1 Introdução
No Brasil, em 2017, o Ministério da Educação homologou a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que abrange desde a Educação Infantil até o Ensino Fundamental. No ano seguinte, o documento normativo foi ampliado com orientações para o ensino médio. Versões preliminares desse documento foram apresentadas e debatidas em audiências públicas.1 Por meio desses debates, ajustes foram estabelecidos com o objetivo de garantir que, ao ser implementado em todo o território nacional, a BNCC orientasse as escolas na elaboração de seus currículos, considerando suas particularidades.
É relevante destacar que as críticas foram direcionadas ao processo de elaboração do documento normativo. Algumas dessas críticas enfatizaram “o fato de a pedagogia das competências priorizar a construção de competências em detrimento da transmissão de conteúdos” (Amaral, 2016, p. 47). Houve, por vezes, a preocupação de que essa ênfase excessiva na abordagem por competências pudesse resultar no esvaziamento de conteúdos científicos. De fato, algumas visões sustentaram que isso poderia minar “os fundamentos das ciências que permitem aos jovens entender e dominar como funciona o mundo das coisas e da sociedade humana” (Frigotto; Motta, 2017, p. 369).
As críticas levantaram preocupações, porém não impediram a implantação do documento normativo em 2018. Esse processo orientou a implementação dos referenciais curriculares alinhados à BNCC nas Secretarias Estaduais e Distrital de Educação, bem como nas Secretarias Municipais de Educação.
Foi criado o Programa de Apoio à implementação da Base Nacional Comum Curricular (ProBNCC),2 em regime de colaboração com entidades representativas do setor educacional indicadas pelo Conselho Nacional de Secretários de Educação (CONSED) e pela União Nacional de Dirigentes Municipais de Educação (Undime). Foi formado o Comitê Nacional de Implementação da BNCC, com o apoio da sociedade civil (por meio de organizações) e das representações institucionais dos conselhos nacionais, estaduais e municipais (Conselho Nacional de Educação [CNE], Fórum Nacional dos Conselhos Estaduais de Educação [FNCE] e União Nacional dos Conselhos Municipais de Educação [UNCME]) (Brasil, 2019b).
Foram estabelecidos critérios para as equipes responsáveis pela construção dos currículos. Entre esses critérios, destacam-se os seguintes: a) as habilidades poderiam sofrer acréscimos, mas não poderiam ser suprimidas; b) é possível a inclusão de novas habilidades, desde que estejam de acordo com as sugestões resultantes das consultas públicas. Nesse contexto, recomendou-se assegurar determinados pontos, como: garantir a progressão das aprendizagens ao longo dos anos escolares, concentrando-se nas competências esperadas ao longo de cada ciclo; e assegurar a coerência e promover uma transição gradual entre as diferentes etapas, adotando uma abordagem interdisciplinar.
A abordagem interdisciplinar “possibilitada da integração curricular gera compreensão de temas e ideias que perpassam as disciplinas e também as conexões entre diferentes disciplinas e sua relação com o mundo real” (Unesco, 2016, p. 10). Por outro lado, na perspectiva disciplinar, surge a necessidade de definir o objeto de estudo, enquanto a abordagem interdisciplinar revela a identidade do objeto de investigação, que se torna mais complexo na intersecção de áreas afins.
Nesse contexto, Japiassú nos relata que, já na década de 1960, em solo francês, Gusdorf argumentou que é “inegável que a visão unidisciplinar fragmenta necessariamente o objeto e é levada a reduzi-lo à sua escala própria. É por isso que devemos conceber a démarche interdisciplinar, antes de tudo, como o esforço de reconstituição da unidade do objeto que a fragmentação dos métodos inevitavelmente pulveriza” (Japiassú, 1976, p. 67).
Dessa forma, torna-se essencial buscar diálogos interdisciplinares a partir da BNCC e seus componentes curriculares. No âmbito deste artigo, o foco é direcionado para o Ensino Fundamental – anos finais, especificamente para os componentes curriculares de Geografia e Ensino Religioso. O objetivo é identificar as habilidades que possibilitam o reconhecimento das interseções performadas em estéticas, monumentos e arquiteturas que marcam a presença do aspecto religioso na paisagem urbana.
2 A BNCC e os componentes curriculares de Geografia e de Ensino Religioso
No Ensino Fundamental, os componentes curriculares estão organizados em áreas de conhecimento como: Linguagens, Matemática, Ciências da Natureza, Ciências Humanas e Ensino Religioso.3
A área de Ciências Humanas abrange os componentes de Geografia e História, englobando um conjunto de competências específicas com o intuito de “cultivar a formação de alunos intelectualmente autônomos, com capacidade de articular categorias de pensamento histórico e geográfico em face de seu próprio tempo, percebendo as experiências humanas e refletindo sobre elas” (Brasil, 2017, p. 354).
Cabe ressaltar que as Ciências Humanas têm como finalidade compreender as identidades, tanto para os indivíduos quanto as coletivas, reconhecendo as diversidades e pluralidades sociais como fundamentais para a promoção da justiça social. Isso implica considerar vários contextos espaciais, temporais e movimentos sociais. Além disso, é vital valorizar a ação humana e as relações possíveis, especialmente aquelas que geram conhecimentos e saberes, como resultado de diferentes contextos geográficos e situações históricas (Brasil, 2017, p. 353).
Quando se trata da Geografia, em particular, destaca-se o raciocínio geográfico e suas interpretações: analogia, localização, conexão, diferenciação, distribuição, extensão e estruturação do espaço. (BRASIL, 2017, p. 312). Reconhecendo o potencial significativo que oferece à Educação Básica, o componente curricular de Geografia se propões a: “desenvolver o pensamento espacial, estimulando o raciocínio geográfico para representar e interpretar o mundo em permanente transformação e relacionando componentes da sociedade e da natureza” (Brasil, 2017, p. 312).
Conceitos reconhecidos na Geografia evoluem para categorias interpretativas fundamentais, como espaço, território, lugar, região, natureza e paisagem, que, por sua vez, são estruturadas em cinco unidades temáticas: o sujeito e seu lugar no mundo; conexões e escalas; mundo do trabalho; formas de representação e pensamento espacial; e, por fim, natureza, ambiente e qualidade de vida. Apostando na aprendizagem por investigação, a situação geográfica se revela como fonte primordial para o desenvolvimento de problematizações de cunho geográfico. E nessa proposição, podemos conjecturar que um espaço se abra para criação de diálogos interdisciplinares com outros componentes curriculares. É nesse contexto que desejamos apresentar a proposta de estabelecer interfaces com o Ensino Religioso.
Quanto ao Ensino Religioso, trata-se de um elemento dual, sendo reconhecido tanto como área de conhecimento quanto componente curricular. Sua finalidade é a construção:
por meio do estudo de conhecimentos religiosos e das filosofias de vida, atitudes de reconhecimento e respeito às alteridades. Trata-se de um espaço de aprendizagens, experiências pedagógicas, intercâmbios e diálogos permanentes, que visam o acolhimento das identidades culturais, religiosas ou não, na perspectiva da interculturalidade, direitos humanos e cultura da paz. Tais finalidades se articulam aos elementos da formação integral dos estudantes, na medida em que fomentam a aprendizagem da convivência democrática e cidadã, princípio básico à vida em sociedade
(BNCC, 2017, p. 437).
As competências específicas do Ensino Religioso, abordadas sob uma perspectiva não confessional, conforme orientação da BNCC, estão em sintonia com o respeito à diversidade cultural e religiosa do país. Além disso, também se alinham com a abordagem do posicionamento em relação a discursos e práticas de intolerância, discriminação e violência, especialmente quando relacionados a aspectos religiosos. Isso é crucial porque o Ensino Religioso, em conformidade com a legislação em vigor, deve assegurar “o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo” (Brasil, 1997).
Os conhecimentos religiosos, objeto de estudo no Ensino Religioso, são apresentados em unidades temáticas que versam sobre identidades e alteridades; manifestações culturais e religiosas; crenças religiosas e filosofias de vida. Assinala-se que essas unidades temáticas e, por consequência, as habilidades a elas associadas, devem estar embasadas nos princípios das Ciências da Religião, fundamentando-se nos aportes teóricos da interculturalidade e da ética da alteridade, com o propósito de fomentar uma postura aberta ao diálogo, ou seja, uma atitude dialogal.
Para favorecer a formação da atitude dialogal, são propósitos do Ensino Religioso:
a) Proporcionar a aprendizagem dos conhecimentos religiosos, culturais e estéticos, a partir das manifestações religiosas percebidas na realidade dos educandos; b) Propiciar conhecimentos sobre o direito à liberdade de consciência e de crença, no constante propósito de promoção dos direitos humanos; c) Desenvolver competências e habilidades que contribuam para o diálogo entre perspectivas religiosas e seculares de vida, exercitando o respeito à liberdade de concepções e o pluralismo de ideias, de acordo com a Constituição Federal; d) Contribuir para que os educandos construam seus sentidos pessoais de vida a partir de valores, princípios éticos e da cidadania
(BNCC, 2017, p. 436).
Esses objetivos estão interligados com as competências gerais e específicas, com grande potencial ao diálogo interdisciplinar. Dentro dessa lógica, examinaremos as habilidades dos componentes curriculares de Geografia e Ensino Religioso no Ensino Fundamental, especialmente nos anos finais sob a ótica das interseções performadas em estéticas, monumentos e arquiteturas que marcam a influência do aspecto religioso na paisagem urbana, o que nos possibilitará indicar abordagens metodológicas para estabelecer conexões entre o religioso e o urbano.
No contexto do raciocínio geográfico e do conhecimento religioso, e ao observar as habilidades pertinentes aos anos finais do ensino fundamental, é notável destacar, por exemplo, as seguintes habilidades propostas no 6° ano, em Geografia: “(EF06GE01) Comparar modificações das paisagens nos lugares de vivência e os usos desses lugares em diferentes tempos; (EF06GE02) Analisar modificações de paisagens por diferentes tipos de sociedade, com destaque para os povos originários” (BNCC, 2017, p. 337) Tais aspectos criam conexões com as seguintes habilidades do 6°ano do Ensino Religioso: “(EF06ER03) Reconhecer, em textos escritos, ensinamentos relacionados a modos de ser e viver; (EF06ER06) Reconhecer a importância dos mitos, ritos, símbolos e textos na estruturação das diferentes crenças, tradições e movimentos religiosos” (BNCC, 2017, p. 451).
Já no 7° ano, a Geografia apresenta como habilidades: “(EF07GE03) Selecionar argumentos que reconheçam as territorialidades indígenas, de remanescentes de quilombolas, de povos das florestas e do cerrado, de ribeirinhos e caiçaras, entre outros grupos sociais do campo e da cidade, como direitos legais dessas comunidades; (EF07GE04) Analisar a distribuição territorial da população brasileira, considerando a diversidade étnico-cultural (indígena, africana, europeia e asiática), assim como aspectos de renda, gênero e idade nas regiões brasileiras; (EF07GE09) Interpretar e elaborar mapas temáticos e históricos com informações demográficas e econômicas do Brasil (cartogramas), identificando padrões espaciais, regionalizações e analogias espaciais; (EF07GE10) Elaborar e interpretar gráficos de barras, gráficos de setores e histogramas, com base em dados socioeconômicos das regiões brasileiras.” (Brasil, 2017, p. 339). O componente curricular de Ensino Religioso traz: “(EF07ER06) Identificar princípios éticos em diferentes tradições religiosas e filosofias de vida, discutindo como podem influenciar condutas pessoais e práticas sociais” (Brasil, 2017, p. 453).
Quando chegamos ao 8° ano, em Geografia, identifica-se: “(EF08GE02) Relacionar fatos e situações representativas da história das famílias do Município em que se localiza a escola, considerando a diversidade e os fluxos migratórios da população mundial; (EF08GE07) Relacionar diferenças de paisagens aos modos de viver de diferentes povos na Europa, Ásia e Oceania, valorizando identidades e interculturalidades regionais; (EF08GE09) Identificar diferentes manifestações culturais de minorias étnicas, como forma de compreender a multiplicidade cultural na escala mundial, defendendo o princípio do respeito às diferenças; (EF08GE14) Elaborar e interpretar gráficos de barras e de setores, além de mapas esquemáticos (croquis) e anamorfoses geográficas, para analisar, sintetizar e apresentar dados e informações sobre diversidade, diferenças e desigualdades sociopolíticas mundiais” (Brasil, 2017, p. 341). Para o Ensino Religioso, consolida-se: “(EF08ER04) Discutir como filosofias de vida, tradições e instituições religiosas podem influenciar diferentes campos da esfera pública (política, saúde, educação, economia); (EF08ER05) Debater sobre as possibilidades e os limites da interferência das tradições religiosas na esfera pública; (EF08ER06) Analisar práticas, projetos e políticas públicas que contribuem para a promoção da liberdade de pensamento, crenças e convicções” (Brasil, 2017, p. 455).
Ao chegar ao final do Ensino Fundamental, no 9° ano, no componente curricular de Geografia, salienta-se: “(EF09GE05) Analisar a atuação das organizações mundiais nos processos de integração cultural e econômica, nos contextos americano e africano, reconhecendo, em seus lugares de vivência, marcas desses processos” (Brasil, 2017, p. 343). E no Ensino Religioso, especifica-se: “(EF09ER01) Analisar princípios e orientações para o cuidado da vida e nas diversas tradições religiosas e filosofias de vida; (EF09ER03) Identificar sentidos do viver e do morrer em diferentes tradições religiosas através do estudo de mitos fundantes” (Brasil, 2017, p. 457).
Ao examinar as habilidades, foi possível destacar habilidades com afinidades temáticas e potencialidades metodológicas, enfocando as interseções entre o aspecto religioso e o urbano. Essa abordagem oferece perspectivas para uma colaboração interdisciplinar entre Geografia e Ensino Religioso.
3 O religioso e o urbano: abordagem interdisciplinar entre Geografia e Ensino Religioso
Os objetos de estudo ganham maior amplitude quando são envolvidos numa abordagem interdisciplinar, que envolve colaboração entre áreas relacionadas. Sob essa perspectiva, uma observação de diferentes ângulos em relação a um mesmo ponto pode levar à produção de saberes. No contexto da atuação docente em sala de aula, essa interconexão de saberes possibilita a interpretação de um mundo em constante e rápida transformação, o que não pode ser compreendido adequadamente a partir de uma abordagem isolada.
Geógrafos especializados em conhecimentos religiosos afirmam que os espaços podem ser performados em estéticas, monumentos, arquiteturas que marcam a presença do religioso na paisagem urbana, ou seja, “o lugar sacralizado se insere singularmente no espaço” (Rosendahl, 1997, p. 86). Além disso, em cada espaço religioso existem formas simbólicas que o distinguem dos lugares não sacralizados e até mesmo de outros espaços sagrados, devido às especificidades culturais que compõe essa realidade e definem territórios.
A territorialidade está fortemente impregnada de um caráter cultural. Para Bonnemaison: “a ideia de cultura, traduzida em termos de espaço, não pode ser separada da ideia de território. É pela existência de uma cultura que se cria um território e é por ele que se fortalece e se exprime a relação simbólica existente entre cultura e o espaço” (Bonnemaison, 2002, p. 102).
Cultura, espaço, território e tempo, tempo histórico, precisamente, indicam uma relação construída no espaço social e geográfico. “[Entre] a construção social, a função simbólica e a organização do território de um grupo humano existe uma inter-relação constante e uma espécie de lei da simetria. A paisagem é um primeiro reflexo visual disso” (Bonnemaison, 2002, p. 106).
Os geógrafos direcionam sua atenção para a forma como os grupos sociais moldam as paisagens, ao mesmo tempo em que essas paisagens são atraentes para fortalecer a identidade cultural desses grupos (Rosendahl, 2018, p. 392). Nas palavras dessa pesquisadora, é importante acrescentar que:
a paisagem, de fato, é uma maneira de ver, uma maneira de compor e harmonizar o mundo externo em cena, indicando uma relação entre os seres humanos e seu ambiente. A compreensão das expressões impressas por uma cultura em sua paisagem é necessária ao decodificar a linguagem simbólica e os seus significados. [...] ao afirmar que todas as paisagens são simbólicas, por menos aparentes que possam ser
(Rosendahl, 2018, p. 393-394).
A paisagem em si é uma marca. Pode-se inferir que as marcas culturais refletem os comportamentos de grupos sociais específicos e, portanto, servem como meio e condição de reprodução da cultura na paisagem (Rosendahl, 2018). Essas marcas, materializadas em elementos simbólicos, expressam a maneira de ser e de viver de um povo. Entre os componentes fundamentais da cultura de um povo encontra-se a religião, e é nesse contexto que surgem as marcas religiosas na paisagem urbana.
Essas marcas podem incluir templos, igrejas, mesquitas, santuários, altares, estátuas religiosas, cruzes, minaretes, monumentos e outros tipos de construções ou artefatos que estão associados a práticas religiosas. Além das estruturas físicas, as marcas religiosas também foram expressas por eventos, celebrações, rituais e tradições que ocorrem em um espaço específico e que tem um significado religioso. Em síntese, pode-se afirmar que as marcas religiosas na paisagem urbana são os vestígios visíveis da presença e da influência das tradições religiosas em um ambiente cultural e geográfico.
Realizar um mapeamento nas proximidades da escola ou no bairro onde o espaço escolar está localizado é uma alternativa viável para identificar e reconhecer os diferentes espaços e monumentos presentes, inclusive os de natureza religiosa.
A Geografia e o Ensino Religioso podem juntos compreender “a força da religião modificando a paisagem, interferindo nas ações humanas e, portanto, na própria organização espacial das sociedades. Existe, é claro, um simbolismo destes lugares considerados sagrados e ainda práticas espaciais ligadas aos mesmos” (Campos, 2007, p. 111).
Um exemplo prático de aplicação pedagógica no ambiente escolar pode ser desenvolvido por meio de uma sequência didática que parte da observação da realidade do educando durante o trajeto de casa para a escola e vice-versa. A espacialização dessa experiência pode ser expressa de forma lúdica por meio de desenhos, os quais representariam as marcas visíveis no espaço urbano a partir da perspectiva do educando. As produções acadêmicas resultantes serão incorporadas ao portfólio de percepções geográficas, com ênfase nas marcas religiosas na área ao redor da residência e nas imediações da escola, contribuindo para a sensação de pertencimento e construção da identidade do educando. Seria oportuno apresentar aos educandos imagens da localidade em diferentes momentos históricos, permitindo uma comparação cronológica que os auxiliará a compreender as mudanças na paisagem urbana ao longo do tempo.
É importante destacar algumas particularidades do Ensino Religioso, especialmente relacionados ao simbolismo e à linguagem simbólica. Wolfgang Gruen, uma autoridade nesse campo, foi o pioneiro no Brasil a estabelecer a diferenciação do espaço de atuação do Ensino Religioso e da Catequese. “O primeiro com o objeto da religiosidade, enquanto categoria antropológica que nos leva à busca de sentidos para viver, e o segundo, a catequese, evidentemente confessional, como educação da fé” (Baptista; Siqueira, 2020, p. 56).
Religiosidade como objeto é um conceito concebido por Gruen como abertura dinâmica:
ao sentido fundamental da sua existência, seja qual for o modo como é percebido esse sentido. Não se trata apenas de uma atitude entre muitas: quando presente, a religiosidade está à raiz de todas as dimensões da pessoa, melhor, está à raiz da vida humana na sua totalidade
(Gruen, 1994, p. 75).
E, posteriormente, o autor acrescenta que essa “disponibilidade dinâmica da pessoa ao sentido fundamental de sua existência, encarado como compromisso” (Gruen, 2004, p. 414). A existência ganha significado na interação com os outros, pressupondo a abertura à diversidade e a predisposição para o diálogo, ou seja, atitude dialogal. Vale sublinhar que, segundo a perspectiva antropológica de Gruen, o Ensino Religioso parte da experiência do educando e de sua busca pelo sentido. Essa abordagem, articulada a outros conteúdos, visa integrar de maneira coesa o currículo escolar (Siqueira, 2022).
Considerando que Gruen deteve-se em escrever sobre vários temas concernentes ao Ensino Religioso, inclusive sobre símbolos, o estudioso chegou a defini-lo:
o símbolo escapa à definição exata. Faz parte de seu ser não deixar-se reduzir a um quadro fixo, uma vez que une os extremos – o incomponível, concretude e abstração, servindo à finalidade de aludir, com sinal perceptível aos sentidos, a algo que não é perceptível aos sentidos. Essa ligação integra seu sentido etimológico original, que vem do grego symbállein, ou seja, lançar junto, compor, reunir num lugar significativo
(Gruen, 2013, p. 198.)
“Lugar” e “símbolos” são temas intrinsecamente ligados à unidade temática “Identidades e Alteridades”, e ambos são parte integrante da cultura de um povo ou grupo, coerente com o todo cultural. Sob tal contexto, é importante ter cautela ao abordá-los em sala de aula, como nos alerta Gruen:
a) o símbolo, por sua natureza, aponta para além de si. Por isso, não vamos parar em seu nível superficial, visível; b) não banalizar o símbolo: respeitar o mistério que ele aponta; c) não absolutizar o símbolo; d) a não ser que sejam claramente inaceitáveis, porque ofensivos, desrespeitosos, encarar com respeito os símbolos de outras culturas; d) não considerá-los inferiores aos da nossa; e) não invadir o universo simbólico diferente do nosso: o símbolo é elemento de um todo cultural; podar um elemento pode prejudicar o todo; f) não impor símbolos: seria ato de violência. Aliás, o tecido social criará rejeição a essa violência, a não ser que, por razões diversas, nem todas saudáveis, o povo passe a sentir tal símbolo como seu; g) igualmente, rejeitamos a imposição autoritária de determinado significado de um símbolo já presente naquela sociedade
(Gruen, 2013, p. 201)
Refletindo sobre o alerta de Gruen e estendendo a discussão para a prática docente no ensino fundamental, é notável a importância de que a interação fomentada por meio do diálogo em sala de aula deve ser intermediada pela linguagem de fora, fornecida pelos diferentes jogos linguísticos. Gruen salienta:
Gruen destaca as categorias de Baudler para distinguir entre linguagem de “dentro”, quando se trata da linguagem interna do grupo, e linguagem de “fora”, quando se trata da linguagem externa ao grupo, como é a do ensino religioso. Essa linguagem é franca, transparente, que leva ao questionamento, que busca interação, diálogo com todos, abertura ao sempre mais, sem fechar-se no seu grupo religioso, mas também sem traí-lo. A linguagem da religiosidade é uma linguagem adequada ao ambiente escolar, no qual interagem áreas de conhecimento que mantêm um vocabulário próprio, e se inter-relacionam em conteúdos, aspectos metodológicos, incluindo recursos materiais, atividades, procedimentos didáticos e processos avaliativos. Uma linguagem rica, que abra espaço para a experiência, que estimule a reflexão sobre a religiosidade e o fenômeno religioso, que favoreça a formação de juízos sinceros diante da veracidade dos fatos; e que possibilite a concepção e vivência dos valores universais
(Siqueira; Baptista; Silva, 2018, p. 662).
A linguagem de fora expande-se mais no âmbito do diálogo interdisciplinar. Ao considerar as interseções entre o aspecto religioso e o contexto urbano, incluindo as performances e marcas religiosas na paisagem urbana, uma abordagem interdisciplinar surge como uma chave pedagógica. A linguagem de fora, nesse contexto, atua como o elo vital entre os componentes curriculares de Geografia e Ensino Religioso.
4 Conclusão
A Geografia e o Ensino Religioso possuem linguagens próprias e maneiras específicas de expressar e compreender o mundo, as quais revelam e interpretam o contexto espaço-tempo. Isso se torna particularmente relevante quando esses componentes curriculares podem ser entrelaçados para relacionar saberes em torno das manifestações e marcas religiosas na paisagem urbana, possibilitando, assim, mediações e a construção de diálogos.
As habilidades apresentadas nos componentes curriculares de Geografia e Ensino Religioso apontam para o fato de que as paisagens urbanas são objetos de estudo e podem revelar as mudanças no tempo, destacando também as formas de existência e pertencimento de grupos sociais.
Existem geógrafos que se dedicam a estudos relacionados à religião e que destacam as marcas culturais como performances, indo além ao considerá-las também representações da presença cultural materializada na paisagem urbana, resultando em uma paisagem religiosa. As mudanças ocorridas na paisagem revelam que as transformações ao longo do tempo delineiam os progressos humanos, sendo intrínsecas às categorias geográficas fundamentais: espaço, tempo e lugar, ou seja:
compreender o lugar em que vive permite ao sujeito conhecer a sua história e conseguir entender as coisas que ali acontecem. Nenhum lugar é neutro, pelo contrário, é repleto de história e com pessoas historicamente situadas num tempo e num espaço que podem ser o recorte de um espaço maior
(Callai, 2009, p. 84-85).
A Geografia exalta a singularidade dos lugares, assim como os seres humanos o fazem. Por outro lado, o Ensino Religioso não confessional, adotando uma abordagem antropológica, se abre para a essência profunda de sua própria existência e, ao fazê-lo, reinterpreta esse significado no contexto do espaço e do tempo. Nesse processo, atribui importância à criação estética, aos monumentos e às estruturas arquitetônicas que assinalam a presença do aspecto religioso na paisagem urbana.
Gruen nos instrui que a linguagem de fora é inclusiva e apropriada para um ambiente escolar diverso e plural. Nesse sentido, foi viável identificar habilidades da Base Nacional Comum Curricular nos componentes curriculares de Geografia e Ensino Religioso, do ensino fundamental nos anos finais, que possibilitam uma abordagem interdisciplinar.
Este artigo não tem pretensão de esgotar o assunto, pelo contrário, ele nos apresenta desafios que se impõem ao futuro. É necessário ler com mais atenção tanto os autores consagrados quanto aqueles a serem descobertos, a fim de se adquirir o embasamento teórico necessário para fundamentar as abordagens pedagógicas e metodológicas para serem empregadas na sala de aula, buscando uma formação integral e superando a fragmentação do conteúdo. Esse é o caminho em direção a novas construções e relações com o espaço, especialmente nas interseções entre o religioso e o urbano.