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Educação: Teoria e Prática

versión impresa ISSN 1993-2010versión On-line ISSN 1981-8106

Educ. Teoria Prática vol.33 no.66 Rio Claro  2023  Epub 07-Ago-2024

https://doi.org/10.18675/1981-8106.v33.n.66.s17260 

Dossiê

A climatologia escolar pela óptica de Aroldo de Azevedo nos livros didáticos O Mundo em que vivemos (1967) e Terra brasileira (1968)

School climatology through Aroldo de Azevedo perspective in school books O Mundo em que vivemos (1967) and Terra Brasileira (1968)

Climatología escolar desde la perspectiva de Aroldo de Azevedo en los libros de texto O Mundo em que vivemos (1967) y Terra Brasileira (1968)

Bruno Falararo de Mello1 
http://orcid.org/0000-0001-7267-1020

João Pedro Pezzato2 
http://orcid.org/0000-0002-9523-0954

1Secretaria Municipal de Paulínia, Paulínia, São Paulo – Brasil. E-mail: bf.mello@unesp.br.

2Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, São Paulo – Brasil. E-mail: joao.pezzato@unesp.br.


Resumo

Aroldo de Azevedo foi um importante autor brasileiro de livros didáticos de Geografia. Sua produção bibliográfica se deu entre as décadas de 1930 e 1970 e suas obras didáticas influenciaram gerações de alunos e professores. Neste artigo, apresenta-se uma leitura da climatologia escolar veiculada pelo professor Azevedo em dois livros didáticos de Geografia de sua autoria, os quais, embora distintos, são partes da mesma coleção. O autor apresenta uma climatologia bastante conceitual, com muitas imagens para ilustrar as informações contidas no texto. A despeito de alguns equívocos conceituais, nota-se esmero no tratamento das questões do clima. Duas tendências da climatologia enquanto ciência de referência se mesclam na explanação dos registros da Geografia escolar: de um lado, a climatologia estática, mais tradicional e de cunho separatista, e, de outro, a climatologia dinâmica, com algumas inovações no tratamento do clima, em que se busca compreender a gênese dos fenômenos atmosféricos. Entre essas duas diferentes epistemes, sobressai uma visão bastante sui generis do autor a respeito da climatologia escolar, em especial da tropicalidade brasileira.

Palavras-chave Climatologia; Ensino de Geografia; Livro Didático; Currículo; Geografia Escolar

Abstract

Aroldo de Azevedo was an important Brazilian author of Geography textbooks. His bibliographical production took place between the 1930s and 1970s, and his teaching works influenced generations of students and teachers. In this article, we present a reading of school climatology conveyed by Professor Azevedo in two Geography textbooks he authored, which, although different, are part of the same collection. The author presents a very conceptual climatology, with many images to illustrate the information contained in the text. Despite some conceptual mistakes, he shows great care in his treatment of climate issues. Two trends in climatology as a reference science are mixed in the explanation of school Geography records: on the one hand, static climatology, more traditional and separatist in nature, and, on the other, dynamic climatology, with some innovations in the treatment of climate, in which we seek to understand the genesis of atmospheric phenomena. Between these two different epistemes, the author's rather sui generis vision regarding school climatology stands out, especially Brazilian tropicality.

Keywords Climatology; Teaching Geography; Textbook; Curriculum; School Geography

Resumen

Aroldo de Azevedo ha sido un importante autor brasileño de libros de texto de Geografía. Su producción bibliográfica se desarrolló entre las décadas de 1930 y 1970, y sus obras docentes influyeron generaciones de estudiantes y profesores. En este artículo se presenta una lectura de la climatología escolar transmitida por el profesor Azevedo en dos libros de texto de Geografía de su autoría, que, aunque diferentes, forman parte de una misma colección. El autor presenta una climatología muy conceptual, con muchas imágenes para ilustrar las informaciones contenidas en el texto. A pesar de algunos errores conceptuales, se nota cuidado en el tratamiento de las cuestiones climáticas. En la explicación de los registros de Geografía escolar se mezclan dos tendencias de la climatología como ciencia de referencia: por un lado, la climatología estática, más tradicional y de carácter separatista, y, por otro, la climatología dinámica, con algunas innovaciones en el tratamiento del clima, en el que se busca comprender la génesis de los fenómenos atmosféricos. Entre estas dos epistemes distintas, se destaca una visión mui sui generis del autor sobre la climatología escolar, especialmente la tropicalidad brasileña.

Palabras clave Climatología; Enseñanza de Geografía; Libro de Texto; Currículum; Geografia Escolar

1 Introdução

A trajetória de Aroldo de Azevedo se confunde com a própria difusão dos conceitos basilares da Geografia no meio escolar, que se deu por intermédio de variados livros didáticos que escreveu entre as décadas de 1930 e 1970 (Santos, 1984). Ele foi um proeminente professor, catedrático da Universidade de São Paulo e autor de livros didáticos de Geografia. Sua importância é tal que se deve a ele uma das mais importantes classificações do relevo do Brasil, em que denomina as grandes compartimentações do relevo em planaltos e planícies. Foi o primeiro geógrafo brasileiro a se preocupar com a valorização geomorfológica do relevo, relegando a nomenclatura geológica a segundo plano, contrariamente ao que se fazia até então (Ross, 2011, p. 26). Ele abriu as portas para as classificações posteriores – e mais sofisticadas – do relevo brasileiro criadas pelos geógrafos Aziz Nacib Ab’Saber e Jurandyr Ross.

No presente artigo, destacamos sua contribuição para a cultura escolar e, assim, apresentamos a visão de Aroldo de Azevedo no tocante aos conteúdos de climatologia em dois de seus livros didáticos: O Mundo em que vivemos (edição de 1967), destinado ao tratamento de questões de Geografia geral, e Terra brasileira (edição de 1968), destinado especificamente à Geografia do Brasil. Ambos os livros são parte da mesma coleção, devendo ser trabalhados em conjunto ou na sequência. Em linhas gerais, Azevedo revela maior adesão aos conceitos tradicionais de clima, como a ideia de clima como estado médio da atmosfera e a análise separada das variáveis climáticas. Entretanto, o autor revela, por meio de um discurso sutil, certo alinhamento com as ideias, já em voga na época da publicação dos dois documentos analisados, dos conceitos da climatologia dinâmica e do conceito de ecologia do homem de Max Sorre (1880-1962).

Pautamos a análise dos discursos de Azevedo com base no paradigma indiciário, método de investigação documental do tipo hermenêutico, oriundo da História e apresentado por Ginzburg (1989[2016]), cuja fundamentação se baseia na interpretação de sinais, símbolos, indícios e demais elementos conjuntivos de uma obra de arte, no caso, textual, visando à construção do sentido do objeto investigado. O paradigma indiciário propõe a observação de pequenas pistas, indícios e/ou sinais que permitam capturar uma interpretação mais profunda e, até então, desconhecida ou inatingível de determinado fenômeno observado.

2 Os conteúdos de climatologia no livro O mundo em que vivemos

O livro didático O Mundo em que vivemos equivale ao volume I da coleção que Azevedo intitula de “O Brasil e o mundo”. Quanto ao aspecto formal, Azevedo divide essa obra em três partes, ou títulos, que constam no sumário: 1) A Terra no espaço; 2) A natureza terrestre; e 3) O homem e suas atividades. Cada parte é subdividida em itens a contemplar os assuntos que ele abordará. Serão analisadas apenas as partes 1 e 2, em que os conteúdos de climatologia são desenvolvidos.

Fonte: AZEVEDO, A. O Mundo em que vivemos. 5. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967.

Figura 1 Marcha aparente do Sol. 

No título “A Terra no espaço”, Azevedo ressalta que a maior parte do território brasileiro se encontra na zona tropical da Terra, razão pela qual as quatro tradicionais estações do ano são praticamente imperceptíveis, à exceção da região Sul, onde o regime sazonal começa a se esboçar. Para reforçar esse argumento, ele se vale de uma figura que ilustra a marcha aparente do Sol na linha do equador e no Rio Grande do Sul, demonstrando que, em latitudes além dos trópicos, o Sol nunca se coloca a zênite. Para Azevedo, a verdadeira marca da sazonalidade climática brasileira é o regime da precipitação:

Em virtude de sua situação geográfica, mergulhado que se encontra na zona tropical em relação à maior parte do território, no Brasil não se notam, como nas zonas temperadas, as diferenças entre as quatro estações do ano. Em larga área, as estações são marcadas pelas chuvas; daí falar-se e sentir-se, apenas, uma estação sêca e uma estação chuvosa [sic]

(Azevedo, 1967, p. 31-32)

No fim do título, Azevedo apresenta as divisões climáticas da Terra em uma representação do globo – zona tórrida, zona temperada e zona glacial. Na sequência, ele descreve o que é o equador, o que são os trópicos e os círculos polares e dá a definição de paralelos e meridianos, ressaltando que sem essas coordenadas não é possível determinar um ponto na superfície terrestre. A Figura 2 traz as ilustrações representativas sobre a divisão climática da Terra: os paralelos, com destaque para o equador, trópicos e círculos polares, e os meridianos, com ênfase no meridiano inicial, ou de Greenwich. O esquema das divisões climáticas serve de introdução ao estudo do clima, que será comentado adiante no livro.

Fonte: AZEVEDO, A. O Mundo em que vivemos. 5. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967.

Figura 2 Zonas climáticas da Terra. 

O título “A natureza terrestre” compreende seis capítulos, a saber: 1) O ar que nos envolve; 2) Continentes e oceanos; 3) O mundo das águas; 4) A crosta terrestre; 5) O relevo terrestre; e 6) O mundo vegetal e animal. São conteúdos diretamente vinculados à chamada Geografia Física, como explicita Azevedo:

O estudo dessas três partes [atmosfera, hidrosfera e litosfera] de nosso planêta faz-nos conhecer uma parcela substancial da natureza terrestre: os elementos naturais que não têm vida, mas que garantem a vida sôbre a Terra. Compreende uma das grandes divisões da ciência geográfica – a Geografia Física ou Fisiografia, cujos fundamentos científicos remontam ao século XVIII e cujo desenvolvimento tem sido ininterrupto [sic]

(Azevedo, 1967, p. 51)

O capítulo “O ar que nos envolve” é inteiramente dedicado aos estudos de climatologia: composição e divisões da atmosfera, temperaturas, pressões e massas de ar, umidade atmosférica e chuvas e classificações climáticas (divisões do autor). Principia Azevedo pela composição da atmosfera terrestre – composta, em sua maior parte, por nitrogênio (78%) e oxigênio (21%) – e sua divisão em camadas sucessivas, como indica a Figura 3, na sequência:

Fonte: AZEVEDO, A. O Mundo em que vivemos. 5. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967.

Figura 3 Camadas da atmosfera. 

A divisão e a nomenclatura das camadas atmosféricas apresentadas na Figura 3 mudaram parcialmente em relação ao que se costuma observar nos textos didáticos atuais (e também em bibliografia especializada e em sítios especializados na rede mundial de computadores). Azevedo chama a terceira e a quarta camada de quemosfera e ionosfera, respectivamente. Quemosfera é uma nomenclatura que não encontramos na bibliografia especializada. Quanto à ionosfera, trata-se de uma camada cuja característica está vinculada à ionização pela radiação solar. É nela que ocorrem as auroras boreais. Não é o caso de uma camada que obrigatoriamente obedece ao critério temperatura para ser escalonada, como ocorre com a divisão atualmente mais difundida. Segundo Pédelaborde (1970), Barry e Chorley (2013) e Nery e Carfan (2013), a atmosfera é usualmente dividida, a partir da superfície, em troposfera, estratosfera, mesosfera, termosfera e exosfera, tendo por base o critério da temperatura vertical do ar.

Por não se ater ao critério da temperatura na divisão das camadas, Azevedo não destaca qual a correlação a se fazer entre a variação de temperatura de cada um dos estratos. Não sabemos se esse lapso é proposital, isto é, não foi informação julgada relevante para os alunos, ou se tal lapso se deve a um eventual desconhecimento (do autor e/ou das fontes por ele consultadas) das temperaturas das camadas atmosféricas. Sabe-se que a cada estrato da atmosfera a temperatura ora diminui, ora aumenta, isto é, da troposfera para a estratosfera há uma progressiva diminuição; da estratosfera à mesosfera há um ligeiro aquecimento, sobretudo na camada de ozônio; da mesosfera à termosfera há uma severa queda da temperatura, que pode atingir até -90 °C; da termosfera em diante as temperaturas se elevam gradativamente, podendo atingir a marca de 1.000°C nos limites da exosfera. A ionosfera engloba tanto a termosfera quanto a exosfera.

Ao encerrar o trecho sobre as camadas da atmosfera, Azevedo diz que, de todas as camadas, a que mais nos interessa é a troposfera, pois é sob ela que vivem os seres vivos e é nela que se formam as nuvens, os ventos e as chuvas. Fazemos nota de que se trata de uma abordagem eminentemente geográfica, haja vista que o interesse da Geografia no clima não é outro senão a relação do clima com o homem. Não é objetivo da Geografia o estudo do meio sem a vinculação com a realidade humana. Nesse ponto, Azevedo dá sinais de que dialoga com as ideias do geógrafo Max Sorre (1951) e seu conceito de ecologia humana, a saber, o espaço como a morada do homem.

A seguir, são apresentados os conceitos de temperatura e pressão atmosférica, constantes na Figura 4. Há um planisfério, à esquerda, a exibir as médias de temperatura do planeta. De acordo com Azevedo,

Entende-se por temperatura do ar a quantidade de calor nêle existente. [...] As temperaturas variam de acôrdo com diversos fatôres: (1) a latitude [...]; (2) a altitude [...]; (3) a proximidade do mar [...]; (4) os ventos [...]; (5) as chuvas [...]; (6) a vegetação [...]; (7) as correntes marítimas [sic]

(Azevedo, 1967, p. 54-55)

Azevedo enumera os fatores climáticos, mas não explica o que são esses fatores, nem menciona o que são elementos climáticos e o que diferencia elementos de fatores. Elementos e fatores são conceitos importantes em climatologia, apesar de nem sempre bem explicitados nos veículos de divulgação de pesquisas científicas; nem mesmo Julius Hann (1839-1921), eminente climatologista do século XIX que Azevedo toma por modelo e cita adiante, faz clara diferenciação entre ambos os conceitos:

Os elementos climáticos – Os vários processos atmosféricos e condições cujas interações determinam o clima de qualquer lugar são chamados de elementos climáticos ou fatores. Eles são temperatura, umidade, chuva ou neve, velocidade e direção do vento etc.

(Hann, 1903, p. 2-3).

Nem todos os fatores que Azevedo enumera podem ser realmente enquadrados como tal, se considerarmos fator como circunstância objetiva que interfere nos elementos climáticos e se considerarmos elemento climático como grandeza atmosférica mensurável que define o clima de uma área. Assim, chuvas – que são precipitações em forma líquida – e ventos podem ser enquadrados como grandezas atmosféricas mensuráveis que definem o clima de uma área. A falta de melhor definição de elementos e fatores não é, de todo modo, condenatória, nem é falha da obra em questão, unicamente.

Fonte: AZEVEDO, A. O Mundo em que vivemos. 5. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967

Figura 4 Temperaturas e pressões. 

Em relação ao fator altitude, Azevedo diz que as temperaturas variam de acordo com ela porque as camadas de ar mais baixas sofrem diretamente a influência da radiação do calor solar, o que explica serem frias as grandes altitudes. Essa explicação está parcialmente correta. Faltou explicar que, na verdade, a temperatura varia de acordo com a altitude também em função da pressão atmosférica (razão adiabática – resfriamento de cerca de 6,5C° a cada 1.000 metros). Conforme aumenta a altitude, a pressão (ou seja, o peso do ar) diminui, porque a coluna de ar é menor em relação à área mais baixa. Sendo maior a pressão, maior é a concentração (ou densidade) de gases e, assim, mais capacidade de reter o calor da radiação solar esses gases terão. Em área mais elevadas, sendo menor a pressão, a concentração de gases é menor e menos capacidade de reter calor eles terão.

Sobre as pressões atmosféricas, consideramos que Azevedo foi oportuno em abordar os conceitos de anticiclones (altas pressões) e ciclones (baixas pressões) no momento em que a climatologia geográfica mundial, e especialmente a brasileira, passava por importantes transformações epistemológicas, com o advento das noções de ritmo e sucessão de tipos de tempo de Max Sorre, que viria a revolucionar os estudos na área, conforme expõe Sant’Anna Neto (2015):

O que mais nos interessa na obra de [Max] Sorre, entretanto, são suas reflexões sobre a análise geográfica do clima. [...] Ao definir o complexo climático (ou meio climático), concebeu a noção de ritmo, argumentando que é exatamente o ritmo da sucessão de tipos de tempo que deveria nos interessar, uma vez que expressaria, de forma global, a variação do clima

(Sant’Anna Neto, 2015, p. 44).

A noção de ritmo e sucessão dos tipos de tempo toma por base investigativa as movimentações das massas de ar e as diferenças de pressão atmosférica. Por essa razão é que os conceitos de vento e pressão (anticiclone e ciclone) são importantes para o estabelecimento da dinâmica atmosférica. Interpretamos que Azevedo traz – de modo pioneiro, pode-se considerar – conceitos ao seu livro didático que dialogam com a ciência de referência. Azevedo foi um seguidor fiel da escola francesa de Geografia e, por extensão, de Paul Vidal de La Blache (SANTOS, 1984). A esse respeito, destacamos as palavras de Sant’Anna Neto (2015) sobre a estreita vinculação de Max Sorre a Vidal de La Blache:

Foi nesse contexto efervescente da escola francesa de Geografia que Maximilien Sorre, considerado como o que mais avançou em termos das formulações de La Blache, a partir da década de 1940, propôs que a Geografia deveria estudar as formas pelas quais os homens organizam o meio, entendendo o espaço como a sua morada

(Sant’Anna Neto, 2015, p. 43).

Trata-se de um indício de que, embora não diretamente vinculados, Aroldo de Azevedo e Max Sorre, tendo como fonte de inspiração o mesmo pensador – Vidal de La Blache –, convergiam, de certa forma, na visão de que o clima é complexo e composto de diversos processos. Azevedo, ao apresentar esses processos (pressões, massas de ar, circulação zonal), parece ter inclinação a uma explicação mais dinâmica do clima, embora mais adiante, como veremos, ele adote o conceito estático de clima de Julius Hann, baseado em médias.

Dando prosseguimento ao tema dos ventos, o autor discorre sobre os ventos alísios e contra-alísios (circulação zonal), bem como sobre os regimes de vento locais, como brisa marítima, brisa terrestre e outros (minuano, mistral, foehn etc.). É nesse momento que Azevedo apresenta o tema das massas de ar no livro O Mundo em que vivemos:

Das diferenças de pressão, de temperatura e de umidade, resulta a formação de massas de ar, separadas pelas chamadas frentes (quente ou fria). Quatro são as principais: a equatorial, a tropical, a polar antártica e a polar ártica, ora continentais (sêcas), ora marítimas (úmidas). São as massas de ar, em seu permanente deslocamento, que determinam o estado do tempo (quente ou frio, sêco ou chuvoso) nas diferentes áreas da superfície da Terra

(Azevedo, 1967, p. 56).

Na apresentação das massas de ar, o autor introduz os conceitos de frente e os tipos de massas existentes, bem como afirma que o deslocamento das massas de ar determina os estados do tempo. É outro indício de que Azevedo estava afinado com a ideia sorriana de clima, cuja assertiva o define como “o ambiente atmosférico constituído pela série dos estados da atmosfera acima de um lugar em sua sucessão habitual” (Sorre, 1951, p. 13-14).

Azevedo passa aos conceitos de umidade atmosférica, saturação do ar e formação de nuvens, e após isso apresenta os tipos de nuvens existentes. A partir dessas premissas, principia a explicar as formas de precipitação atmosférica, as quais ele divide em dois tipos: as da superfície terrestre, isto é, orvalho e geada, e as das alturas, isto é, o granizo, a neve e a chuva. Azevedo dá destaque para as chuvas, não oferecendo maiores explicações a respeito das outras formas de precipitação atmosférica (isto é, orvalho, geada, granizo e neve).

Embora tenha escrito a respeito das baixas pressões e das frentes, Azevedo não se estende na abordagem da gênese das chuvas. Ele expõe somente um tipo de formação de chuva, a chuva orográfica, cujo mecanismo se vê desenhado na Figura 5. Os outros dois tipos de chuva – chuvas de convecção e chuvas frontais – são totalmente ignorados. Informações adicionais são fornecidas a respeito da distribuição das chuvas no globo. Azevedo expõe que algumas áreas recebem chuva com abundância, como as regiões intertropicais (havendo o regime equatorial, com chuvas durante todo o ano, e o regime tropical, com chuvas concentradas na estação estival), enquanto outras recebem poucas chuvas, como as zonas desérticas – sob domínio, segundo ele, dos ventos alísios – e as regiões polares. As faixas extratropicais são apresentadas como recebendo ora chuvas invernais (regime mediterrâneo), ora chuvas bem distribuídas ao longo do ano (regime das altas latitudes).

Fonte:AZEVEDO, A. O Mundo em que vivemos. 5. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967.

Figura 5 Formação da chuva e climas da Terra. 

É após a explanação das chuvas que Azevedo entra, finalmente, na discussão sobre os climas da Terra, cuja divisão aparece em ilustração na Figura 6. Destacamos o que o autor diz sobre o clima:

Os climas da Terra – Temperaturas, pressões, umidade, juntamente com os fatôres que sôbre elas influem, acabam por caracterizar o clima de uma região. Daí podermos defini-lo como o conjunto de fenômenos meteorológicos que caracterizam o estado médio da atmosfera em um ponto da superfície terrestre – conforme ensinou J. Hahn [sic.]

(Azevedo, 1967, p. 60 – grifo nosso).

A despeito de dar indícios de uma aproximação com o conceito de clima estabelecido por Max Sorre – após ter esboçado os mecanismos dinâmicos da atmosfera, como o deslocamento das massas de ar –, Azevedo se fixa no conceito de clima estático de Julius Hann. Estático porque as variáveis climáticas são analisadas separadamente e não compreendidas como um processo em que todas convergem para caracterização do clima da área.

Azevedo demonstra certo conservadorismo ao permanecer com uma definição de clima que já não mais satisfazia a comunidade acadêmica de Geografia. A obra didática que estamos analisando data de 1967. Na Geografia acadêmica, naquela época, as discussões sobre climatologia caminhavam no sentido de reexaminar a ideia de clima estático e baseado em médias.

A evolução dos estudos científicos do clima tem início nos anos 1920 na Noruega, com a chamada Escola de Bergen, cujos cientistas – Bjerknes, Bergeron, Rossby, Solberg e outros – estabeleceram as bases físicas de um novo paradigma de investigação, baseado na análise de cartas sinóticas e na ideia de zonas de fronteira entre as massas de ar – as frentes frias e as frentes quentes. As movimentações das frentes e dos anticiclones migratórios seriam responsáveis pela produção dos tipos de tempo. O modelo de meteorologia sinótica proposto pela Escola de Bergen possibilitou o surgimento da climatologia dinâmica, termo cunhado por Bergeron, discípulo de Bjerknes, em 1930 (Sant’Anna Neto, 2015).

Sem adentrarmos na história da climatologia brasileira, será suficiente dizer que os estudos climáticos no Brasil tiveram um salto qualitativo de indubitável importância com os meteorologistas Joaquim de Sampaio Ferraz (considerado o precursor da meteorologia nacional), Adalberto Serra e Leandro Ratisbonna. Um dos trabalhos mais importantes de Serra e Ratisbonna, intitulado “As ondas de frio da Bacia Amazônica”, possibilitou a compreensão do fenômeno da friagem que acomete a região amazônica e o Brasil Central no inverno a partir do uso de cartas sinóticas.

O advento de uma metodologia brasileira para análise e tratamento de dados climatológicos, pautada na proposta de clima de Max Sorre, deu-se nos anos 1960, com as pesquisas do geógrafo brasileiro Carlos Augusto de Figueiredo Monteiro (1927-2022). Baseando-se na sucessão diária dos tipos de tempo para uma tentativa de classificação climática, suas obras basilares “Da necessidade de um caráter genético à classificação climática (algumas considerações metodológicas a propósito do estudo do Brasil Meridional)” (1962), “A frente polar atlântica e as chuvas de inverno na fachada sul-oriental do Brasil” (1969) e “A dinâmica climática e as chuvas no estado de São Paulo: estudo geográfico sob a forma de atlas” (1973) trouxeram novas luzes às investigações climáticas no âmbito geográfico. As pesquisas em climatologia geográfica deram um salto qualitativo de grande importância. Saiu-se, finalmente, das amarras impostas pelas médias meteorológicas para um entendimento mais claro e ontológico da dinâmica do clima.

Todavia, todas essas inovações no campo acadêmico da climatologia não se refletiram, imediatamente e efetivamente, no texto didático d’O Mundo em que vivemos. Não sabemos afirmar se Azevedo tomou contato com as novas teorias, e, caso tenha tomado, em que medida elas o influenciaram. Parece-nos, reforce-se, haver paralelo entre a explanação de Azevedo a respeito dos mecanismos do clima e o conceito sorriano de clima, ainda que Azevedo se fie na definição de Julius Hann.

Quanto às classificações climáticas, o autor assume as de Emmanuel de Martonne (1873-1955) e Wladimir Köppen (1846-1940), baseadas, essas também, na proposta climática de Hann (Sant’Anna Netto, 2015, p. 33). Conforme se pode ver na Figura 6, a classificação climática do globo segundo De Martonne e Köppen é exposta de modo genérico, sem se aprofundar nos limites de chuva ou de temperatura de cada qual, nem estabelecer maiores relações com a imagem das divisões climáticas do globo constante na Figura 6.

Fonte:AZEVEDO, A. O Mundo em que vivemos. 5. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967.

Figura 6 Classificações climáticas. 

3 Os conteúdos de climatologia no livro Terra brasileira

Aroldo divide o volume II, Terra brasileira, de 1968, em três partes, ou títulos, que constam no sumário: 1) Nossa terra; 2) Nossa gente; e 3) Nossa economia. Do mesmo modo que em O Mundo em que vivemos, cada parte é subdividida em itens a contemplar os assuntos que ele abordará. Tomaremos como base de análise o capítulo 4 do título 1 (Nossa terra), “País tropical”.

É no capítulo “País tropical” que Azevedo vai tratar especificamente da climatologia brasileira. No capítulo “O ar que nos envolve”, de O Mundo em que vivemos, ele discorrera sobre os principais conceitos que norteiam os estudos em climatologia geral (temperatura, pressão atmosférica, ventos, nuvens, chuva, massas de ar, frentes, latitude, altitude etc.). Agora, cabe-lhe apresentar, sem revisitar esses conceitos, os principais tipos climáticos brasileiros.

Ele principia o capítulo expondo que o Brasil apresenta muitos contrastes em relação ao clima: faz calor permanente em larga porção do território, embora possa nevar na Região Sul; as chuvas são abundantes e costumam concentrar-se no verão, apesar de o Sertão do Nordeste receber poucas chuvas e ver-se flagelado pela seca (Figura 14). Para Azevedo, não é difícil explicar essas diferenças:

[...] (1) o Brasil é tão vasto como um continente; (2) possui terras nos dois hemisférios terrestres, embora a maior parte esteja concentrada no hemisfério sul; (3) desenvolve-se por mais de 4000 km no sentido norte-sul, desde a região do equador até muito além do trópico de Capricórnio; (4) seu relêvo apresenta baixas planícies, planaltos relativamente elevados e montanhas que se avizinham de 3000 metros de altitude

(Azevedo, 1968, p. 41).

Fonte:AZEVEDO, A. Terra brasileira. 41. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968.

Figura 7 País tropical. 

Nos itens citados, Azevedo se refere à grande extensão latitudinal do território brasileiro, que abrange as faixas 5° N a 33° S e abarca os climas equatorial, tropical e subtropical, bem como as variações de altitude e a continentalidade. Ele assume, para todos os efeitos, que o traço comum do clima brasileiro é a tropicalidade, e que: “[..] o que melhor caracteriza o regime de chuvas é o ritmo tropical, isto é, a existência de duas estações bem definidas – a das chuvas e a das secas” (Azevedo, 1968, p. 41, grifo nosso).

A palavra ritmo, empregada por Azevedo, é um indício de que mais uma vez ele se aproxima da definição de clima de Max Sorre, isto é, a sucessão habitual dos tipos de tempo sobre uma área, cuja ideia de ritmo – movimento regular recorrente – está implícita. Assumir a tropicalidade é assumir uma singularidade e uma característica particular que merece maior atenção, pois é um dos traços que dá uma identidade comum à nação brasileira. Trata-se, todavia, de uma tropicalidade diferenciada:

As temperaturas – No Brasil, as temperaturas médias são em geral elevadas, em consequência de nossa posição geográfica. Mas não apresentam os excessos conhecidos noutras áreas tropicais. As mais altas não passam de 28°, que é a média anual do Sertão do Nordeste. As mais baixas registram-se no Planalto Meridional e não descem a menos de 17°. Dois são os principais fatores que influem sôbre as temperaturas: a latitude e o relêvo

(Azevedo, 1968, p. 41, grifo nosso).

O trecho em destaque é indicativo do preconceito de Azevedo com o clima tropical. O que poderíamos chamar de “excessos”, em se tratando de temperaturas em áreas tropicais, e por que a tropicalidade seria, ela mesma, um problema a ser mitigado? Para esse argumento ter alguma validade (pois não tem nenhuma), o autor deveria ter contraposto as médias de outras áreas tropicais, para efeito de comparação. Mesmo se assim o fizesse, ainda seria passível de críticas; não se vê razão para acreditar que a tropicalidade se constitua em problema ou algo a ser suavizado, quer pela latitude, quer pela influência do relevo, quer por outro fator a ser alegado.

Destacamos esse excerto porque nos parece muito indicativo da maneira de pensar do autor: se o clima tropical brasileiro não apresenta excessos em razão de alguns fatores específicos, mormente o relevo, significa afirmar, então, que o clima tropical, em si, é um problema; assumir que nosso clima tropical é mitigado equivale a nos aproximar das nações desenvolvidas que gozam de clima temperado, bem como representa afastar-nos daquelas subdesenvolvidas, de clima tropical, com os excessos – e atrasos – que ele acarreta. A respeito dos discursos de Azevedo sobre a tropicalidade e a geopolítica, Santos (1984) enfatiza:

Para Aroldo de Azevedo, há tanto vantagens como desvantagens em relação à imensidade do espaço geográfico brasileiro. Há que assumir a nossa tropicalidade, que apresenta inúmeras vantagens, a par com a considerável proporção de população branca que possuímos e a nossa excepcional posição geopolítica. O Brasil ainda é muito jovem e sofre os resultados de uma crise de crescimento, não tendo ainda se posicionado quanto aos fins político-econômicos. Para o futuro, contamos com prováveis áreas de dominação: Bacia Amazônica, Bacia Platina, costa africana e Bolívia. O Brasil tem, também, todas as condições para “crescer por dentro”, ou seja, contém em si mesmo um verdadeiro império colonial

(Santos, 1984, p. 50).

O clima está inserido no rol das vantagens de Azevedo, como bem expressa Santos (1984). A imensidão do território, beneficiado por um tipo de clima semelhante em sua maior parte – a lhe conferir certa homogeneidade natural –, de estações chuvosas bem definidas e livre dos “excessos” de outras áreas tropicais, favoreceriam o Brasil a tornar-se o país do futuro, de acordo com a expressão utilizada pelo autor no capítulo 1 da obra Terra brasileira. Segundo Santos, ao discurso ufanista de Azevedo subjaz uma contradição flagrante:

Toda essa argumentação de Aroldo de Azevedo parece conter uma contradição fundamental. Na aparência, o discurso tenta se posicionar contrariamente às concepções geopolíticas de raízes ratzelianas. Também, aparentemente, enaltece a escola francesa com seus contornos positivistas e os seus ideais de liberalismo político. Mas, na essência, o seu pensamento permanece preso ao conteúdo daquela geopolítica ao defender uma política imperialista para o Brasil com base em seus ensinamentos [de Ratzel]. Todavia, uma melhor reflexão pode indicar a coerência dessa mensagem dadas as origens de classe do autor, herdeiro dos quadros oligárquicos pré-30. Os grupos sociais que detiveram essas características e que ainda predominavam na intelectualidade da época sempre mantiveram, sob a capa dos ideais liberais e positivistas, um pensar elitista/autoritário, portanto antiliberal e carregado de uma mentalidade colonialista para com os povos considerados inferiores e sujeitos à dominação. Inclusive o caráter racista é uma constante em seus discursos

(Santos, 1984, p. 51)

Um possível eco da mentalidade colonialista para com os povos considerados inferiores e sujeitos à dominação é a tropicalidade, que Azevedo assume, mas com as devidas mitigações. Ser tropical equivale a ser dominado, a ser inferior, a ser colonizado por quem detém o poder e os meios para explorar outrem. Se estar no meio tropical equivale a estar sob o domínio do atraso e da exploração, e não sendo absolutamente possível aos homens alterar o tipo de clima ao qual estão submetidos, a melhor maneira é mascarar a tropicalidade, ou, antes, torná-la algo diferençável das demais tropicalidades mundo afora: eis a ausência dos excessos. É o caso em que o clima se torna subordinado a uma ideologia.

Fonte:AZEVEDO, A. Terra brasileira. 41. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968.

Figura 8 Tipos de clima do Brasil. 

Nas duas páginas seguintes (Figura 8), Azevedo apresenta três mapas, a saber, temperaturas anuais médias, com suas isotermas, chuvas anuais médias, com suas isoietas, e tipos de climas do Brasil. Quanto a este último, Azevedo não especifica em que tipo de classificação ele se baseia, se a de De Martonne ou a de Köppen. A julgar pelo mapa, e tendo como referência as classificações apresentadas no livro O Mundo em que vivemos (apresentadas na Figura 5), acreditamos tratar-se da classificação de De Martonne, alicerçada em valores médios.

Os climas do Brasil são divididos em três grandes tipos: equatorial, tropical e subtropical. O clima tropical é subdivido em três tipos: tropical semiúmido, correspondendo a partes das regiões Centro-oeste, Nordeste e Sudeste; tropical semiárido, correspondendo a uma parte da região Nordeste; e tropical de altitude, correspondendo às áreas mais elevadas dos estados da região Sudeste. O clima equatorial abrange toda a região Norte e uma parte do Centro-oeste, e o clima subtropical, a região Sul e, possivelmente, uma pequena parte do estado de São Paulo. Como não há divisão entre regiões e estados no mapa apresentado, os limites exatos entre as faixas climáticas têm de ser intuídos. De todo modo, os tipos climáticos apresentados por Azevedo ainda são largamente utilizados em livros didáticos, com pequenas variações de contorno. Não se detectam mudanças significativas a esse respeito.

Após abordar as temperaturas, Azevedo discorre sobre as chuvas, destacando o fato de o regime ser tipicamente tropical – predominantemente nos meses de verão, tornando-se escassas nos meses de inverno. As exceções ao regime de chuva predominante no país, segundo o autor, são a Zona da Mata nordestina, cuja ocorrência é no inverno, e o Sul do Brasil, com chuvas regularmente distribuídas ao longo do ano.

As massas de ar também são citadas, e é nesse ponto que enxergamos, novamente, certa convergência de Azevedo com a climatologia dinâmica, como expusemos ao tratar do capítulo “O ar que nos envolve” e como ele mesmo expõe:

De certa maneira, a clássica noção de clima tornou-se quase uma abstração. Os tipos de tempo interessam mais, como realidade viva e atuante, do que problemáticos e esquematizados tipos de clima. E ninguém pode compreender, atualmente, o mecanismo do tempo sem levar em conta a presença e os entrechoques, as marchas e as contramarchas das massas de ar

(Azevedo, 1962, p. 292).

O autor explica que o Brasil está sob o domínio de três grandes massas de ar: 1) equatorial continental, que age sobre a região do equador; 2) tropical atlântica, que influi sobre a porção oriental do país, sendo originária do Atlântico Sul; e 3) polar atlântica, que procede da Argentina e ultrapassa o trópico de Capricórnio. A respeito das massas de ar, não há menção, entretanto, ao importante papel das frentes frias na gênese das chuvas.

Uma incorreção que detectamos dá-nos a dimensão de que ciência de referência e disciplina escolar não necessariamente caminham juntas. Azevedo discorre sobre o fenômeno da friagem ao abordar as massas de ar, na página 43 do livro didático Terra brasileira (imagem constante na Figura 8):

Aos avanços e recuos dessas massas de ar devemos a maior ou menor penetração dos ventos alísios, de sudeste ou nordeste, através do continente. São êles também os responsáveis pelas chamadas ondas de frio, que chegam a atingir a latitude do Rio de Janeiro, e pela friagem, que castiga a população da Amazônia; e também pela formação do desagradável vento Noroeste, bem conhecido em certas áreas do centro-sul do país

(Azevedo, 1968, p. 43).

Na verdade, o resfriamento, quer no Rio de Janeiro, quer na Amazônia, não é causado pelos ventos alísios, mas sim pela penetração da massa polar atlântica na América do Sul, que ocorre por dois caminhos: por via oceânica, margeando a costa brasileira e atingindo os estados das regiões Sul e Sudeste, seguindo em direção ao equador, e por via continental, adentrando o interior do país, entre a Cordilheira dos Andes e o Maciço Brasileiro,

[...] conduzindo o ar frio através de Mato Grosso até o alto Amazonas, e provocando, em casos excepcionais de grande intensidade, a chamada “friagem”, que vem a consistir, portanto, numa invasão, durante o inverno, de vigoroso anticiclone frio de massa polar, cuja trajetória ultrapassa, praticamente, o Equador.

(Serra; Ratisbonna, 1945, p. 173)

Serra e Ratisbonna não desprezam a importância dos alísios no processo de condução das massas polares, mas ressaltam que a queda acentuada nas temperaturas ocorre em razão delas, e não dos alísios:

No inverno e na primavera, quando é muito mais vigorosa a circulação secundária, em virtude do forte gradiente térmico equador-pólo, as massas frias atingem mais fàcilmente os alísios. Aliás, nessa época do ano, a frente intertropical se encontra no hemisfério norte, que aquelas massas chegam a alcançar com as correntes de sueste. [...] No centro do anticiclone, onde se dá propriamente a friagem, a massa se apresenta com características de polar-continental (cPw)

(Serra; Ratisbonna, 1945, p. 173-176).

À luz de Serra e Ratisbonna, fica claro que Azevedo confunde o papel dos ventos alísios quando atribui a eles a causa do resfriamento, embora não esteja errado quando afirma que os avanços e recuos das massas de ar estão vinculados também aos alísios. De todo modo, é importante salientar que o artigo de Serra e Ratisbonna foi publicado inicialmente em 1941 pelo Serviço de Meteorologia do Ministério da Agricultura e publicado no Boletim Geográfico do IBGE em 1945. A obra de Azevedo que analisamos, em sua 41ª edição, data de 1968. Há, portanto, uma diferença temporal considerável – mais de duas décadas – a separar o artigo da obra didática. Esse fato ajuda a endossar a tese de que a cultura escolar não reflete concomitantemente as pesquisas desenvolvidas no meio acadêmico, já que esse nem é seu objetivo. Naturalmente, é claro que a não incorporação de um artigo científico específico a uma obra didática seja a evidência direta da originalidade da cultura escolar. Esse pensamento seria uma simplificação.

O último tópico do capítulo é dedicado às regiões climáticas do Brasil. Azevedo discorre acerca dos principais tipos climáticos brasileiros – equatorial, tropical e subtropical –, e as regiões de domínio de cada um deles. Quanto à caracterização, ele se restringe a fornecer informações sobre valores de precipitação e de médias máximas e mínimas de cada tipo climático. Na Figura 9, vemos a contraposição de três imagens bastante contrastantes – a do leito seco de um rio do sertão do Nordeste (esquerda, acima), a de um veículo com para-brisa congelado em Santa Catarina (esquerda, abaixo) e a de uma nevada em Caxias do Sul, Rio Grande do Sul (direita, acima) – em que fica implícita a ideia da grande diversidade climática do país, indo de um clima muito quente e seco a um clima quase temperado. A escolha dessas imagens não parece ser fortuita. A nosso entender, Azevedo utiliza esse recurso para corroborar a tese do capítulo exordial de “Nossa terra: o Brasil é um país de contrastes”.

Fonte: AZEVEDO, A. Terra brasileira. 41. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968.

Figura 9 Seca e neve, dois contrastes. 

4 Considerações finais

A escola é detentora de uma cultura singular e original (Chervel, 1988; LESTEGÁS, 2002), e por isso o seu papel não é apenas reproduzir, passiva, fiel e sincronicamente, os saberes produzidos pelas respectivas ciências de referência. Assumindo que os livros didáticos são a própria expressão da cultura escolar, constituindo-se em documentos que permitem a estabilidade e a perenização dos conteúdos de ensino, tem-se a perspectiva de que a escola tem a autonomia para selecionar e/ou recortar os conteúdos da forma que lhe for mais conveniente, visando a atender a sua finalidade precípua.

Nesse sentido, Aroldo de Azevedo apresenta nos dois textos didáticos analisados neste artigo uma climatologia escolar em que princípios da abordagem estática mesclam com princípios da perspectiva dinâmica. Isso fica evidenciado em alguns trechos em que se nota certo diálogo do autor com a tendência renovadora dos estudos climatológicos, buscando a gênese dos processos produtores dos tipos de tempo, enquanto se mantém fiel a uma tradição conceitual já consagrada em climatologia, como a definição de clima como a expressão do estado médio da atmosfera.

O momento em que a voz do autor é mais nítida fica demonstrado em sua explicação sobre a falta de excessos da tropicalidade brasileira. É nesse ponto que Azevedo traz à tona toda a sua carga pessoal de percepções – quiçá demasiadamente intensa – a respeito do clima tropical, dando-nos a impressão de que o seu pensamento oscila entre a matriz lablachiana e a matriz ratzeliana da Geografia, como aventa Santos (1984). Talvez não seja o caso de uma real oposição entre possibilismo e determinismo, já que essa oposição pode se mostrar, no mais das vezes, um falso problema (Santos, 2004, P. 32; Carvalho Junior; Moraes Sobrinho, 2017, p. 172-174). Essa possível incoerência fica evidenciada, todavia, no trecho da adjetivação da tropicalidade e seus excessos.

No que tange à qualidade conceitual dos conceitos climatológicos veiculados, a leitura pode ser feita com base em duas premissas: 1) levar-se em conta o momento histórico em que foram escritas as obras didáticas e as referências conceituais utilizadas; 2) levar-se em conta o público para o qual essas obras didáticas se dirigem. Em relação à primeira premissa, Azevedo produz seus escritos em um momento de transformação das matrizes da climatologia brasileira, em que novas perspectivas conceituais vêm somar-se ao antigo paradigma, a saber, a climatologia estática.

A esse respeito, Goodson (1997) sustenta que há uma tensão existente entre tradição e inovação. Essa tensão está ligada ao fato de que, ao mesmo tempo que pode haver tendências renovadoras no âmbito de um campo disciplinar, há sempre um movimento contrário visando à revalorização (ou mesmo regresso), ao que o autor chama de “aprendizagens básicas”, de modo a se conservar o que já está tradicionalmente consagrado. Não se trata de ocultar intencionalmente uma corrente epistemológica, mas tão somente de fazer a opção por algo já consolidado na cultura escolar – opção aqui entendida como a climatologia estática, cuja definição é trazida por Azevedo, que coexiste dentro da mesma obra didática com outra teoria do conhecimento do campo da climatologia.

No que tange à segunda premissa, a despeito de críticas como a de Santos (1984) sobre o elevado grau de dificuldade dos conteúdos da Geografia apresentados por Azevedo, há de se fazer nota da clareza do texto e dos ótimos esquemas e fotos apresentados nas imagens que o acompanham. O uso de imagens coloridas como apelo visual evidencia a preocupação do autor em facilitar a compreensão dos estudantes, atraindo-os para a leitura.

Como na tradição epistemológica da Geografia, tanto francesa quanto alemã, as imagens representadas na obra didática têm um sentido “textual”. Elas são empregadas para compor um discurso pela descrição e evocação da comunicação detalhada de conteúdo. As imagens, nesse tipo de diálogo, são tratadas em sintonia, em composição e complementaridade, com o registro escrito (Gomes, 2018).

Para além de seu papel histórico de seleção e organização de conteúdos, os livros didáticos têm servido para influenciar as ações docentes e, em muitos casos, até mesmo como fonte de referência aos professores que não tiveram uma formação acadêmica robusta. Os livros didáticos podem ser admitidos mais do que meros recursos de ensino, mas também como materiais curriculares que fortalecem e sedimentam determinados conteúdos selecionados para veiculação na escola, ajudando a forjar a invenção de uma tradição, conforme advogam Hobsbawm; Ranger (1984) e Goodson (1995). Em nossa leitura, a climatologia escolar do professor Aroldo de Azevedo se revela uma tentativa de trazer algumas inovações conceituais, mas ainda dentro de uma perspectiva tradicional de clima.

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Recebido: 29 de Novembro de 2022; Revisado: 27 de Agosto de 2023; Aceito: 29 de Agosto de 2023

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