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Educação: Teoria e Prática

versión impresa ISSN 1993-2010versión On-line ISSN 1981-8106

Educ. Teoria Prática vol.33 no.66 Rio Claro  2023  Epub 07-Ago-2024

https://doi.org/10.18675/1981-8106.v34.n.67.s17302 

Dossiê

A escola como espaço de emancipação dos indivíduos e suas coletividades: conversações em Marx e Gramsci

The school as a space for the emancipation of individuals and their communities: conversations in Marx and Gramsci

La escuela como espacio de emancipación de los individuos y sus comunidades: conversaciones en Marx y Gramsci

Francis Silva de Almeida1 
http://orcid.org/0000-0002-9237-6325

Joaquim Péricles Mazzon do Nascimento2 
http://orcid.org/0000-0003-2127-322X

Jozelito Manoel de Jesus3 
http://orcid.org/0000-0002-6323-5101

1Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, São Paulo – Brasil. E-mail: fs.almeida@unesp.br.

2Universidade Estadual Paulista, Rio Claro, São Paulo – Brasil. E-mail: joaquim.pericles@unesp.br.

3Universidade do Estado da Bahia, Jacobina, Bahia – Brasil. E-mail: joselitojose@gmail.com.


Resumo

Trata-se de um trabalho de cunho teórico que coloca a questão da escola como espaço de emancipação dos indivíduos e suas coletividades. O texto encontra-se estruturado em dois momentos: no primeiro, explora o conceito de trabalho estranhado (Marx, 2008) e, a partir dele, a noção de estranhamento político; em seguida, destaca os conceitos de educação omnilateral (Marx, 2008) e de escola unitária (Gramsci, 1999, 2000) a propósito do papel da escola na superação do estranhamento político e na promoção da emancipação individual e coletiva. As conversações teóricas realizadas no texto consideram que o indivíduo formado pelo trabalho estranhado se encontra reduzido ao âmbito das relações de produção capitalistas e, por consequência, cada vez menos comunitário; que os processos políticos e educativos não se constituem autônomos em relação à dinâmica que se manifesta na base material de produção social da vida, motivo pelo qual as condições de superação do estranhamento político não passam por outro caminho senão aquele que se torna possível no chão da escola.

Palavras-chave Trabalho; Estranhamento; Educação Omnilateral; Escola Unitária; Emancipação

Abstract

This is a theoretical work that raises the question of the school as a space for emancipation for individuals and their communities.The text is structured in two parts: firstly, it explores the concept of alienated labor (Marx, 2008), and from there, the notion of political alienation; then, it highlights the concepts of all-around education (Marx, 2008) and unitary school (Gramsci, 1999, 2000) concerning the role of the school in overcoming political alienation and promoting individual and collective emancipation. The theoretical discussions in the text consider that the individual shaped by alienated labor is increasingly confined to the realm of capitalist production relations and, consequently, becomes less communal. It also acknowledges that political and educational processes are not autonomous from the dynamics that manifest in the material base of social life production. Hence, the conditions for overcoming political alienation can only be realized within the context of the school.

Keywords Labor; Alienation; All-around Education; Unitary School; Emancipation

Resumen

Este es un trabajo teórico que plantea la cuestión de la escuela como un espacio de emancipación de los individuos y sus comunidades. El texto está estructurado en dos partes: en primer lugar, explora el concepto de trabajo enajenado (Marx, 2008) y, a partir de ahí, la noción de enajenación política; a continuación, destaca los conceptos de educación multilateral (Marx, 2008) y escuela unitaria (Gramsci, 1999, 2000) en relación con el papel de la escuela en la superación de la enajenación política y la promoción en la emancipación individual y colectiva. Las discusiones teóricas en el texto consideran que el individuo moldeado por el trabajo enajenado se encuentra reducido al ámbito de las relaciones de producción capitalistas y, en consecuencia, cada vez menos comunitario; que los procesos políticos y educativos no son autónomos en cuanto a la dinámica que se manifiesta en la base material de la producción social de la vida, razón por la cual las condiciones para superar la enajenación política no son otras que las que se hacen posibles en la escuela.

Palabras clave Trabajo; Enajenación; Educación multilateral; Escuela Unitaria; Emancipación

1 Introdução

A educação é um ato de amor, por isso, um ato de coragem. Não pode temer o debate. A análise da realidade não pode fugir à discussão criadora, sob pena de ser uma farsa.

(Paulo Freire)

A relação escola e sociedade é tema amplamente discutido há pelo menos dois séculos. No contexto d’A Ideologia Alemã (Die Deutsche Ideologie), escrita por Marx e Engels entre 1845 e 1846, encontram-se destacadas as primeiras considerações a respeito da relação entre ideologia, sociedade e educação. A educação é parte integrante fundamental da superestrutura ideológica da sociedade capitalista, observaram Marx e Engels (2007). Obviamente, a educação que se pratica na escola é reflexo imediato dessa relação, afinal a mesma classe dominante que mantém o controle sobre a propriedade privada dos meios de produção exerce, por razões de manutenção de sua hegemonia, clara influência sobre as questões que, de todas as formas, encontram-se ligadas à educação desde a construção de uma certa filosofia até as políticas de organização e funcionamento da escola.

A educação que se realiza na escola mantém estreitos vínculos com as estruturas de poder criadas e mantidas pelo modo de produção capitalista, e disso não restam dúvidas. Da mesma forma, não restam dúvidas dos efeitos dessa relação sobre a escola, que, distinguindo-se como uma instituição burguesa, serve ao estado como aparelho de reprodução ideológica (Althusser, 1987), assim como serve às classes dominantes como dispositivo de reprodução da violência que se impõe sobre a classe trabalhadora (Bourdier; Passeron, 1982). Observado o conjunto desses discursos, o que se impõe como problema diz respeito tanto aos processos que atravessam essa relação e terminam por fazer da escola o espaço em que se perpetuam as mais profundas desigualdades sociais como à compreensão de que essa mesma escola, então pautada pelas classes dominantes como instrumento de reprodução da ideologia burguesa, caracteriza-se também como espaço em que se conserva a contradição dos processos sociais e da luta de classes, o que, por consequência, cria as condições de uma educação voltada para a emancipação há tanto reclamada pelos professores e pesquisadores interessados pela perspectiva marxista de educação.

Quando colocamos o problema da escola como espaço de emancipação no centro das nossas reflexões, não estamos, de fato, apresentando uma discussão nova, afinal trata-se de uma lavra que remonta ao ideário da educação socialista revolucionária que reivindica, desde suas origens, elevar as massas ao mesmo nível do conhecimento e da capacidade de ação que as elites, historicamente, reservaram para si. Isso não quer dizer que o texto não seja original. Ele o é precisamente porque a luta pela escola pública é, ainda hoje – e talvez ainda mais –, continuamente necessária se considerarmos o avanço da agenda neoliberal sobre a educação na última década.1 Não é nosso interesse nem nos propomos a recuperar as discussões que problematizam essas reformas, dadas as muitas contribuições que evidenciam o caráter neoliberal que as orienta e as disputas de interesses que elas circunstanciam (Almeida, 2019; Michetti, 2020; Andrade; Argollo; Lamarão, 2021).

Nesse sentido, relacionamos o conceito de estranhamento no âmbito do trabalho alienado (Marx, 2008) com o que nomeamos e compreendemos por estranhamento político, e, reconhecendo a escola como espaço complexo em que as diferentes experiências que surgem da interação entre as narrativas que operam no espaço público de comunicação contribuem para a construção de imagens de mundo variadas, resgatamos os conceitos de educação omnilateral (Marx, 2008) e de escola unitária (Gramsci, 1999, 2000) a propósito das seguintes indagações: é possível produzir emancipação no contexto de uma escola historicamente materializada como dispositivo de poder? Em que medida as teorias marxianas e gramscianas evidenciadas neste texto corroboram uma escola possível (por assim dizer, uma outra escola), experimentada a partir das contradições do capital e de suas próprias contradições? De que modo as noções de uma educação integral e integrada assim postuladas reverberam a emancipação dos indivíduos e suas coletividades?

2 Do trabalho estranhado ao estranhamento político

A introdução da ideia de propriedade privada suscitou, a partir da sociedade oitocentista, importantes discussões sobre sua natureza e seu conceito: primeiro, por efeito das mobilizações que ela provoca nos campos do Direito e da Economia; depois, porque sua consolidação modifica sensivelmente a natureza política e social da relação entre os seres humanos, acentuando os contrastes que opõem, de um lado, o princípio jurídico da igualdade entre os cidadãos e, por outro, as desigualdades produzidas em razão da produção e do acúmulo de riqueza, do nível de escolaridade e da ocupação dos indivíduos. O surgimento dessa ideia e seus reflexos na produção da desigualdade social foram analisados por Engels na obra A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado, originalmente publicada em 1884 e que segue, ainda hoje, sendo considerada uma das mais importantes reflexões teóricas marxistas – nela, o filósofo assume como ponto de partida o trabalho de Lewis Morgan a respeito das formas históricas da família na humanidade, desde o comunismo primitivo da Pré-história até o advento da sociedade industrial capitalista de sua época, valendo-se do materialismo histórico como recurso analítico.

De acordo com Engels (1984), a propriedade privada encontra origem no processo de divisão da terra, causa primária da sociedade civil, da divisão do trabalho e da desigualdade entre os homens. Para o filósofo, a gens – primeira instituição social fundada entre indivíduos consanguíneos ainda na fase média do estado selvagem –, designava, também, uma unidade econômica em que a terra constituía a propriedade coletiva das tribos, e o povo exercia diretamente sua escolha de representação militar e religiosa. Até a ascensão da propriedade privada e da família individual monogâmica, observou-se um modelo de sociedade em que o cultivo da terra, sua partilha e propriedade entre os membros do clã definiam um certo modo de vida coletivo. Ora, ao produzirem seus meios de subsistência os homens criam inteiramente a sua própria vida material – essa forma de produção material da vida, vale ressaltar, é uma atividade permeada de sentido e, por isso mesmo, exprime um determinado modo de viver. Sobre isso, Engels (1984) descreveu, que nas tribos iroquesas, as matriarcas eram muito apreciadas e podiam até depor líderes militares. As mulheres eram responsáveis pela gestão da casa, atividade que, antes daquele momento histórico, era tão valiosa quanto as funções reservadas aos homens, como colher alimentos, caçar animais e participar de eventuais guerras.

De acordo com Engels (1984), a destruição do modelo de vida social praticado na gens encontra relação com a expansão da vida nômade nos tempos bárbaros: com a escassez de alimentos na estepe, as pessoas que a ocupavam tiveram que praticar a criação de gado e usar sua carne e leite para garantir a sobrevivência; a agricultura também se desenvolveu: inicialmente para fornecer alimentos para o gado e, posteriormente, para os próprios homens; ao mesmo tempo, novas ferramentas e técnicas foram desenvolvidas para aprimorar e agregar maior valor ao trabalho humano. É precisamente nesse momento que surgem as desigualdades naturais e se desenvolvem as desigualdades combinadas. Conforme Engels (1984, p. 144):

A divisão do trabalho entre os diversos ramos de produção – a agricultura, a manufatura e seus inúmeros subtipos, o comércio, a navegação etc. – havia se aprimorado com os progressos da indústria e do transporte; a população passou a se subdividir em grupos bem definidos de acordo com a sua ocupação, cada um deles com uma série de novos interesses em comum, para os quais não havia lugar na gens ou fratria e que, portanto, para serem atendidos, exigiam a criação de novos cargos.

Além disso, o homem, agora responsável pelas atividades exercidas fora do âmbito doméstico, passou a ser considerado proprietário dos rebanhos e das ferramentas de trabalho, razão pela qual logo tratou de mudar as regras da filiação e da herança, substituindo o direito materno pelo direito paterno, garantindo, dessa maneira, que seus filhos herdassem suas riquezas:

[...] Cabia ao homem a obtenção dos alimentos e dos instrumentos de trabalho necessários para isso E, portanto, também a propriedade destes últimos [...] o primeiro antagonismo de classes que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do antagonismo entre homem e mulher. No casamento monogâmico, e a primeira opressão de classe coincide com a do sexo feminino pelo sexo masculino

(Engels, 1984, p. 74-75).

Nesse meio-tempo, e na medida em que o valor gerado pelo trabalho de um homem passou a ser superior ao que era necessário para sua sobrevivência, a mão de obra humana tornou-se um produto valioso, processo que introduziu o trabalho escravo, o qual, por consequência, deu origem ao sistema de produção escravista. Por fim, a terra, que outrora se via estabelecida como propriedade coletiva, tornou-se cada vez mais disputada, valiosa e, gradualmente, propriedade privada, encerrando a igualdade material que existia entre os membros do clã: “com a preponderância da propriedade privada sobre a propriedade comum e o interesse na transmissão da propriedade por meio de herança, o direito paterno e a monogamia passaram a reinar”, recorda Engels (1984, p. 78-79).

O fim do regime gentílico marca, portanto, a origem do Estado como instituição cujo propósito é conter os possíveis conflitos entre a classe oprimida e a opressora e, assim, manter o domínio desta sobre aquela (Engels, 1984). Por conseguinte, o modelo de organização social baseado na solidariedade e no bem comum até então estabelecido cedeu lugar, no quadro de complexificação da sociedade, à exploração da força de trabalho como atividade de produção lucrativa, origem do fenômeno denominado por Marx (2008) como estranhamento. Ora, o fato de que a propriedade da terra existe desde tempos imemoriais – e que a terra se valorize em razão de seu uso – não depaupera a evidência de que foi somente no século XVIII, com a Revolução Industrial e com a histórica luta da burguesia por direitos políticos, que os direitos de propriedade se tornaram juridicamente inalienáveis.

Nesse sentido, e com o intuito de explorar o conceito de trabalho estranhado presente nas discussões marxistas, reconhecemos necessário retomar o momento em que, historicamente, notamos surgir uma nova forma de relação do homem com o trabalho. Segundo Nikitin (apudBezerra, 2006, p. 6), “em determinada etapa da evolução social a produção de mercadoria fez surgir o capitalismo”. Dessa forma, na fase considerada “pré-história do capitalismo”, o processo de acumulação foi denominado por Marx de acumulação primitiva. O processo em questão espoliou o trabalhador da terra, retirando suas condições de trabalho e subsistência, como em Marx (2008, p. 61): “nada mais é do que o processo histórico de divorciar o produtor dos meios de produção”.

Oportuno lembrar que, no sistema capitalista, o trabalho aparece como uma atividade dividida e combinada, resultante da atividade humana coletiva por meio da cooperação social. O capitalismo faz uso da exploração da força de trabalho para gerar lucros, e essa exploração ocorre ao longo de todo o percurso quando dividido em duas partes: primeiro, o tempo de trabalho necessário para a produção de um valor suficiente para manter a vida do assalariado correspondente ao salário; segundo, o tempo do excesso de trabalho, caracterizado pela produção de mais-valia. A propósito, Marx afirma (2013, p. 164) que “o processo capitalista de produção não é simplesmente produção de mercadorias. É processo que absorve trabalho não pago, que transforma os meios de produção em meios de extorsão de trabalho não pago”. É precisamente nesse momento que cada ser humano se torna, em sua origem, cativo de um modo social de produção estruturalmente desigual e produtor de desigualdades.

Nesse contexto, a propriedade privada não só adquiriu as características de domínio, controle e exclusividade do capitalismo, transformando-se em mercadoria, como terminou por delinear as características de um modelo de Estado que, fundado no pensamento liberal, incorporou o direito à propriedade privada como direito civil, incluindo o direito de aquisição de propriedade entre as liberdades individuais. É precisamente a estrutura jurídica dada pelo Estado à propriedade privada que, segundo Marx (2008), fundamenta a separação entre o trabalho e o capital, produzindo como consequência o distanciamento entre os homens, o estranhamento da atividade e do gênero humano e, consequentemente, a servidão ao objeto.

A servidão ao objeto aparece como elemento no sistema de estranhamento na seguinte medida: o produto do trabalho é dominado pelo capital de modo que, quanto mais objetos o trabalhador produz, menos pode possuí-los; quanto mais o trabalhador se empenha e se desgasta na produção, mais poderoso se faz o mundo dos objetos por ele produzido, mais pobre ele se torna em sua vida interior e menos ele pertence a si mesmo. No interior do sistema de estranhamento – “propriedade privada, ganância, separação entre trabalho, capital e terra, troca e competição, valor e desvalorização do homem, monopólio e competição” (Marx, 2008, p. 2) –, o trabalho é exterior ao homem: é imposto, não corresponde à condição de sua mundanidade e não satisfaz suas necessidades.

Posta a conjuntura, notamos, de um lado, sujeitos que não têm meios necessários para subsistir, devendo, portanto, vender sua força de trabalho, e, de outro, sujeitos que concentram os meios de produção e matéria-prima, ou seja, a situação ideal para o surgimento de um novo modo de produção. As condições expostas se deram em meio ao sistema feudal, marcando o início do surgimento da burguesia a partir da expansão industrial têxtil (Bezerra, 2006).

A grande oferta de mão de obra barata foi campo fértil para a expansão industrial, campo completamente diferente daquele anteriormente experimentado pelo trabalhador, que se deparou com extensas horas de trabalho, produção em larga escala, organização e espaço de execução de tarefas diferentes, uma realidade de estranhamento em que o trabalhador não só se vê distante do processo de produção e dos produtos finais, sem relação de sentido e controle de seu próprio trabalho, como se vê, também, economicamente cada vez mais expropriado. No interior do capital, toda relação de trabalho é de exploração econômica crescente. Sobre isso, Marx (2008, p. 80) destaca que:

O trabalhador se torna tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador se torna uma mercadoria tão mais barata quanto mais mercadorias cria. Com a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens. O trabalho não produz somente mercadorias; ele produz a si mesmo e ao trabalhador como uma mercadoria, e isto na medida em que produz, de fato, mercadorias em geral.

Considerada a relação direta entre os trabalhadores e seus objetos de produção, o exposto suscita que a atividade do trabalhador pertence agora a outrem. Dessa forma, “se o produto do trabalho não pertence ao trabalhador, um poder estranho está diante dele, então isso só é possível pelo fato de o produto do trabalho pertencer a um outro homem fora o trabalhador” (Marx, 2010, p. 87 apudPereira, 2015, p. 64).

Marx (2008) detalhou que todas as atividades produtivas exercem sobre o sujeito o efeito de estranhamento. Em primeiro lugar, chama a atenção para o problema da objetivação do trabalho, processo em que o produto do trabalho apresenta uma existência externa, independente e estranha ao trabalhador. Em seguida, que o estranhamento não ocorre apenas na relação entre os trabalhadores e os resultados do trabalho, mas na relação com a própria atividade produtiva. Destaca-se, então, um processo de estranhamento baseado no fato de que não só o produto do trabalho não pertence ao trabalhador, como o próprio trabalho se torna externo a ele. Reduzido à satisfação de suas carências, o trabalho assume a forma de uma mercadoria de troca, assim como o produto que objetiva. Por fim, o autor detalhou ainda um terceiro nível de estranhamento do trabalho:

O homem vive da natureza, significa: a natureza é o seu corpo, com o qual ele tem de ficar num processo contínuo para não morrer. Que a vida física e mental do homem está interconectada com a natureza não tem outro sentido senão que a natureza está interconectada consigo mesma, pois o homem é uma parte da natureza. Na medida em que o trabalho estranhado 1) estranha do homem a natureza, e 2) a si mesmo, sua própria função ativa, sua atividade vital, estranha do homem o gênero. Faz-lhe da vida genérica apenas um meio da vida individual. Primeiro, estranha a vida genérica, assim como a vida individual. Segundo, faz da última em sua abstração um fim da primeira, igualmente em sua forma abstrata e estranha

(Marx, 2008, p. 184).

Consequência direta desse processo é a alteração do modo como o trabalhador se relaciona com o mundo exterior, uma vez que, estranho aos modos de produção e ao produto do seu trabalho, o sujeito termina por ser reduzido a um meio de vida para o capital e sua existência, às condições mínimas de sobrevivência. O trabalho estranhado é também o responsável pelo estranhamento do gênero humano. De acordo com Pereira (2015, p. 4):

Diferente do animal, em que coincide imediatamente com a natureza, o homem mantém distância dela. Essa distância o obriga a lançar mão de suas qualidades individuais para conquistar na relação de objeto sua existência. O animal não possui propriamente seu gênero, ele apenas repete os desígnios naturais determinados pela sua espécie. O homem não coincide com as características de sua espécie porque sua própria natureza é constituir-se.

A esse respeito, notamos em Marx (2008) que o homem só se sente como ser livre e ativo dentro de suas funções animais – no caso, beber, comer e procriar –, e dentro de suas funções humanas, acaba se sentindo como animal, fazendo que o animal se torne humano e o humano, animal. Nesse sentido, as relações estranhadas geram não só o distanciamento do trabalhador com o produto do seu trabalho, mas também, e especialmente, produzem um modelo de liberdade produtiva hostil, liberdade que, sendo negada, resulta no estranhamento do homem pelo homem, ínterim em que a propriedade privada fundamenta a relação do trabalhador com o social e consigo mesmo (Pereira, 2015).

Marx (2004) destaca que o estranhamento encontra fundamento também na relação dos homens entre si; enquanto se manifesta como martírio para a maioria, para poucos se manifesta como fruição. Para os trabalhadores, o estranhamento é uma atividade prática e, para os não trabalhadores, um comportamento teórico. Por meio do trabalho estranhado, o homem não apenas promove sua relação com os objetos e o ato de sua produção com homens que lhe são estranhos e inimigos, mas também engendra a relação na qual ele está com esses outros homens.

O distanciamento e o estranhamento entre os homens têm consequências não só na vida privada, mas, ao que nos interessa, na vida pública, visto que provoca o que chamamos de estranhamento político. Partindo do sentido etimológico da palavra “política”, que assume o significado de “sociedade”, as relações de trabalho estranhadas e o sentido da propriedade privada repercutem a formação de sujeitos ensimesmados e distanciados de todo o estado de coisas que constitui a própria experiência de estar no mundo. Nesse quadro, o espaço da vida pública, política e coletiva é sistematicamente reduzido pelo consumo e pelo discurso das liberdades individuais. O homem unilateral formado pelo trabalho estranhado encontra-se reduzido ao fórum da vida privada, alienado de sua condição como trabalhador e reificado pelo modo de produção capitalista. Por esse motivo é preciso ir além da casa e da família: é precisamente a ocupação política do espaço público que torna o sujeito consciente do poder da ação, lembrando aqui o sentido arendtiano da ação como a única atividade que se exerce diretamente entre os homens e que corresponde à condição da pluralidade, pela qual se organiza toda a vida política (Arendt, 2008).

O estranhamento político é uma extensão do estranhamento do trabalho, ou seja, as relações de trabalho alienadas e a ênfase na vida privada que favorecem o isolamento dos indivíduos, tornando-os distantes uns dos outros e alheios às questões políticas e coletivas. Esse processo reverbera diretamente sobre a esfera pública, onde a política é definida como prática de interação social. O trabalho estranhado perpassa as relações de produção material da vida e sugere, por vezes, o estranhamento não só do gênero, mas da própria condição humana. Considerado o trabalho estranhado, portanto, o principal responsável pela constituição do estranhamento social e político, sua superação não poderia se dar por outro meio senão pela emancipação da classe trabalhadora, o que requer a ocupação ativa do espaço público: não existe outro modo de os indivíduos se tornarem conscientes do poder de sua ação senão pelo envolvimento com as questões que se desdobram nas esferas pública e política. É precisamente esse o ponto em que reconhecemos na escola as condições de superação desse estranhamento: os fazeres do chão da escola ocorrem como partes fundamentais do processo de emancipação dos indivíduos quando concorrem para a formação de uma sociedade politicamente mais engajada.

3 Do estranhamento político à emancipação

O trabalho estranhado leva ao estranhamento político, e este, ao que notamos, a um modelo de organização social que coloca o sujeito à margem das relações de produção material da vida, processo pelo qual também a condição humana se torna estranhada. Ademais, o modo capitalista de organização social não define apenas um modo de produção material, mas define essencialmente um modo de vida: determina a forma como as pessoas se relacionam consigo mesmas, umas com as outras e com a sociedade. O que se põe em questão é a produção social de indivíduos subjetivamente marcados por um modo de produção centrado na mercadoria, no desejo pela mercadoria e em suas formas de consumo (Marx, 2008). Com efeito, o trabalho estranhado e o estranhamento político tornam o homem estranho a si mesmo e hostil com seus pares. Nesse sentido:

quanto mais o trabalhador produz, menos tem para consumir; quanto mais valores cria, mais sem-valor e indigno ele se torna; quanto mais bem formado o seu produto, tanto mais deformado ele fica; quanto mais civilizado seu objeto, mais bárbaro o trabalhador; quanto mais poderoso o trabalho, mais impotente o trabalhador se torna

(Marx, 2008, p. 82).

Parece-nos claro que o trabalho estranhado estabelece uma relação de escravidão, de fadiga, de mera sobrevivência e que, no interior dessa relação, o trabalhador se encontra reduzido ao âmbito das relações de produção capitalistas e, por consequência, cada vez menos comunitário. Trata-se de um processo que provoca não só a “perda do próprio homem”, mas sua “desumanização completa”, afirma Manacorda (2007, p. 78). Nesse sentido, propomos as perguntas: de que modo a educação omnilateral marxiana2 e a escola unitária gramsciana corroboram nossas reflexões acerca de uma escola possível (por assim dizer, uma outra escola), experimentada a partir das contradições do capital e de suas próprias contradições? De que forma as noções de uma educação integral e integrada, assim postuladas, reverberam a emancipação dos indivíduos e suas coletividades?

O ensaio de uma resposta nos exige pontuar que a separação entre educação humanista e trabalho3 é reforçada pelo capitalismo: no primeiro momento, após a Revolução Industrial e, posteriormente, com a integração do sistema produtivo aos campos da ciência e da tecnologia – nos dois casos, a alteração no modo de organização da indústria demandava a existência de mãos adestradas; a divisão social de classes reverbera sobre todo o conjunto das instituições sociais, portanto das estruturas econômicas e das políticas educacionais; a responsabilização estatal pela escola no contexto de apropriação da propriedade privada pela classe dominante nas sociedades capitalistas faz surgir um modelo de escola que distingue os indivíduos em razão de sua origem social.

O plano de uma ordem econômica baseada no trabalho estranhado impõe à escola o encargo de educar para a produtividade e a manutenção das relações de trabalho e estabelecer a autoridade econômica como modo de justificar e manter a relação entre os que detêm os meios de produção e os que constituem a força de trabalho. Nesse caso, a escola não só fortalece o modo capitalista de produção, como também produz uma espécie de domínio sobre a razão prática a fim de naturalizar a exploração da força de trabalho. Ora, se presumimos que a educação é um fenômeno tipicamente humano que se caracteriza pelo conjunto das ações e influências intencionais e mutuamente exercidas entre as pessoas com o propósito de construir os contextos sociais, culturais, políticos e econômicos de uma sociedade, então todo itinerário de escolarização é, em última análise, recurso de regulação e produção subjetiva, razão pela qual toda educação escolar contribui para a formação de um determinado tipo de sujeito para uma determinada sociedade.

Oportunamente, corroboramos em Freire (1991) duas importantes teses: a primeira é que toda educação tem uma intencionalidade política – portanto, se não existe educação apolítica, o que há é a ocultação da dimensão política da educação, como se esta última fosse neutra e, por isso, centrada numa perspectiva tecnicista, como uma ferramenta útil para o trabalho, como os modelos de educação por competência enfatizam; a segunda é que, diante do trabalho estranhado e do estranhamento político, nada é mais estratégico para o domínio hegemônico do que uma concepção de educação que conduza os trabalhadores e as trabalhadoras à familiaridade com a desigualdade econômica e social.

A consolidação do estranhamento político que assegura a reprodução do trabalho estranhado ocorre por meio das pedagogias do aprender a aprender, por isso é importante destacar a contribuição das pesquisas de Newton Duarte para uma reflexão crítica em torno do aprender a aprender e aprender ao longo da vida. Em seus quatro ensaios críticos-dialéticos, Duarte (2008) questiona se de fato estamos numa sociedade do conhecimento ou se essa sociedade é a sociedade das ilusões. Para ele, amparada nas “pedagogias do aprender a aprender”, essa sociedade produz a ilusão de que os indivíduos que investirem em suas formações e desenvolverem suas potencialidades, em forma de competências, terão maiores chances de inserção no disputadíssimo mercado de trabalho.

A esse respeito, Duarte (2008) destaca o que chama de ilusões da sociedade do conhecimento. A primeira ilusão, afirma o autor, é a de que o conhecimento nunca esteve tão acessível como hoje – no tempo presente, predomina a ideia de que o conhecimento foi amplamente democratizado pelos meios de comunicação, pela Internet, pela informática etc. e que todos os sujeitos, de todos os extratos sociais, têm acesso ao conhecimento; a segunda faz crer que a habilidade de mobilizar conhecimentos é muito mais importante que a aquisição de conhecimentos teóricos, especialmente nos dias de hoje, quando já estariam superadas as teorias pautadas em metanarrativas, isto é, estariam superadas as tentativas de elaboração de grandes sínteses teóricas sobre a história, a sociedade e o ser humano; a terceira ilusão alimenta a noção de que o conhecimento não é a apropriação da realidade pelo pensamento, mas sim uma construção subjetiva resultante de processos semióticos intersubjetivos nos quais ocorre uma negociação de significados – os contratos culturais é que confeririam validade ao conhecimento; a quarta ilusão indicia que todos os conhecimentos têm o mesmo valor e que não existe, entre eles, uma hierarquia que se refira à qualidade ou ao poder explicativo da realidade natural e social; por fim, a quinta ilusão é aquela que se constitui no apelo à consciência dos indivíduos, seja por meio das palavras, seja por meio dos bons exemplos dados por indivíduos ou por comunidades, sendo o caminho para a superação dos grandes problemas da humanidade. Essa, segundo afirma o autor, se desdobra ainda numa outra ilusão: a de que os grandes problemas ocorrem por conta de determinadas mentalidades, recurso que alimenta todas as propostas educativas idealistas – nesse sentido, mudando a forma de pensar da população, mudar-se-iam também os comportamentos individuais e se estaria garantido um futuro de paz, amor, liberdade, democracia e bem-estar social.

Assim, embora desejável – porque induz ao desenvolvimento da autonomia nos indivíduos, favorecendo a criatividade e a participação social espontânea com atitudes fundadas em suas percepções sobre a realidade –, o aprender a aprender deve ser continuamente posto em questão sob pena de caracterizar-se como dispositivo ideológico desmobilizador enquanto reforça o individualismo em prejuízo do sentido de comunidade, enfraquece a solidariedade, promove a competitividade e, em última instância, legitima a exclusão daqueles e daquelas que não obtiveram os melhores desempenhos.

Duarte (2008, p. 8) explica:

Não discordo da afirmação de que a educação escolar deva desenvolver no indivíduo a autonomia intelectual, a liberdade de pensamento e expressão, a capacidade e a iniciativa de buscar por si mesmo novos conhecimentos. Mas o que estou aqui procurando analisar é outra coisa: trata-se do fato de que as pedagogias do “aprender a aprender” estabelecem uma hierarquia valorativa, na qual aprender sozinho situa-se em um nível mais elevado que o da aprendizagem resultante da transmissão de conhecimentos por alguém. Ao contrário desse princípio valorativo, entendo ser possível postular uma educação que fomente a autonomia intelectual e moral por meio da transmissão das formas mais elevadas e desenvolvidas do conhecimento social existente).

O lema aprender a aprender é fracamente sedutor justamente porque promete finalidades desejáveis para todo professor e para todo o sistema educacional, como: a autonomia do estudante, o desenvolvimento de suas capacidades intelectuais e de sua competência na investigação de problemas identificados em suas múltiplas atividades cotidianas, a incorporação de diferentes metodologias ativas à sua experiência etc. Para o autor, entretanto, o aprender a aprender remete à mera adaptação dos indivíduos à dinâmica da sociedade capitalista por meio do desenvolvimento de suas competências. Segundo Duarte (2008, p. 11) destaca:

[Vitor da Fonseca] não deixa qualquer dúvida nessa passagem quanto ao fato do “aprender a aprender” ser apresentado como uma arma na competição por postos de trabalho, na luta contra o desemprego. O “aprender a aprender” aparece assim na sua forma mais crua, mostrando seu verdadeiro núcleo fundamental: trata-se de um lema que sintetiza uma concepção educacional voltada para a formação, nos indivíduos, da disposição para uma constante e infatigável adaptação à sociedade regida pelo capital.

No enredo das políticas neoliberais, o que importa é a maximização das competências dos trabalhadores a fim de alcançarem o êxito na competitividade no mercado de trabalho, possibilitando o sucesso – e, pelo argumento do autor, a “salvação” – individual nessa dimensão da realidade. As questões de justiça social, democracia, de organização e luta política, de compreensão das tramas econômicas na elaboração de políticas que produzem a desigualdade ficam secundarizadas e é sancionada a louca corrida por um emprego no darwinismo social, no qual somente os mais adaptáveis sobreviverão:

Aos educadores caberia conhecer a realidade não para fazer a crítica a essa realidade e construir uma educação comprometida com as lutas por uma transformação social radical, mas sim para saber melhor quais competências a realidade social está exigindo dos indivíduos

(Duarte, 2008, p. 12).

De mais a mais, é fundamental compreender que, em nosso tempo, e em razão das relações políticas e econômicas que tramam a vida social, o novo paradigma de desenvolvimento encontra-se impulsionado pelas inovações tecnológicas, ínterim em que a atividade intelectual assinala o fator direto da produção com a aceleração dos processos informacionais de elaboração e disseminação do conhecimento por meio de atividades comunicativas; também, que o discurso capitalista de tendência neoliberal reforça a competitividade na direção do darwinismo social, gerando mais exclusão que inclusão, e destruindo formas de solidariedade fundamentais para a vida do ser humano neste planeta. É preciso, então, não só atentar-se à contradição, visto que pensar por contradição nos situa criticamente em relação ao papel que a educação sistemática e intencional desempenha na sociedade contemporânea em relação à emancipação diante do trabalho estranhado e do estranhamento político que dele decorre e o retroalimenta.

Contrariamente ao modelo de educação escolar agenciado pelo projeto social hegemônico capitalista, reconhecemos, na concepção marxiana de educação, um importante expediente de emancipação do indivíduo: o trabalho define a essência humana e é capaz de produzir nos sujeitos para a humanidade: se o trabalho é o que constitui o homem, humanizando-o, então ele deve ser reconhecido como um princípio educativo fundamental, e a escola, o lugar da construção coletiva e socializada do conhecimento (Marx, 2008).

Assim sendo, compreendemos os processos de escolarização como itinerários determinados pelo processo social global de produção da vida humana e como mediação no processo de relação ativa sujeito-mundo. A adoção do trabalho como princípio educativo faz da educação escolar uma atividade humana transformadora. Nela, a articulação das dimensões da ciência, da tecnologia, da cultura e do trabalho produz uma cultura de ensino e aprendizagem em que os saberes científicos se colocam continuamente atravessados não só pelo saber da experiência, mas também pelas necessidades, possibilidades e interesses dos adolescentes, jovens e adultos estudantes. O favorecimento da atribuição de sentido às aprendizagens, por sua vinculação com os desafios da realidade e pela explicitação das conjunturas históricas, políticas e sociais de produção e circulação dos conhecimentos, designa processos produtores da crítica como compreensão informada dos fenômenos naturais e culturais, condição de desenvolvimento da abstração, da reflexão, da interpretação, da proposição e da ação, essenciais à construção da autonomia pessoal, profissional, intelectual e política e, portanto, fundamentais para a inclusão social.

Dessa maneira, a escola se revela como espaço de comunicação da experiência histórica do homem, e, precisamente por essa razão, como a condição mais importante do desenvolvimento da consciência social e política do sujeito. Desse modo, a educação escolar não só assume o caráter da formação humana como prática social, como evidencia a relação pensamento-prática: educação como prática omnilateral.

O conceito de omnilateralidade se contrapõe à formação unilateral resultante do trabalho estranhado pela divisão social do trabalho e pela reificação, assim como pelas relações burguesas estranhadas. Consequentemente, diz respeito ao sentido de uma prática que acerque o sujeito por “todos os lados ou dimensões” e traz à lume uma concepção de educação que considera as diferentes dimensões de constituição humana e as condições objetivas e subjetivas implicadas em seu desenvolvimento histórico. Sobre a omnilateralidade, Manacorda (2007, p. 89-90) destaca:

[...] é a chegada histórica do homem a uma totalidade de capacidades produtivas e, ao mesmo tempo, a totalidade de capacidades produtivas e, ao mesmo tempo, a totalidade de capacidades de consumo e prazeres, em que se deve considerar sobretudo o gozo daqueles bens espirituais, além dos materiais, e dos quais o trabalhador tem estado excluído em consequência da divisão do trabalho.

O desenvolvimento histórico e as histórias da sociedade, do conhecimento e das relações econômicas têm como fundamento a sociabilidade humana (Marx, 2008). Por essa razão se diz que a escola se encontra enraizada na prática social, na dinâmica das relações sociais e, consequentemente, cabe-lhe integrar os saberes escolares aos saberes da experiência a fim de superar o modelo fabril reproduzido pela escola burguesa. Daí o caráter de intencionalidade da ação pedagógica e a didática como prática de comunicação intencional e mediação da relação ativa do sujeito com os objetos de conhecimento:

Isso significa que a escola não pode deixar de se configurar a não ser como o processo educativo em que coincidem a ciência e o trabalho; uma ciência não meramente especulativa, mas operativa, porque, sendo operativa, reflete a essência do homem, sua capacidade de domínio sobre a natureza; um trabalho não destinado a adquirir habilidades parciais do tipo artesanal, porém o mais articulado possível, pelo menos em perspectiva, à tecnologia da fábrica, a mais moderna forma de produção

(Manacorda, 2007, p. 75).

Frigotto corrobora essas reflexões evidenciando que a possibilidade de uma educação omnilateral inscreve

a disputa de um novo projeto societário [...] que liberte o trabalho, o conhecimento, a ciência, a tecnologia, a cultura e as relações humanas em seu conjunto dos grilhões da sociedade capitalista; um sistema que submete o conjunto das relações de produção e relações sociais, educação, saúde, cultura, lazer, amor, afeto e, até mesmo, grande parte das crenças religiosas à lógica mercantil

(Frigotto, 2012, p. 269).

Ora, é por meio do trabalho e da práxis que o homem produz cultura: o homem se faz e se transforma no trabalho, na história e na cultura. Em perspectiva omnilateral, uma educação socialmente mais relevante não pode ser outra se não aquela que acompanha e promove o desenvolvimento integral do trabalhador: “O homem que rompe os limites que o fecham numa experiência limitada e cria formas de domínio da natureza, que se recusa a ser relojoeiro, barbeiro, ourives e se alça a atividades mais elevadas: eis o tipo de homem que Marx tem em mente”, reforça Manacorda (2007, p. 90).

Ampliando essas reflexões, destacamos o projeto educativo propugnado por Gramsci (1999, 2000). Chamando-o de escola unitária, o autor considera que a centralidade e a finalidade do trabalho nas relações sociais não são outras senão a educação de homens integrais. Cumpre destacar que o cenário em que Gramsci apresenta sua proposta educacional difere consideravelmente do tempo de Marx. Gramsci se encontra diante de novas dinâmicas nas relações entre a sociedade civil e o Estado, o que o impulsiona a identificar uma estratégia de transformação social distinta, chamada por ele de “hegemonia civil”, que se diferencia da abordagem presente no Manifesto de 1848.

Conservando de Marx (2013, p. 149) a compreensão de que “o trabalho é um processo entre o homem e a natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a natureza”, Gramsci (1999, 2000) destaca que o trabalho não só assume formas históricas específicas nos diferentes modos de produção da existência humana, como também permeia todo o ser do homem e estabelece sua particularidade, sua singularidade e subjetividade, razão pela qual se constitui também como princípio educativo.

No Caderno 12 dos Cadernos do Cárcere, Gramsci (2000) explora o conceito de “trabalho como princípio educativo” como parte de sua reflexão sobre a relação entre educação, trabalho e cultura. No texto, o filósofo argumenta que o trabalho não é apenas uma operação produtiva, mas uma atividade que desempenha papel fundamental na formação da identidade e da consciência das pessoas: ele é, em si mesmo, a mobilização das forças criativas por meio das quais o homem dispõe um hábitat distinto do dos outros animais, transforma a natureza e simboliza a vida.

Desse modo, Gramsci (1999, 2000) retoma a concepção de ser humano e de trabalho originada da tradição humanista, centrada na educação geral e no propósito de cultivar em cada pessoa o espírito da liderança e a habilidade de pensar de forma crítica e se orientar na vida. Ora, o trabalho exerce a função de princípio educativo precisamente porque considera tanto as interações humanas que moldam diferentes tipos de sociedade, leis civis, política, governo e Estado quanto as relações entre os seres humanos e a natureza, que levam ao desenvolvimento da ciência e da tecnologia (Gramsci, 2000).

Assim como em Marx, também em Gramsci o trabalho conserva centralidade na vida social e, como tal, articula-se dialeticamente com os demais processos sociais, em particular com a educação, sendo deles determinantes e sendo por eles realimentados. Sob essa perspectiva, o trabalho não se limita à produção de bens materiais, mas envolve, especialmente, a construção de valores, significados e relações sociais: provê não só as condições de produção material da vida, mas também, e principalmente, regula a compreensão que cada pessoa constrói sobre o mundo e sua posição na sociedade.

O princípio educativo subjacente à escola humanista é a base da escola unitária. Recobrando a expressão pedagógica da reflexão de Marx sobre o trabalho, e em conta da formação de líderes e da construção da hegemonia civil, Gramsci (2000) defende uma escola que seja universal, pública, gratuita, obrigatória e integral, com propósito de superar não só o modelo tradicional das escolas religiosas e o profissionalizante das escolas burguesas, mas também o modelo das escolas de partido, cujo objetivo era formar quadros para o processo revolucionário.

Cumpre notar que o entendimento de educação em Gramsci evoluiu ao longo de seu desenvolvimento teórico, passando do neoidealismo para o materialismo histórico-dialético. Desse modo, se antes do período de intensa atividade política associado ao “biênio vermelho” seu conceito de educação estava fortemente ligado à ideia de cultura desinteressada, após esse período, durante seu tempo na prisão, sua compreensão de educação encontrou-se fortemente pautada pela transformação das relações sociais capitalistas.

Nesse sentido, se o aprofundamento dos conflitos ideológicos que contrapõem as classes levou Gramsci a acreditar que a estratégia de transformação social delineada no Manifesto de 1848 já não era adequada. Assim, em lugar da mobilização e da organização do proletariado para desafiar o domínio burguês, assim como a ideia de uma revolução proletária na qual os trabalhadores derrubassem o sistema capitalista, abolindo a propriedade privada dos meios de produção, sendo esses colocados sob controle coletivo, para, enfim, instalar-se uma ditatura do proletariado necessária para consolidar o poder dos trabalhadores, reprimir a resistência das classes capitalistas e iniciar a construção de uma sociedade comunista, Gramsci (2000) propõe a criação da hegemonia civil, um processo marcado pela reforma intelectual e moral das amplas camadas populares que exige uma escola que seja o meio pelo qual as classes subalternas possam compreender amplamente o mundo do trabalho, seus processos, métodos, técnicas e finalidades, de forma que tenham condições de utilizar os conhecimentos e as habilidades gerados na história na busca pela superação do modo de produção capitalista da vida em processo de construção de uma nova sociedade.

Gramsci (2000) não faz referência ao conceito de homem omnilateral soviético e não aborda a ideia de escola politécnica como parte de sua proposta educacional – esses conceitos não estão presentes em seus Cadernos do Cárcere. O intento de construir uma hegemonia civil refletia, para Gramsci, a necessidade de a classe subalterna criar novos intelectuais, intelectuais orgânicos e próximos da realidade dos trabalhadores e, especialmente, grupos e movimentos sociais capazes de produzir uma visão de mundo que se transforme em vontade coletiva. A necessidade de um vínculo orgânico entre os intelectuais e as classes subalternas se justifica precisamente porque

o elemento popular ‘sente’, mas nem sempre compreende ou sabe; o elemento intelectual ‘sabe’, mas nem sempre compreende e, menos ainda, ‘sente’ [...]. O erro do intelectual consiste em acreditar que se possa saber sem compreender e, principalmente, sem sentir e estar apaixonado (não só pelo saber em si, mas também pelo objeto do saber), isto é, em acreditar que o intelectual possa ser um intelectual (e não mero pedante) mesmo quando distinto e destacado do povo-nação [...] não se faz política-histórica sem esta paixão, isto é, sem essa conexão sentimental entre intelectuais e povo-nação.

(Gramsci,1999, p. 221-222 – grifos do original)

Considerado o exposto, enfatizamos que o desenvolvimento humano ocorre por meio da complexa rede de interações que articulam as atividades do ambiente natural e social, razão pela qual toda atividade educativa que acontece na escola assume a forma de uma prática social; e que, diante das relações sociais que dificultam a liberdade humana e as atividades conscientes pelo estranhamento político, o trabalho realizado no chão da escola se destaca como prática social capaz de “equilibrar de modo justo o desenvolvimento da capacidade de trabalhar manualmente (tecnicamente, industrialmente) e o desenvolvimento das capacidades de trabalho intelectual” (Gramsci, 2000, p. 33).

Do ponto de vista dos saberes, o projeto gramsciano de uma escola unitária enfatiza a função de socialização da produção social do conhecimento, mesmo porque eles nada mais são do que produção coletiva humana. Ora, o conhecimento tem características históricas e sociais, e o sujeito e o objeto do conhecimento são históricos – o sujeito, produto de relações históricas sociais específicas, e ambos, objetos historicamente constituídos em objeto social humano.

Cumpre destacar que o processo de apropriação dos saberes não ocorre de modo espontâneo, mas mediado pelos significados e símbolos sociais, razão pela qual a atividade dialética constitui uma ferramenta fundamental à compreensão da natureza histórica do saber. Nos entremeios dessa discussão, notamos que os patrimônios cultural, filosófico, científico e tecnológico devem compor um conjunto de saberes que possibilite aos sujeitos dispor, igualmente, das mesmas condições de luta pela existência e elevar o nível cultural de cada um e do conjunto a fim de que sejam também elevadas suas consciências e, por consequência, urdir a transformação das práticas produtivas, sociopolíticas e culturais individuais e coletivas.

A intencionalidade da proposta pedagógica gramsciana ressalta um modelo de formação cultural dirigido aos fins que são indispensáveis à constituição de uma sociedade politicamente emancipada. À luz das contribuições de Gramsci, a escola ganha contornos de uma escola viva, vinculada ao patrimônio histórico e cultural e, ao mesmo tempo, organicamente comprometida com a superação dos conflitos decorrentes da luta de classes. À escola cabe a formação de um sujeito coletivo, preparado para viver em sociedade e que produza uma sociedade diferente, “democrática [que], intrinsecamente, não pode significar apenas que um operário manual se torne qualificado, mas em que cada ‘cidadão’ possa se tornar ‘governante’ e que a sociedade o ponha, ainda que ‘abstratamente’, nas condições gerais de poder fazê-lo [...]” (Gramsci, 2000, p. 50 – grifos do original).

4 Considerações finais

Notamos haver uma certa teoria educacional que surge como parte intrínseca da visão antropológica manifestada nos escritos de Marx (2008) e Gramsci (1999, 2000), ou, se preferirmos, do modo como cada um compreende o ser humano em relação à divisão do trabalho e aos meios para alcançar sua emancipação. Nesse sentido, e a par do quadro teórico que nos oferecem ambos os filósofos, compreendemos que a superação da dualidade presente na organização da escola capitalista/burguesa e a promoção do encontro sistemático entre a cultura e o trabalho não passam por outro caminho que não seja o da mobilização complexa que confronta os diferentes interesses sociais, políticos e econômicos sobre os quais a escola, seu currículo e suas práticas se tornam um território em disputa. Justamente por isso, é fundamental garantir uma base igualitária para todos: uma escola cujo modelo de formação incorpore e integre aspectos científicos, tecnológicos, humanísticos e culturais; uma escola integral e integrada à realidade cujos currículo e práticas encontrem lastro na prática social e, nesta, também encontrem finalidade; uma escola capaz de questionar as diversas e potenciais representações da vida política a partir das interações entre as vivências individuais e coletivas; uma escola sustentada pelos valores da democracia, da cidadania e dos direitos humanos e, por isso mesmo, concebida como bem comum – “não é sem motivos que Marx havia indicado, na emancipação do proletariado, a emancipação de toda a humanidade”, recorda Manacorda (2007, p. 36).

Os processos políticos e educacionais não se constituem autônomos em relação à dinâmica que se manifesta na base material de produção social da vida; pelo contrário, ambos os processos se encontram relacionados com a estrutura social, especialmente a forma como os indivíduos reproduzem suas condições de vida por meio do trabalho, das políticas sociais e das práticas culturais. Exatamente por isso, retomar a questão da escola como espaço de emancipação dos indivíduos e suas coletividades se manifesta pertinente: a história da escola é também a história de uma luta de classes que nos implica diariamente.

A luta por uma escola capaz de promover a emancipação dos indivíduos e suas coletividades não pode se dar somente por iniciativas isoladas, que têm o seu valor exemplar, mas não conseguem disputar por hegemonia no campo político. A fim de que possa, realmente, influenciar o campo político, essa luta deve se basear em uma crescente solidariedade intelectual e política, fortalecida por meio de associações docentes, sindicatos, organizações sociais diversas e partidos. Há que transformarem as aspirações de emancipação em estratégicas políticas que, atravessadas na escola e pela escola, tencionem formar os trabalhadores para desempenharem papéis cada vez mais ativos na governança de uma sociedade democrática, solidária e justa, resistente à dominação de um capitalismo excludente que alimenta continuamente o estranhamento do gênero humano.

Ora, a escola é um bem político e tem função essencialmente política: é no plano social que o ato pedagógico assume a tarefa de desvelar as contradições existentes na sociedade, de fecundar sua ação na solidariedade com o meio social e de consolidar práticas democráticas de acesso crítico aos conhecimentos, processo fundamental para formar nos sujeitos as condições de luta pela superação das divisões sociais e pela redução das desigualdades culturais e políticas.

Os movimentos e as tensões que intentam a ruptura com a educação institucionalizada nos planos e políticas de um sistema educacional uniforme em virtude de uma educação integral, integrada e inclusiva reforçam, ao que notamos, uma pedagogia que faça (re)existir a escola e seus cotidianos a partir da negociação social em que participam valores materiais e simbólicos compartilhados em proporções variadas, razão pela qual se apela a uma pedagogia mobilizadora de práticas discursivas como práticas significativas, condições de uma enunciação concreta: dizer e dizer-se nas relações que se arranjam no interior dos processos e discursos pelos quais os sujeitos constroem e representam suas visões de mundo.

É importante notar que, embora a escola seja um ambiente propício para o desmascaramento dos conflitos sociais, políticos e econômicos, ela ocupa papel intrínseco numa sociedade em que as classes dominantes não cessam de se esforçar para manter a ordem existente e assegurar seus privilégios a despeito de toda e qualquer disparidade. Há que se reforçar que uma educação efetivamente emancipatória não será iniciada por corporações educacionais ou por resolução do estado burocrático. A educação patrocinada pelas burocracias estará sempre voltada para a afirmação de uma ordem social e, portanto, de uma dominação firmemente ancorada nas formas de cooperação e nas tecnologias disciplinares burocrático-capitalistas. E aqui se encontra o desafio maior dos professores: esclarecer-se a ponto de transformar o trabalho pedagógico em um ofício, artesanias do saber emancipador produzido pelos sujeitos da escola nos entremeios da compreensão dialética que supõe a produção material da vida.

Assim, cada um daqueles que pisa o chão da escola não pode ser compreendido fora do seu contexto, do seu lugar e das suas circunstâncias, das condições históricas e sociais concretas definidoras das experiências individuais e coletivas: crianças, jovens e adultos, homens, mulheres, LGBTQIAP+, indígenas, quilombolas, ribeirinhos, no campo, na cidade, nos centros e nas periferias. Uma educação que paute seus processos num modelo de sociedade em que caibam todos só pode se desenvolver nos desdobramentos contínuos da reflexão que cada um realiza sobre seu lugar no mundo. O que se coloca em questão diz respeito a uma pedagogia politicamente ramificada na escola e pela escola, atravessada pelos elementos socioculturais circunscritos no nível micropolítico, no cotidiano das relações: (re)criar o ensino e a aprendizagem como prática cultural continuamente possível, em vias de se tornar um projeto coletivo de liberdade.

Parece-nos claro que as condições de superação do estranhamento político supõem o caráter democrático da sociedade e do modo como os valores coletivos que lhe são inerentes atravessam as relações que se entretecem no chão da escola: lugar onde somos levados para aprender a interpretar o mundo e, interpretando-o, transformá-lo; lugar em que o domínio da episteme e do método inspira e transforma em práticas de emancipação os saberes historicamente produzidos pela humanidade em um tempo cada vez mais mediado pela comunicação digital. Nesse sentido, uma educação capaz de produzir autonomia política em seus sujeitos passa sempre, e necessariamente, pelo reconhecimento da escola como lugar complexo e de tessituras outras: memórias, identidades, ensaio de uma descrição direta dos sentidos, ditos e interditos, que fazem da aprendizagem um exercício de coletividade.

Em Marx (2008) e Gramsci (1999, 2000) se reconhecem os fundamentos para uma pedagogia aberta à crítica das instituições de ensino, das políticas que tendem a balizar os currículos, os tempos e espaços da aprendizagem e a prática do professor. Além disso, e especialmente, uma pedagogia das (re)existências, ou seja, uma pedagogia que contrarie a redução da educação à aprendizagem, capaz de orientar os professores à tarefa de recriar o cotidiano da escola como espaço plural, democrático, dialógico e estético, promotor dos direitos e dos valores humanos, da solidariedade, da responsabilidade social, da responsabilidade ambiental, da autonomia, da igualdade, da justiça social, dos direitos humanos, da liberdade de expressão, da ética, da convivência harmoniosa e do cultivo da consciência. Descolonizadora, portanto – acolhedora das epistemologias tradicionais e originárias; desmercantilizadora – contrária à lógica do capital que reduz a educação à aprendizagem e retorna os marcos civilizatórios aos modos da produção da mercadoria e do consumo; despatriarcalizadora – capaz não só de contestar, mas de rejeitar comportamentos e discursos machistas, sexistas, misóginos e lgbtfóbicos. Enfim, uma pedagogia da resistência e das (re)existências, avessa à produção e à manutenção das desigualdades, e, por essa razão, aberta à crítica de suas práticas como forma de colocar-se sob suspeita; uma pedagogia capaz de buscar nos próprios sujeitos o conjunto das forças que operam pela superação dos mecanismos sociais, políticos e econômicos de dominação e de exclusão ao mesmo tempo em que recoloca a todos, homens e mulheres, crianças, jovens e adultos, LGBTQIAP+, indígenas, quilombolas e ribeirinhos, do campo e das periferias das pequenas e grandes cidades, no centro do debate e das ações de inclusão fundamentais à promoção da justiça social.

É certo que nem a educação omnilateral de Marx nem a escola unitária de Gramsci foram concretamente realizadas em sua forma idealizada ou completa. Nossa intenção ao resgatar esses conceitos não foi outra senão reforçar o papel da escola como espaço de emancipação dos indivíduos e suas coletividades – nada que seja novo, é verdade, mas que, nem por isso, dado o contexto político que alimenta um discurso conservador, autoritário e reacionário, deixa de ser atual. Que nos diga o prof. Dermeval Saviani, que há pouco mais de três anos publicou o livro Pedagogia Histórico-Crítica, quadragésimo ano: novas aproximações. Quarenta anos depois das primeiras aproximações, Saviani (2019) ainda compreende como ato necessário reforçar a luta pela escola pública, especialmente num tempo marcado pelo “suicídio democrático” (Saviani, 2019, p. 293).

1Para citar algumas das reformas de maior impacto realizadas no campo das políticas educacionais, destacamos a Reforma do Ensino Médio e a implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), ambas em 2017, o lançamento do Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares, em 2019, a reformulação das políticas de alfabetização com a implantação do Programa Nacional de Alfabetização (PNA), em 2019, e a reformulação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (FUNDEB), em 2020.

2Notamos haver um significativo debate sobre a melhor forma de identificar a proposta educativa de Marx. Em Frigotto (2012), destacamos o uso do termo “politecnia”, preservado na tradição socialista como forma de demarcar a visão educativa que incorpora as dimensões do “politecnicismo” e da “tecnologia” em relação ao modelo de educação correspondente à concepção burguesa dominante. Em Manacorda (2007), encontramos o termo “omnilateral” em referência a um modelo de educação que não só concebe a articulação dos saberes politécnicos e tecnológicos como forma de oposição à divisão originária entre trabalho intelectual e trabalho manual, como ressalta a condição de síntese da matéria e da natureza, da criação de ideias teórico-políticas e dos saberes de experiência constituídos no âmbito da convivência popular como possibilidade da manifestação plena e total da pessoa humana. Por essa razão, e para nortear as reflexões propostas neste texto, adotamos o termo “omnilateral”.

3Assumimos o sentido ontológico do trabalho, isto é, enquanto processo de transformação da natureza pelo homem que também se transforma ao imprimir suas capacidades físicas e intelectuais na tentativa de atribuir sentido aos recursos da natureza para a vida humana.

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Recebido: 31 de Março de 2023; Revisado: 05 de Outubro de 2023; Aceito: 09 de Outubro de 2023

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