SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.33 número66Cartografías culturales de la pandemia: un análisis de las representaciones y prácticas espaciales de estudiantes de IFPR – União da VitóriaSe deus me chamar não vou : una mirada a las emociones de la infancia y la adolescencia índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Educação: Teoria e Prática

versión impresa ISSN 1993-2010versión On-line ISSN 1981-8106

Educ. Teoria Prática vol.33 no.66 Rio Claro  2023  Epub 07-Ago-2024

https://doi.org/10.18675/1981-8106.v33.n.66.s17253 

Dossiê

Escrita, leitura e experimentação nos Ciclos de Oficinas

Writing, reading and experimentation in Workshop Cycles

Escritura, lectura y experimentación en los Ciclos de Talleres

Rafael Caetano do Nascimento1 
http://orcid.org/0000-0002-2248-9092

Felipe Ferreira Joaquim2 
http://orcid.org/0000-0002-7246-7692

1Universidade Estadual de Campinas, Campinas, São Paulo – Brasil. E-mail:racanascimento@gmail.com.

2Secretaria da Educação de Espírito Santo, Linhares, Espírito Santo – Brasil. E-mail: fjfelipe1982@gmail.com.


Resumo

O texto a seguir apresenta o Ciclo de Oficinas, que foi, durante o período crítico da pandemia de Covid-19, uma iniciativa extensionista desenvolvida pela Universidade Federal do Tocantins (UFT) e coordenada pelos autores, então professores substitutos da citada instituição. O Ciclo de Oficinas caracteriza-se como uma proposta de experimentação pela leitura e pela escrita, por meio de encontros virtuais em tempo real em que os participantes são convidados a produzir escritas e a compartilhá-las, tendo como dispositivos objetos diversos de linguagens variadas. Enquanto estratégia de composição textual, e considerando a cartografia e a pesquisa-experimentação horizontes teórico-metodológicos, optamos por descrever o nosso itinerário formativo ressaltando a opção pela oficina como formato conveniente para práticas educativas de cunho experimental e o modo como as práticas de leitura e escrita contribuíram para a construção dessa jornada até se tornarem o objetivo fundamental de nosso interesse como educadores e pesquisadores. Finalizamos com uma cartografia das oito edições do Ciclo de Oficinas realizadas pela UFT, traçando alguns elementos reflexivos, em consonância com as falas e as escritas registradas pelos participantes, que argumentam em favor da experimentação como mote educativo, tendo a leitura e a escrita como práticas inventivas de si, do outro e de mundos.

Palavras-chave Práticas Culturais; Partilha do Sensível; Educação e Pandemia; Formação do Educador; Cartografia

Abstract

The following text presents the Workshop Cycles that was, during the critical period of the Covid-19 pandemic, an extension initiative developed by the Universidade Federal de Tocantins (UFT) and coordinated by the authors, substitute professors of the aforementioned instituion. The workshop Cycle is characterized as a proposal for experimentation through reading and writing, with virtual meetings in real time where participants are invited to produce writings to be shared, using several objects of different languages/natures as triggers/devices to the writing process. As a textual composition strategy, and considering cartography and research-experimentation as theoretical-methodological horizons, we chose to describe our formative itinerary, highlighting the option for the workshop as a convenient format for educational practices of an experimental nature, and the way in wich reading and writing practices contributed to the construction of this journey, until they became the object fundamental to our interest as educators and researchers. We conclude with a cartography of the eight editions of the Workshop Cycle held by UFT, tracing some reflective elements, in line with the speeches and writings recorded by the participants, who argue in favor of experimentation as an educational motto, using reading and writing as inventive practices of the self, the other and worlds.

Keywords Cultural Practices; Sharing of the Feeling; Education and Pandemic; Teacher Trainning; Cartography

Resumen

El texto que se sigue presenta el Ciclo de Talleres que ha sido, durante el período crítico de la pandemia de la Covid-19, una iniciativa de extensión desarrollada por la Universidade Federal de Tocantins (UFT) y coordinada por los autores, entonces profesores suplentes de la referida institución. El Ciclo de Talleres se caracteriza como una propuesta de experimentación a través de la lectura y la escritura, de encuentros virtuales en tiempo real donde se invita a los participantes a producir escritos y compartirlos, utilizando como dispositivos diferentes objetos de lenguajes variadas. Como estrategia de composición textual, y considerando la cartografía y la investigación-experimentación horizontes teórico-metodológicos, optamos por describir nuestro itinerario formativo, destacando la opción por el taller como formato conveniente para las prácticas educativas de carácter experimental y la forma en que las prácticas de lectura y escritura contribuyeron a la construcción de esta jornada hasta que se convirtieran en el objetivo fundamental de nuestro interés como educadores e investigadores. Finalizamos con una cartografía de las ocho ediciones del Ciclo de Talleres realizadas por la UFT, esbozando algunos elementos reflexivos, en consonancia con los discursos y escritos registrados por los participantes, quienes argumentan a favor de la experimentación como lema educativo, teniendo la lectura y la escritura como prácticas inventivas del sí, del otro y de los mundos.

Palabras clave Prácticas Culturales; Reparto del Sensible; Educación y Pandemia; Formación del Educador; Cartografía

1 Apresentação

Suspender o céu é ampliar o nosso horizonte; não o horizonte prospectivo, mas um existencial. É enriquecer as nossas subjetividades, que é a matéria que este tempo que nós vivemos quer consumir

(Ailton Krenak, 2019, p. 32-33).

Ailton Krenak (2019), que tanto nos ensina a respeito de saberes ancestrais e das florestas, em seus escritos lança luz à importância de fazermos vivas poéticas sobre a existência. São palavras de Ailton, palavras de vida; nutrem possibilidades em um tenso momento histórico mundial que foi marcado recentemente pela pandemia de Covid-19 e, em nível nacional, pela gestão irresponsável das políticas públicas por parte do governo Bolsonaro, em especial as de cunho sanitário, que contrariaram preceitos científicos básicos, expondo a população indevidamente ao risco de saúde ao promover a desinformação, semeando a discórdia e o confronto entre diversos setores da sociedade. Logo, por nos entendermos adeptos de uma educação progressista que visa à formação integral das pessoas e que busca ser mais, escolhemos ficar com Krenak e a potência da vida, e não com a morte nem com a necropolítica. Esses dizeres chamam também à abertura dos caminhos para aquilo que move a escrita deste texto: apresentar o Ciclo de Oficinas, uma ação extensionista que realizamos pela Universidade Federal do Tocantins (UFT) enquanto professores substitutos no curso de Pedagogia do campus de Tocantinópolis entre os anos de 2019 e 2021 e que contou com oito edições, nas quais distinguem-se as palavras encontro, acontecimento e experiência como propulsoras das forças que movimentam processos criativos com a escrita.

Escrever para apresentar oficinas que têm se constituído ao longo do tempo como uma prática educativa e de investigação, nos coloca a pensar nossas próprias trajetórias formativas pelos campos da Educação. Revisitar escritas e fotografias – currículos – de experiências anteriores é um modo de olhar-nos outro e entrever o que viemos construindo e inventando – também conosco mesmos – nas práticas que propomos enquanto educadores e pesquisadores. Um trabalho com a memória, mas não para restabelecer uma cronologia linear e exata dos fatos que nos trouxeram até aqui. É, antes, um encontrar com marcas que atravessam os corpos e nos colocam a experimentar criações com linguagens no atualizar de presenças com o mundo; incômodos e estranhamentos que provocam movimentos de pesquisa em Educação.

São marcas produzidas pelos encontros no Projeto de Extensão na Educação de Jovens e Adultos (PEJA) e nas experimentações com o grupo de estudos e pesquisa “Laboratório ESCRIARTE – Escritos autobiográficos, Experiências e Formação” (ambos sob coordenação da Professora Dra. Maria Rosa Rodrigues Martins de Camargo, do Departamento de Educação da Universidade Estadual Paulista - Unesp – Rio Claro), que nos instigava a pensar e investigar, por meio de práticas culturais de leitura e escrita, um fazer inventivo com a linguagem na composição de saberes em intensa relação com a produção da própria existência, atentando-se a um metamorfosear constante do ato de ler e/ou escrever, assim como do sujeito que o pratica (Camargo, 2016). Esses encontros aproximaram leituras entre os campos da Filosofia, Linguagem, Arte e Educação e levaram a experimentar o gesto educativo, assim como a pesquisa, enquanto modos de inventar e produzir aprendizagens e sentidos pelo caminho: travessias.

Portanto, pesquisa e(m) educação que se faz(em) pelos acontecimentos, experiências e encontros com a diferença como forma de cruzar fronteiras, de enveredar pelo desconhecido e fissurar sistemas, discursos e poderes. Um seguir por linhas de força a compor modos de ser e estar, entendendo o pensar como potência de criação (Wunder, 2016). Pesquisa e(m) Educação que caminha(m) em inventividades com as linguagens e suas interpenetrações no fiar de um modo de existir com o(s) outro(s): composições éticas, políticas e estéticas do real. Pode-se dizer de um pensar a potencialidade da pesquisa e encontros em Educação menos como a explicação de uma dada realidade preexistente e mais como uma micropolítica inventiva do pensamento que se aventura pela formação humana como uma invenção de mundos (Ribetto; Dias, 2020).

A ação extensionista por nós desenvolvida e que será aqui apresentada foi provocada pela situação pandêmica e política que atravessamos e ocorreu entre os meses de agosto de 2020 e julho de 2021. Num permear-se por conversas com imagens, sons e palavras, pensamos e propomos experimentações para outros modos de fazer/escrever/ler mundos. Assim, perguntamos: o que podem encontros para experimentar a escrita, a leitura e a partilha de saberes num momento como este? Quais fissuras eles podem provocar nos modos de compor-se e inventar-se com o outro? Para tanto, temos como objetivos: (1) apresentar a trajetória formativa dos organizadores das oficinas, a estrutura na qual elas aconteceram e o perfil das pessoas participantes como planos de forças que movimentaram os Ciclos de Oficinas e que permitiram as experimentações, desdobradas em encontros, acontecimentos e experiências, (2) cartografar as práticas de escrita, leitura e experimentação nas oito edições dos Ciclos de Oficinas.

2 Aportes teórico-metodológicos

A metodologia da pesquisa está pautada na cartografia (Oliveira; Paraíso, 2012; Passos; Kastrup; Escóssia, 2020; Passos; Kastrup; Tedesco, 2016; Rolnik, 2007) e na pesquisa-experimentação (Wunder; Marques; Amorin, 2016).

A prática cartográfica pode ser compreendida como um método de pesquisa-intervenção que se faz no acompanhar de processos de produção da realidade, subjetivação e inventividade (Passos; Barros, 2020). A cartografia enquanto prática de produção do conhecimento compreende que não há mundo e sujeito preestabelecidos ao ato de conhecer, sendo ambos uma coemergência agenciada em um plano de experiência. Conhecer a realidade é estar presente em seu processo de produção, portanto propor momentos de criação coletiva é poder provocar esses processos.

Passos e Eirado (2020) apontam que o cartografar gera, ao mesmo tempo em que acompanha, um plano genético – plano da experiência, dos encontros, das linhas de força, dos afetos, de relações e invenções com (Passos; Barros, 2020) – do qual composições de si e de mundo coemergem. Enquanto método, ela indica e segue para um mergulho nesse plano genético e, consequentemente, quem cartografa não permanece alheio a esse mergulho: antes, lança-se junto e torna-se corresponsável pelos mundos em criação. Sem esse mergulho no plano da experiência a pesquisa não é capaz de produzir aquilo que se pode chamar de dados e, da mesma forma, sem o processo de experimentação não haverá plano de experiência a ser mergulhado.

Com essa compreensão abre-se um caminho de pesquisa que não é o da descoberta de uma verdade preexistente aos encontros e afetos que atravessam corpos e criam realidades, e sim o da pesquisa como ato de criação e problematização do real social, de experimentação com o pensamento no encontro com a diferença (Wunder; Marques; Amorin, 2016). Pode-se dizer de um exercício de composição de linguagem ao se experimentarem as múltiplas intensidades dos encontros, as quais atravessam, invadem e transformam territórios existenciais. São composições acionadas pelas linhas intensivas que se vivificam nos encontros entre o corpo de quem cartografa com corpos que atravessam seus movimentos de pesquisa. Ao tratar dos encontros, corpos e linguagens, a cartografia assume seu caráter micropolítico por estar ali onde se criam e/ou desmancham modos de viver e dizer.

Esta pesquisa parte da realização de oficinas de criação cujas dinâmicas consistem em acionar movimentos de experimentação com as linguagens a partir de certos disparadores – imagens, músicas, poesias e vídeos. A experimentação proposta para esses ciclos se aproxima da ideia de um experimentar “[...] transversado pela pulsão poética das palavras e das imagens e também pelas experiências de vida – encantamentos, desejos, resistências, silêncios, tensões – forças que cada participante traz” (Wunder; Marques; Amorin, 2016, p. 111). As oficinas se propõem a ser um espaço de encontro com o outro para a partilha de processos criativos, de leituras e conversas com a produção coletiva; partilha de saberes, experiências e sentidos.

Na pesquisa-experimentação, a pesquisa não desvela uma verdade anterior aos encontros, mas pelo encontro faz emergir modos de dizer, modos de viver e experimentar com as forças da vida, invenções com as linguagens. Pesquisar, aqui, trata-se mais de criar verdades intensivas e múltiplas: movimentos de experimentação do pensamento em diapasão com a diferença (Wunder; Marques; Amorin, 2016). É justamente o contrário da descoberta de uma verdade a partir de uma natureza preexistente aos encontros. Assim, faz-se necessário reconhecer a pesquisa como ato de criação, que não representa o mundo nem exprime verdades ou afirma opiniões, mas que rasga a língua e o pensamento para expor novos problemas e, com as potências das artes, fazer vazar forças indizíveis, invisíveis e imprevisíveis.

Uma pesquisa cartográfica desloca, portanto, o entendimento do procedimento analítico como sendo uma etapa final a ser realizada após uma coleta de dados e o insere em todo o processo da pesquisa (Barros; Barros, 2016). O seu fazer torna-se, então, apresentar um certo plano genético e seus efeitos, assim como tornar visível o plano de forças. Nesse sentido, Barros e Barros (2016) afirmam que a análise na pesquisa cartográfica é “um procedimento de multiplicação de sentidos e inaugurador de novos problemas” (p. 178) e que “O método analítico consiste, então, em dar visibilidade às relações que constituem uma dada realidade, na qual o pesquisador se encontra enredado” (p. 179). A análise na prática cartográfica trata-se de ampliar possibilidades enunciativas, aumentar a capacidade comunicativa dos sujeitos e dar a ver linhas de composição que estão em movimento durante os encontros. Dar a ver o que emerge.

A análise se aproxima, assim, mais de um modo de fazer emergir realidades que não estavam dadas à espera de uma observação: processos em que se encontram modos de produção de subjetividade, de experimentação/construção, e não mais interpretação da realidade (Barros; Barros, 2016). Pelo fato de ser a análise uma propulsora dessas emergências, as pessoas presentes na produção dessa realidade são também analistas desse processo. Barros e Barros (2016, p. 194) dizem que “não é possível analisar um mundo sem que essa análise envolva também quem o analisa: a análise supõe a participação da multiplicidade que se encontra articulada em um contexto e em um problema de pesquisa”.

A prática cartográfica aqui experimentada abrange, portanto, mostrar os planos de emergência que permitem os Ciclos de Oficinas se constituírem como tais. Por isso as trajetórias, a descrição dos ciclos e seu público. São traços do plano genético/plano de forças que permitem que experimentemos práticas de escritas, leituras e experimentação. Ao final, damos a ver enunciados – dizeres – que nos provocam a pensar a respeito dessas práticas que buscamos desenvolver nos Ciclos de Oficinas (seus efeitos). Para onde as práticas seguem e o modo como seguem, já é análise (destino das ações). Analisar é, portanto, experimentar, produzir mundos dentro dos próprios encontros proporcionados pela pesquisa. Assim, selecionar materiais a serem mostrados em diálogo com outras vozes e leituras é já produção de um mundo e, portanto, uma ação analítica na cartografia.

3 Histórico

Compor o histórico da trajetória que nos levou a ser o que somos e que culmina nos pretextos e motivos para produzir o Ciclo de Oficinas é tarefa árdua, porque hão de se eleger fatos em detrimento de outros e fiar-se de reminiscências que, por consequência do tempo, talvez estejam mais vinculadas aos afetos proporcionados pela memória do que à concretude dos acontecimentos passados. E, pior, corre-se também o risco da ingratidão, se não mencionamos as pessoas que atravessaram conosco, seja por instantes ou temporadas, as trilhas e estradas por onde passamos, que nos marcaram e balizaram o próprio itinerário da jornada.

Narrar essa trajetória formativa carrega consigo certa impossibilidade de dizer tudo e, portanto, sempre algo de incerto. Ainda assim, e talvez justamente por esse risco de dizer, vemo-nos impelidos a tal resolução. Desse modo, apresentaremos um arranjo histórico decomposto em momentos, de acordo com a evolução teórica e reflexiva das proposições.

3.1 Momento-oficina

A graduação em Ciências Biológicas na Unesp – Rio Claro foi um trançado importante das trajetórias que vínhamos trilhando como seres que, de alguma forma mais ou menos consciente, carregavam junto da palavra vida alguma dimensão bastante significativa. Percorrer os campos da Educação se apresentou como mais instigante na busca do que podia-se pensar como um estudo da vida ao qual a Biologia nos lançava. O ingresso no Projeto de Educação de Jovens e Adultos (PEJA), projeto institucional de extensão da Unesp, permitiu ampliar horizontes formativos e provocou uma súbita guinada em nossos caminhares devido aos potentes encontros que aconteceram nesse processo. A integração do tripé universitário (ensino, pesquisa e extensão) nessa formação inicial foi essencial para nos impulsionar a um posicionamento crítico diante da academia como local de produção do conhecimento e, também, para nos levar a pensar modos de nos colocar em meio a essa produção.

Semestralmente, o PEJA se reunia, no Centro de Transformação e Vivências (CTV) da cidade de Bauru, com bolsistas e professores coordenadores dos diferentes Câmpus da Unesp vinculados ao programa para o “Curso de Capacitação de Educadores de Jovens e Adultos”. Com duração de três dias e duas noites, imersos em clima fraterno numa propriedade rural com infraestrutura adequada, esses cursos caracterizavam-se como espaços privilegiados para o diálogo e outras práticas formativas, formulação de propostas para a EJA e (por que não?) para a celebração da Educação.

A programação desses eventos consistia, além dos tradicionais abertura e encerramento, em períodos de quatro horas de atividades ministradas pelos diferentes Câmpus em alternância. Cabia à equipe de bolsistas, sob orientação do/da coordenador/a local, a escolha do formato, o planejamento e a execução da proposta pedagógica. No caso do Câmpus da cidade de Rio Claro, a coordenadora local sempre cedeu o espaço, responsavelmente, aos bolsistas. E, ao acompanhar as discussões de planejamento da atividade, instigava metodologias outras de ensino que escapassem da mera transmissão verbal do conhecimento.

Embora haja vários modelos de oficinas que ensinam, em grupo e com enfoque prático, técnicas para a confecção de algo (p. ex., oficinas de pães, de origami etc.), foi nos cursos de formação de educadores do PEJA que esse formato, a partir de determinados estudos e experimentações do grupo, foi se moldando e se apresentando como possibilidade educativa. Em tais oportunidades começamos a vislumbrar que sua potencialidade permitia explorar os temas elegidos em ações que movimentassem, simultaneamente, corpos e pensamentos dos participantes e, por consequência, verificar que a produção e a assimilação de conhecimento poderia ser, sim, dinâmica, provocativa e prazerosa. Desde então, agarramo-nos às oficinas.1

3.2 Momento-experimentação

A continuidade da prática e dos estudos de cunho educativo se deu quando passamos a integrar, após a graduação, o Laboratório ESCRIARTE. Vinculadas à linha de pesquisa Linguagem-Experiência-Memória-Formação do Departamento de Educação da Unesp-Rio Claro, as reuniões do ESCRIARTE eram momentos profícuos para nos embrenhar pelas sendas da linguagem. Navegamos e nos experimentamos por entre leituras diversas: Benjamin (1987), Borges (2009), Calvino (1990), Camus (2004), Certeau (2008), Deleuze (2015), Foucault (1992, 2009, 1999), Larrosa (1994, 2002, 2010), Lispector (1984), Rancière (2015), Rolnik (2007). O contato com essas (e outras) obras nos afetou, pois nos deparamos com os deslimites da linguagem. Era comum ao grupo propor vivências coletivas a partir do estudo dessas obras ou de partes delas. Assim, uma dinâmica atrelada às vivências possíveis a partir das intensidades de uma leitura passou a ser um modo de operar e produzir conhecimento dentro desse mesmo grupo.

O que se seguiu pode ser resumido numa palavra: desbunde. Se a paixão pelo formato de oficina ainda vigorava, imagina então quando você se descobre desimpedido, pelas referências, a testar outras possibilidades, outros modos de fazer? Com provocações aguçadas pelas leituras de A Ordem do Discurso (Foucault, 1996) e Isto não é um cachimbo (Foucault, 2008), partimos em uma primeira aventura pela experimentação com o cinema em sua interface com a educação. Da escuta de uma escola pública na cidade de Rio Claro/SP e de uma posterior bricolagem com os registros produzidos na invenção de sentidos outros para espaços-tempos escolares resultou um material audiovisual2 e ensaístico (Recco et al., 2012) que buscava colocar em questão a linguagem como representação e, ao mesmo tempo, deslocar a escola de uma certa ordem discursiva para a abertura de outras narrativas possíveis.

Após essa experiência, sentimo-nos impelidos a construir propostas de oficinas que mesclassem linguagens, que pusessem os corpos em movimentos e que suplantassem uma certa hierarquia entre oficineiros e participantes. Buscávamos proporcionar um espaço, livre e comum, onde pessoas pudessem se encontrar e se lançar em processos, singulares e plurais, de invenção e partilha de palavras, sons e imagens. Caminhos que permitissem uma experimentação com as linguagens para “dar língua aos afetos que pedem passagem” (Rolnik, 2007, p. 23). Assim, optamos pelas oficinas de experimentação enquanto modo de fazer, nas quais a escrita de si, os processos de subjetivação e alteridade, a cartografia como possibilidade inventiva e investigativa e a formação entendida como experiência foram se tornando o eixo teórico-prático do trabalho vivencial. Desde 2012 essas oficinas acontecem tanto em ambientes acadêmicos como em outros espaços formativos.

Talvez, por ser próprio desse lugar em que a experimentação nos lança, há sempre um grau de abertura para que novas possibilidades sejam gestadas e incorporadas à prática. Nesse sentido, pode-se dizer de um aspecto mutante dessas oficinas, pois nem sempre partiram do mesmo roteiro e referências; muitas vezes, lançou-se a diálogos com outras fontes e pessoas para que a incerteza e uma certa insegurança pudessem gerar movimentos criativos outros pelos encontros.

3.3 Momento-Auetu!

Uma constatação: quando se persegue, quando se inflama a experimentação como mote em oficinas, não há como passar ileso. Quem participa de uma oficina experimental pode gostar ou odiar, pode incomodar-se, pode rejubilar-se... mas é pouquíssimo provável que seja indiferente ao processo.

Essa constatação evidencia-se, principalmente, nos instantes em que dedicamos tempo e espaço para o compartilhar das impressões por meio do diálogo. Geralmente é assim: inicia-se com a experimentação, a atividade de produção em si, e, depois, fala-se sobre ela. Nessas conversas espontâneas, surgem elementos que confirmam a tese. Entretanto, esses momentos também são povoados por silêncios, por palavras não ditas, o que nos motiva ainda mais a investigar sobre o que pode, o quanto alcança, com o que mexem tais oficinas, tais ações educativas.

Conforme desenvolviam-se as oficinas, também crescia a inquietação: o que se passa com a pessoa que atravessa a experimentação? Algo era dito sobre isso, mas um bom tanto ainda estava em silêncio.

Foi então que surgiu a ideia de prolongar o acontecimento: aumentar a carga horária das oficinas, distribuí-la em mais de um encontro, ceder o tempo necessário para a reflexão. Tal resolução trouxe consigo um viés de percurso formativo que, embora presente, escapava ao nosso entendimento quando se tratava de uma oficina cuja realização se restringia a apenas um ou dois dias.

A primeira vez que miramos intencionalmente essa dimensão formativa foi ao submeter a proposta “Oficinas Auetu!” ao I Concurso Cultural Sandra Brás, promovido pela Secretaria Municipal de Cultura de Rio Claro no ano de 2016. Tendo sido contemplada pelo edital, a oficina – ao longo de quatro encontros – utilizou elementos de jogos lúdicos e de jogos teatrais, especialmente aqueles trazidos nas obras de Viola Spolin (2014) e Augusto Boal (1998), para trabalhar e discutir aspectos educativos com estudantes do Ensino Fundamental que participavam de projetos assistivos no contraturno escolar.

Com as “Oficinas Auetu!”, entre outras conclusões, averiguamos que era uma boa ideia construir esse itinerário formativo. E, então, resolvemos testá-lo novamente. Só que esse outro instante seria dedicado às experimentações com a escrita. Ao juntar roteiros de oficinas executadas no passado e ponderar sobre as possíveis sequências de realização, foi que surgiu a “Auetu! Oficina de Experimentação, Leitura e Escrita”, ministrada originalmente como curso de extensão na Unesp-Rio Claro durante o segundo semestre letivo de 2018. Após passagens nos municípios de Alto Paraíso de Goiás-GO e São Paulo-SP, a quarta e quinta edições dessa oficina foram realizadas na Universidade Federal do Tocantins (UFT) – Câmpus Tocantinópolis, onde atuávamos como professores substitutos no curso de Pedagogia. Primeiramente foi oferecida como Atividade Integrante3 no respectivo curso durante o primeiro semestre de 2019 e, no segundo semestre, como curso de extensão. Esse foi realizado entre os meses de outubro e dezembro de 2019 e agregou estudantes dos cursos de graduação do Câmpus, professoras da rede municipal de educação e pessoas da comunidade interessadas na proposta.

Em 2020, diante do contexto pandêmico, foi necessário repensar o modo de dar continuidade a esse trabalho. Entre as mudanças, havia um ponto a ser mantido: a via da experimentação. Com as devidas adaptações ao modo remoto, em agosto de 2020 demos início ao “Ciclo de Oficinas” pela UFT. Sua proposta era, de certa forma, um desdobramento do que vínhamos realizando até então. O nome Auetu!, longe de sumir, acompanhava-nos como esse desejo de promover encontros para experimentarmos nossas potências inventivas.

Em tempo, a expressão Auetu!, de origem bantu, significa algo como “Assim seja!”. É com esse sentimento, com essa intuição, que lançamos as propostas de oficinas: não como um percurso predefinido, em que se sabe de antemão onde se quer chegar e como caminhar, mas com a vitalidade de um “assim seja!” aberto, disponível e disposto ao instante-já, que, ao se fazer, se torna e se é. Auetu!

4 Ciclo de oficinas

Fonte: Acervo de registros do Ciclo de Oficinas.

Figura 1 Cartazes para divulgação das oito edições realizadas do Ciclo de Oficinas. 

4.1 Aspectos gerais

Em agosto de 2020 foi organizado o “I Ciclo de Oficinas: experimentações entre escritas, imagens e sons”. Esse primeiro módulo teve como público-alvo estudantes dos quatro cursos de licenciatura do campus da UFT – Tocantinópolis: Ciências Sociais, Educação do Campo, Educação Física e Pedagogia. Com encontros semanais às terças e quintas à noite, entre os dias 10 e 27 de agosto, contabilizou uma carga horária de 24 horas. Todas as atividades acadêmicas da UFT, desde o início da pandemia, estavam acontecendo de forma remota, e com o I Ciclo não foi diferente.

Para o II Ciclo, realizado durante o mês de setembro de 2020, algumas alterações foram feitas no sentido de uma melhor adaptação ao ambiente virtual, assim como para um maior alcance de pessoas interessadas. Os encontros passaram a ser semanais, às quintas-feiras, das 20 às 22 horas. Além disso, criamos a figura do/da convidado/da, que podia ser uma ou duas pessoas, para nos acompanhar durante a jornada, contribuindo para a composição das propostas de escritas e durante as conversas de partilha sobre os processos de criação. Desse modo, garantíamos que outras provocações iriam atravessar os encontros, lançando o grupo e a nós mesmos ao desafio de sempre produzir com diferentes contextos de saberes.

Do I ao III Ciclo todos tiveram o mesmo título, mudando apenas a figura da pessoa convidada. As distintas temáticas que cada um deles buscava provocar também não ficou explicitada no título de chamada, mas foram conversadas entre nós, organizadores, e a pessoa convidada. A partir do IV Ciclo, os títulos mudaram e as temáticas começaram a aparecer na própria chamada, de modo que pudesse atrair pessoas interessadas para aquele momento específico. A Tabela 1 contém todos os ciclos ofertados durante o período em que eles ocorreram pela UFT, especificando as pessoas convidadas, o período de duração e os títulos atribuídos a cada etapa.

Tabela 1 Detalhamento dos Ciclos de Oficinas 

Ciclos de Oficinas Convidado(s)/a(s) Duração Título/Temática
I Ciclo ------ 10/08/2020 a 27/08/2020 I Ciclo de Oficinas: experimentações entre escritas, imagens e sons
II Ciclo Daniel Mittmann (professor de Filosofia e mestre em Educação) 10/09/2020 a 01/10/2020 II Ciclo de oficinas: experimentações entre escritas, imagens e sons
III Ciclo Maria Rosa Rodrigues Martins de Camargo (professora do Departamento de Educação da Unesp – Rio Claro) 12/11/2020 a 03/12/2020 III Ciclo de oficinas: experimentações entre escritas, imagens e sons
IV Ciclo Gizele Carneiro (professora de Língua Portuguesa e mestranda em Educação pela UFPR)

Camila Jorge (Atriz, palhaça e mestranda em Educação pela UFPR)
21/01/2021 a 11/02/2021 Um convite à escrita: travessias e travessuras
V Ciclo Antônio Roberto Achel (geógrafo, poeta e funcionário da FUNAI-BA)

Luiza Bussius (mãe, geógrafa, produtora de cacau e educadora)
04/03/2021 a 25/03/2021 Lavrar a palavra: experimentações com a escrita no cultivo da vida
VI Ciclo Maicon Valsechi (facilitador em constelação familiar, advogado e licenciando em História)

Ingrid Zacarelli Brito (mãe, pedagoga e doutoranda em Educação pela Unesp - Rio Claro)
08/04/2021 a 29/04/2021 Nas entrelinhas da ancestralidade: entre o eu, o nós e o tempo
VII Ciclo Marcelo Dante Pereira (pedagogo e doutorando em Educação pela USP) 27/05/2021 a 17/06/2021 Envelhecer sem ser jovem? Por uma escrita gagá
VIII Ciclo César Donizette Pereira Leite (professor do Departamento de Educação da Unesp – Rio Claro) 24/06/2021 a 15/07/2021 entre… escritas e cinema e arte e educação e...

Fonte:Acervo de registros do Ciclo de Oficinas.

A escolha da temática se dava conjuntamente com a pessoa convidada e, normalmente, relacionava-se com algo próximo de seu universo de trabalho, pesquisa ou curiosidade. Nas oficinas explora-se o tema menos por uma explicação a seu respeito e mais por aquilo que ele nos provoca a pensar, pelos caminhos que ele nos abre a experimentar. Pretende-se, portanto, não uma escrita sobre algo, mas uma escrita-atravessada-por uma escrita-experiência.

4.2 Divulgação e inscrições

O passo seguinte à escolha do tema era a divulgação daquele ciclo pelas redes sociais. Um cartaz era confeccionado para circular pelo WhatsApp, Instagram4 e Facebook5. Pelo WhatsApp, a informação era transmitida por meio dos grupos e contatos tanto dos organizadores e da pessoa convidada quanto das pessoas que já haviam participado de ciclos anteriores, o que influenciava a ampliação, o alcance e a visibilidade das atividades. No Instagram, era publicado um cartaz na página do perfil da Auetu! e, no Facebook, buscava-se por grupos que se alinhavam à proposta ofertada.

A princípio, almejávamos encontros que reunissem entre 15 e 20 pessoas, portanto esse era o número de vagas que deixávamos disponível. Quando lançamos a primeira edição do Ciclo de Oficinas, de participação exclusiva por estudantes da UFT, optamos pela utilização de um sistema web interno da universidade, a “Plataforma de Eventos”, para inscrição. Para tanto, bastava ao usuário conectar-se em sua conta e selecionar o Ciclo de Oficinas entre uma variedade de eventos disponíveis. Esse sistema adotado apresentava algumas vantagens, como acompanhamento de frequência e emissão de certificados (para quem cumprisse ao menos 75% da carga horária). Em contrapartida, enquanto organizadores do evento, recebíamos como informações prévias apenas o nome e o curso dos participantes inscritos, o que dificultava o contato direto, caso necessário.

Para a segunda edição, conforme mencionado anteriormente, houve mudanças substanciais. Além da inclusão da figura do/da convidado/da, também foi permitida a participação de pessoas não vinculadas à universidade (vale dizer que em nenhum momento foi cobrado qualquer valor monetário referente à inscrição ou mesmo para quem finalizasse o percurso formativo). Tal abertura implicava, para essas pessoas, um passo adicional no procedimento de inscrição: a criação de uma conta no sistema web; e nós, organizadores, recebíamos como confirmação de inscrição o nome da pessoa e a informação genérica de “comunidade externa” apenas.

Mantivemos tal procedimento de inscrição até o IV Ciclo. Todavia, percebendo que o número de pessoas que se inscreviam e que não compareciam sequer ao primeiro encontro era relevante, a partir do V Ciclo optamos pelo preenchimento de um formulário, o qual poderia ser acessado pelo link divulgado nas redes sociais. A opção pelo formulário se deu justamente para evitar as pessoas que se inscreviam e não compareciam aos encontros, impossibilitando que outros dele participassem. O formulário nos permitiu, então, melhor organização no contato com as pessoas interessadas, assim como a obtenção de algumas informações prévias a respeito do seu perfil. No formulário eram solicitados nome completo, número de telefone, CPF (para que nós mesmos pudéssemos fazer o cadastro na plataforma de eventos da UFT), ocupação, localidade (cidade/estado), como ficou sabendo do ciclo e qual a expectativa com os encontros.

Na Tabela 2, apresentamos a quantidade de inscrições efetuadas e de certificados expedidos nos oito ciclos realizados.

Tabela 2 Relação de inscrições efetuadas e certificados emitidos. 

Ciclo de Oficinas Quantidade de inscrições Certificados emitidos Porcentagem (certificados/inscrições)
I Ciclo 13 5 38,46%
II Ciclo 20 8 40%
III Ciclo 23 13 56,52%
IV Ciclo 26 9 34,61%
V Ciclo 29 12 41,32%
VI Ciclo 24 14 58,33%
VII Ciclo 24 14 58,33%
VIII Ciclo 27 21 77,78%
Total 186 96 51,61%

Fonte: Acervo de registros do Ciclo de Oficinas

4.3 Perfil do(as) participantes

Fonte: Acervo de registros do Ciclo de Oficinas.

Figura 2  Gráficos de localização e escolaridade. 

Os gráficos da Figura 2 apresentam o perfil geral de quem participou das oito edições do Ciclo de Oficinas. Para a contabilização, foram consideradas a quantidade total de certificados emitidos (em azul) e a quantidade absoluta de pessoas (em vermelho) que participaram das oito edições. A diferença de valores entre essas categorias (certificados versus pessoas) decorre do fato de que houve aqueles que participaram de mais de uma edição do Ciclo de Oficinas e receberam, portanto, mais de um certificado.

Como mencionado anteriormente, a evolução das oito edições do Ciclo de Oficinas foi dinâmica, e esse fator incidiu no perfil das pessoas que dele participaram, portanto buscaremos traçá-lo com a ajuda dos gráficos e, também, acompanhando o histórico de realização.

Distinguimos, inicialmente, o grupo de participantes inaugurais: estudantes de graduação da UFT, Câmpus de Tocantinópolis. São pessoas que vivem na região conhecida como Bico do Papagaio, no limite norte do estado do Tocantins. Também pertencem a esse grupo estudantes maranhenses que estudam na UFT (nessa região, a travessia do rio Tocantins, que delimita a divisa entre os estados, é facilitada por meio de balsas ou barcos particulares).

O segundo grupo de participantes, que surgiu a partir do II Ciclo, era formado por professoras do ensino básico da região metropolitana de Curitiba e que também cursavam pós-graduação em Educação na UFPR. Conhecíamos algumas dessas pessoas por meio de experiências em oficinas presenciais passadas, e elas acolheram o chamado quando convidadas para o novo modelo de participação on-line.

O terceiro grupo de participantes, que surgiu a partir do III Ciclo, relacionava-se diretamente com a convidada daquela edição: ex-alunos da Profa. Maria Rosa R. M. de Camargo, da Unesp-Rio Claro, mencionada anteriormente na seção sobre o histórico das oficinas. Essas pessoas, também nossas amigas, possivelmente enxergaram na realização desse ciclo uma oportunidade de reencontro (lembremos que, naquela época, estávamos há oito meses da declaração oficial da pandemia). Esse grupo, em termos de atuação profissional, é mais variado, contendo desde professores a pessoas que seguiram a profissão que cursaram no bacharelado.

O quarto grupo de participantes, que surgiu a partir do V Ciclo, era constituído, em sua maioria, por profissionais da área da Educação e contadores de histórias da região de Limeira-SP, que formam uma comunidade entre si unidos pelo gosto comum pela arte da narrativa.

Em termos de grandes grupos, distinguimos os quatro núcleos identificados anteriormente. Por ser uma proposta que também é divulgada livremente pelas redes sociais, em grupos do Facebook, por mensagens em grupo e individuais via WhatsApp e publicações abertas do Instagram (ou seja, escapa-nos exatamente o alcance das publicações), a cada edição geralmente chegavam participantes sem qualquer vínculo com os organizadores. Nesse sentido, conforme apresentado no gráfico da Figura 1, notamos uma representatividade bastante expressiva com relação à distribuição geográfica (cada região brasileira teve participantes que receberam certificação e cuja origem remete, ao menos, a dois estados diferentes).

Tal modo de divulgação também favoreceu a chegada de pessoas com amplo espectro de atuação profissional. Entre as ocupações mencionadas pelos participantes no ato da inscrição, distinguimos: geógrafo, psicólogo/a, monitor/a escolar, escritor/a, constelador/a familiar, artista, arte-educador/a, administrador/a (todas essas representadas por participantes que receberam certificação). Nota-se, entretanto, que o perfil ocupacional dos participantes é majoritariamente constituído por professores/as e estudantes de graduação.

A partir do II Ciclo, houve quem retornou. E, sendo recorrentes, tais participações inscreviam e gravavam, edição a edição, as palavras que constituíram o corpus, um grupo que permaneceu se encontrando para escrever e partilhar processos criativos. Houve também quem não retornou, e isso também foi interessante, pois abriu espaços para novas pessoas se somarem aos encontros. Movidos por práticas de leitura e de escrita, persistimos em compor coletivamente palavras, sentidos e modos de ressoar.

Num tenso momento em que o mundo parecia ruir, buscamos nas ideias de encontro, acontecimento e experiência linhas de fuga que rabiscaram, contornaram e produziram potências de vida que nos ajudaram a resistir. E persistir. Praticar a escrita e leitura, de certa maneira, foi o modo como enfrentamos, juntos, a pandemia.

5 Escrita, leitura, experimentação

Nas linhas que se seguem, compomos uma experimentação por meio de bricolagens com as noções de escrita, leitura e experimentação desdobradas nas oito edições do Ciclo de Oficinas. Construímos tal bricolagem-experimentação utilizando, inclusive, palavras transcritas dos(as) participantes durante a realização dos encontros. Distinguem-se dois tipos de transcrição: em itálico, palavras que foram ditas por participantes durante o compartilhar das impressões a respeito das atividades; sublinhadas e centralizadas, palavras que foram escritas por participantes e que são derivadas das propostas de atividades. Optamos por não indicar a autoria, de modo a fazer ecoar a força dessas palavras e reforçar a sua potência de afetar por meio de um exercício cartográfico de composição (Passos; Kastrup; Escóssia, 2020).

5.1 Escrita – abertura de mundos

Como é que eu abro, como é que eu cultivo um processo de abertura de um corpo que pode ser arrastado pela escrita? Tomado pela escrita?

O Ciclo de Oficinas quer-se espaço de encontros, de acontecimentos, de experiências. Reconhecemos que o querer muitas vezes não é o suficiente. A abertura de mundo pela escrita, portanto, deve ser cultivada. Como? Mais do que assertivas infalíveis, temos alguns palpites. Talvez o mais relevante seja a questão da liberdade. Há uma liberdade, porém, que não autoriza todos os atos. “Tudo é permitido não significa que nada é proibido” (Camus, 2004, p. 50). O rio, para fluir, necessita de suas margens, assim como a liberdade criativa nos ciclos necessita de suas regras para ganhar seu fluxo: regras de convivência e para as propostas de atividades.

Cada ciclo é inaugurado com um diálogo de apresentação geral, no qual situamos os participantes quanto a: o Ciclo de Oficinas é um espaço de experimentação e partilha pela escrita e pela leitura; não se buscam os valores daquilo que seja certo nem daquilo que seja errado; antes, o reconhecimento, pela escuta, dos sentidos e afetos presentes nas escritas produzidas pelos(as) participantes; os organizadores, para além de coordenadores e responsáveis pela condução dos encontros, são também participantes e se incluem como iguais na realização das atividades; por fim, convidamos cada um, cada uma, a entrever no Ciclo de Oficinas um espaço seguro para a liberdade de criação.

Esvair-se entre vãos.

Transformar-se.

Colocar-se de formas mil.

Deixar-se moldar.

Um ser no vir a ser.

Ser que se forma, não se molda.

Ser em potência.

Substância.

No instante em que nos debruçamos para pensar e refletir sobre o Ciclo de Oficinas, a imagem do lockdown que chega até nós é a lembrança de um momento bastante desafiador e desagradável, porém necessário, entretanto os fragmentos aqui presentes, que se intercalam com os conteúdos de nossa autoria, foram produzidos enquanto as pessoas estavam, em sua maioria, isoladas em suas residências. E, para algumas delas, a escrita foi sinônimo de perseverança.

A escrita move a gente. Ela move algumas coisas. Dá uma certa força para você enfrentar... porque a gente não pode fugir, não tem para onde fugir (...) quando eu sento para escrever todo dia eu falo: "é isto que me move". Me move no meio de tudo isso. Não que diminua a dor. Mas que consegue mover. Mover a gente. A gente precisa se mover. Para pelo menos alimentar um pouco de esperança.

A palavra que nos alimenta... hoje, aqui, nossa, que banquete que nós estamos tendo! De compartilhar dessas palavras, nos alimentar com essas pessoas que hoje estamos tendo o privilégio. Apesar de tudo isto que está acontecendo no mundo, estarmos aqui respirando, divulgando e compartilhando desse alimento tão necessário hoje, que é gritar, pôr para fora, tudo isso que faz falta no dia a dia das pessoas, que é essa acolhida, esse acolhimento e o compartilhar de momentos como este.

Escrever, verbo transitivo direto, transitivo indireto e intransitivo, expressão da linguagem, produção de sentidos, abertura de mundos em composição. A escrita que habita entre o nada e o tudo manifesta existências, provoca e registra acontecimentos, narra aventuras, cartografa afetos. “Pois as coisas deste mundo são as suas histórias, identificadas não por atributos fixos, mas pelas suas trajetórias de movimento em um campo de relações em desdobramento” (Ingold, 2015, p. 236). No Ciclo de Oficinas, a escrita que me coloca em contato com.

Escreve e joga para o mundo. E vê como ele funciona junto.

No labirinto do existir, a escrita é o fio de Ariadne. Inventa modos de habitá-lo, faz do fio um feixe de linhas. Demarca percursos, porém, nas encruzilhadas, faz-se emaranhar nos fios de outrem: mistura de éthos que faz do labirinto uma malha de linhas entrelaçadas, uma arquitetura de percursos e trajetos (Deleuze, 2011). São linhas de vida entrelaçadas e entremeadas, malhas vivas. Escrever é como atar e desatar nós, tecer conexões, dar vida às coisas, colocar em movimento e relação uma multiplicidade de seres que habitam espaços; indicar pontos de ruptura, traçar linhas de fuga para mundos em devir (ROLNIK, 2007). A escrita como abertura para mundos em nascimento contínuo, compõe e conserva pistas e vestígios dos encontros – afetos – criados e experimentados ao longo do labirinto.

Como a escrita nos revela, e a gente percebe, às vezes, as nossas linhas, naquele momento. E ao mesmo tempo, no encontro com o outro, a gente se transforma, a gente se deforma.

Pode o labirinto ser um lugar de nada? Como levá-lo a tudo? Não sei explicar, se certo, ou errado, ele é cheio de caminhos, caminhos que fazem despistar da direção certa.

No Ciclo de Oficinas, como no bosque da ficção, não importa por qual direção, e sim pôr-se em movimento e entrelaçar-se pelas linhas de vida. Escrever e jogar para o mundo.

É legal a gente escrever. Mesmo que às vezes saia um rascunho, um rabisco ou uma coisa de última hora. Mas é legal, porque parece que a gente quando escreve, não que aquilo seja exatamente o que a gente é, mas coloca muita coisa para fora. Parece que a gente potencializa outras coisas dentro da gente, até no modo de se relacionar com o outro.

Uma vez dentro do labirinto, não há escapatória. Por isso o fio de Ariadne, por isso que deixo as minhas marcas. Escrevo não exatamente o que sou, mas tudo aquilo que posso, ou não, vir a ser. Escrevo justamente pela possibilidade de me inscrever. Se não entrevejo a saída, tenho que inscrever-me no entre.

É no entre.

No entre-luz. Na porta entre-aberta. No entre ir e ficar. No entre falar e calar.

Ninguém sabe ao certo quando o já acontece. Talvez, por medo de uma definição que possa colocá-lo no ponto exato do... é que o entre lhe cause uma sensação de que tudo é possível. E valsa.

5.2 Leitura – multiplicação dos possíveis

Afinal, como poderia eu aniquilar uma vastidão com a minha mísera voz?

O que acontece quando se lê? E quando essa leitura se dá num espaço de partilha das escritas? Tais indagações aguçam a curiosidade. No Ciclo de Oficinas, alternam-se os momentosː ora ouvimos, ora lemos nossos textos. Aqueles mundos outrora abertos pela escrita são trazidos, então, à presença pela leitura. Daí o acontecimento, daí a multiplicação dos possíveis.

Mas depois quando outra pessoa lê, com a entonação dela, com o olhar dela para o texto, é um outro pulsar de vida que tem dentro do mesmo texto.

Lidas em voz alta, ouvidas atentamente, as palavras avivam o encontro, ativam forças e fluxos a circular pelo ambiente. Geram outras pulsões. Palavras-corpo que atravessam mundos. Palavras-mundo que atravessam corpos. Corpo-palavra-mundo, mundo-corpo-palavra, palavra-mundo-corpo. Outros diagramas de relações de forças emergem e instauram um ambiente sensível a ser partilhado pelos presentes (Rolnik, 1997). Cartografias literárias, múltiplas, possíveis, colocam-se à disposição do coletivo.

Perguntou que mapa tem a minha pele e qual seria o limite entre minha pele e a pele do mundo. Não sei. (Há limite?)

Pela leitura emergem e circulam diagramas de força a afetar as pessoas presentes no encontro. Nessa partilha sensível, não se busca uma interpretação unificadora daquilo que nos atravessa nem uma avaliação em torno dos gêneros literários experimentados, tampouco determinar certas personalidades escritoras por trás dos textos. Pela leitura avivam-se forças como modos de tocar e ativar um corpo sensível (vibrátil), de borrar a fronteira da pele como limite que separa mundos – internos e externos – e, assim, poder experimentá-la como lugar do encontro entre e do acontecimento: possibilidades do vir a ser.

Essa possibilidade da conjugação das perspectivas. A multiplicação dos possíveis que essa proposta traz…

Bárcena (2016) afirma que, quando um acontecimento se dá, ali o imprevisível e o surpreendente tiveram lugar e que, com isso, podem-se dizer três coisas: “que algo nos da a pensar; que alguien realiza una experiencia; y que alguien, como consecuencia de eso que le pasa, ya no es el mismo que antes, que es discontinuo con respecto a un tiempo vital y biográfico anterior” (2016, p. 45). Um exercício de fazer-se presente naquilo que se pensa, escreve, lê e partilha e que coloca em jogo o próprio ser provoca transformações nos processos de produção de modos de existir. Nessa cartografia da multiplicidade dos possíveis, as linhas que delineiam mapas estão em incessante movimento. Fronteiras borradas, pergunta-se: “de quem é a autoria?”. Responde-se: “qual autoria?”.

Meu texto na boca de outro. Já vai ser outro texto, já vai ser outra coisa. Porque tem alguma coisa de meu, porque eu comecei a escrever ele, né? Tem alguma coisa que vai se deslocar por completo quando o outro ler. Como eu acho que também se deslocou para mim mesmo o texto que eu recebi. Eu li uma vez, daí eu li uma segunda, já se deslocou de novo, sabe? O texto que eu recebi para ler, ele foi se deslocando no decorrer da minha própria leitura dele.

O texto deslocado torna-se outro texto. O mundo deslocado torna-se outro mundo. O corpo deslocado torna-se outro corpo. Com a leitura não se busca a identificação, mas o pulsar da vida, a emergência dos afetos. Deslocar-se e desidentificar-se para acionar composições de si. Ativar o sensível e abrir-se ao outro, às forças do fora, à alteridade e, nesse processo, inventar-se a si com o(s) outro(s). Leitura que atualiza, portanto, presenças em inventividades com as linguagens no fiar de modos de estar com. “Efeito de um processo que nunca pára e que faz da subjetividade ‘um sempre outro’, ‘um si e não si ao mesmo tempo’” (ROLNIK, 1997, p. 5). Mergulho no plano da experiência – plano dos encontros, das linhas de força, dos afetos, relações e invenções com - onde composições de si e mundo coemergem.

Flui para fora e atingi o mundo

Tingindo de vermelho

Não sabia mais o que eu era ou que eu sou o mundo

Não sabia se eu sujava o mundo ou se por ele eu era sujado

Nunca me senti tão mundo

No Ciclo de Oficinas, as dinâmicas de leituras vão se intercalando, de modo que ora sou eu quem leio meu texto, ora meu texto é lido por outra pessoa. Também acontece dos textos terem partes, ou palavras, sugeridas por terceiros. A surpresa, o inesperado, o espanto diante do novo são caminhos dos quais tentamos nos aproximar, caminhos que permitam uma abertura ao sensível. Por isso sempre indagamos: como é ouvir seu texto pela voz de outrem? Como é receber e ler o texto de outro? Como é ouvir seu texto em voz alta?

Quando a gente escreve e outra pessoa lê, de certa forma, a pessoa que está lendo também é autora do texto. Ela vai enfatizar a partir da entonação e daí o autor, ou a autora, perde o controle do que escreveu, de certa forma. [...]. quando a gente escreve, a partir do momento que deixou de ser nosso, pode ser qualquer coisa. De certa forma, a gente compartilha a autoria, fica coletivizada. Parece bobo, mas eu fiquei impactada com isso. Será que sempre que eu escrevo, o texto assume esta dimensão? Depois que a gente escreve, a gente deixa de ser autor.

Um sempre outro porque não se trata de colocar a leitura como um modo de normatizar experiências, tampouco como prática de verificação dos erros e acertos diante de uma experiência de escrita disparada por uma proposta; não se quer condicionar a leitura a uma prova da verdade. Está, antes, na possibilidade de afetar-se com o outro, com o mundo, de propalar a força da palavra como um exercício no qual abre-se a possibilidade de voltar-nos sobre nós mesmos e promover uma determinada prática de transformação de si. Afirmar singularidades em processo, potências de afetar e de ser afetado.

Experimentar esses deslimites do texto, da escrita, da voz, mais do que a ausência de uma autoria, talvez seja a experimentação de modos singulares, íntimos e coletivos, de ressoarmos juntos. As oficinas, com suas escritas, leituras e partilhas, abriram – e ainda abrem – a criação de uma atmosfera mais prazerosa para respirarmos e, assim, como nos ensina Ailton Krenak (2019), mantermos vivas poéticas de nossas existências, suspender o céu e dançar a dança da vida.

5.3 Experimentação – vida povoada

Por exemplo, o sentido desta oficina, em que a gente se joga em experimentações. "Ah, não sei se vou aprender, se abriu, se não abriu minhas perspectivas". Mas algo estará ali neste repertório que vai se construindo. Neste não saber como a gente vai aprender, como é que a gente se joga a fazer coisas não pela utilidade, mas para estar abertos para a experiência. E que riqueza é isso! E que coisas, também, tão outras a gente pode ter num momento assim.

Para jogar e se jogar. Em busca de um fazer educativo onde encontro, acontecimento e experiência sejam fontes e vetores das “aprendizagens”. Qual mestre ignorante (Rancière, 2015), que não se serve de explicação, mas abre o tabuleiro sobre a mesa. A oficina como lugar de invenção.

A gente inventa pra inventar outro da gente.

São criações que passam por experimentações com palavras e imagens e que, portanto, podem dar a pensar relações que se inventam com a/na escrita, mas não em sua dimensão de representação da realidade nem como uma pretensão de verdade. Experimentar, sim, a prática da escrita como possibilidade mesmo de tocar na água viva da vida. Nesse sentido, ela se preocupa menos com o édas coisas e se coloca mais como um processo de experimentação com os fluxos e as forças que produzem a existência. Camargo (2010) aponta: escrita e leitura como aventura, travessia; pois é enquanto se escreve que o texto se cria e, nunca se sabe de antemão como ele será. Travessia inventiva que faz surgir pelo meio sons, cores, texturas e sabores.

Eu acho muito legal pensar este espaço como um espaço democrático. E como isso acaba sendo um estímulo para uma escrita livre. Por meio dessas oficinas (...) foi quando eu comecei a entender um pouco mais a ideia de "saborear a escrita"; que era uma coisa que eu achava que não era real, que eu não conseguia entender como real, sentir o sabor de uma escrita. E por meio das oficinas eu consegui começar a sentir como, realmente, tem sabor escrever. E como a forma como se escreve, se interpreta, produz sabores, inclusive, quase se materializando, no paladar, no sentir.

Para Deleuze (1988/89; 2011), escreve-se porque algo da vida passa em nós e, ao escrever, tornamo-nos alguma coisa que não o escritor; um devir outro. Distinto, portanto, de uma escrita que se faria a partir de uma suposta “boa vontade” e “liberdade de pensamento” do indivíduo que, distante do real e desvinculado do mundo, teria aí um lugar ideal para suas produções. Vignale (2016, p. 72-73) provoca esse lugar ao questionar se não é justamente de onde algo dói, grita ou goza que se torna possível escrever e, adentrando a escrita como experiência, como um desencontro consigo para se colocar em movimentos de criação, pergunta: “¿Para qué escribir entonces?”. E responde: “Para ser otros”.

Nem a mão e nem a batuta. Nem o instrumento e nem a orquestra. Um pouco de cada? Melhor, um entre: funções, deveres, estruturas) parênteses em aberto acontecendo (notas, fios, solturas.

O entre do silêncio com o som.

Um entre a pausa e o movimento, a diferença e a repetição.

Um escorregar na leitura da interpretação da partitura.

Um enlace sonoro entre notas, que passa, que fica, que não se vê e continua.

Do comum ao estranhamento, quando em vez, a estória na história do pensamento.

Margem terceira, assovio em sertões.

E nada disso também.

Passagem outra para dizeres tanto quando ainda infinito.

Afirmar, afirmar, afirmar para, de repente, não ser.

Vazio do oco, onde há.

Ler e escrever como experimentações com a linguagem para estrangeirar-se, tornar-se outro(s), tocar no pulso do mundo e pulsar, para fazer brotar a vida no entre das coisas. Algo próximo do que propõem Romaguera e Wunder (2016, p. 130) em suas oficinas de experimentação coletiva: “O que se pretende é potencializar na palavra o desejo, (des)vestir, fazer surgir o corpo da palavra, a carne da palavra, a palavra-gesto prenhe de cores e sons, o susto, os giros de escritura do desejo, escrita-experimentação”. Delirar a língua, desviá-la para fazer falar uma vida na fronteira do indizível. Experimentações como possibilidade de romper com a “[...] mesmidade nos modos de habitar os tempos e os espaços” (Romaguera; Wunder, 2016, p. 143).

Como que a partir de uma proposta dessa a gente vai se abrindo à diversidade, ao diálogo... vai se abrindo a perspectiva de conjugar tudo isso, nesse tipo de união... essa transcendência de dualidades, de categorias provisórias. Então, como que dinâmicas desse tipo, a gente multiplicando vai se multiplicando juntos, e vai aprimorando toda nossa capacidade de dialogar e vai superando qualquer tipo de despotismo que possa querer se impor sobre cada um.

Instigar a pensar por experimentações é, antes, um abrir-se às perguntas: “Como romper as ordens discursivas já dadas e enveredar pelo não-dito, por uma via de criação sensível?” (Romaguera; Wunder, 2016, p.126). Partir sem dar ou pretender de antemão o lugar de chegada. Deixar o lugar seguro das palavras e imagens explicadoras, que conduzem e ilustram, para seguir por uma atenção ao que acontece entre o construir, perder e reconstruir de mundos, sentidos e relações no encontro entre corpos. “Um experimentar que prevê uma atmosfera apta ao encontro, um preparo de espaços-tempos sensíveis à diferença ainda sem nome, à palavra sem corpo, à imagem sem referente” (Romaguera; Wunder, 2016, p.127). Um modo de transitar e inventar aprendizagens pelo caminho.

Como que flui tão bem aqui? Justamente porque a gente abre o coração, a alma, o corpo, o espírito, com toda a naturalidade de quem aceita e está disposto a ser aceito naquilo que é, e na transformação daquilo que está, o que virá, o que foi, o que dança e tudo junto.

Seguir pelos caminhos da experimentação é uma aposta no encontro, no que podemos juntos. Uma aposta na via de criação de modos de existir quando desfiamos a nós mesmos. É pela experimentação que essa experiência de presentificar-se no encontro se torna possível. Assim, perguntamos: como a gente pode arranhar as paredes do mundo? Como a gente pode sacudir as membranas entre mundos e criar canais de abertura, de passagens, trocas, fluxos e criações de novos caminhos? Ser húmus, lama profunda em conexão com as entranhas da Terra, da vida. Não com mundos abstratos acolá, mas radicalmente vivos neste. Emaranhar-se com o mundo, com os seres, com a terra, com a água, com as plantas, com o profundo caos de múltiplos caminhos. Arranhar as texturas do mundo e avivar as membranas, habitar passagens: A vida povoada é ativação certa.

6 Palavras que finalizam um texto, mas que não cessam sentidos

Revisitar percursos, elencar trajetórias, não se trata apenas de conferir sentidos a ações passadas, mas também reconhecer as potencialidades e desafios dos atos presentes e vislumbrar futuros possíveis.

Quando dizemos que pelas oficinas criamos conjuntamente uma atmosfera para respirarmos durante a pandemia, isso é real. Cada um de nós precisa criar para si uma atmosfera que se permita viver. Às vezes criamos atmosferas tóxicas para nós mesmos, mas isso faz parte da caminhada da vida e, sim, podemos aprender a transformá-la em algo menos mórbido e, assim, partilhá-la com outros seres. Perguntamo-nos: que atmosferas temos criado para respirarmos juntos?

É pelas palavras de quem participa dos ciclos que podemos pensar uma certa política de subjetivação presente nos encontros e que faz do escrever um modo de abrir mundos, do ler uma forma de multiplicar os possíveis e do experimentar um modo de povoar a vida. As possibilidades do dizer criadas e potencializadas nos ciclos nos permite, de alguma forma, experimentar tais práticas não somente como um conjunto sistematizado de conhecimentos, mas também nos aproxima da Educação como um fazer artístico, como a produção de uma estética da existência (Foucault, 2004), um espaço onde criamos modos de viver entre nós, partilhando o sensível como um modo de nos tocar mesmo que distantes, conectando-nos uns aos outros.

As oficinas permitem emergir, nesse sentido, sujeitos e mundos, seres de linguagem criando línguas para mundos em invenção durante encontros e a partir das experimentações propostas nos ciclos. Ao final, trazemos o que eles analisam e inventam de nós mesmos. Cultivamos práticas de escrita, leitura e experimentações que, pelas falas que emergem (efeitos), dão-nos pistas para problematizar a própria prática da escrita, da leitura e da experimentação.

Continuamos a ofertar as oficinas mesmo após o término dos contratos com a UFT-Tocantinópolis. No momento presente (outubro de 2023), recém-finalizamos o XVI Ciclo e estamos com o XVII para acontecer no início de novembro de 2023. Sustentar essa continuidade é sustentar o desejo por uma força de vida em movimento pelos corpos, presentificada quando se aciona uma potência ativa do pensamento que é, ao mesmo tempo, sua potência de criação.

Compor uma escrita sobre o que denominamos “Ciclo de Oficinas”, a tentativa de comunicar às nossas colegas educadoras, aos nossos colegas educadores, os encontros, os acontecimentos, as experiências que dele pulsaram, e que ainda pulsam, apresenta-se a nós como um gesto de resistência e esperança.

1Para mais informações a respeito das produções dessa época, consultar Camargo e Azevedo (2015).

2O vídeo pode ser encontrado no YouTube pelo seguinte link: https://www.youtube.com/watch?v=LkH5MLpPAlo&t=12s.

3As Atividades Integrantes são atividades previstas na estrutura curricular do curso de Pedagogia da UFT – Tocantinópolis cujas cargas horárias integram o currículo obrigatório. Para mais informações, consultar o Projeto Político Pedagógico do curso de Pedagogia da UFT – Tocantinópolis.

Referências

BÁRCENA, F. En busca de una educación perdida. Rosario: Homo Sapiens Ediciones, 2016. [ Links ]

BARROS, L. M. R.; BARROS, M. E. B. Pista da análise: o problema da análise em pesquisa cartográfica. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; TEDESCO, S. (org). Pistas do método da cartografia: a experiência da pesquisa e o plano comum. v. 2. Porto Alegre: Sulina, p.175-202, 2016. [ Links ]

BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. [ Links ]

BOAL, A. Jogos para atores e não-atores. 14. ed. rev. ampl. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. [ Links ]

BORGES, J. L. O livro de areia. São Paulo: Companhia das letras, 2009. [ Links ]

CALVINO, I. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas. São Paulo: Companhia das letras, 1990. [ Links ]

CAMARGO, M. R. R. M. Da vida à morte à vida: a linguagem é a ponte. Reflexões acerca do ato de escrever. Revista Educação e Filosofia, v. 30, n. 60, p. 669-684, jul./dez. 2016. [ Links ]

CAMARGO, M. R. R. M. Sobre leitura e escritos autobiográficos: apontamentos teóricos. In: CAMARGO, M. R. R. M. (org.); SANTOS, V. C. C. (colab.). Leitura e escrita como espaços autobiográficos de formação. São Paulo: Cultura Acadêmica, p. 13-29, 2010. [ Links ]

CAMARGO, M. R. R. M.; AZEVEDO, M. A. R. PEJA - Rio Claro: 14 anos de História (novembro de 2001 a abril de 2015). Unesp, Pró-Reitoria de Extensão (PROEX), Instituto de Biociência, Departamento de Educação - Câmpus de Rio Claro, 2015. [ Links ]

CAMUS, A. O Mito de Sísifo: ensaio sobre o absurdo. Rio de Janeiro: Record, 2004. [ Links ]

CERTEAU, M. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer; 15. ed. Trad. Ephraim Ferreira Alves. – Petrópolis, RJ: Vozes, 2008. [ Links ]

DELEUZE, G. Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 2011. [ Links ]

DELEUZE, G. Lógica do sentido. São Paulo: Perspectiva, 2015. [ Links ]

DELEUZE, G. O abecedário de Gilles Deleuze. 1988/89. Disponível em: http://escolanomade.org/wp-content/downloads/deleuze-o-abecedario.pdf. Acesso em: 22 jul. 2021. [ Links ]

FOUCAULT, M. A escrita de si. In: FOUCAULT, M. O que é um autor? Lisboa: Passagens. 1992. p. 129-160. [ Links ]

FOUCAULT, M. A linguagem ao Infinito. In: FOUCAULT, M. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Trad. Inês Autran Dourado Barbosa. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009. [ Links ]

FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Loyola, 1996. [ Links ]

FOUCAULT, M. Isto não é um cachimbo. Trad. Jorge Coli. 5. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008. [ Links ]

FOUCAULT, M. Las Meninas. In: FOUCAULT, M. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. Trad. Salma TannusMuchail. 8. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. [ Links ]

FOUCAULT, M. Uma estética da existência. In: FOUCAULT, M. Ditos e Escritos V: Ética, sexualidade, política. Tradução: Elisa Monteiro, Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de janeiro: Forense Universitária, 2004. [ Links ]

INGOLD, T. Estar vivo: ensaios sobre movimento, conhecimento e descrição. Petrópolis: Vozes, 2015. [ Links ]

KRENAK, A. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: companhia das letras, 2019. [ Links ]

LARROSA, J. Notas sobre experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação. n. 19, p. 20-28, jan./abr. 2002. [ Links ]

LARROSA, J. Pedagogia Profana: danças, piruetas e mascaradas. Belo Horizonte: Autêntica, 2010. [ Links ]

LARROSA, J. Tecnologias do Eu e Educação. In: SILVA, T. T. O sujeito da educação: estudos foucaultianos. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. p. 35-86. [ Links ]

LISPECTOR, C. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. [ Links ]

OLIVEIRA, T. R. M.; PARAÍSO, M. A. Mapas, danças, desenhos: a cartografia como método de pesquisa em educação. Revista Pro-posições, v. 23, n. 3, p. 159-178, 2012. [ Links ]

PASSOS, E.; BARROS, R. B. Pista 1: A cartografia como método de pesquisa-intervenção. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. (org.). Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Editora Sulina, p. 17-31, 2020. [ Links ]

PASSOS, E.; EIRADO, A. Cartografia como dissolução do ponto de vista do observador. In: PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. (org.). Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Editora Sulina, p. 109-130, 2020. [ Links ]

PASSOS, E.; KASTRUP, V.; ESCÓSSIA, L. (org.). Pistas do método da cartografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, 2020. [ Links ]

PASSOS, E.; KASTRUP, V.; TEDESCO, S. (org.). Pistas do método da cartografia: a experiência de pesquisa e o plano comum - Vol.2. Porto Alegre: Sulina, 2016. [ Links ]

RANCIÈRE, J. O mestre ignorante: cinco lições sobre a emancipação intelectual. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. [ Links ]

RECCO, K. V.; NASCIMENTO, R. C.; JOAQUIM, F. F.; BRAGA, J. T. De repente, uma câmera… Isto é uma escola? Retratos desfoucados. In: II CONGRESSO DE EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS; VIII SEMINÁRIO DE LINGUAGENS, POLÍTICAS DE SUBJETIVAÇÃO E EDUCAÇÃO; II SEMINÁRIO IMAGO, 2012, Rio Claro/SP. Anais[...]. Rio Claro: Unesp, 2012. Disponível em: https://ib.rc.unesp.br/Home/Departamentos47/educacao/grupodeestudosepesquisaslinguagensexperienciaeformacao/3v-kethylin_recco_etal.pdf. Acesso em: 29 abr. 2021 [ Links ]

RIBETTO, A.; DIAS, R. O. Micropolítica e uma aposta ética, estética e política de formar professores pela invenção. Revista Educação e Cultura Contemporânea, v. 17, n. 47, p. 209-229, 2020. [ Links ]

ROLNIK, S. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. 2. ed. Porto Alegre: Sulina/Ed. UFRGS, 2007. [ Links ]

ROLNIK, S. Psicologia: subjetividade, ética e cultura. Saúdeloucura, 6: Subjetividade. São Paulo: Hucitec, 1997. [ Links ]

ROMAGUERA, A. R. T.; WUNDER, A. Políticas e Poéticas do Acontecimento: do silêncio a um risco de voz. Revista Brasileira de Estudos da Presença. Porto Alegre, v. 6, n. 1, p. 124-146, jan./abr. 2016. [ Links ]

SPOLIN, V. Jogos teatrais: o fichário de Viola Spolin. 3. ed. São Paulo: 2014. [ Links ]

VIGNALE, S. Prefacio para una política de la escritura. In: CALLAI, C.; RIBETTO, A. (org.). Uma escrita acadêmica outra: ensaios, experiências e invenções. Rio de Janeiro: Lamparina, 2016, p. 68-74. [ Links ]

WUNDER, A. Das imagens que movem o pensar. In: SCARELI, G.; FERNANDES, P. C. O que te move a pesquisar? Ensaio e experimentações com cinema, educação e cartografia. Porto Alegre: Sulina, 2016, p. 12-31. [ Links ]

WUNDER, A.; MARQUES, D.; AMORIN, A. C. R. Pesquisa-experimentação com imagens, palavras e sons: forças e atravessamentos. Visualidades, Goiânia, v. 14, n. 1, p. 104-127, 2016. [ Links ]

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que o trabalho original seja corretamente citado.