1 Introdução
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as
insignificâncias (do mundo e as nossas).
Manoel de Barros1, Meu quintal é maior que o mundo
Este trabalho parte dos nossos quintais/mundos, inspirados nos versos de Manoel de Barros, onde as insignificâncias (do espaço, do tempo e dos sujeitos) constroem pequenidades que atravessam e entremeiam geografias escolares diversas. As geografias escolares agrimensuradas neste texto voltam-se para as multiplicidades que compõem os territórios desassossegados contemporâneos da docência. Este texto é tecido no âmbito das reflexões políticas, filosóficas e epistêmicas de nossas práxis como professores e professorandes2 do curso de Licenciatura em Geografia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e dos diálogos horizontais e plurais tecidos no âmbito do Grupo de Ensino, Pesquisa e Extensão Artesanias Geográficas e Educacionais (AGE/UFF). No âmago desses espaços, desenvolvemos o projeto pesquisa/ensino “lugares de docências”,3 que se constitui em espaço de compartilhamento de narrativas docentes que tecem sua profissão em diversos lugares/tempos/saberes. Nesse sentido, o texto configura-se pelo caráter ensaístico e teórico experimentado no escopo do processo formativo coletivo dos autores nesses espaços, lançando mão de pesquisa bibliográfica.
Em tempos em que as reformas curricularizantes são impostas de forma vertical e alheias aos territórios escolares – referimo-nos criticamente à Base Nacional Comum Curricular (BNCC),4 ainda que não ela por si só, pois o projeto de uma homogeneização escolar inclui outras políticas e programas educacionais que vêm sendo duramente implementados país afora5 –, faz-se premente discutir, pensar, elaborar coletivamente estratégias horizontais de resistência a partir dos territórios escolares. Nessa disputa pela organização territorial da escola, inclui-se, segundo Pereira (2022), instigarmos aos olhares desacostumados as geografias escolares, pautando no plano político as vinculações hegemônicas e neoliberais das reformas, enquanto nos voltamos para as insignificâncias, para as pequenidades do cotidiano escolar como arte de autoria, criação e resistência docentes.
Posta a crítica ao que vem sendo imposto à educação brasileira, pretendemos aqui um contraponto. A inspiração para a escrita deste texto parte das leituras de bell hooks, especificamente do livro Ensinando a Transgredir (2017) e da proposta de Por uma Geografia em Movimento (Bartholl, 2018). Por meio da captura de ideias e interpretações autorais, o objetivo deste texto é tecer ensaisticamente um diálogo/análise entre as reflexões levantadas por ambos os autores num movimento que suscite outras ideias e ideias outras, como os intercessores de Deleuze que se dobram e desdobram, em movimento...
Transgredir é uma palavra forte que revela uma orientação política, poética e estética em manifesto. No livro de ensaios, a autora propõe “novas maneiras de cruzar fronteiras” (Hooks, 2017, p. 242, grifo nosso). Transgredir está/vai para além das doutrinas dogmáticas. bell hooks6 foi uma autora afro-estadunidense ligada ao feminismo negro e, conectando-se diretamente com as ideias de Paulo Freire, propôs uma pedagogia engajada.
Já a proposta de Por uma Geografia em Movimento, de Timo Bartholl (2018), vem de geografias desenvolvidas nos/com os movimentos sociais de base, comprometidas com as lutas das classes periféricas. A proposta de Bartholl também floresce de suas vivências junto/com/nas coletividades militantes com base em favelas do Rio de Janeiro. Para o autor, se “a Geografia tem muitas contribuições específicas a fazer para cuidar desta relação” com as classes periféricas e dissidentes, isso “demonstra-se na inserção da mesma nos processos concretos”, ou seja, em/no(s) movimento(s) (Bartholl, 2018, p. 18).
Ao longo do texto, discutimos propostas para uma geografia escolar comprometida com a transformação social emancipatória, no entanto não se pretende algum tipo de receita de bolo prescritiva aos professores e professorandes (Rocha; Giordani, 2021) que lecionam/lecionarão e que constroem geografias escolares autorais. Se, como afirma Giordani, são o “território, a territorialidade e a cultura de cada escola [que] possibilitam a geograficidade, a significação de conceitos e de temáticas” (2020, p. 265), é com muito cuidado que este texto não pretende pressupor “ensinar” ou “prescrever” aos professores como ministrar suas aulas, mas, antes, tecer algumas reflexões em movimento dialógico de reconhecimento dos dados embaraçados da/na/pela sala de aula (Corazza, 2012).
Esse texto está estruturado em três momentos. Primeiro, discutimos a comunidade pedagógica e as entradas que permitem atravessamentos em bell hooks. No segundo momento, exploramos os saberes de uma geografia em movimento que se constrói coletivamente (em) (con)junto aos sujeitos implicados no espaço e na comunidade escolares. Por fim, tecemos algumas notas não conclusivas como catapultas para o pensar geografias escolares em movimento.
2 Sobre a escola e o controle
Entendemos que o espaço escolar está em disputa, seja pelos interessados em uma transformação social emancipadora, seja por interesseiros da manutenção do controle social ostensivo. A Educação, enquanto parte de uma tecnologia disciplinar, somada ao domínio das tecnologias de biopoder e da biopolítica, visa, além do controle em nível do corpo-organismo (controle, vigilância e punição), o controle da ordem social (Foucault, 1976).
Retomemos as noções de biopolítica e o papel da escola como instituição por meio da qual são operantes tecnologias disciplinares. No século XIX, houve atualização no entendimento do “homem” enquanto espécie (humana), que, sob a lógica de conjunto, foi/é agrupada em populações. A biopolítica irá agir nesse nível, sobre uma massa global de indivíduos, pretendendo controle sobre fenômenos de série que atingem uma multiplicidade intraespécie (mortalidade, natalidade, morbidade etc.). Nesse sentido, as tecnologias do biopoder irão operar, como propõe Michel Foucault, mediante coordenação, centralização e normatização da vida. O biopoder é, por isso, um poder pela regulamentação da vida – e, sobretudo, das formas de vida e modos de existência.
A disciplina é um mecanismo de adestramento social dos corpos. Na terceira parte de Vigiar e Punir, Foucault (1997) aborda a disciplina como um conjunto de atividades que subjugam o corpo à docilidade, à obediência. Um dos mecanismos das tecnologias disciplinares é a vigilância, isto é, por meio do “olhar hierárquico”, como afirmou Foucault. Analisando a escola sob este viés, como um “operador de adestramentos”, ela é um local em que se pode atribuir aptidão ou incapacidade aos corpos que compõem a mirada de interesse: os/as estudantes, e conta com subsídios muito mais interessados em educar corpos jovens. Não é por acaso que a Educação de Jovens Adultos tem sido “lograda ao ostracismo”.7
As tecnologias disciplinares e biopolíticas têm objetivos diretamente ligados a uma determinada matriz epistemológica e lógica (re)produtiva das sociedades com intenções de condicionamento e regulamentação da vida. Apontamos que a colonialidade do poder é fundamental para fazer uma crítica ao modelo de ensino importado (Quijano, 2009). Assim, precisamos afirmar que os projetos e programas voltados para educação que vêm sendo implementados possuem orientações política, ética, estética e poética (Giordani, 2020) vinculadas ao modelo neoliberal de economia a fim de condicionar as existências e uniformizar as diferenças.
A escola tem sido parte fundamental do aparato de adestramento de corpos e subjetividades, de preparação dos trabalhadores/as para as demandas do mercado. A Educação e a escola, no contexto de neoliberalização da economia, vêm sofrendo com a implementação de reformas, acompanhando o passo da flexibilização e precarização do trabalho (Silva, 2018; Girotto, 2021). Os espaços escolares estão em disputa por diferentes agentes, no sentido de como e quem vai condicionar as subjetividades/corpos (disciplina), para o que e com quais objetivos. Estrategicamente, têm sido alvo do projeto de neoliberalização econômica, afetando progressivamente não só a Educação Básica, mas tudo com que se relaciona, como os cursos de formação de professores, a aquisição e a feitura dos materiais e livros didáticos etc.
Aqui, neste texto, a Educação é vista não como um fim em si, mas como um “meio para”. Nesse sentido, dialogamos com Eveline Algebaile, que diz:
(...) a ideia [sic] de que a escola brasileira é melhor entendida como parte fundamental de um sistema de política social do que como parte de um sistema educacional, pura e simplesmente, sendo que este pertencimento a configura, de tal forma, que a função clássica de “transmissão de conhecimentos”, característica da escola pública de países ocidentais de economia avançada, parecem, aqui, uma referência fraca e distante. Não é que a escola pública brasileira sirva ao propósito de ser uma escola de baixa qualidade. Trata-se do fato de que ela é de baixa qualidade por que serve a outros propósitos, a educação, em si, sendo apenas um objetivo secundário
(Algebaile, 2003, p. 18)
3 bell hooks e a comunidade pedagógica
Em Ensinando a Transgredir, bell hooks, logo de início, pontua que o livro não é endereçado apenas para os/as/es professores/as/ies, mas para todas as pessoas implicadas coletivamente nas salas de aula, ou seja, na construção das comunidades pedagógicas.8 A maioria dos textos-ensaios que compõem o livro é traçada a partir das espacialidades, territorialidades, lugaridades da autora em salas de aula universitárias norte-americanas, envolvendo também sua trajetória de vida como mulher negra crescida no Sul dos EUA sob as leis Jim Crow segregacionistas. bell hooks escreve com a e a partir da sua experiência, o que dá tom a uma leitura tão encantadora, sem perder de vista a sua histórico-criticidade. Na introdução do livro, ela diz que “foi nas escolas de ensino fundamental, frequentadas somente por negros, que [teve] a experiência do aprendizado como revolução” (Hooks, 2017, p. 10).
É nas salas de aulas feministas, no contexto universitário/acadêmico, que bell hooks vai ter abertura para questionar práticas pedagógicas normativas. Nessas salas de aula feministas, as professoras se esforçavam para lecionar com objetivos de transformação dos sujeitos implicados para além da sala de aula; que o conhecimento fosse para além do contexto acadêmico, que a teoria servisse para a transformação social da vida das estudantes, compreendendo a Educação como processualidade, contra uma lógica de educação bancária, em que são depositados supostos “conhecimentos” de forma tecnicista e mecânica.9
Discutir questões sociais, culturais, educacionais e seus desdobramentos com os alunos é um ato político de formação de identidades e cidadania, fazendo do ambiente escolar um lugar também de encontro entre pessoas, de fazer amizades, compreender e enfrentar seus medos, compartilhar ideias, sentimentos, transformar e reinventar a realidade para além dos muros da escola, entendendo que aprender sobre o mundo é se instrumentalizar para agir sobre ele
(Vieczorek, 2019, p. 379).
Como dito anteriormente, bell hooks irá propor “novas maneiras de cruzar fronteiras” (Hooks, 2017, p. 242, grifo nosso). Nesse ponto, “transgredir” fronteiras em bell hooks é ir além daquelas salas de aula previamente formatadas, é pela imaginação coletiva de novas formas e noções de construção dos saberes. É uma transgressão no sentido de ir além do preestabelecido. É uma fronteira, porque, se podemos concordar que a Educação e a escola estão em transe e em trânsito, quer dizer que estão em movimento.
A fronteira é uma zona/faixa de transição, e podemos ver a escola como esse fecho de espaço, (in)consolidado, mas também com inúmeras possibilidades. Pensamos que é na escola que acontecem os tensionamentos da fronteira do eu com o outro, o eu e os nós. Para se formar uma comunidade pedagógica é necessário tecer muitos nós. Que esses nós se friccionem e se afetem. Assim,
(...) as marcas permanentes que atribuímos às escolas não se refletem nos conteúdos programáticos que elas possam nos ter apresentado mas sim se referem a situações do dia-a-dia, a experiências comuns ou extraordinárias que vivemos no seu interior, com colegas, com professoras e professores. As marcas que nos fazem lembrar, ainda hoje, dessas instituições têm a ver com as formas como construímos nossas identidades sociais (...)
(Lopes Louro, 2000, p. 11).
A porosidade da sala de aula e a empreitada de conectar as pontas soltas ousa causar curtos-circuitos que mobilizem as energias sujeitas da ação. Assim,
(...) a aula se constitui num espaço-tempo onde transitam diferentes histórias, formando uma teia de relações, em que conflitos, encontros e desencontros acontecem assim como possibilidades de construir a capacidade humana, mediada por relações dialógicas
(Verdum, 2013, p. 94).
Estar em comunidade em sala de aula é permitir o movimento, é, talvez, criar/forjar coletividades, inebriar metas e objetivos impostos aos fazeres escolares, é percorrer caminhos para uma educação comprometida com uma transformação social, comprometida com saberes (auto)emancipatórios (Bartholl, 2018). No processo, criam-se relações de alteridade, na comunicação entre um e outro.

Fonte: Entrevista concedida à Clarisse Gonçalves publicada na Revista Desvio (2019)
Figuras 1 e 2 “Instruções para uma escuta/Instruções para uma fala”, do artista Pedro Pessanha (2019).
O artista fala sobre a obra:
Me ocorreu então a formulação de instruções para a construção de um megafone, um objeto que funciona ao mesmo tempo como um amplificador da fala e da escuta. A montagem do objeto em si já cria uma relação de alteridade, a partir do encontro que o leitor tem com o texto proposto: ele escolhe a ordem dos módulos, quais deles ficarão internos, quais deles ficarão externos, o que será descartado – tudo isso são escolhas que serão feitas ao construir esse dispositivo, decisões que vão alterar e criar novas relações semânticas entre as palavras inscritas nele
Assim, o desígnio/desenho apresentado justifica repercutir reflexões sinestésicas, discutindo a contribuição das comunidades pedagógicas em bell hooks para geografias escolares e salas de aula. Recorremos à obra do artista Pedro Pessanha (Figuras 1 e 2) como “intercessora” (Vasconcelos, 2005), pois entendemos que o dispositivo proposto por Pessanha ilustra a ideia de bell hooks sobre comunidades pedagógicas quando ela diz:
Hoje em dia, quando a “diferença” é tema quente nos círculos progressistas, está na moda falar de “hibridação” e “cruzar fronteiras”, mas raramente encontramos exemplos concretos de indivíduos que realmente ocupem posições diferentes dentro das estruturas e partilhem ideias entre si, mapeando seus terrenos, seus vínculos e suas preocupações comuns no que se refere às práticas de ensino
(Hooks, 2017, p. 173).
As diferenças estão no chão da escola, questionam a cisão entre a mente e o corpo, ligada a uma matriz epistemológica colonizadora. Para a construção coletiva das comunidades pedagógicas é preciso que a presença de todos os sujeitos implicados seja reconhecida. Não basta o reconhecimento ou a representatividade, é preciso construir um espaço de escuta que permita a proliferação das vozes, que permita a escuta e o diálogo, as travessias coletivas dos versos. Nesse sentido, é permitido também o conflito, pois ele mesmo é inventivo. Não estamos falando de confronto. Lima (2020, p. 129) apresenta uma reflexão mais aprofundada sobre a diferenciação entre conflito e confronto: “O confronto é, pois, a radicalização do conflito, é a sua forma ou expressão paroxística, na qual a eliminação do outro se torna condição básica para a sua realização. Entre o pré conflito e o pós conflito, o risco do confronto é sempre iminente (...)”.
Se bell hooks enfatiza a voz, é para libertar as amarras de uma educação castradora, para desfrutar de uma educação criativa. Nesses termos, se, por um lado, é preciso encorajar e criar espaço para a expressão dos sujeitos (in)dispostos10 em aula, é preciso ensinar e aprender uma escuta ativa, “temos de intervir para alterar a estrutura pedagógica existente e ensinar os alunos a escutar, a ouvir uns aos outros” (Hooks, p. 200, grifos da autora).11
A comunidade pedagógica é uma comunidade de aprendizagem coletiva, dos comuns. Essa ideia tira também a frustração que carregam os professores, que, isolados, podem se supor os produtores exclusivos de uma aula; é se libertar da ideia de um exercício docente individualizante e arbitrário. Reafirmamos a citação de Guacira Lopes Louro (2000, p. 11) de que “as marcas permanentes que atribuímos às escolas não se refletem nos conteúdos programáticos que elas possam nos ter apresentado, mas sim se referem a situações do dia-a-dia”.
A construção das comunidades pedagógicas se faz, então, por uma valorização das horizontalidades das relações, de fazer da sala de aula “um lugar de entusiasmo, nunca de tédio. E, caso o tédio [prevaleça], [serão] necessárias estratégias pedagógicas que [intervenham e alterem] a atmosfera, até mesmo a perturbassem” (Hooks, 2017, p. 16). Corazza (2012), em seu didaticário de aula, dirá incessantemente que “a aula está cheia”. E como praticar geografias escolares que levem em conta essa premissa? Que não mascarem as presenças, mas capturem as ausências?
4 Pedagogia engajada e geografia (escolar) em movimento: os saberes em aula
Calar a voz não apaga a necessidade de falar
(Vieczorek, 2019, p. 384).
Acreditamos em geografias escolares geradoras de saberes por estratégias autorais, a partir dos territórios escolares. Logo, a Geografia escolar se difere da Geografia acadêmica. A Geografia acadêmica é desenvolvida nos âmbitos universitário e acadêmico, enquanto a Geografia escolar é também produtora de saberes, também desenvolve suas próprias geografias, mas na escola, pois “a escola reposiciona o pensar a Geografia” (Silva Junior, 2017, p. 56). Presumi-la como mera reprodução ou adaptação dos “conhecimentos” desenvolvidos dentro das universidades é compactuar com políticas impositivas aos territórios escolares, é transformar o professor de Geografia em um técnico, retirando-lhe o reconhecimento de seu papel social de intelectual. Quando a Geografia está no território da escola, ela é produtora de saberes geográficos escolares. Sendo assim, compreendemos que os saberes são produzidos para serem apropriados pelos sujeitos em prol de sua existência.
Lacoste, em seu famoso escrito A Geografia: Isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra, afirma que existe uma geografia dos professores que “se tornou um discurso ideológico no qual uma das funções inconscientes é a de mascarar a importância estratégica dos raciocínios centrados no espaço” (Lacoste, 1988 [s.p.]), apontando que é a serviço de uma minoria elitizada que a geografia é entendida em sua importância, como um saber-sobre (Bartholl, 2018).
Lacoste segue com a crítica dizendo que a “ideologia do turismo faz da geografia uma das formas de consumo de massa: multidões cada vez mais numerosas são tomadas por uma verdadeira vertigem faminta de paisagens, fontes de emoções estéticas” [s.p.]. É comum escutar, quando se cursa Geografia, como resposta um: “e qual a capital de não sei lá onde?”. A Geografia não pode ser reduzida a uma ciência de propaganda das localizações. A Geografia escolar deve, antes, reunir “professor[es] e aluno[s], na direção de uma leitura crítica da realidade” e cientificamente referenciada (Verdum, 2013, p. 94), e isso passa por entender qual o papel da Geografia para o crescimento (auto)emancipatório dos sujeitos.
Ousar, portanto, uma aliança entre a Geografia escolar e uma geografia em movimento requer algumas reinterpretações de ideias, capturas, significações que sirvam para as propostas que tentamos fazer aqui, pois uma geografia em movimento é, antes, uma geografia da militância que tem uma relação com saberes-fazeres e saberes da prática militante. São saberes em prol de um da (auto)emancipação coletiva, saberes de uma geografia (des)envolvida junto/com movimentos sociais de base, o uso da Geografia como ferramenta de luta.
Empreitamos relacionar Bartholl (2018) com as ideias de bell hooks, porque, tendo sido o primeiro autor desse texto, aluno de Bartholl, foi na construção pedagógica de suas aulas, orientado por seus posicionamentos políticos, poéticos, estéticos e éticos libertários, que houve um clique sobre a importância chave da participação discente na aula, na construção coletiva do currículo. A proposta do professor demandava uma participação ativa de nossas presenças e vozes e, por vezes, quando nós, discentes, não estávamos dispostos a sermos implicados nos diálogos propostos, a aula não fluía e uma atmosfera de cansaço e peso pairava em sala; não adiantava estarmos em círculo se não havia disposição. Quando nos envolvíamos nas discussões, calorosos debates e embates aconteciam e, ainda que houvesse desacordos e atritos, o movimento fazia a aula acontecer e os saberes circulavam.
Assim, “qualquer prática pedagógica [que se afirme] radical precisa insistir em que a presença de todos seja reconhecida”, e para isso os professores e professoras precisam mostrar “valorizar de verdade a presença de cada um” (Hooks, 2017, p. 18). São inúmeras as responsabilidades que recaem sobre os ombros do professor, afinal ele sustenta uma estrutura institucional hierárquica, está sob influências e exigências institucionais, mas, como em bell hooks, é preciso desconstruir que o professor seja o único responsável pela dinâmica da sala de aula. Afinal, “a aula está cheia muito antes mesmo do professor chegar”, como em Corazza (2012). “O entusiasmo é fruto do esforço coletivo” (Hooks, 2017, p. 18).
bell hooks, ao propor uma pedagogia engajada, orienta-se por horizontes anticolonialistas, críticos e feministas que implicam “questionar parcialidades que reforçam os sistemas de dominação” (Hooks, 2017, p. 20). Nesse caso, “o prazer de ensinar é um ato de resistência” (p. 21). Uma pedagogia engajada é também uma pedagogia em movimento. Está sempre se modificando e reinventando, dando conta de novas experiências de ensino. “A voz engajada não pode ser fixa e absoluta. Deve estar sempre mudando, sempre em diálogo com um mundo fora dela” (p. 22).
Nesse sentido, foi também na leitura do livro Por uma Geografia em Movimento (Bartholl, 2018) que se compreendeu o papel da Geografia comprometida com a (auto)emancipação dos sujeitos. É por isso que relacionamos a pedagogia engajada e a comunidade pedagógica de bell hooks com a geografia em movimento que gera:
Saberes emancipatórios [que] somente o são onde há (e quando propiciam/reforçam) relações emancipatórias, onde nos encontros e nos debates cada um(a) tem seu momento de fala e opinião e onde todas e todos decidem juntos(as) sobre os rumos a serem tomados juntos(as), enquanto coletivo/movimento, e não há ninguém que decida sobre o rumo do outro
(Bartholl, 2018, p. 128-129)
Os saberes se abrem estética e poeticamente, porque, como disse o professor e poeta Manoel Fernandes:
(...) o conhecimento algo socialmente instituído, tido como verdade irrefutável e, por isso mesmo, impeditivo para a realização de quaisquer transformações. Já o saber é trabalho instituinte que nada aceita como sendo verdade acabada e, por isso mesmo, está preocupado em compreender o que o conhecimento instituído tenta encobrir.
(Sousa Neto, 2007, p. 16-17)
Em uma aula, a comunidade pedagógica é formada pelo/a professore/a e por estudantes, todos/as/es implicados na construção dos saberes de uma Geografia escolar. Não podemos isolar ou individualizar os movimentos de construção desses saberes. Assim, “um diálogo horizontal somente pode estabelecer-se onde o concordar e o discordar fazem parte do entendimento mútuo” (Bartholl, 2018, p. 128). Ainda, se isolarmos os sujeitos, se não travarmos os diálogos que são movimentos, não teremos como mobilizar as forças pedagógicas em sala de aula. Poderíamos interpretar esses movimentos em matérias como palavras escritas ou faladas, gestos, vozes, desenho e desejos.
5 Notas não conclusivas...
Esperamos que o leitor chegue aqui com não conclusões. Se partimos da premissa de geografias escolares em movimento, o princípio básico que nos ecoa aqui é o de que este ensaio também se põe em movimento. Perdemos a propriedade dessas ideias no momento em que elas são lidas e esperamos que o leitor tenha se deixado afetar pelos tensionamentos e, sobretudo, movimente suas geografias escolares no escopo cotidiano das salas de aula, salas de professores, sindicatos, coletivos, espaços não formais e em toda a sua multiplicidade de espaços/tempos de criação de geografias outras.
É um erro pensar que chegamos com uma aula dada. Se existem sujeitos e(m) movimento(s), existem resistências e questionamentos. Se consideramos a Geografia um conhecimento, um mero produto, entramos em uma lógica consumista e em que, objetivados, os saberes são esvaziados de sentidos políticos, poéticos, estéticos e éticos. Aqui evidenciamos a prerrogativa de falar de saberes em vez de conhecimentos.
As geografias escolares que transformam são as geografias que estão em movimento, tecidas no âmago do cotidiano, das pequenidades e das insignificâncias. Existe uma Geografia única, posta, hegemônica e a serviço de projetos desiguais de poder que nos atravessa e nos tensiona, que precisamos tomá-la, assaltá-la, pois as geografias nossas não são dela, são outras, em movimento, impossíveis de serem mensuradas, controladas. Este texto pretendeu alguns palpites desviantes, propondo geografias escolares em movimento, como escape e resistência às desigualdades territoriais, como rizomas meandrantes que furam, que cortam saberes e matérias, que cortam o tempo e o espaço. Também tentamos defender geografias escolares que constroem saberes pelo/através do espaço escolar, lembrando que nós produzimos espaço coletivamente, em relação, interação.
Por fim, defendemos uma pedagogia engajada, mas não engajada nos moldes dos coachings neoliberais e da meritocracia. Uma pedagogia engajada porque se posiciona espacial e temporalmente no objetivo de descortinar os territórios produzidos/vividos pelos sujeitos, que revelem uma orientação política, poética e estética na tecitura do espaço escolar.