SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.33 número66Sim… eu sou travesti! Entrevista com a professora Herbe de SouzaMetodologias ativas de aprendizagem: relato de uma oficina formativa índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Compartilhar


Educação: Teoria e Prática

versão impressa ISSN 1993-2010versão On-line ISSN 1981-8106

Educ. Teoria Prática vol.33 no.66 Rio Claro  2023  Epub 31-Dez-2023

https://doi.org/10.18675/1981-8106.v33.n.66.s15982 

Relatos de experiência

Experiência, sentido e palavra: reflexões sobre o ensino da história da enfermagem

Experience, meaning and word: reflections on nursing history teaching

Experiencia, sentido y palabra: reflexiones sobre la enseñanza de la historia de la enfermería

Eliane Oliveira de Andrade Paquiela1 
http://orcid.org/0000-0002-0916-9203

Eluana Borges Leitão de Figueiredo2 
http://orcid.org/0000-0002-5462-3268

Patrícia Ferraciolli Siqueira Lemos3 
http://orcid.org/0000-0002-1345-0612

Ana Lúcia Abrahão4 
http://orcid.org/0000-0002-0820-4329

1Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro – Brasil

2Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro – Brasil

3Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro – Brasil

4Universidade Federal Fluminense, Niterói, Rio de Janeiro – Brasil


Resumo

Este estudo tem por objetivo refletir sobre os efeitos da estratégia de aprendizagem ativa na disciplina de História de Enfermagem de uma faculdade no Rio de Janeiro para alunos e docência em Enfermagem a partir da composição entre experiência, sentido e palavra proposta pelo filósofo Jorge Larrosa. Trata-se de um estudo de reflexão realizado a partir de uma experiência docente com alunos do primeiro período de graduação entre os anos de 2018 e 2020. A atividade se desenvolveu em três momentos: busca ativa sobre as referências profissionais históricas e contemporâneas, análise desses achados e construção coletiva de um livro. Dessa forma, percebemos que, com base nas metodologias ativas, houve protagonismo dos graduandos no processo de ensino e aprendizagem sobre a história da enfermagem, conhecimento fundamental para o exercício da profissão. Refletiu-se, assim, que o uso de estratégias inovadoras e ativas na disciplina de Enfermagem pode gerar repercussões positivas tanto para alunos quanto para a docência em si.

Palavras-Chave: Enfermagem; História da Enfermagem; Inovação; Educação em Enfermagem; Aprendizagem Ativa

Abstract

This study aims to reflect on the effects of the active learning strategy in the discipline of Nursing History at a college in Rio de Janeiro for nursing students and teaching, based on the composition between experience, meaning and word proposed by the philosopher Jorge Larrosa. This is a reflection study based on a teaching experience with first-term undergraduate students, between 2018 and 2020. The activity was developed in three moments: active search for historical and contemporary professional references, analysis of these findings and collective construction of a book. In this way, we realized that, from the active methodologies, there was a protagonism of the undergraduates in the teaching and learning process about the history of nursing, knowledge that is fundamental for the practice of the profession. It is concluded, therefore, that the use of innovative and active strategies in the nursing discipline can generate positive repercussions for both students and teachers.

Keywords:  Nursing; Nursing History; Innovation; Nursing Education; Active Learning

Resumen

Este estudio tiene como objetivo reflexionar sobre los efectos de la estrategia de aprendizaje activo en la disciplina de Historia de la Enfermería en una facultad de Río de Janeiro para estudiantes y docentes de Enfermería desde de la composición entre experiencia, sentido y palabra propuesta por el filósofo Jorge Larrosa. Se trata de un estudio de reflexión basado en una experiencia docente con estudiantes de primer ciclo de pregrado entre 2018 y 2020. La actividad se desarrolló en tres momentos: búsqueda activa de referentes profesionales históricos y contemporáneos, análisis de estos hallazgos y construcción colectiva de un libro. De esta forma, percibimos que, con base en las metodologías activas, hubo un protagonismo de los estudiantes en el proceso de enseñanza y aprendizaje sobre la historia de la enfermería, conocimiento que es fundamental para el ejercicio de la profesión. Se concluye, por tanto, que el uso de estrategias innovadoras y activas en la disciplina de Enfermería puede generar repercusiones positivas tanto para los estudiantes como para la propia docencia.

Palabras clave:  Enfermería; Historia de la Enfermería; Innovación; Educación en Enfermería; Aprendizaje Activo

1 Introdução

Iniciamos este estudo sobre a formação em Enfermagem com algumas reflexões: e se a história da enfermagem, em vez de ser transmitida aos alunos do primeiro período de uma disciplina de graduação, fosse escrita e narrada por eles próprios? E se, no lugar de leitores sobre a história da profissão, os recém-chegados se tornassem escritores dela?

As reflexões citadas são resultado de uma experiência em que alunos e docente atravessaram a fronteira entre passado e presente, entre vivência e ciência, entre experiência, sentido e palavra. Como diz Jorge Larrosa Bondía ( 2002, p. 21): “Eu creio no poder das palavras, na força das palavras, creio que fazemos coisas com as palavras e, também, que as palavras fazem coisas conosco”.

A proposta de transformar alunos da disciplina de História da Enfermagem em fazedores de palavras a partir de experiências afetivas com histórias que vão de Florence Nightingale, a mulher que revolucionou a Enfermagem em nível mundial, até enfermeiros comuns, que continuam atualizando sua prática nos serviços de saúde, ganhou vida e voz no momento em que a Enfermagem tem muito a comemorar, uma vez que em 2020 celebramos os 200 anos de existência de Florence Nightingale, a fundadora da profissão. Esse ano também foi o marco comemorativo da Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) e da Organização Mundial da Saúde (OMS), que celebraram o ano internacional de profissionais de Enfermagem e Obstetrícia, reconhecendo mundialmente o trabalho feito por enfermeiras, enfermeiros e parteiras ( ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, 2020). Destacamos, ainda, a importância dos enfermeiros como atores principais no enfrentamento da pandemia de Covid-19, que assola o mundo, fortalecendo ainda mais a necessidade de apreciar a história da profissão.

Ao apostar pedagogicamente na produção da experiência utilizando a aprendizagem ativa de alunos com os personagens que construíram e que continuam tecendo a história da profissão, ampliamos as possibilidades de transformação que uma história pode gerar. Quantas Florences podem ser despertadas nesse caminhar? Como a docência pode impactar os alunos e ser impactada por eles? Assim, transformar experiência/sentido em palavras vai além de informar sobre uma dada teoria ou fato histórico encarcerado no tempo; tem a ver com certo movimento pedagógico de formar enfermeiros que compreendam seu passado e tenham compromisso ético com o seu futuro.

Vale ressaltar que existem lacunas na produção científica no Brasil no que se refere a publicações sobre pedagogias inovadoras em estudos da história da Enfermagem na graduação. Em levantamento feito nas bases de dados da Literatura Latino-americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS), do Sistema Online de Busca e Análise de Literatura Médica (MEDLINE) e da Base de Dados de Enfermagem (BDENF), nos últimos cinco anos foram encontrados 10 artigos sobre o tema, sendo majoritariamente de cunho histórico documental e de revisão integrativa, não tratando de experiências com aprendizagem ativa, o que torna essa reflexão relevante.

A proposta se coaduna com o reconhecimento do contexto de mudanças curriculares nos cursos de graduação, conforme as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs) de 2014. As diretrizes propõem a utilização de práticas pedagógicas que estimulem processos transformadores e reflexivos, conferindo aos alunos a autonomia necessária para aprender a aprender e aos docentes, a possibilidade de unir teoria e prática. Outro aspecto importante considerado nessa aprendizagem foi a necessidade de pensar a formação em Enfermagem segundo a ótica da Política Nacional de Educação Permanente na Saúde, que prevê um modo de ensinar a partir do rompimento com os métodos tradicionais de ensino, sendo, portanto, um norteador para as instituições de ensino superior na mudança da formação profissional ( BRASIL, 2018).

Nesse contexto, a aprendizagem ativa tem um papel importante na formação dos enfermeiros, uma vez que contribui para o desenvolvimento de competências necessárias para gestão, atenção e formação, além de formar o futuro profissional com habilidades para resoluções de problemas de saúde em realidades complexas.

Destacamos, assim, a emergência de ponderar sobre propostas em que a experiência acadêmica possa fazer/ter sentido na vida dos alunos e dos docentes, com espaço para a autonomia na criação de conhecimentos inéditos e úteis à profissão. Assim, o presente artigo tem como objetivo refletir sobre os efeitos da estratégia de aprendizagem ativa na disciplina de História da Enfermagem de uma faculdade no Rio de Janeiro para alunos e docentes a partir da composição entre experiência, sentido e palavra proposta pelo filósofo Jorge Larrosa.

2 Experiência/palavra: as repercussões da inovação pedagógica para os acadêmicos de Enfermagem

A prática de ensino parte do compromisso de estar fortemente implicada e comprometida com a participação ativa do aluno ao incitar-lhe a curiosidade, o desafio de fazer algo e pensar sobre o fazer de forma colaborativa. Assim, para provocar o engajamento nos processos de ensino e aprendizagem, a proposta feita na disciplina de História da Enfermagem para três turmas de primeiro período foi a busca ativa de histórias de vida de enfermeiros históricos e contemporâneos que fossem significativas para que os alunos conhecessem melhor a profissão.

E assim foi feito. Os alunos partiram para as pesquisas sobre histórias transformadoras de enfermeiros e, com isso, aprenderam a investigar em acervos históricos, utilizar bases de dados científicas e pesquisar nas redes sociais e em currículos Lattes. Além disso, fizeram contato com enfermeiros de vários estados do país por e-mail e por telefone. Desse modo, foi possível perceber que tornar a experiência em palavras exigiu muitas habilidades e conhecimentos dos alunos de Enfermagem, como: construção de uma escrita fundamentada em textos acadêmicos; busca e utilização de fontes bibliográficas científicas em bases de dados da área da saúde; formatação de material acadêmico conforme as normas da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT); articulação entre teoria e prática considerando os contextos cognitivo, afetivo, socioeconômico, político e cultural prementes a uma prática profissional socialmente contextualizada.

Após o agrupamento dos materiais informativos, as narrativas foram criadas e discutidas pelos grupos de forma colaborativa, totalizando 23 histórias. Esse movimento de escrever de forma colaborativa foi muito importante na formação dos alunos, já que aprenderam a trabalhar em equipe, a vivenciar os conflitos e a tomar decisões coletivas. Com isso, o estudante passou a ser responsável pela construção do seu conhecimento, aumentando o seu protagonismo.

A esse respeito, Bacich e Moran (2018) apontam para a necessidade de superação de atividades educacionais com centralidade na transmissão do professor e na passividade do aluno e advertem que a inovação no ensino é uma possibilidade real de transformar aulas em experiências de aprendizagem mais vivas e com sentido. Os autores ainda afirmam a importância de oferecer condições de aprendizagem com desenvolvimento de múltiplas habilidades, com autonomia para a elaboração de projetos, com base na convivência com a diversidade, no trabalho em equipe e com participação ativa.

Ante esse contexto, após a construção das narrativas, chegou o momento de recolher as repercussões da inovação pedagógica para os acadêmicos de Enfermagem. Para tanto, as rodas de conversa foram escolhidas como método de avaliação da experiência na Atenção Primária à Saúde I (APS I) por serem alinhadas à Educação Permanente em Saúde (EPS) e facilitadoras de aprendizagem ativa e colaborativa, estimulando o diálogo e a reflexão crítica do aluno desde o início da formação ( NASCIMENTO, BADUY, 2021).

Logo, faz-se pertinente pensar que as rodas de conversa foram potentes para os alunos por conta da experiência de troca e de construção de conhecimentos com os colegas de turma. Houve um verdadeiro exercício do diálogo, com momentos de fala e de escuta, ampliando, assim, habilidades de comunicação, tão caras ao exercício da profissão de enfermeiro.

Sob essa perspectiva, percebeu-se o quanto os alunos voltavam marcados pelos encontros que tiveram com esses enfermeiros e suas histórias. Assim, foi possível notar que a experiência começou a fazer sentido para eles e, a partir da convicção de que as experiências produzem sentido e criam realidades, a experiência/sentido se fez palavra ( BONDIA, 2002), ou seja, a experiência afetiva com a vida desses enfermeiros transformadores na história da profissão inspirou os alunos a contarem a história sob suas óticas, com suas próprias palavras.

O que chamamos aqui de “palavra” é a dobradura que a experiência/sentido fez na vida dos alunos, ou seja, foi o momento em que a experiência, ao fazer sentido, materializou-se em palavras, textos, narrativas vivas em que trajetórias de vida de enfermeiros foram contadas, (re)vistas e rememoradas pelos alunos a partir da criação de narrativas que trataram de intensidades, medos, perseveranças, competências e potências na tessitura histórica do Ser Enfermeiro.

Desse modo, diante dos resultados apresentados na APS II pelos alunos e da qualidade dos materiais construídos, as repercussões da experiência transbordaram a proposta inicial, surgindo a ideia da construção de um livro. O livro foi organizado pela docente e por uma aluna e publicado por uma editora do estado de Minas Gerais que produziu a capa com um bordado da lâmpada, símbolo da Enfermagem, feito a mão e com encadernação artesanal. O livro apresenta 23 capítulos com as narrativas elaboradas pelos alunos, sendo 13 com histórias de enfermeiros da Primeira Geração e 10 com histórias de enfermeiros da Segunda Geração, distribuídas em 225 páginas, como mostra o Quadro 1.

Quadro 1 - Narrativas construídas pelos alunos. 

Histórias da Primeira Geração de Enfermeiros Histórias da Segunda Geração de Enfermeiros
Mary Jane Seacole (1805-1881): primeira enfermeira negra na história da Enfermagem. Neide Maria Freire (1934): nos caminhos de uma enfermeira visitadora sanitária.
Anna Justina Ferreira Nery (1814-1880): a matriarca da Enfermagem brasileira. Marilda Machado Tertuliano (1947): uma enfermeira que é música para a Enfermagem
Florence Nightingale (1820-1910): a dama da lâmpada. Neusa Maria Figueira (1951): a Enfermagem por muitos caminhos.
Lillian Wald (1867-1940): uma enfermeira ativista pela vida. Leila Gomes Ferreira de Azevedo (1962): enfermeira obstetra na luta pelo parto humanizado.
Maria José Bezerra – Maria Soldado (1885-1958): uma ilustre enfermeira (des)conhecida. Rejane de Almeida (1963): militante pelos direitos dos profissionais de Enfermagem.
Rachel Haddock Lobo (1891-1933): a Enfermagem entre a abnegação e a paixão. Dejanilton Melo da Silva (1969): uma trajetória de superação.
Laís Netto dos Reys (1893-1950): uma potência feminina nas escolas de Enfermagem brasileiras. Patrícia Ferraccioli (1970): a Enfermagem como força de criação e resistência feminina.
Waleska Paixão (1903-1993): uma enfermeira implicada na evolução da Enfermagem. Debora Ribeiro Cardoso (1973): o cuidado por trás das grades.
Olga Verderese (1917-2004): uma vida para a Enfermagem. Amara Paula (1990): uma enfermeira emergencista a serviço da vida.
Ethel Parsons (desconhecido-1953): a Enfermagem como missão. Caio José Batista (1993) – enfermeiro transgênero e o segundo do Brasil a conquistar nome social.
Ivone Lara (1922-2018): a história por trás da artista.
Wanda Aguiar Horta (1926-1981): uma enfermeira capaz de muitas coisas.
Izabel dos Santos (1927-2010): referência vibrante na formação da Enfermagem de nível médio no Brasil.

Fonte: Livro A história da Enfermagem em correspondências: entre fatos e versões.

Por fim, foi possível ainda perceber que o afeto pela vida e a obra dos enfermeiros despertaram o desejo dos alunos de conhecer mais, mergulhar com mais intensidade nos fundamentos da profissão, reafirmando a sua escolha pela Enfermagem, já que muitos chegam desejando o curso de Medicina e, por questões diversas, acabam optando por Enfermagem; outros, por serem técnicos em Enfermagem, têm uma rotina de trabalho muito intensa, o que prejudica a permanência no curso. Nessa direção, MATTOS et al. (2021) suscitam a reflexão de que outros fatores também podem concorrer para a desistência da graduação em Enfermagem pelo acadêmico, entre os quais o desconhecimento do curso escolhido, as incertezas quanto à escolha da profissão, a dificuldade de relacionamento com os colegas e docentes e a frustração com o curso. A experiência, todavia, foi na direção contrária, uma vez que se notou uma redução no índice de evasão do curso, muito característico do primeiro período, como apontado anteriormente.

Assim, os alunos se tornaram autores e o livro foi um produto construído a partir da inovação pedagógica na disciplina, podendo ser considerado um material inédito na literatura da Enfermagem, já que contribui para uma percepção crítica do passado e do presente por meio de textos afetivos atravessados pelo olhar translúcido dos recém-chegados à profissão ( FIGUEIREDO, TREVISANI, 2019).

3 Experiência/sentido: (re)pensando o sentido das práticas docentes em Enfermagem

A partir da necessidade de elaboração da APS na disciplina, a docente e a coordenação de curso se puseram a pensar em: como acionar o fazer pedagógico de ordem sensível nas práticas docentes em Enfermagem? Como perseguir essa intenção de ensinar tais práticas na disciplina de História da Enfermagem de modo que se entrelacem experiência e sentido no interior de um modelo acadêmico que estimula produtividade, excesso de informações, conteúdos, técnicas e procedimentos?

Historicamente, a prática docente em Enfermagem é parte de uma discussão que se traduz como certa separação entre técnicas versus sensibilidade, porque a profissão se constituiu justamente de uma cisão entre os estados de pré-saber e saber científico, e, ainda, por interferência do campo biomédico, estruturou seu fazer criando subdivisões tecnicistas, o que é evidenciado nas categorias auxiliares, parteiras, técnicos e enfermeiras ( SOUSA et al., 2018 ). Apesar desse efeito categorizador da profissão, a Enfermagem não se descolou do pré-saber, qual seja, uma natureza sensível que cientificamente é pouco autorizada. Assim, as práticas docentes, por estarem no lugar científico, acabam por se afastar de práticas sensíveis, justamente porque são julgadas como não ciência, coexistindo às margens do processo educativo.

A experiência docente promoveu importantes reflexões sobre a prática docente no campo da Enfermagem, sendo possível perceber que, de dentro de uma estrutura acadêmica historicamente permeada por saberes e fazeres com predominância técnica/tecnicista, criamos uma pedagogia ativa em que, em vez de fazermos um experimento com os alunos convertendo a APS em um elemento do método, isto é, em uma etapa de caminho seguro e de resultados previsíveis, apostamos na experiência/sentido. A experiência como aquilo que nos acontece e o sentido como o saber do que nos acontece.

Com a experiência podemos perceber que há ciência nesse modo de ensinar e existe uma interferência na formação desses discentes que os habilita ao acolhimento de traços acidentados, desviantes, menores de produção de conhecimento em Enfermagem ( FIGUEIREDO et al., 2019 ). Acreditamos que a prática docente pode dar lugar a uma potência que fez reverberar a experiência em si, fazendo que a atividade acadêmica tivesse sentido para os alunos.

Doutor em Filosofia da Educação, Jorge Larrosa Bondía nos mostra que o tempo da experiência é outro ( BONDÍA, 2002), dando pistas de que o modo que temos utilizado na docência no campo da Enfermagem é um modo acostumado, viciado e que pouco se inclina a proporcionar uma abertura necessária para o tempo da experiência, uma vez que é reflexo de uma formação conteudista e biologicista muitas vezes. Sendo assim, acreditamos que o efeito dessa formação atravessa as práticas docentes, independente da disciplina que esteja sendo trabalhada.

Desse modo, o docente que hoje está ocupando as salas de aulas e se propõe a lecionar disciplinas como a da nossa experiência em História da Enfermagem, por exemplo, é o efeito de toda essa construção pedagógica advinda da formação e, com isso, acaba narrando a seus alunos histórias potentes como as de Florence Nightingale, Ana Neri e importantes personagens que construíram a profissão, muitas vezes de forma transmissiva e desinteressante. Somado a isso, o percurso desse docente como trabalhador no campo da saúde ou como preceptor em ensino prático pode tender para uma lógica tecnicista se a experiência assistencial for biologicista ( FORTUNE et al., 2019 ), o que, ao nosso olhar, pode contribuir para práticas docentes um tanto empobrecidas, fazendo dessa disciplina uma mera explanação de eventos históricos que não colocam em pauta a análise histórica, tampouco as implicações futuras.

Cabe ressaltar que nem de longe estamos nos colocando no lugar de um modelo a ser replicado, porque, como Larrosa propõe, a experiência é singular, limitada e irreprodutível ( BONDÍA, 2002). Aqui nos esforçaremos para produzir uma análise de nossas próprias práticas como docentes e, quem sabe, poder reverberar nos corpos dos leitores alguma possibilidade de também construírem para si experiências/sentido na formação.

De início, não sabíamos se a proposta feita aos alunos na disciplina de História da Enfermagem seria acolhida por eles e tampouco que teria a proporção que teve, ou seja, a criação de uma literatura viva, autoral, inédita. Aqui, localizamos um fazer despretensioso, entretanto não se pode confundir “despretensioso” com “despreparado”. A seguir, explicaremos melhor esse ponto.

Segundo o Dicionário Online de Português, “preparar” é dispor com antecedência e predispor favoravelmente ( PREPARAR, 2020). Assim, o termo “preparo” nos remete a uma antecipação, uma intenção prática anterior. Uma condição que nos coloca prontos em determinados momentos, portanto o preparo ao qual nos referimos não está situado nas discussões cartesianas, que esperam que o docente separe textos, organize aulas, prepare slides etc. O preparo diz respeito a uma predisposição para a experiência. Há um modo de ser docente que nos coloca preparados, ou melhor, atentos aos movimentos que a docência é capaz produzir em nós e no outro. A esse modo chamaremos de ética, isto é, uma postura de abrir passagens para que alunos e docentes sejam cocriadores da mesma história da qual fazem parte.

A aposta que fizemos nessa experiência foi com modos vivos de ensinar. Estamos chamando de modos vivos o fato inédito de ter provocado nos alunos um desejo de acolher o trabalho coletivo e de perseverar na escrita de uma obra sobre a história da Enfermagem, um assunto que, por vezes, não é atraente nem para os docentes nem para os alunos.

Para poder construir uma ética que se alie ao vivo e que produza uma experiência/sentido, o docente precisa, portanto, compreender que os modelos preexistentes, excessivamente planejados e sistematicamente avaliados, não darão conta sozinhos de capturar essa potência, como também não será possível transmitir esse fazer como se ele fosse uma fórmula a ser repetida. Seguindo por essa lógica, há uma produção de saberes que se debruça em reafirmar uma lógica do controle da vida, ou do que é vivo. Esse modo de produzir ciência sobre a vida reforça a ideia de contenção e tem como finalidade refrear a velocidade, podar e controlar a vida. Desse modo, na construção da ciência cartesiana, experiências afetivas são evitadas e repudiadas, pois veem na intensidade um modo perigoso ( FIGUEIREDO et al., 2019 ).

Na docência, esse fato pode ser percebido nos métodos de ensino, em que, ao mesmo tempo em que defendemos a vida no discurso, produzimos um distanciamento dos alunos, adotando métodos punitivos, conteudistas, imediatistas, protocolares e silenciadores. Apesar de estudos recentes apontarem que há novos modelos pedagógicos de ensino na Enfermagem que apostam numa forma dialógica de construção de saber entre professores e alunos ( HINO et al, 2019 ), ainda predominam métodos pedagógicos apartados do vivo. São produções murchas, que podam a vida e reproduzem o lugar docente como locais autoritários, que não deixam passar o saber da experiência. Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado para que nada nos aconteça ( BONDÍA, 2002). Talvez seja por isso que muitos alunos não conseguem ver sentido em alguns ensinamentos que lhes são transmitidos.

Ainda que muitas vezes os docentes se engajem e se preocupem com os ensinamentos de uma assistência humanizada pautada na lógica da melhoria da assistência e nas necessidades de saúde da população, docente e aluno pouco se relacionam com a experiência de cuidado humano ( MATTIA, KLEBA, PRADO, 2018). Ora, está posto aqui um grande conflito, pois somos humanistas e discutimos cientificamente um cuidado pela via sensível; porém, na docência, negamos muitas vezes, não só as práticas sensíveis, como também a própria vida daqueles a quem ensinamos.

Desse modo, a aprendizagem ativa foi um modo de ensinar sensível que estimulou processos educacionais em que os alunos de Enfermagem não só participaram ativamente de sua própria formação, como também se comprometeram com o aprendizado do outro. Os alunos se aproximaram de suas referências profissionais a partir da curiosidade e do desafio de se tornarem escritores de si mesmos.

Então, o que nos provoca nessa análise e que tornamos, neste artigo, uma reflexão foi a possibilidade docente de lecionar uma disciplina que se compromete em contar a história da construção da profissão pela perspectiva da experiência/sentido, fazendo que o aluno compreenda que a história da Enfermagem é viva e continua sendo escrita por todos aqueles que estão implicados com o cuidado.

4 Considerações finais

O estudo refletiu sobre uma atividade de aprendizagem ativa na disciplina História da Enfermagem de uma faculdade no Rio de Janeiro em que 113 alunos do primeiro período se tornaram protagonistas e escritores da história da profissão a partir do par experiência/sentido. Assim, foi possibilitado aos alunos o desafio de buscarem o conhecimento sobre a Enfermagem ao longo do tempo (1ª e 2ª gerações de enfermeiros) e de ressignificarem, por meio da escrita, a profissão que escolheram.

O objetivo de partilhar saberes sobre a estratégia de aprendizagem ativa no curso de Enfermagem a partir da composição entre experiência, sentido e palavra foi alcançado ao ter-se como resultado a produção de um livro que exigiu dos alunos busca, curiosidade, dedicação, comprometimento, colaboração, estudo e capacidade de experimentar e escrever sobre a profissão.

O estudo resultou em uma profunda reflexão sobre o ensino da Enfermagem na atualidade. Foi possível compreender que, mesmo tendo avançado em discussões críticas ao modelo advindo das ciências biológicas, a Enfermagem se vê às voltas com um esforço acadêmico significativo para produzir outros modos de educar que não passem necessariamente por reproduções de discursos hegemônicos e de práticas de ensino de natureza transmissiva.

É importante destacar que a experiência docente com alunos de primeiro período apostou em um modo de ensinar que deu passagem ao protagonismo do aluno na produção de um livro sobre a história da Enfermagem por intermédio de um campo de experimentação afetiva, coletiva e de aprendizagem ativa. Nessa direção, a experiência fortaleceu a prática docente no curso de Enfermagem, uma vez que possibilitou uma reflexão acerca das possibilidades de invenções pedagógicas na produção do vivo segundo a relação entre experiência, sentido e palavra.

Depreende-se, assim, que a experiência decorreu de um arranjo pedagógico com compromisso com práticas educativas que engendram uma experiência acadêmica dotada de sentido; do contrário, o resultado seria uma abundância de artefatos históricos de Enfermagem e uma grande carência de conhecimentos sobre a existência, as necessidades e as fragilidades humanas vividas por enfermeiros do passado e do presente.

Referências

BONDÍA, J. L. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, Rio de Janeiro, n. 19, p. 20-28, abr. 2002. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-24782002000100003&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 13 jan. 2020. [ Links ]

BRASIL. Resolução nº 510, de 07 de abril de 2016. Dispõe sobre as normas aplicáveis a pesquisas em Ciências Humanas e Sociais. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 22 maio 2016. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/resolucoes/2016/Reso510.pdf. Acesso em: 24 set. 2020. [ Links ]

BRASIL. Política Nacional de Educação Permanente em Saúde: o que se tem produzido para o seu fortalecimento? Brasília: Ministério da Saúde; Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde; Departamento de Gestão da Educação na Saúde, 2018. [ Links ]

FIGUEIREDO, E. B. L. de et al. Research-interference: a nomad mode for researching in health. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, v. 72, n. 2, p. 571-576, abr. 2019. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-71672019000200571&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 20 jun. 2020. [ Links ]

FIGUEIREDO, E. B. L. de; TREVISANI, K. (org.). A história da enfermagem em correspondências: entre fatos e versões. Rio de Janeiro: Quicelê Publicações Artesanais, 2019. [ Links ]

FORTUNA, C. M. et al. Collective Health Nursing: desires and practices. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, v. 72, supl. 1, p. 336-340, 2019. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-71672019000700336&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 16 mar. 2021. [ Links ]

HINO, P. et al. Comprehensiveness in the perspective of public health: pathways for the training of the nurse. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, v. 72, n. 4, p. 1119-1123, ago. 2019. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-71672019000401119&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 22 ago. 2020. [ Links ]

MATTIA, B. J.; KLEBA, M. E.; PRADO, M. L. do. Nursing training and professional practice: an integrative review of literature. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, v. 71, n. 4, p. 2039-2049, ago. 2018. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-71672018000402039&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 17 jul. 2020. [ Links ]

MORAN, J. Metodologias ativas para uma aprendizagem mais profunda. In: BACICH, L.; MORAN, J.(org.). Metodologias ativas para uma educação inovadora: uma abordagem teórico-prática. Porto Alegre: Penso, 2018. Disponível em: https://curitiba.ifpr.edu.br/wp-content/uploads/2020/08/Metodologias-Ativas-para-uma-Educacao-Inovadora-Bacich-e-Moran.pdf. Acesso em: 13 maio 2021. [ Links ]

NASCIMENTO, A. K. da C.; BADUY, R. S. Simulação, oficina e roda de conversa: estratégias de aprendizagem ativa na saúde. Revista Educação em Debate, Fortaleza, ano 43, n. 84, jan./abr. 2021. Disponível em: http://www.periodicosfaced.ufc.br/index.php/educacaoemdebate/article/view/1129/0. Acesso em: 14 maio 2021. [ Links ]

ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Ano da Profissional de Enfermagem e Parteira. Disponível em: https://nacoesunidas.org/oms-define-2020-como-ano-internacional-dos-profissionais-de-enfermagem-e-obstetricia/amp/. Acesso em: 13 jan. 2021. [ Links ]

PREPARAR. In: DICIO, Dicionário Online de Português. Porto: 7Graus; 2020. Disponível em: https://www.dicio.com.br/trabalho/. Acesso em: 27 jun. 2020. [ Links ]

SOUZA, D. M. de et al. Pedagogical preparation of nursing professors for professional secondary technical education. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, v.71, n.5, p. 2432-2439, out. 2018. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-71672018000502432&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 6 jul. 2020. [ Links ]

Recebido: 30 de Maio de 2021; Aceito: 18 de Janeiro de 2022; Revisado: 13 de Janeiro de 2022

Creative Commons License This is an open access article distributed under the terms of the Creative Commons License