1 Introdução
O tema deste texto é uma problemática epistemológica que emerge de um diálogo com Boaventura de Sousa Santos e Mikhail Mikhailovitch Bakhtin, pesquisadores de campos distintos, porém relacionados, autores que nos auxiliam também a pensar no ato de narrar e as materialidades de nosso campo – as narrativas pedagógicas (Prado; Serodio; Simas, 2023) – e as metodologias narrativas de pesquisas (Prado et al., 2015)por meio de reflexão-refração teórico-metodológica e interpretativo-narrativa heterocientífica.
Sabemos que a distinção entre o mundo inteligível e o mundo sensível permeia os princípios de várias correntes filosóficas (Sobral, 2009; 2010), assim como o mundo das ideias e o mundo concreto, ou, como diz Mikhail Bakhtin (2010), o mundo da cultura e o mundo da vida. Sabemos também que a linguagem permeia todas as atividades humanas, porém, tanto para Bakhtin (2003; 2010) quanto para Volóchinov1 (2012; 2017) e Medviédev 2(2012) (participantes do Círculo de Bakhtin), as linguagens constituem o próprio homem, até mesmo em sua corporeidade (Petrilli, 2007; 2013).
Em todos os textos de cada obra bakhtiniana, qualquer distinção ou interpenetração entre o concreto e o abstrato é apresentada na perspectiva da linguagem, no campo da filosofia (Bakhtin, [1929; 1979]2003, p. 307). Além disso, ele põe as bases de outro modo de ver e fazer ciência (heterociência) ou outros paradigmas epistemológicos. E assim, como qualquer conhecimento é, antes, conhecimento do outro, propomos dizer hetero(auto)ciência.
O enunciado ontológico fundacional para Bakhtin não é “eu sou”, mas “eu também sou”, proposição que implica necessariamente um “tu és”, como premissa primeira. A concessão inicial da experiência, e de “eu também sou” não é individualista, nem impessoal: é dialógica, dialogada e não coincide consigo mesmo. A primeira certeza ontológica real da consciência e da autoconsciência, o “eu também sou”, implica que o eu não seja o início nem a fonte de si mesmo
(Bubnova, 2013, p. 12).
Ao alterar a premissa autocentrada da razão humana, Bakhtin subverte uma ordem dominante do pensamento moderno, do “penso logo existo” cartesiano (Descartes, 1596-1650), para “penso também”, permitindo-nos considerar que os princípios do grande projeto editorial e de militância de Boaventura Santos (1940) ressoam nessa corrente dialógica que subverte o paradigma dominante.
Estamos considerando que a “crise do ato responsável” (Bakhtin, [1920-24]2010) seria um sintoma de “transição paradigmática” (Santos, 2011), para além da crise de valores denunciada por Bakhtin–que lida com as relações interindividuais – e Santos–que problematiza as relações entre grupos sociais. A existência humana não se caracteriza somente por sua capacidade de pensar, mas por pensar a partir do que o outro lhe faz ver de si, do mundo e de si no mundo, ou seja, pela coexistência, pela co(n)vivência.
Bakhtin e o círculo3 apontam os métodos sociológicos como o único modo possível para pesquisar temáticas das Ciências Humanas (Bakhtin, [1974-79] 2003, p. 393-410). E suas materialidades são os textos em cotejamento sem os quais “não pode haver pesquisa na especificidade do pensamento das ciências humanas” (Bakhtin, [1959-61] 2003, p. 307-308).
Consideramos que cotejar pensamentos de Boaventura de Sousa Santos e Mikhail Bakhtin contribuirá para os estudos sobre uma produção de conhecimentos não de objetos, mas dos sentidos que fazem para o “ser expressivo e falante” (Bakhtin, [1979]2003, p. 395) em seus atos singulares e em seus atos irrepetíveis. Para propor uma ciência outra, ou, como nos faz ver Bakhtin, uma ciência “heterocientífica”, “A interpretação dos sentidos não pode ser científica, mas é profundamente cognitiva” (Bakhtin, [1974-79]2003, p.399).
Assim, este texto procura relacionar dialogicamente a contribuição pessoal dos dois pensadores para as pesquisas em que as narrativas pedagógicas do profissional da educação do cotidiano escolar se constituem na materialidade de pesquisa e formação a também ser cotejada. Materialidade responsável-responsiva em níveis significativo e semântico, procedendo intencionalmente por camadas interpessoais e intrapessoais. Em função de os princípios e objetivos de os dois pensadores serem potentes para nosso estudo centrado nas relações humanas em sua singularidade e sociabilidade, este texto se constitui em pensar esta questão – o que têm de particulares as práticas sociais e o que têm de sociais as práticas interindividuais? Ressalta-se que essa questão surge durante a própria pesquisa devido à permeabilidade da pesquisa à pessoalidade do pesquisador.
Iniciamos por aproximar do leitor a vida de Mikhail Mikhailovitch Bakhtin e Boaventura de Sousa Santos; em seguida, tencionamos materializar um diálogo entre ambos na nossa perspectiva e, finalmente, fechamos o texto como proposta de continuidade de nossas reflexões.
2 Bakhtin e o círculo – métodos sociológicos
Nascido em novembro de 1895 em Orel, cidade localizada a 323 km de Moscou, onde faleceu em 1975, numa casa para idosos, Bakhtin viveu todo o conturbado período revolucionário da Rússia, tendo perdido amigos em decorrência direta ou indireta do período do terror stalinista, como P. N. Medviédev (1891-1938), fuzilado como “inimigo do povo”, e V. N. Volochínov (1895-1936), pela tuberculose. Perdeu também sua mãe e irmã por outras doenças causadas por carências alimentares. Ele mesmo viveu grande parte de sua vida no exílio, mantido à distância dos centros culturais da intelectualidade soviética.
Existe uma polêmica para nós já suficientemente discutida sobre a colaboração entre esses três autores, Bakhtin, Volóchinov e Medviédev, nas obras editadas na segunda metade dos anos 1920. Só retomamos esse tema porque se tem ampliado, pouco a pouco, o conhecimento desse período obscuro da Rússia, além de nos fazer ver a coerência entre o que publicavam e o modo que viviam.
No Brasil, conhecemos Bakhtin por uma das duas primeiras obras aqui chegadas, Marxismo e filosofia da linguagem, a qual consta como Bakhtin (Volochínov), em 1981.Assim,a cada vez que tínhamos que fazer referência, a questão – “afinal Bakhtin ou Volochínov?” – era recorrente. Havia uma suposição de que preservavam Bakhtin, que usava seus amigos como “testas de ferro”. Mas a explicação mais coerente e fundamentada no que se sabia do pensamento bakhtiniano era de que as palavras circulavam de tal maneira, que o nome do autor de um livro discutido conjuntamente não faria diferença.
Sheila Grillo, pesquisadora brasileira, esteve na Rússia consultando os arquivos do Instituto da História Comparada das Literaturas e Línguas do Ocidente e Oriente (ILIAZV), que em 1930 passou a se chamar Instituto Estatal da Cultura Linguística (GIRK – Gossudárstvennyi Institút Retchevói Kultúry), onde trabalhou Volóchinov (1925 a 1932). Os inúmeros arquivos contêm textos que permitem refazer seu percurso nos documentos, esboços, planos da obra referida, e, além disso, evidencia o contexto social/cultural/político/ideológico e acadêmico do período.
Paralelamente se deduz a efervescência cultural que antecedeu o stalinismo, cujos encontros em círculos de intelectuais interessados nas mesmas temáticas eram comuns, inclusive as obras que Bakhtin, Volóchinov e Medviédev produziam na época.
Entre os principais achados da consulta ao arquivo destacamos: a forte presença da teoria marxista em diversas atividades do ILIAZV, a participação de Volóchinov nessas atividades, a atuação de Volóchinov na seção de metodologia da literatura, a presença de temas de trabalhos de Medviédev e de Bakhtin em planos dos relatórios de Volóchinov entregues ao ILIAZV, o reconhecimento dos méritos acadêmicos de Volóchinov por pesquisadores do ILIAZV, a metodologia de trabalho de Volóchinov, as mudanças nas instituições acadêmicas soviéticas entre 1925 e 1932
(Grillo; Américo, 2017, p. 255).
Essa pesquisa in loco possibilitou uma nova tradução e nela nomear, sem sombra de dúvida, Valentín Nikoláievitch Volóchinov como autor de Marxismo e filosofia da linguagem.
No plano da obra Ensaio de Poética Sociológica e na descrição de conferências feitas por Volóchinov, pode-se ver em destaque o que é especialmente importante para este trabalho, que é “a orientação metodológica baseada no método sociológico que toma como objeto o sistema valorativo e a paródia, fenômenos amplamente abordados na obra do Círculo nos anos 1920” (Grillo; Américo, 2017, p. 268).
Na colaboração estreita entre Bakhtin, Medviédev e Volóchinov na segunda metade dos anos 1920, dentro da realidade acadêmica russa, as suas obras posteriormente publicadas são inextricavelmente beneficiadas.
[O] ILIAZV é único instituto de pesquisa da União Soviética à época, onde ocorriam pesquisas tanto da área de literatura, quanto de linguística. Consequentemente, os limites imprecisos entre teoria da literatura e linguística e a riqueza daí decorrente das obras de Valentín Volóchinov, Pável Medviédev e mesmo Mikhail Bakhtin podem ter se beneficiado desse contexto acadêmico
(Grillo; Américo, 2017, p. 279).
Bakhtin é um pensador que tem a linguagem como ponto de vista e a literatura como objeto, como materialidade e campo de pesquisa (Ponzio, 2007). Em seu ingresso na universidade, assim como Volóchinov, ele precisou optar pelo departamento de estudos de línguas. Aliás, não havia um curso de Filosofia independente de uma aplicação prática.
Bakhtin se assume “filósofo da linguagem” numa rara entrevista feita em 1973 a Viktor Duvakin (Bakhtin; Duvakin,4 2008, p.45), pesquisador da produção literária russa no início do século. Para muitos, Bakhtin ficou muito conhecido como crítico literário. Essa entrevista é de especial importância para qualquer estudo bakhtiniano, porque permite uma aproximação com a visão do autor sobre o período que antecedeu e o período que sucedeu a revolução de outubro, assim como mostra o reflexo das reviravoltas sociais desde Lênin a Stalin na sua vida pessoal com a esposa, sua doença, seu trabalho, seus amigos, seu exílio.
Os livros Problemas da obra de Dostoievski (1929), posteriormente revisado e ampliado (1963), e A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais (1965), o inaugural artigo “Arte e responsabilidade” (1919) e, conforme Ponzio (2008, p. 20), as introduções aos volumes XI e XII das Obras escolhidas, de Tolstoi, entre outros, marcam o campo literário/estético como temas de sua produção.
Foi, entretanto, dentro de um contexto cultural pré-revolucionário que Bakhtin iniciou seu itinerário filosófico por uma filosofia moral “não indiferente” ao outro e fincou toda a sua produção numa arquitetônica do ato responsável – cognitivo, estético e ético – que tem as palavras (no sentido semiótico) como pontes que ligam um indivíduo ao outro, dando-lhes sentidos por meio de seus atos entre sujeitos. “Para Bakhtin, a arquitetônica intersubjetiva que leva em conta os valores, sem separar o conhecimento das esferas não teóricas da existência, está na base da sua filosofia do ato ético” (Bubnova, 2013, p. 10, n. 5).
Interessa-nos, contudo, focalizar o que também Tatiana Bubnova (2011) sintetiza, de forma que podemos fazer nossas as suas palavras para compreendermos não só o poder da linguagem sobre o mundo, ou melhor, dos indivíduos singulares inter-relacionados socialmente, como o poder da espécie humana de modificar as mesmas inter-relações interindividuais, de modificar as culturas e as reflexões ou teorizações sobre essas e outras questões daí decorrentes.
A língua, se não é tudo na vida humana, está em tudo, organicamente integrada ao ato ético bilateral, de modo que se pode falar, entre a infinita variedade dos atos humanos, de ato ação física, ato pensamento, ato sentimento, ato estético ou artístico, ato cognitivo, e de ato enunciado em si. A linguagem está organicamente integrada em todos os tipos de atos. Assim, o sentido da palavra dita se funde e se imbrica com a ação e adquire o poder de uma ação. Do mesmo modo, a palavra escrita conserva este poder de ascendente sobre o mundo e contém elementos persuasivos capazes de provocar a resposta do outro. E esses elementos da palavra escrita estão pensados como elementos do discurso oral traduzido em letra, como traços estruturais que constituem uma voz escrita
(Bubnova, 2011, p. 273).
Além dessa onipresença da língua que dá a Bakhtin seu campo de pesquisa e perspectiva filosófica, ele fundamenta seus princípios na crise do ato (do ato pensamento, ato sentimento, ato estético etc.) em um livro que, na verdade, é um esboço nunca concluído de uma filosofia moral. No pequeno livro que nos dá muito o que estudar e aprender, Para uma filosofia do ato responsável (1924), enxergamo-nos dependentes esteticamente do outro para que sejamos esteticamente produtivos para nós mesmos, ou seja, precisamos do outro para produzir qualquer autoconhecimento, portanto qualquer conhecimento dos outros enquanto indivíduos singulares e sociais. Ele sintetiza essa necessidade estética do outro nos conceitos de distância – ou exotopia – e de “excedente da visão estética” (Bakhtin, 2003, p. 21-25).
Nisso se baseia este estudo. Parece-nos que precisamos dessa extra localização temporal para compreender nossas cronotopias ou, então, contextualização entre vida, obra e conceitos para fazer uma ponte epistemológica entre epistemologias.
3 Boaventura de Sousa Santos e o diálogo metodológico
Acontece que a vida vivida dos livros é tão caótica quanto a nossa e não se coíbe de subverter a ordem com a desordem da vida
(Santos,52010, p. 13).
Diferente de Bakhtin, cuja imagem da vida pessoal e mesmo intelectual tivemos que ir construindo, Boaventura de Sousa Santos fala de si em sua homepage: http://www.boaventuradesousasantos.pt/pages/pt/homepage.php, na qual apresenta seus trabalhos mais relevantes segundo ele próprio. Sua principal bibliografia é encontrada na contracapa de seus livros. Atua semanalmente em revistas de cunho jornalístico, como a matéria dedicada a Marielle Franco, deputada do Rio de Janeiro assassinada em 14 de março de 2018.
Sabemos o que ele pensava sobre as ciências em 1987 – Um discurso sobre as ciências – e o que ele pensa sobre as questões políticas mais atuais do Brasil6 como um país do Sul do mundo, colonizado, em sua relação com o Norte, colonizador uma hierarquia de poderes e direitos ainda mantida.
Sousa Santos, além de sua extensa produção científica no campo da Sociologia, do Direito e da Política, numa “crítica forte da teoria crítica” (Santos, [2000]2011, p. 23-37), em busca de soluções posicionadas num “pós-modernismo de oposição” (Santos, [2006] 2010, p. 29), e de participar de pesquisas junto a pesquisadores ao redor do mundo (Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade, 1994), ele produz contos e poesias.7
Eis uma apresentação sua na revista digital Confraria – arte e literatura (2006):8
Boaventura de Sousa Santos é diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Distinguished Legal Scholar da Faculdade de Direito da Universidade de Wisconsin-Madison. É um dos principais pensadores das questões sociais contemporâneas em língua portuguesa. Sociólogo, autor, entre outros, da coleção Reinventar a emancipação social: para novos manifestos, em sete volumes, da editora Civilização Brasileira. Mais conhecido como pensador, é autor de Escrita INKZ, livro que o lançou como poeta no Brasil. O presente conto é inédito.
Ler os trabalhos de pesquisa, reflexão e apresentação desses resultados em Boaventura de Sousa Santos nos faz enxergar nele uma preocupação pungente de encontrar soluções teóricas de alcance social para problemas concretos individuais de maneira pessoalmente envolvida que, talvez, não seja tão evidente para o leitor, geralmente também pesquisador em alguma das áreas das Ciências Humanas.
Alguns enunciados, no entanto, saltam aos nossos olhos ávidos por encontrar a vida singular e criativa do autor que escreve, orienta, organiza, coordena pesquisas tão apaixonadas pela vida real de pessoas reais pelos vieses social, teórico, abstrato, intelectual, erudito, como, por exemplo, o enunciado que apresentamos na epígrafe.
Felizmente, Cunha (2010), em sua dissertação de mestrado, Sonoridades do Sul: ausências, emergências, traduções e encantaria na educação, olhou para o sociólogo português destacando-o, principalmente, em seu trabalho Sociologia das Ausências e em inúmeras obras suas disponibilizadas na Internet, encontrando, além dos artigos e textos científicos, poesias e contos do autor. Desse modo, permitiu, com olhos de ver a pessoalidade do pesquisador, que nós iniciássemos o diálogo com ele de um modo mais próximo, como uma conversa de botequim. E também encurtou nosso próprio garimpo na rede. Encontramos joias como esse recorte do conto denominado “Mr. Book em Nova York”, em que o narrador conversa com seus livros.
Talvez pela proximidade, é-me cada vez mais difícil estar à sombra de razões fixas. Todos aguentamos um discurso da verdade mas ninguém aguentaria dois. Tu rias-te, mais consciente das mutações do que eu. O que me faltava quando tinha o livro entre as mãos! Deficiente de tanta força ilustrada, sem pensões nem condecorações. Deixei-me iludir por razões que só davam para as minhas razões. Em verdade, eu ia sendo expulso de casa, deportado para as teorias mais inóspitas, condenado a atravessar pântanos analíticos, um passo atrás doutro passo, de tanta erudição enredada nos pés. Quando deste comigo já eu estava incapacitado. Não te surpreendeu a minha falta de serenidade. Afinal, depois de tanta mutação, um livro estava ao espelho doutro livro. E só restava começar tudo de novo9
(Santos, 2006).
Trata-se de um instigante conto acerca do conflito de um homem, sua vida e seus livros que nos permite ver que os indícios um tanto raros encontrados na sua obra científica são muito mais significativos do que poderiam ser se isolados desse achado.
Boaventura de Sousa Santos licenciou-se em Direito na Universidade de Coimbra em 1963,estudou Filosofia do Direito na Universidade de Berlim e, depois, fez seu doutorado em Sociologia do Direito nos Estados Unidos, na Universidade de Yale. E, por incrível que pareça, com tantas publicações mundo afora, só em 2015 sua tese de doutorado, originalmente em inglês, foi publicada em seu país natal.
Como é possível encontrar o próprio autor apresentando suas ideias de mundo e a forma como pretende contribuir pessoalmente, em primeira pessoa e de próprio punho, seu trabalho e suas aspirações, optamos por trazer uma síntese que tanto nos ajuda, neste texto, a compreender suas opções intelectuais com a tessitura de conceitos que faz, ao mesmo tempo, pessoais, como revela em seu tom, seu envolvimento e opções.
Analiso, em especial, a passagem complexa de uma teoria crítica pós-moderna para uma teoria crítica pós-colonial. Uma passagem complexa porque nem sempre a segunda anula a primeira, nem qualquer delas responde adequadamente às passagens que continuo explorando. A minha crítica da modernidade ocidental – concebida, quer como paradigma epistemológico, quer como paradigma sociocultural – nunca se identificou com as concepções pós-modernas dominantes entre os autores do Atlântico Norte. Nunca deixei que a crítica dos modos modernos de transgressão boicotasse a ideia de transgressão. Nunca perdi de vista que a desconstrução da modernidade e da crítica moderna da modernidade não deveria envolver a desconstrução da aspiração de uma sociedade mais justa e mais solidária, e muito menos que o desarme das lutas de resistência contra a injustiça e a opressão. Daí a minha caracterização do tempo de transição que vivemos: confrontamos problemas modernos (igualdade, fraternidade, liberdade, paz) para os quais não há soluções modernas, dadas as inadequações reveladas pelo liberalismo, o progresso, o marxismo, a revolução e o reformismo
(Santos, [2006]2010, p.15).
Ocupar-nos-emos de iniciar formalmente um diálogo entre Bakh e Boa, agora mais próximos, para constituir uma boa conversa de botequim.
4 Conversas hetero(auto)científicas
De onde falamos (universidade pública no Hemisfério Sul do mundo ocidental), os discursos e os gêneros discursivos submetidos à identidade pessoal (nos sentidos psicológico e autobiográfico) ou à identidade coletiva (nos sentidos culturológico, sociológico, político) são marcados pelas características científico-epistemológicas dominantes da racionalidade ocidental (Santos, 1989; 2002; 2010; 2011), porém, diante da crise do ato responsável (Bakhtin, 2010), o ato– não indiferente e amoroso que ocorre nas dimensões cognitiva, estética e ética e em tripla relação axiológica do eu com o outro, ou seja, eu-para-mim, eu-para-outro, outro-para-mim – e seu produto estão separados– pelos métodos/concepções epistemológicas mecanicistas que procuram determinar os passos de pesquisa –, o que se reflete na transição paradigmática (Santos, 2011) e no surgimento desses mesmos – e outros – discursos e gêneros do discurso que imprimem movimentos ao diálogo entre campos que permeiam toda ciência, a despeito de ser esse seu objetivo. Acabam, então, por não serem movimentos científicos como têm sido “desde o século XVI, onde todos nós, cientistas modernos, nascemos, até ao próprio século XIX” (Santos, 1988, p. 46), mas “heterocientíficos” (Bakhtin, 2003, p. 399),
E, como aprendemos no trabalho do círculo bakhtiniano, mesmo “as estruturas mais simples, as mais primitivas manifestações de desejos, de percepções puramente fisiológicas, têm uma certa estrutura sociológica” (Volóchinov, 2013, p.157), ou seja, mesmo tratando das relações singulares entre consciências isônomas e imiscíveis, mas não isoladas, entre um e (pelo menos mais) um, leva-nos a nos empenhar em aprofundar nossos conhecimentos e a refletir sobre o uso de métodos sociológicos.
Os métodos sociológicos são tomados como os mais apropriados para fazer pesquisas no campo da Educação, que está imbricado na linguagem tanto por sua ontologia quanto pela materialidade que trazemos, ou, ainda, consideramos que os métodos sociológicos são os únicos a proporcionar produção de conhecimentos com e sobre as narrativas pedagógicas (Prado, 2018) e as metodologias narrativas de pesquisa (Prado et al., 2015).
Boaventura Santos, por sua vez, com o propósito de revelar parte do processo de construção de um grande projeto bibliográfico de quatro volumes, Para um novo senso comum: a ciência, o direito e a política na transição paradigmática, composto, até o momento, por dois – A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência (v 1) e A gramática do tempo: para uma nova cultura política (v. 4) –, escolhe narrar a sua trajetória intelectual como a soma de suas opções pessoais. Ampliando a consciência dos pesquisadores ao Sul e ao Norte sobre a transição paradigmática que estamos passando, afirma que foram acontecimentos pessoais em seus percursos de vida que o forçaram a alterar uma ordem planejada na publicação dos livros segundo determinada cronologia (Santos, 2010, p. 15).
Estarmos no topo da onda de mudanças paradigmáticas socioculturais influencia nossos reconhecimentos dos fatos atuais e nossos atos, nossa “vivência de nós”, sendo necessária uma impossível exotopia (Bakhtin, 2003) se estivermos dentro da materialidade produzida nos atos singulares, não reconhecidos pela ciência moderna, mas que transparecem pelos poros das obras mais iconicamente modernas.
A ciência moderna consagrou o homem enquanto sujeito epistêmico, mas expulsou-o enquanto sujeito empírico. Esta duplicidade está representada na epígrafe à Crítica da Razão Pura de Kant: de nobis ipsis silemus. Por outras palavras, no mais eloqüente tratado sobre subjectividade produzido pela modernidade ocidental nada se dirá sobre nós próprios enquanto seres humanos vivos, empíricos e concretos. Um conhecimento objectivo e rigoroso não pode tolerar a interferência de particularidades humanas e percepções axiológicas. Foi nessa base que se construiu a distinção dicotômica sujeito/objecto
(Santos, 2011, p. 81-82).
Um problema que de dentro da ideologia posta na ciência moderna é ocultado, tornando difícil lidar, é que “todo conhecimento é autoconhecimento” (Santos, 2011). E, como estamos embrenhados nessa discussão, não é possível pensar numa ciência outra, que leva em conta que a produção de conhecimento é autoconhecimento e que, ao mesmo tempo, este autoconhecimento é heterocientífico: insistimos, é um hetero(auto)conhecimento produzido por uma hetero(auto)ciência. Ninguém conhece a si mesmo a não ser por meio dos outros, nos encontros – não necessariamente diretos, mas inevitavelmente dialógicos – com os outros reais ou imaginários, presentes em carne e osso ou em suas produções culturais, como as obras artísticas, científicas e filosóficas: da exotopia do próprio olhar para nós e de nosso excedente de visão para eles e vice-versa (Bakhtin, 2003).
Talvez seja ainda mais indigesto para a ideologia exclusiva, fragmentada e fragmentária moderna ainda dominante na transição paradigmática saber que nossa consciência é formada e forma conhecimentos que são respostas à busca de compreensão e de penetração profunda em sentidos do mundo que emergem nos encontros com os outros. No fundo, uma filosofia moral só pode ser uma filosofia da “escuta do outro” (Ponzio, 2010, p. 11), uma filosofia da não indiferença ao outro.
Essas respostas não se encontram orientadas pelo isolamento do pesquisador, mas sim pelo mundo da cultura e seus outros mais próximos (direta ou indiretamente). Nossa consciência se orienta pelo fato de que não só se pode “tolerar a interferência de particularidades humanas e percepções axiológicas”, como contamos com elas, desejamo-las para sabermos como e para que educar nossos estudantes.
Em nossa profissão de educadores, temos o privilégio de muitos olhares sobre nós e a eles respondemos (inclusive narrativamente) com nosso modo de ensinar, como damos a ver em narrativas e “pipocas pedagógicas” (Prado, 2018) e em inúmeras pesquisas narrativas, das quais aqui citamos duas (Serodio, 2014; Simas, 2018).
Aliás, desse modo de ver/escutar/responder a si e ao outro no mundo e responder-lhes, tomamos consciência do “eu”, do “nós” e de “si”, que é orientada para os outros ou “para si” (Volochínov, 2017, p. 210-211), pois não vivemos a não ser com outros em todas as esferas de nossa vida (empírico-vital ou teórico-cultural), além de, no íntimo, Kant, o ícone da racionalidade moderna, saber/desejar que as opiniões de sua obra sejam representativas de sua vida como num quadro, que pode iluminar novas instruções.
Gostaria de mostrar, nesse Discurso, que caminhos segui; e de nele representar a minha vida como num quadro, para que cada qual a possa julgar, e para que, sabedor das opiniões que sobre ele foram expendidas, um novo meio de me instruir se venha juntar àqueles de que costumo servir-me
(Kant, 1984, s/p apudSantos, 2011, p. 84).
Se, no paradigma moderno ainda dominante, o conflito se instaura já proporcionando o reconhecimento do caráter autobiográfico de um certo tipo de conhecimento, ou, dizendo de outro modo, se os conflitos e as crises instauradas pelo desequilíbrio entre a regulação e a emancipação já projetam nas escritas autobiográficas o reconhecimento de uma outra epistemologia possível, de uma ciência hétero e não autocentrada, que passa a reconhecer a história, a memória, a emoção-volição do pesquisador como essencial nas suas escolhas e percursos intelectuais; ou, ainda, se “[n]o paradigma emergente, o caráter autobiográfico do conhecimento-emancipação é plenamente assumido: um conhecimento compreensivo e íntimo que não nos separe e antes nos una pessoalmente ao que estudamos”, no entanto, ainda é preciso salientar:
Não se trata do espanto medieval perante uma realidade hostil possuída do sopro da divindade, mas de uma prudência perante um mundo que, apesar de domesticado, nos mostra cada dia a precariedade do sentido da nossa vida, por mais segura que esta esteja quanto à sobrevivência, sendo certo que para a esmagadora maioria da população mundial não está
(Santos, 2011, p. 84).
Mais decisivo ainda pode ser tomar consciência da própria consciência talhada na relação com os outros, cada qual criador de sentidos singulares para um mundo que seja melhor para si-com-os-outros. Seja como for, ao tratar do paradigma de transição, Boaventura Santos não silencia sobre o caráter autobiográfico dos produtores de conhecimento. Podemos deduzir, então, que seja constitutivo também dos conhecimentos produzidos por esses sujeitos, sendo, assim, hetero(auto)biográficos.
5 Finalizando o diálogo com Bakhtin e Boaventura e abrindo a outros...
Procuramos mostrar, na parte da vida dos autores biografada por nós, suas obras como conhecimentos de pessoas em relações interindividuais e sociais e, também, enquanto pesquisadores e formadores, assim como nós. As materialidades narrativas de acontecimentos particulares em contextos sociais de um(a) autor(a) com e a partir das suas relações individuais, pessoais e singulares incluem os conhecimentos teóricos e práticos, parte constitutiva do ato responsável do(a) profissional hetero(auto)científico enquanto indivíduo singular em seus atos irrepetíveis, e, auto(hetero)conhecimentos.
Boaventura Santos nos projeta, ele mesmo dizendo, como um eu que toma as decisões de seu trabalho teórico e literário, onde o seu eu-criador pode dar vazão aos pensamentos que o eu-cientista-ainda-moderno produz. Decisões situadas em campos – Ciência, Direito, Política – que englobam outros conceitos generalizantes, amplos e, de novo, abrangentes da sociedade, como sociologia das ausências, paradigma de transição, racionalidade moderna, transição paradigmática, pós-modernidade de transição etc. Ao perceber a complexidade na transição paradigmática, porque a entrada de uma não anula a anterior, quem fala alto é a literatura como voz de autor que já se sabe também pesquisador:
“Todos aguentamos um discurso da verdade, mas ninguém aguentaria dois. Tu rias-te, mais consciente das mutações do que eu. O que me faltava quando tinha o livro entre as mãos! Deficiente de tanta força ilustrada, sem pensões nem condecorações. Deixei-me iludir por razões que só davam para as minhas razões”
(Santos, 2010, p. 15).
Mikhail Bakhtin exigiu de nós que fossem realizadas pesquisas de terceiros acerca de sua vida pessoal e dos círculos de estudos. E sua obra nos faz ver nossa individualidade social, nossos atos responsáveis constituídos cognitiva, estética e eticamente e que nos tornam insubstituíveis em nossa expressão para o outro, em nossas relações com os outros, situando-nos em campos mais amplos ainda: o mundo da vida e o mundo da cultura.
Nesse diálogo, esses constructos, tanto de Bakhtin quanto de Boaventura, mas também de Serodio, Prado e Simas (2018), possibilitam-nos transitar de uma visão face a face para uma visão social, expandir o olhar de um “outro” singular, para um “outro” coletivo, expandir do particular para o geral sem perder o princípio constitutivo do outro singular em mim e do outro singular em nós. E essa expansão que transgride a ciência para se tornar heterocientífica transgride a heterociência para se tornar hetero(auto)científica, pois não pode não reconhecer a subjetividade singular em sua tripla relação com o outro que lhe dá os excedentes de sua visão estética, cognitiva e ética.
Para finalizar esse texto, convém lembrar que o diálogo entre Bakhtin e Boaventura fez parte da pesquisa10 de um de nós, que tomava as narrativas pedagógicas, em alguns de seus papeis generalizantes (gêneros do discurso), a saber: instrumentos de registro, comunicação, documentação, materialidade de pesquisa, expressão dos sentidos, reflexão de si-com-o-outro, produção de conhecimentos acerca dos acontecimentos da escola etc.
Assim, a posição de quem narra transparece na relação com os outros com quem viveu os acontecimentos narrados. Essa posição na vida pessoal e profissional e na pesquisa nos põe em constante questionamento sobre nossa posição na vida com o conhecimento diante dos paradigmas e dos atos do outro.