórdia no mundo!” Pois eu vim mesmo. Agora ela já saiu daqui, foi para a prefeitura de São Paulo. Ela fez muito mal para mim, porque além dela ser testemunha de Jeová, ela não foi condescendente com a minha situação. Não que eu tenha pedido para ser melhor que ninguém, mas ela foi bem pior comigo, porque depois fomos descobrindo tudo o que ela fez, todas as armações. Eu quase perdi a sala de aula porque ela não me quis. Ela não me queria e achava que eu estava invadindo o espaço dela. Me chamaram de intrusa, de invasora, que eu fiz mal para a escola. Vocês imaginam o quanto um professor consegue ser cruel?!?!, mas eu relevei.

E: Como foi esse processo? Porque no início você falou que teve a rejeição. E como foi sua adaptação, até você se impor e conquistar o seu espaço?

H: Foi uma coisa bem orgânica (processo natural). Foi ORGÂNICO. A gente sabe que existe a falsidade, mas foi bem orgânico. Eu consegui ir trabalhando com os alunos, aos poucos você vai conversando. Tínhamos três professores homens na escola e eu trabalhava com dois, Rafael e Reginaldo, e eles tinham que trabalhar comigo, porque ficávamos oito horas na escola. Um não gostava muito de dividir, já o outro era mais amorzinho, mais coração, então a gente conseguiu aos poucos. E as pessoas também vão identificando que a gente não quer nada diferente além de dar aula, e o que eles pensam é completamente diferente. Porque eles olham a casca, não olham para dentro. Olham o que está fora primeiro. Nós temos esse velho hábito de olhar primeiro o que está fora e já criar toda aquela expectativa e preconceitos. Aos poucos eu fui conquistando a comunidade, e na comunidade alguns gostam, outros não, mas aí está de boas.

E: Como você foi aceita e acolhida pela comunidade em volta da escola?

H: Logo que eu peguei a minha primeira sala, em 2011, eu tive que fazer a reunião de pais… porque eu quis. A professora que era deles tinha trocado de horário, aí eu fiquei no lugar, então logo de cara eu fiquei uma semana com as crianças, me apresentei, chamei a diretora e falei que precisávamos fazer uma reunião, porque eu preciso me apresentar. Fizemos essa reunião, eu estava como sempre com a unha pintada e cabelo comprido. Aí uma das mães, que estava ela e o esposo, falou: “tá, mas… você é professor ou professora?” Aí eu falei: “o que eu disse para o seu filho?” “Ah, você falou tal coisa”. “Então, vale o que eu disse para o seu filho”. “E a sua unha pintada?” “Então, a minha unha pintada está bem mais cuidada do que a sua. Eu gosto de pintar a unha, não vou cortar e gosto de dar aula desse jeito, goste você ou não. Eu estou aqui, e o que tem para hoje sou eu”. Tanto é que ela ficou com muita raiva de mim. E eu dei aula para um filho dela, e no outro ano dei aula para a filha dela, e eu fiquei quatro anos sendo professora dela. Eu zoava com a cara dela, falando: “está vendo, você não gostava de mim em 2011; agora, você vai ter que me aguentar durante quatro anos”. Fizemos amizade. Eu tomava café na casa dela. A filha dela passou por alguns problemas quando se separou, e a filha agora escreve poesia, manda para mim de vez em quando no Facebook. Eu acompanhei a vida deles toda. Ela foi a única que teve coragem de me fazer a pergunta. Porque eu via que os outros pais estavam incomodados, mas ninguém queria fazer a pergunta. Ela foi a única que fez e a primeira a levar a patada. Eu falei que era uma professora concursada e que eles não podiam me tirar daqui. O cargo é meu, emprego é meu. Se você não quer que eu dê aula para o seu filho, então troca de sala.

E: Então você sempre se impôs!

H: Sim… porque eu pensei, independente, a minha sexualidade não interfere na aprendizagem. E se isso estiver interferindo para o seu filho, então o seu filho não serve para ser meu aluno.

E: O problema está com a família.

H: Eu falo com as crianças: “o problema não é meu, é seu, se você está com o problema, mude você”. Se tiver alguma questão pedagógica que esteja afetando o seu filho, aí a gente senta e conversa; agora, se for pessoal, esquece! Porque eu não vou trabalhar sobre isso. Se a gente trabalha as pessoalidades – porque nós tratamos o ser humano de uma certa forma e colocamos rótulos –, esses rótulos a gente tem que tirar. A comunidade, aqui, no começo, achou um pouco estranho, mas eles viram como o meu trabalho era esse tempo todo… e eu continuo rondando, circulando por aqui… vou na casa dos outros tomando café… ligo, falo que quem estiver mais perto da escola para mandar café para mim.

E: Você tem uma relação íntima, né?!

H: Temos. Tanto é que a tia de um aluno meu que faleceu em fevereiro, eu fui lá dar um abraço, porque foi a tia que acompanhou todo esse período. Ela que vinha na reunião, eu conversava com ela, eu acompanhei todo o crescimento deles e até hoje acompanho. Nós ficamos íntimos, principalmente nesse momento de tristeza. Fomos aos poucos. E essa família é toda religiosa, evangélica e eles aceitaram muito mais do que as pessoas, teoricamente, do mundo.

E: Em uma das conversas que já tivemos, você comentou que sente um peso a respeito dos seus erros. Você sente que não pode errar ou isso faz parte de um passado e hoje você encara de forma mais tranquila?

H: Não, esse peso ainda continua. Porque eu tive uma ex-diretora aqui da escola – que eu sempre tive uma relação muito próxima com os meus alunos, eles deitam no meu ombro, eu abraço… –, aí teve um dia eu estava dando aula aqui e o aluno estava encostado no meu ombro e eu estava digitando no computador. Aí ela entrou aqui na sala e saiu. Depois me chamou na sala dela e disse que era um pouco perigoso eu deixar aluno sentar no meu colo… aí eu, “oi?! Sentar no meu colo? Ele não estava sentado no meu colo, estava apenas encostado no meu corpo”. Aí ela falou: “olha, porque veja, se for a professora X que estiver fazendo isso, tudo bem, os pais não vão falar nada”. Aí eu falei: “ah tá, então você está me falando que se eu estiver, o pai vai achar que eu estou assediando a criança, é isso?” Então, tem esse peso. Se uma professora abraçar ou deixar o aluno encostar nela, ok. Agora se for eu, não!

E: Fez uma associação com um crime.

H: Foi, mas ela me falou como amiga. Aí eu falei, “primeiro que você não sabe o que está acontecendo, você abriu a porta, fechou e saiu, não viu o que estava acontecendo. Eu estava sentada no computador, ele estava atrás encostado em mim, a sala estava prestando atenção e eu estava na frente de todo mundo e você deduziu que ele estava no meu colo. Você deduziu e ainda está falando que se fosse a professora X no colo, está tudo bem e você não falaria nada. Agora, por que é comigo você vai falar?” Aí eu já coloquei essa barreira: eu já tenho essa barreira há muito tempo, aí eu coloquei mais uma barreira. Falei com as crianças: “vamos evitar um pouco o contato porque a professora está vendo a nossa relação com outros olhos”. E não era só com os meninos, era com todo mundo. Eu tenho, infelizmente, uma relação que os meninos têm ciúmes comigo com as meninas, e as meninas têm ciúmes comigo com os meninos. Então dá essa briga, inclusive com a turma que estou hoje. Tem uma relação de ciúmes muito grande com eles. Um dos alunos é um ciumento-mor. Se não der atenção para ele, ele já acha que você não gosta dele, então existe essa relação de afeto na sala. Se eles não gostam de mim, eles não aprendem. Então existe essa relação de afeto e aprendizagem. Por mais que eu dê broncas, que não foram poucas. Quatro anos juntos foram broncas diárias, então existe essa relação. Se ele não gosta do professor, ele não vai aprender, e aluno que está nem aí não vai aprender mesmo. E quando a família não gosta de mim, ela deixa o filho a Deus dará. Eu sempre falo, o problema não é meu, o filho não é meu. Ele vai ser seu a vida toda. E o fracasso do seu filho também pode depender de você. Porque eu trabalho para o máximo, nunca para o mínimo.

E: Ficamos impressionados com a boa leitura dos alunos. Este trabalho você faz diariamente, como vimos nas aulas on-line?

H: A leitura sempre foi o foco principal que a gente tem, faz parte da rotina. Então, a gente trabalha a leitura com eles, igual na aula on-line, e fazia a leitura com eles no início da aula durante todo o ano. Aí, ano passado, teve um outro projeto que as crianças recebiam os livros, porque eu gosto muito de ler, e tinha muitos livros aqui no armário, principalmente livros de terror, e eles gostavam. A vantagem é que um sempre queria ler melhor que o outro para chamar minha atenção e eles iam lendo e eu vou incentivando. Este ano está um pouquinho mais complicado, por conta da pandemia. Eu incentivo a leitura e eles estão lendo livro em casa. Então eles leem, eles devoram livro. O Matheus é fanático por mitologia grega, fez a mãe dele comprar quase R$ 300 em livro de mitologia. Então eles querem mostrar que eles gostam comprando os livros, porque eles sabem que eu gosto que eles leem. O Matheus tem toda a coleção do O diário de um banana, o Enzo também é a mesma coisa. Eles gostam bastante: o Enzo, o Matheus, o José. O José sabe que eu gosto do Ricardo de Azevedo, então ele comprou quase a coleção toda.

E: Eles te admiram, não é? Dá para perceber durante as aulas.

H: Verdade! A leitura eles gostam porque eu incentivei bastante. Eu falo que precisam ler, que é importante. Uma coisa eu falo: “se vocês não souberem ler, as pessoas vão te enganar. Para você ser um jogador de futebol, vai ter que assinar um contrato e não vai saber o que está escrito, as pessoas vão te enganar. Vocês precisam saber ler!” Então é importante sempre isso: o incentivo. E virou uma coisa orgânica, eles leem porque eles gostam. No magistério a gente lia, pois, tinha que fazer uma prova do livro. A gente não, a gente faz uma leitura prazerosa, para deleite. Você fala o que você quer, faz a leitura e traz para a sala. Teve o incentivo de ganhar R$ 100 para ler um livro, e quanto mais livro, mais dinheiro eles ganhavam. Tinha a tabela também do dia que cada um ia ler e o dia que leria. A criança ia lá na tabela e colocava o nome do livro e quando ela quer ler. Então as crianças vão olhando aquela tabela e vão saber quem vai ler naquele dia para não dar briga também. Além de tudo, ela tinha que olhar no calendário para saber qual o dia que ela podia para não bater com o dia de leitura do colega.

E: Então eles tinham um ritmo de eles mesmos se organizarem. Tem uma parte aqui em nosso roteiro de como você lida com a indisciplina, mas pelo que percebemos você usa de estratégias para tornar orgânico o comportamento sem repressão direta.

H: Não vou dizer que eu sou uma pessoa muito calma, eu não gosto de indisciplina. Tanto é que ano passado teve dois alunos que conseguiram me tirar do sério. Eles vieram de outra sala e acharam que podiam colocar o terror aqui na sala. Não gosto de mandar para diretoria, tento resolver aqui na sala, nem que tenha que tirar para o corredor e conversar um pouco. Mas esses dois conseguiram me tirar do sério e eu tive que mandar chamar a mãe. Fico bravo, brigo, xingo, coloco para fora, quando necessário, quando ultrapassou o limite. Porque aí tira a harmonia da sala toda, porque eles são desordeiros por natureza, não vou dizer que criança não é bagunceira, mas quando falta com respeito eu não gosto, pois eu não trato ninguém sem respeito. Então esses dois conseguiram, mas a gente já está se acertando.

E: Você tem alguma teoria, alguns autores que você utiliza para embasar sua prática docente, sua práxis no dia a dia pedagógico? Como foi isso também, em relação à sua formação? Se tem também uma formação continuada, se a sua escola disponibiliza essa formação ou se você teve isso no magistério mesmo e foi complementando?

H: Boa parte do estudo que eu sei veio do magistério. Gosto bastante de Ricardo de Azevedo; não tem as práticas pedagógicas, mas gosto das escritas. Tem formação também. Trabalhamos bastante também com Isabel Solé, as práticas de leitura e escrita. Tem a Emília Ferreiro, porém eu não me aprofundo muito nisso. Na minha formação pós, depois que terminei o magistério, eu fiz Geografia, História, fiz uma complementação em Pedagogia do nível superior e muitos cursos voltados para os Direitos Humanos, mais especificamente para mulheres trans e travestis com direito a igualdade para todos. Fiz alguns cursos étnico-raciais; quer dizer, não parei. Só parei este ano porque EAD eu não gosto muito, eu gosto de estar lá junto. Fiz algumas formações, inclusive de aluna para ser palestrante na USP, inclusive tem até uma matéria que eu dei palestra para os alunos dos pós-doc. A professora que eu estava fazendo curso me convidou para dar palestra para os alunos dos pós-doc dela. Fui lá falar sobre essa trajetória da mulher trans na sociedade; geralmente é o gancho que eu puxo para as minhas palestras.

E: Depois, se você puder passar para gente a relação dos cursos que você já fez, podemos agregar, pois você não parou.

H: Eu sou filha do Prouni, sou filha do Lula. Então, se não fosse o Prouni, eu não teria, talvez, não conseguiria ter pago a faculdade. Eu consegui uma bolsa de 50%, porque, pasmem, meu salário ultrapassou o limite para ganhar a bolsa de 100%. Porque eu sou uma pessoa sozinha e meu salário na época era de R$ 700 e ultrapassou R$ 100 do limite, pois tinha que dividir com as pessoas da casa para dar um valor; não tinha ninguém na minha casa, então eu consegui uma bolsa de 50%, isso já me ajudou. Em 2005 eu terminei Geografia, fiz História e Geografia, que era um curso junto, então eu terminei a licenciatura plena em Geografia e curta em História. Aí depois eu fiz essa complementação pedagógica que eu nem conto, porque eu também nem peguei o título para Pedagogia que eu fiz, em 2009. E fiz a docência superior, a que a gente faz em três anos, mas também não entreguei nenhum título. Então, eu me baseio mais no magistério. Às vezes até esqueço que tenho essas formações. E os outros cursos foi de extensão, que eu usei bastante a USP para cursos pagos, mas com 50%, porque professor paga metade. Mas que me fizeram galgar outros patamares, poder falar com mais propriedade, falar sobre sexualidade e gênero. É o que sempre falei e contei nas palestras: os escritores escrevem a teoria e eu sou a prática, então a teoria está lá e eu sou a prática no dia a dia. Eu e as meninas que estão falando lá nos livros, na tese de doutorado deles, eles não vivenciaram. Eles estão escrevendo uma coisa que eu vivi. Um dos grandes problemas que as meninas não gostam de dar entrevista é pelo depois: “Ok! Eu dei a entrevista para você, e depois? Eu vou continuar na marginalidade e vocês vão ter a tese de vocês, vão ter o doutorado, o pós e eu?”. Então muitas não gostam de falar justamente por essas questões de se abrir, se expor. A maioria não pensa na nossa formação. Porque a maioria entende que as mulheres trans e travestis, se elas conseguem chegar aos 35 anos de vida, é muito. E muitas delas não conseguem nem terminar a 4ª série. Elas já são colocadas para fora de casa justamente por falta de conhecimento da sociedade. Então os pais, principalmente os que não têm tanto conteúdo educacional e até os que têm, descobriram a orientação sexual dos filhos, colocam para fora de casa. E a rua abraça, a rua é sedutora, você vai encontrar aquela travesti mais velha que vai te abraçar, que vai usar o seu corpo para ganhar dinheiro com seu corpo, vai colocar o silicone industrial no corpo dessas meninas, e quanto mais nova a travesti, melhor, mais ela ganha dinheiro. Aí ela não consegue mais mudar de vida, porque a vida da mulher trans e travesti é difícil no Brasil, ainda mais agora, com nosso atual excelentíssimo presidente, que está tudo liberado. Então, as pessoas estão colocando para fora toda a podridão que elas seguraram por muito tempo. Agora os homens e as mulheres não têm mais medo de falar. Eles falam e não estão se importando com as punições. Eles escracham mesmo, são ofensas que doem na alma. Os questionamentos tipo: “você não é mulher”, “nunca vai ser mulher”, “se você não tem útero, você é homem”. Esquecem de fazer o paralelo, pois existem mulheres que não têm útero, mulheres que não menstruam e nem por isso elas deixam de ser mulheres. “Ah… você nunca vai gerar um filho!”. Existem mulheres que também não geram filhos, nem por isso elas deixam de ser mulheres. Então são essas ações sociais que machucam muitas meninas. A gente está falando de sentimentos, porque você não se sente aceita em lugar nenhum.

E: A gente entende isso, como você falou antes, que é falta de informação, falta de educação no sentido de ensinar, e ainda hoje existe muita polêmica desses assuntos nas escolas. Na sua realidade, você enfrenta esses tabus na sua sala de aula? Ou você não aborda com seus alunos?

H: Eu falo, mas eu não falo em ideologia de gênero. Isso nunca existiu. Existe o gênero masculino e feminino. A gente fala sobre relações de gênero. Na sala de aula eu não posso beneficiar só homens como eu não posso beneficiar só as mulheres. Porém, eu não posso me omitir que o gênero masculino faz com o gênero feminino, e automaticamente o meu corpo por si só está falando de uma relação de gênero e eu não tenho como não falar. Se o aluno perguntar, eu vou falar! Claro que dentro da faixa etária dele. Então não tem como não falar de gênero. Eu sou uma pessoa que estou no gênero do meio, eu estou na coluna do meio, não tem como não falar. Porque meus alunos me veem de salto alto, meus alunos me veem de maquiagem, tanto é que acho que em quatro anos eles só me viram sem batom três vezes. Foi na aula de sexta-feira, teve até uma mãe que falou na reunião que “não vejo a professora sem maquiagem”, porque eu me importo um pouquinho, pelo menos o batom. Eu gosto de batom, eles nunca me viram sem. E eles são sem-vergonha, tiram meu batom, borram minha cara. Não são relações de gênero, são relações humanas. A gente que dificulta. Porque existe uma relação, eu não me importo se a pessoa é homem, mulher, travesti, gordo, magro… são relações! A gente que coloca cada um em uma caixinha, a gente que quer enquadrar: isso pode, isso não pode. Tudo pode, desde que exista embasamento teórico e científico para aquilo que você está falando. Porque eu não posso chegar e falar que não existe violência contra a mulher; eu estou falando de gênero, eu tenho que mostrar para as minhas meninas que elas podem passar por isso. Como eu também tenho que falar para os meninos que eles são os culpados pela educação que eles tiveram, porque se a mãe ou o pai ensinam mal o menino, ele vai reproduzir tudo o que foi ouvindo. É uma relação de gênero. Que a mãe vai beneficiar o menino bonitinho que não faz nada e a menina que vai trabalhar em casa. Tanto que eu falo que não existem brincadeiras de menino e menina. Porque não dá para a menina um quebra-cabeça? Por que não dá um martelo? Tanto é que nas coisas que eu comprava tinha kit de médico, kit mecânico, e quem comprava eram as meninas. Por que eu não posso incentivar minha menina a dirigir direito um carro? Por que eu tenho que dar uma bola para o menino e uma boneca para a menina? Aí a gente diz que ela foi criada para cuidar, mas não, são brincadeiras e brinquedos escravizadores. É a vassourinha, o fogãozinho, a panelinha… os carrinhos, bonequinhos que jamais serão bonecas, e sim bonecos. Eu trabalho sempre isso.

E: É o conteúdo oculto, que está ali.

H: Está ali. Quando eu vejo que tem alguma coisa saindo do lugar, a gente já foca em cima, então é assim que funciona, todos os lados para eles pensarem. Tanto que eles até me surpreendem, às vezes, com as tiradas deles. Eles são alunos, são todos, não só essa turminha, não. A turminha que eu estava de 2012 a 2015, que já está no 3º ano do ensino médio, você vê a linearidade deles. Eles são alunos responsáveis, algum aluno ou outro fugiu do caminho certo, mas ele está em um ambiente em que a droga é fácil para ele. Essa semana veio um ex-aluno aqui, que todo dia ele está lá na biqueira, mas é o convívio que ele está, porque ele sempre teve esse problema, dessa aceitação. Tanto é que, como eu falei na minha sala, só vem turma de rio, tudo que não deu certo em outra sala eles mandam para a minha sala, que eu dou jeito. E ele era agressivo, batia na professora. Ele veio para mim também. No primeiro momento que ele veio ser agressivo comigo eu já fiz ele parar. Ele veio ser agressivo quando eu o mandei ler, e ele não queria ler, aí ele foi agressivo.

E: Aí você entendeu que tinha algo errado, uma dificuldade.

H: Fui descobrir que ele não sabia ler. Chamei a mãe dele, que também não sabia ler. E eu disse: “o ponto é esse, ele não saber ler, mas vai precisar. Ou você me ajuda ou você vai ter que vir toda semana aqui na escola falar que o problema é o professor, e o problema não é o professor, é o seu filho, que é agressivo, que quando é contrariado e alguém pede para ele fazer alguma coisa, ele desconta com agressividade”. Não vou dizer que ele terminou 100%, a gente ficou do 3º ano ao 5º juntos. Ele era um grude, mas começou a escrever melhor, ler melhor. Foi tudo de bom. Mas são essas coisas, as curvas do rio vêm tudo para mim e a gente consegue transformar na sala. Porque, quando a sala é organizada, quem vem de fora ou se organiza ou sai.

E: Foi uma aprendizagem para a turma também, de aprender a conviver com a diferença e respeitar.

H: O bom da minha turma é que eles são que nem eu: abraçam todo mundo. As minhas turmas abraçam todo mundo. Vem gente de fora, entra, bora fazer tudo. Eles conseguiram fazer isso. Porque todo mundo que dá problema eles mandam para a minha sala. Se gritou, mandam para a minha sala, e eles FICAM AQUI. Sempre tenho que ficar esperando na minha sala os pais de aluno de outra turma. As professoras ficam bravas comigo: “era para você brigar com eles, mas você faz carinho neles… eles querem voltar para a sua sala todo dia”.

E: Sim. Herbe, de toda a sua trajetória e vida profissional, você já está há 19 anos na sala de aula. Qual você considera sua maior conquista? Pode ser aberto a qualquer âmbito. Não precisa ser título ou nada disso. O que você considera que te traz mais euforia quando você lembra?

H: O que me traz muita, muita alegria mesmo, é quando eu vejo o reconhecimento dos meus alunos, quando os vejo em outras profissões. Eu penso: deu certo, deu certo de verdade. Porque eu os vejo com emprego, com filho, eles lembram ainda. Essa madrugada eu estava conversando com um aluno, ele está passando por algumas dificuldades e eu dei aula de geografia para ele na EJA, e estávamos conversando e ele falou: “nossa, eu lembro quando você entrou na sala de aula com aquele saltão e aqueles velhos e homens tudo olhando para a sua cara e você se bancou. E você me INSPIRA!” Conversamos sobre muitas coisas, e ele estava quase querendo ir para a rua. Ele, além de tudo, mora com o namorado, a família não aceita, e ele está querendo terminar. Eu falei para ele ficar com o namorado dele e que a gente daria um jeito. Mas ele vai precisar trabalhar. Vou precisar começar a mexer uns pauzinhos e procurar um curso para ele fazer. Eu falei: “com o custo eu me viro, você só tem que fazer o curso”. Nem que eu tenha que bater de porta em porta pedindo dinheiro. Então minha maior emoção, meu maior legado, é saber que eu formei muita gente, e que muita gente não é aquela pessoa preconceituosa, porque já passou pelo meu caminho. Não precisa nem ser meu aluno, porque eu cuido da escola inteira. Não que eu queira, mas acabo descobrindo o nome de todo mundo. E a melhor coisa que as crianças sentem é quando eu lembro o nome delas. Eu encontrei um ex-aluno aqui da minha escola, e quando gritei o nome dele no meio da rua ele levou um susto… Falou: “CARAMBA, você ainda lembra meu nome!” “Como não vou lembrar do seu nome? E a escola?” “Ah, eu parei”. “Como assim você parou, menino? Você vai ter que voltar. Esse ano você tem que voltar a estudar, tem que estudar!” Eu sempre falo que tem que estudar, porque se já está difícil com estudo, imagina sem. Então, estou sempre incentivando. Porque a educação me fez ser quem eu sou e me fez ter tudo o que eu tenho. Pode parecer pouco, mas eu tenho um carro, que é uma bolha de proteção, porque eu não ando mais de transporte público. Porque eu sofria algumas violências. Então, além de me trazer mais rápido para o trabalho, eu estou protegida dentro daquela bolha. Eu saio de casa no carro, chego na escola de carro, saio do estacionamento e já entro direto na escola. Eu meio que me policio, sempre vou nos mesmos lugares porque as pessoas me conhecem, e evito coisas novas. Então, são barreiras que eu coloco socialmente para me manter viva, e a educação me fez ter um bom relacionamento com todas as pessoas. Talvez, se eu tivesse caído na prostituição, eu não chegaria aonde cheguei e não entraria nos lugares que eu entro. Infelizmente, as meninas que se prostituem, elas só estão de noite, porque durante o dia elas estão dormindo. E de noite elas só frequentam lugares de prostituição. E eu sempre falo com elas: “tem que estudar, por mais difícil que seja, tem que estudar”. Porque o dinheiro que a gente ganha na rua vem fácil e vai fácil, porque a maioria delas usa em drogas, porque para passar a noite no frio e tendo o seu corpo como único produto de venda, é difícil. Tem que aceitar o que você nunca aceitaria, é degradante. Eu falo que para fazer programa tem que querer e tem que gostar, porque é humilhante ter uma pessoa que fala que está fazendo isso com você porque ela está pagando. E você precisar do dinheiro para poder se alimentar e sobreviver. É um privilégio eu não ter que fazer isso, e eu devolvo para a sociedade o que me foi dado de graça. Por exemplo, a minha diretora Filó, ela pagou minha primeira mensalidade por conta do salário que demorava três meses para chegar. Ela foi lá, pegou o dinheiro e me deu o dinheiro para pagar, porque eu já estava desesperada, não sabia como iria pagar o primeiro mês. E não podia ter nota baixa, nem atrasar o pagamento, e nem podia faltar. Chegou o mês de pagar e cadê o dinheiro? Eu estava trabalhando, mas não tinha recebido. Eu pedi dinheiro emprestado para todo mundo, pedi dinheiro para o vereador, até. A faculdade era R$ 222 em 2005. Era muito caro. E o salário não vinha. Nesse primeiro ano de faculdade, eu tinha que escolher: ou eu ia ou voltava a pé. Eu só tinha dinheiro para duas conduções: uma para o trabalho e outra para a faculdade. Da estação de trem até chegar na faculdade era uns 10 km e eu tinha que correr para não atrasar. No segundo ano eu podia ir de ônibus ou voltar de ônibus para pegar um trem. Já no terceiro ano eu ia de trem e voltava de carona com as minhas amigas. Então o primeiro ano, é o ano que você pensa: “se é isso que você quer… você quer!” Eu só tinha dinheiro para isso: para pagar a faculdade, condução e comida. Tinha um ano da minha vida que eu só tinha gelatina na minha geladeira, e está ótimo… o pior de tudo era que eu nem sabia fazer gelatina. E tudo isso trabalhando, todos os dias. Então foi aquele ano que apertou tudo. E a dificuldade de morar sozinha ainda era isso, ter que pagar luz, água, transporte, faculdade.

E: Hoje em dia você dá palestras em universidades. E de que maneira você se manifesta para a sociedade, para inspirar outras travestis? Você tem algum trabalho, palestra, grupo de que você participa, pessoas que te procuram como referência?

H: Quem me procura são as escolas para falar com os alunos. Então eu falo com os alunos e adolescentes para falar sobre homofobia, transfobia e todas as violências que os colegas podem passar dentro da escola. E falar o quanto isso é prejudicial. Eu levo minha história de vida para eles e falo que é possível, sim. Mas precisamos deixar o nosso colega dentro da escola, senão ele vai para a marginalidade. Aquele aluno precisa entender que ele não tem apenas uma opção de vida, ele tem várias opções. Só que ele precisa ter o direito ao estudo e de concluir o ensino, para entrar na faculdade. Eu recebo muita devolutiva depois, de gente que lembra da palestra que eu fiz… eu já fui para muito longe, duas horas de viagem para fazer palestra.

E: Muito legal.

H: Porque quando as escolas me chamam, eles têm meu know-how e sabem meu currículo dentro da sala de aula. Eles querem mostrar tanto para as professoras, porque normalmente também é voltado para elas, quanto um professor pode acabar com a vida de um aluno… não defendendo-os de algumas coisas, e quando ele se recusa a falar sobre o assunto.

E: Sim.

H: Então eu já chego com os dois pés no peito. Nós vamos falar sobre o assunto assim, e eu estou aqui. Então, se você não quiser falar, eu não posso NÃO falar. Então fica sentadinha aí, bonitinha… porque alguma coisa vai incomodar. Eu estando incomodando, ele vai querer saber o porquê. Porque a todo momento a escola tenta tirar a gente de dentro dela. Eles tentam nos expulsar, porque eles acham que esse espaço não é nosso. A todo momento. E a todo momento você tem que mostrar que esse espaço é seu também. Como é meu, como é seu, de todo mundo. O que nos falta muitas vezes são oportunidades. Talvez se a dona Heda e a Preta não tivessem me dado essa oportunidade em 2002, eu não teria começado minha carreira. Se elas não tivessem comprado essa briga, ela, a Filó que é outro amor da minha vida, que inclusive tem uma escola particular que eu nunca mandei currículo para a escola dela, porque os pais pagam e não vão me querer, então para evitar uma confusão para ela, porque eu a amo e ela me ama, eu nem tento. Porque acabaria abalando nossa relação. Ela foi minha diretora no estado, e no estado tem essa vantagem, eu não me escondo.

E: Você falando isso, conseguimos compreender a sua perspectiva. Se você tivesse se formado e só encontrado portas fechadas, você iria desistir e acabar se conformando de que não era seu lugar e não era seu espaço. Vendo o seu trabalho, percebemos que você é uma professora ímpar, pela sua trajetória, suas aulas, a forma com que você conduz suas aulas e seus alunos. Vemos que você é a professora. E se você não tivesse tido a oportunidade de descobrir isso, você dificilmente estaria aqui hoje.

H: Bem difícil, talvez eu tivesse um emprego de auxiliar administrativo. Eu gosto da rotina da escola, a minha vida inteira foi na escola, ou dando aula ou na secretaria. Então a minha rotina e vida inteira foi na escola, não tenho nenhuma experiência fora dela.

E: Conseguimos ver sua paixão pelo trabalho.

H: É aquela coisa, a essência da vida. Eu vim nessa vida para transmitir conhecimento, e que as crianças possam refletir no futuro. Sabendo que tenho algumas sementinhas, já está ótimo. Então esse tempo todo eu já tenho aluno engenheiro, advogado, mecânico, de todas as profissões. Tem uns que estão me redescobrindo agora.

E: Herbe, muito obrigada pela entrevista, professora. Foi um prazer estar com você, aprendendo e escutando histórias e respostas maravilhosas. Foi um prazer. Muito obrigada pela atenção dispensada e pelo conhecimento que nos proporcionou. Você nos inspira a sermos melhores. Diante de tudo o que pudemos obter com o diálogo estabelecido com a professora Herbe de Souza, além do agradecimento feito, podemos salientar que a proposta apresentada caminha no sentido de expor ao público uma questão que vai para além dos processos tradicionais de ensinar e de aprender, mas resgata a trajetória de vida, portanto, da narrativa (sempre) intencional de um sujeito que faz de seu próprio corpo um espaço de aprendizado no cotidiano violento e sombrio do mundo e do imaginário social acerca das travestis. Das tessituras apresentadas, algumas questões nos instigam e nos fazem fomentar outras reflexões, quem sabe futuras: as marcas que este corpo traz, para além das marcas impressas em sua psiquê, resgatam um processo educativo? Qual é o início deste processo para que este corpo se torne professor-ensinador? Este corpo que se apresenta por vezes somente em momentos exatos, dentro de um carro, em locais escolhidos, para que se evite o novo, como representado na escrita textual, este corpo resgata qual(is) sentido(s) de educar e de aprender pela escola pública brasileira? É este corpo uma sala de aula? Talvez não tenhamos respostas a tantos questionamentos, mas talvez tais questionamentos suscitem outras problematizações, interpretações e vivências menos sofridas, mas carregadas de afeto.

1E: entrevistadores; H: Herbe de Souza, entrevistada. Mantivemos a fala da entrevistada de acordo com seu aporte linguístico. Além da entrevista, também pudemos assistir aulas on-line da professora.

Recebido: 28 de Abril de 2021; Aceito: 01 de Julho de 2021; Revisado: 01 de Julho de 2021

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