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Educação: Teoria e Prática

Print version ISSN 1993-2010On-line version ISSN 1981-8106

Educ. Teoria Prática vol.34 no.67 Rio Claro  2024  Epub Sep 05, 2024

https://doi.org/10.18675/1981-8106.v34.n.67.s17572 

Artigos

Desafios da avaliação da aprendizagem na EJA: reflexões a partir de um estudo de caso e da experiência docente

Challenges of assessing learning in EJA: reflections based on a case study and teaching experience

Desafíos de la evaluación del aprendizaje en la EJA: reflexiones desde un estudio de caso y la experiencia docente

Abraão Carneiro do Carmo Rodrigues1 
http://orcid.org/0000-0001-7230-1812

Maria Rosileide Bezerra de Carvalho2 
http://orcid.org/0000-0003-0313-6117

Tiago Santos Sampaio3 
http://orcid.org/0000-0002-7777-5897

1Universidade do Estado da Bahia, Salvador, Bahia – Brasil. E-mail: rodrigues.a.c90@gmail.com.

2Universidade do Estado da Bahia, Alagoinhas, Bahia – Brasil. E-mail: mrosebcarvalho@gmail.com.

3Universidade do Estado da Bahia, Conceição do Coité, Bahia – Brasil. E-mail: tssampaio1@hotmail.com.


Resumo

A Educação de Jovens e Adultos (EJA) é uma modalidade voltada para um público que, muitas vezes, vivenciou a experiência de fracasso escolar decorrente, em parte, dos processos de avaliação. O objetivo deste trabalho é refletir sobre os desafios da avaliação na EJA a partir dos resultados obtidos em um estudo de caso e da sistematização de experiências enquanto docente em turmas de EJA no nível médio. A pesquisa documental apontou para o uso de avaliações equivalentes ao modelo regular de ensino, marcado pela transposição nota-conceito que parece refletir os baixos índices de aproveitamento verificados pela investigação empreendida. A sistematização, por sua vez, demonstrou as dificuldades de romper com uma lógica de avaliação mais voltada para a verificação e a atribuição de conceitos para aprovação e reprovação, ao passo que se observa a tentativa de superação dessa lógica. Os resultados indicam os desafios que a avaliação na EJA ainda apresenta no sentido de trabalhar em prol de reparar, e não de reproduzir, o fracasso escolar.

Palavras-chave Avaliação da Aprendizagem; EJA; Experiência Docente; Fracasso Escolar

Abstract

The Educação de Jovens e Adultos (EJA) is a modality aimed at an audience that has often experienced school failure, partly as a result of evaluation processes.The objective of this work is to reflect on the challenges of evaluation in EJA, based on the results obtained in a case study and the systematization of experiences as a teacher in EJA classes at secondary level. The documentary research pointed to the use of assessments equivalent to the regular teaching model, marked by the grade-concept transposition that seems to reflect in the low achievement rates verified by the investigation carried out. Systematization, in turn, demonstrated the difficulties of breaking with an evaluation logic more focused on verification and attribution of concepts for approval and disapproval, while observing the attempt to overcome this logic. The results indicate the challenges that evaluation in EJA still presents in the sense of working towards repairing and not reproducing school failure.

Keywords Learning Assessment; EJA; Teaching Experience; School Failure

Resumen

La Educación de Jóvenes y Adultos (EJA) es una modalidad dirigida a un público que muchas veces ha experimentado el fracaso escolar como resultado, en parte, de procesos de evaluación. El objetivo de este trabajo es reflexionar sobre los desafíos de la evaluación en la EJA a partir de los resultados obtenidos en un estudio de caso y la sistematización de experiencias como docente en las clases de la EJA en el nivel secundario. La investigación documental apuntó a la utilización de evaluaciones equivalentes al modelo de enseñanza regular, marcada por la transposición grado-concepto que parece reflejarse en los bajos índices de aprovechamiento verificados por la investigación realizada. La sistematización, a su vez, demostró las dificultades de romper con una lógica de evaluación más enfocada en la verificación y la atribución de conceptos para aprobación y desaprobación, al mismo tiempo que observa el intento de superación de esa lógica. Los resultados indican los desafíos que aún presenta la evaluación en la EJA en el sentido de trabajar para reparar, y no para reproducir, el fracaso escolar.

Palabras clave Evaluación del Aprendizaje; EJA; Experiencia Docente; Fracaso escolar

1 Introdução

A Educação de Jovens e Adultos (EJA) é uma das modalidades do Ensino Básico e está voltada àqueles que não puderam ingressar na escola ou prosseguir seus estudos em idade considerada própria, necessitando, pois, segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Básico, de oportunidades de aprendizagem para que possam exercitar a cidadania e ter condições de saírem da condição de exclusão (Brasil, 2013). Dessa forma, o estabelecimento da EJA, a partir do que consta nas suas próprias Diretrizes, busca responder a uma demanda social por parte de uma parcela da população que não teve a oportunidade de se escolarizar em idade regular, permanecendo em posições de subalternidade em função de tal condição (Brasil, 2000).

Admitem-se na EJA, portanto, especificidades que estão atreladas ao perfil de seu público, isto é, aos sujeitos que, conforme suas diretrizes (Brasil, 2000), apresentam uma trajetória rica em experiências e que, embora ainda não escolarizados, são dotados de saberes e, muitas vezes, já possuem vasta experiência profissional. Tais diretrizes se prestam, inclusive, por dever constitucional, a tratarem a EJA como um segmento de ensino voltado a oferecer a possibilidade desses sujeitos gozarem da educação como um direito fundamental, na medida em que a Constituição Federal de 1988, em seu artigo 205, a assegura enquanto “direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (Brasil, 2016). Assim, enquanto direito que lhes foi adiado, entre diversas razões, tais como a inacessibilidade ou evasão, a EJA precisa adotar uma dinâmica de funcionamento que considera as particularidades de seu público, considerando suas experiências de vida e necessidades como eixos norteadores da proposta pedagógica a lhes ser ofertada (Brasil, 2000).

A exigência de considerar o perfil dos educandos está resguardada ainda pela própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de nº 9.394/1996 ao afirmar que:

Os sistemas de ensino assegurarão gratuitamente aos jovens e aos adultos, que não puderam efetuar os estudos na idade regular, oportunidades educacionais apropriadas, consideradas as características do alunado, seus interesses, condições de vida e de trabalho, mediante cursos e exames

(Brasil, 1996).

Em conformidade, depreende-se que as dimensões dos processos de ensino-aprendizagem devem ser condizentes com as realidades de seu público, desde o planejamento docente até a avaliação. Cabe salientar que, de acordo com Gadotti (2011), não apenas as especificidades de seu percurso de vida devem nortear o trabalho dos professores com os sujeitos da EJA, mas também a compreensão de que muitos estão marcados por um complexo de inferioridade, apresentando-se, portanto, temerosos e envergonhados, especialmente no espaço escolar, instância na qual a maioria experimentou, paradoxalmente, o fracasso escolar em função da crença em sua ignorância como causa quase imutável deste desempenho considerado insatisfatório em termos do que se situa socialmente como sucesso escolar. Esse aspecto é pontuado também por Barcelos (2014) ao problematizar a tirania do processo avaliativo voltado à classificação ao invés da aprendizagem, daí a necessidade, segundo os autores, de que os sujeitos sejam estimulados e motivados a falarem de si, a compartilharem suas experiências e o percurso até então construído, de modo a que tenham suas histórias de vida legitimadas e que suas narrativas sirvam de ponto de partida para um trabalho pedagógico coerente com a proposta da EJA.

Nessa perspectiva, o trabalho com essa modalidade de ensino é, também, como salienta Gadotti (2011), um trabalho político, desde que tenha como matriz a experiência de sujeitos que apresentam, na maioria das vezes, condições de vida subalternizadas, cuja cidadania foi impedida de ser exercida em função da baixa ou nenhuma escolarização. Em decorrência disso, Gadotti salienta que a condição política da EJA se perfaz, justamente, na compreensão de que “a educação de adultos está condicionada às possibilidades de uma transformação real das condições de vida do aluno-trabalhador” (Gadotti, 2011, p.39).

Destarte, o professor, segundo o autor, deve considerar em seu planejamento e demais ações as condições socioculturais de seus alunos, sem tomar-lhes como ignorantes e desprovidos de saber, condições essas, muitas vezes, já internalizadas pelos próprios educandos em um modelo de sociedade que os exclui de direitos básicos como a educação para a cidadania. Para Gadotti (2011), trata-se, pois, de um trabalho que precisa partir do estabelecimento de diálogos com o estudante adulto, dando-lhe voz para expressar seu ponto de vista e lhe oportunizando conhecer e apreender o saber sistematizado, de modo a articulá-lo aos que já possui, podendo melhorar suas condições de vida e alcançar maior participação social e política no mundo. Diz respeito, pois, de uma (re)visão ampla e crítica que ratifica a posição de Mészáros (2008) de que uma “reformulação significativa da educação é inconcebível sem a correspondente transformação do quadro social no qual as práticas educacionais da sociedade devem cumprir as suas vitais e historicamente importantes funções de mudança” (Mészáros, 2008, p. 25).

Para tanto, é cada vez mais relevante pensar a EJA como um projeto de educação popular que, para promover a mudança, reconheça, primeiro, a concretude de vida de jovens e adultos jogados à margem e que vivenciam histórias marcadas pela precarização do trabalho, pela violência e pela estigmatização, conforme afirma Arroyo (2007). Segundo o autor, o sentido da EJA, enquanto política afirmativa, precisa ser demarcado como um projeto político desse coletivo cada vez mais vulnerável e que não pode ser diluído em políticas generalistas.

Desse modo, como afirma Romão (2011), o trabalho do professor da EJA tem por objetivo uma factual transformação social, isto é, a oportunização de um espaço cujos conhecimentos trabalhados permitam um saber-fazer no mundo. Trata-se, pois, de um fazer pedagógico marcado por uma concepção democrática, cuja consciência do objetivo de seu trabalho norteia o relacionamento que estabelece com os alunos, sua didática, a função do conhecimento e o modo de avaliar. Com isso, toda prática docente deve ser pensada e efetivada a partir da especificidade dessa modalidade, visando à aprendizagem para a emancipação, como apontou Paulo Freire (1996).

Tendo em vista essa concepção educacional na EJA, problematizamos, visando a delimitação, uma das dimensões deste trabalho, a avaliação, considerando não apenas que ela consiste em um dispositivo diagnóstico da situação de aprendizagem do estudante e de reorientação do próprio trabalho docente, mas que se converteu em operação de aprovação/reprovação (Romão, 2011; Barcelos, 2014), além de, por uma prática perversa de hierarquização, ser também responsável pelo abandono e evasão da escola por parte do estudante, situação que contribui para a manutenção do analfabetismo e da falta de escolarização no país (Barcelos, 2014). Logo, essas duas questões, lógica contrária ao seu propósito original e instrumento promotor de abandono da escola, justificam a realização de um trabalho que se propõe apresentar realidades sobre a avaliação, discutindo-as não somente a partir da literatura especializada no tema, mas por meio de pesquisa e vivência no contexto da EJA. Em conformidade com esta proposta, o presente trabalho objetiva refletir sobre os desafios da avaliação na EJA, a partir dos resultados obtidos em um estudo de caso e da sistematização de experiências enquanto docente em turmas de EJA no nível médio.

Na próxima seção realizaremos a exposição de sua metodologia e, em seguida, apresentaremos os resultados deste trabalho. À medida que os resultados forem apresentados, realizaremos sua discussão a partir do referencial teórico adotado, notadamente Freire (1983, 1996, 2020), Gadotti (2011), Romão (2011), Barcelos (2014), Mészáros (2008), Luckesi (2006), Arroyo (2007) e Hoffman (2014).

2 Metodologia: estudo de caso e sistematização de experiências na EJA

Este trabalho é fruto da (re)contextualização de informações obtidas em um trabalho de Conclusão de Curso do primeiro autor deste trabalho por meio de dois recursos metodológicos, um estudo de caso em EJA e uma sistematização de experiências da prática docente em turmas da mesma modalidade de ensino. No caso do primeiro, buscou-se caracterizar a EJA em uma escola estadual da cidade de Santaluz, Bahia, no ano de 2014, por meio de pesquisa documental, de modo a apresentar aspectos escolares que expressam a lógica de funcionamento da EJA nesta unidade escolar, considerando, para isto, desde o levantamento do número de matriculados até os índices de reprovação e aproveitamento no ano em questão. Em relação ao segundo recurso, este consistiu em um exercício de registro, ordenação e análise das situações vividas no trabalho docente com EJA, em 2022, especialmente aspectos voltados ao planejamento, às dificuldades metodológicas e ao processo de avaliação. Iremos, a seguir, melhor explicitar cada percurso metodológico.

Por meio da metodologia estudo de caso, a pesquisa analisou de forma intensiva uma unidade de ensino. De acordo com André (1984), o estudo de caso é utilizado por diversas áreas do conhecimento, especialmente nas ciências sociais. Trata-se, conforme a autora, de uma investigação concreta e mais contextualizada, em que o pesquisador, após escolher um caso, isto é, seu objeto de estudo, empreende a coleta de dados e, em seguida, realiza uma análise do que foi coletado (Nisbett; Watts apudAndré, 1984).

O estudo de caso foi realizado em uma escola estadual do município de Santaluz, Bahia, utilizando a pesquisa documental, eletrônica e bibliográfica, como instrumento de coleta de dados. Além disso, contemplou a observação, o registro e análise de uma série de materiais disponibilizados pela instituição que serviu como lócus da pesquisa, como diários de classe, por exemplo, a fim de concretizar o caráter suplementar que diversas fontes de informações podem assumir, conforme prevê Günther (2006) ao mencionar a possibilidade de utilização de documentos administrativos, atas, gravações, entre outros, neste recurso metodológico.

Do ponto de vista da sua natureza, esta investigação é de tipo quanti-qualitativo, uma vez que, de acordo com Neves (1996), utilizamos planos previamente estabelecidos que nos levaram ao levantamento de dados percentuais, mas que tiveram uma análise qualitativa dos dados coletados. Tal tratamento é possível, tendo em vista que, segundo o autor, a pesquisa quantitativa não exclui a qualitativa, ainda que ambas apresentem diferenças quanto à forma e à ênfase. Na perspectiva apresentada por Neves (1996), o emprego de uma investigação qualitativa de dados que foram quantificados contribui para melhor compreensão do fenômeno em questão. Dessa forma, nosso trabalho procurou quantificar dados obtidos nos documentos acessados, mas os tratou de modo mais abrangente, permitindo-nos, no processo de análise, realizar inferências com base na literatura sobre a EJA e nas nossas vivências, não nos restringindo apenas aos números obtidos. Com isso, acreditamos que, ao invés de uma oposição entre dados quantitativos e qualitativos, buscamos utilizá-los como complementares em nosso estudo de caso. Assim, nos alinhamos a um entendimento de Weber (2016) quando este afirma que “o domínio do trabalho científico não tem por base as conexões ‘objetivas’ entre as ‘coisas’, mas as conexões conceituais entre os problemas” (Weber, 2016, p. 228).

O levantamento quantitativo dos dados se mostrou mais eficiente no início do processo de coleta, pois nos permitiu construir um panorama sobre o funcionamento da EJA a partir do estabelecimento da quantidade de matriculados, dos índices de repetência e abandono, entre outros. Na etapa de análise, todavia, foi possível qualificar o que foi quantificável, apostando no fato de que

Combinar técnicas quantitativas e qualitativas torna uma pesquisa mais forte e reduz os problemas de adoção exclusiva de um desses grupos; por outro lado, a omissão do emprego de métodos qualitativos, num estudo em que se faz possível e útil empregá-los, empobrece a visão do pesquisador quanto ao contexto em que ocorre o fenômeno

(Neves, 1996, p. 2).

Tendo, portanto, esta afirmação como premissa metodológica, mas também axiológica, no sentido da importância de refletirmos sobre o valor do posicionamento diante da combinação de métodos e do relevo em pensarmos as pesquisas em educação a partir dos seus contextos e implicações dos pesquisadores, conforme defende Gamboa (2000), realizamos a pesquisa na escola mencionada, cuja coleta de dados ocorreu entre 2014 e 2015. Foram acessados documentos referentes à matrícula, frequência e avaliação de quatro turmas da EJA, duas do Eixo VI e duas do Eixo VII,1 a saber, lista de matriculados, cadernetas de conceitos, listas de frequência, lista dos docentes que lecionam na modalidade, mapa de classes para averiguação do abandono, quadro com informações referentes à formação dos docentes, lista de resultados finais, atas dos três últimos anos contendo os resultados finais e o Projeto Político Pedagógico da unidade escolar em questão.

Estes documentos foram fornecidos, mediante solicitação, pela equipe gestora, sendo que boa parte eram provenientes do Sistema de Gestão Escolar (SGE), uma ferramenta utilizada pela Secretaria de Educação do Estado da Bahia para o gerenciamento das atividades escolares realizadas por todas as escolas estaduais. A partir de tais documentos, pudemos calcular o índice de evasão ao longo do ano letivo, ter acesso ao aproveitamento dos estudantes (aprovação) em cada unidade e acompanhar o processo avaliativo por meio das notas e conceitos registrados nos diários de classe. A análise se deu da seguinte maneira: a) por meio das listas de matriculados realizamos o levantamento total de estudantes que ingressaram na EJA; b) a partir do mapa de classes acompanhamos o índice de abandono; c) mediante as cadernetas foi possível acompanhar o desenvolvimento dos alunos e sua frequência nos dias letivos; d) por intermédio das listas finais de resultados pudemos verificar o percentual de estudantes reprovados e aprovados.

Em relação ao recurso metodológico da sistematização de experiências, a utilizamos como modo de conduzir as reflexões sobre avaliação na EJA, a partir das proposições de Holliday (2006), no qual o sujeito busca ordenar e organizar suas vivências em um determinado campo de experiência. Em nosso caso, trata-se da retomada de experiências do primeiro autor deste texto na condição de docente da educação básica em seus aspectos concretos e subjetivos, incluindo as ações realizadas, percepções obtidas durante o processo e as emoções experimentadas durante o percurso. Desse modo, a partir da proposta do autor, não se trata apenas de descrever o que foi feito, mas de enunciar a reflexão e a elaboração efetuadas ao longo de todo o processo. Ademais, pontuamos que, por meio deste recurso, pudemos contrapor os dados coletados no estudo de caso, mas assumindo o lugar do pesquisador e a perspectiva subjetiva, considerando que a “crítica, autocrítica e intercrítica são ações de pesquisa que, do nosso ponto de vista, devem estar na constituição de um rigor outro, constituído na implicação social e política da pesquisa e na construção desta com a diferença” (Macedo, 2009, p. 109). Este posicionamento nos favoreceu à reflexividade na pesquisa, de modo a repensar as próprias ações na atuação docente na EJA, suas lacunas, acertos e as possibilidades que engendra doravante.

Para poder realizar a sistematização das experiências enquanto docente, fizemos uso do diário de campo como dispositivo inicial de produção de informações, cuja função é, segundo Moura e Nacarato (2017), registrar e sintetizar conteúdos que foram apreendidos durante um processo investigativo. Assim, os acontecimentos e impressões mais significativas concernentes à prática pedagógica, assim como reflexões iniciais sobre eles, foram registrados em um diário que nos permitiu estruturar a experiência sob a forma de relato.

Trata-se, portanto, da produção de uma narrativa sobre determinadas experiências que, de acordo com Marques e Satriano (2017), possui valor metodológico, pois, por meio dela, apresentam-se processos e fenômenos que se passam na realidade vivida pelo sujeito que narra, como também são enunciadas interpretações e elaborações do que é apresentado. Com efeito, buscaremos relatar, realizando uma reflexão crítica no processo, como ocorreu a avaliação na EJA em componentes ministrados e nos espaços coletivos de debate sobre o processo de aprendizagens dos alunos, mais especificamente os conselhos de classe. Nesse sentido, por toda a potencialidade da sistematização de experiências, entendemos que essa se apresenta como recurso que atualiza os dados obtidos no estudo de caso, qualificando-os a partir das vivências relatadas, agregando novas informações à pesquisa e oportunizando a reflexão sobre as práticas educacionais hodiernas da EJA.

3 A avaliação da aprendizagem da EJA em uma escola estadual da cidade de Santaluz, Bahia

Antes de iniciarmos a apresentação e a discussão dos resultados associados à avaliação da aprendizagem na pesquisa desenvolvida, iremos expor algumas informações acerca da modalidade EJA na unidade de ensino investigada, a fim de melhor explicitar o perfil e o desempenho escolar do seu público, o que será oportuno para a reflexão pretendida. Desse modo, iniciaremos por apresentações mais gerais que caracterizam o funcionamento da modalidade EJA no colégio em questão, discriminando a quantidade de sujeitos matriculados, os índices de evasão, de reprovação e de aproveitamento para, em seguida, discuti-los articulando-os com os aspectos de avaliação que foram observados.

A escola estadual, reportada nas tabelas e gráficos como “Escola A”, lócus da pesquisa, está situada na sede da cidade de Santaluz, Bahia, e desde o ano de 2012 ofertou quatro turmas por ano referentes ao Tempo Formativo III da modalidade EJA, sendo duas do eixo VI e duas do eixo VII. No ano de 2014 houve um total de 158 alunos matriculados, dos quais 77 estavam distribuídos nos eixos VI e 81 nos eixos VII, como pode ser observado na Tabela 1.

Tabela 1 Número de alunos matriculados na Escola A, modalidade EJA por Eixo/Turma no ano letivo de 2014. 

Eixo/Turma Alunos Matriculados
Eixo VI A-N 39
Eixo VI B-N 38
Eixo VII A-N 39
Eixo VII B-N 42
Total 158

Fonte: Dados da pesquisa (2015).

Entre o contingente de estudantes matriculados, 70,88% eram moradores da zona urbana e 29,12% residentes da zona rural. Supõe-se, até mesmo por observação, que o menor percentual desses últimos decorre da dificuldade de locomoção, uma vez que, à época, não havia escolas locais nos povoados da cidade que ofertassem o terceiro tempo formativo da EJA, isto é, os eixos referentes ao nível médio do Ensino Básico, de forma que seus residentes necessitavam se deslocar, diariamente, no período noturno, por transporte municipal à sede do município. Com isso, enfrentavam situações que intensificavam a dificuldade de acesso à escola, como em dias chuvosos, por exemplo, em função da inexistência de estradas pavimentadas e divergências quanto ao calendário escolar municipal, visto que os alunos frequentavam uma escola estadual, mas o transporte era fornecido pelo município. Acreditamos que tal realidade pode, ao menos, dar indícios do menor percentual de alunos da zona rural em detrimento dos da zona urbana.

Desse público, 53% eram do sexo masculino e 47% do sexo feminino, não havendo grande disparidade entre eles, apesar de estudos, como o de Lima e Silva (2013), terem apontado o sexo feminino como predominante em uma escola de pequeno porte do Estado de São Paulo, diferente do encontrado por Stecanela (2013), cujo estudo realizado no Rio Grande do Sul apontou para a predominância do sexo masculino no segmento de ensino em questão. Essa divergência demonstra as especificidades de cada contexto e do perfil dos sujeitos que ocupam a modalidade EJA, tal como sinalizaram Paula e Oliveira (2011).

Apesar de a quantidade de estudantes matriculados ser relevante diante das dificuldades enfrentadas pela EJA, houve um número considerável de evadidos, a saber, 45, representando 28,48% dos ingressantes. Desses, observou-se um índice de 28,2% de abandono no Eixo VI A, de 55,26% no Eixo VI B e 16,4% no Eixo VII B, de modo que apenas o Eixo VII A não apresentou evasão. Cabe salientar que, geralmente, o Eixo VII corresponde ao último ano do Ensino Médio, o que provavelmente justifica a menor evasão neste eixo, afinal se trata do período de finalização do Ensino Básico para seus componentes, e isso provavelmente leva à ponderação no tempo já investido em sua formação e a relevância em concluir o curso. Isso pode apontar para uma maior dificuldade em acolher e manter o discente matriculado nos eixos iniciais, a fim de que, ao final do percurso, o público ingressante evada menos. De qualquer modo, são dados que indicam a necessidade da escola que fornece a modalidade EJA possuir um acompanhamento de maior proximidade, considerando os contextos pessoais de cada sujeito. Esses dados de evasão podem ser visualizados no gráfico a seguir:

Fonte: Dados da pesquisa (2015).

Figura 1 Frequência de evasão em cada Eixo/Turma da EJA no ano letivo de 2014. 

A partir do gráfico da Figura 1, observamos que as duas turmas do eixo VI apresentaram maior evasão, sendo a turma B a de maior índice, enquanto o eixo VII teve o menor percentual de evadidos. Mais adiante, todavia, será possível notar que, apesar do baixo índice de evasão/abandono, os estudantes desse eixo não obtiveram total aproveitamento, de modo que muitos foram conservados e, por conseguinte, obrigados a repetir a etapa formativa. No que diz respeito aos índices de evasão, Oliveira (2004) nos adverte que a conciliação entre o trabalho e a escola ainda se inscreve como o inviabilizador da permanência dos sujeitos na escola, isto porque, segundo o autor, o modo de vida dos estudantes da EJA está marcado por longas jornadas de trabalho que é somado aos problemas de deslocamento e o tempo até a unidade escolar. Paradoxalmente, isto pode apontar para uma falibilidade da própria proposta da EJA em se voltar para um público com este perfil, cumprindo o que Mészáros (2008) entende como o significado real da educação, qual seja o de “fazer os indivíduos viverem positivamente à altura dos desafios das condições sociais historicamente em transformação – das quais são também os produtores mesmo sob as circunstâncias mais difíceis [...]” (Mészáros, 2008, p. 83).

Nesse sentido, não podemos perder de vista dois aspectos, a saber, que, de fato, o público da EJA é majoritariamente trabalhador e que está sujeito, como pontuou Gadotti (2011), a condições precarizadas de vida que, até então, impediram o acesso à escolarização e que, se a buscam agora, trata-se da expectativa de que a aprendizagem promova mudanças reais na realidade experimentada. Além disso, o autor salienta que a experiência do fracasso escolar é um fator que contribui com a desistência. Tendo isso em vista, podemos afirmar que, se há uma parcela significativa de evasão na EJA, isto significa que essa modalidade não tem, ainda, atingido o objetivo reparatório a que se propõe e seu público ainda vivencia uma experiência de fracasso escolar. Veremos que os índices de aproveitamento também depõem nesse sentido e nossa reflexão buscará, exatamente, problematizar como o processo de avaliação pode ter impacto naquilo que se entende como fracasso.

É nessa direção que, ao avaliar as transformações da EJA, Arroyo (2007) propõe pensar esta modalidade a partir das marcas concretas que caracterizam o seu público. Ao realizar uma avaliação, o autor demarca que:

[...] ao longo desses últimos anos, cada vez a juventude, os jovens e os adultos populares estão mais demarcados, segregados e estigmatizados. Não está acontecendo o que se esperava, ou seja, que esses jovens fossem se integrando, cada vez mais, na juventude brasileira. Ao contrário, penso que o que está acontecendo é que as velhas dicotomias, as velhas polaridades da nossa sociedade (e um dos pólos é o setor popular, os trabalhadores, e agora nem sequer trabalhadores) não estão se aproximando de uma configuração mais igualitária, ao contrário, estamos em tempos em que as velhas polaridades se distanciam e se configuram, cada vez mais, com marcas e traços mais específicos, mais diferentes, mais próprios. Mais distantes. A juventude popular está cada vez mais vulnerável, sem horizontes, em limitadas alternativas de liberdade

(Arroyo, 2007, p. 6).

Pari passu a este tipo de constatação, na época, inferimos que a evasão poderia estar relacionada a alguns fatores concretos percebidos na própria pesquisa, entre eles destacamos a fragilidade na qualificação docente para a EJA, a baixa frequência dos próprios professores e o tipo de avaliação realizada com os discentes desse público, muito próxima à realizada no ensino regular que, além de não considerar as especificidades da EJA, segundo autores como Hoffman (2014), assume uma função classificatória, hierárquica e descompromissada para com a aprendizagem efetiva.

Dessa forma, vemos se evidenciar, a partir do que foi observado, uma expressão do fracasso escolar no que tange à evasão. Além disso, ao enfocar a usual díade aprovação/reprovação no total de matriculados, notamos que o índice de reprovação foi de 33,63%, o que representa um percentual expressivo em dois dos eixos que compõem a EJA na escola, a saber: a) o Eixo VI A, que obteve 42,86% de reprovação; b) o Eixo VII A, que obteve 46,16% de reprovação. Apenas o Eixo VI B obteve 100% de aprovação, embora tenha sido a turma com maior índice de evasão, o que, por si, indica que os parâmetros que classificam dicotomicamente a ideia de fracasso e sucesso escolar podem não considerar aspectos multifatoriais e complexos. O gráfico da Figura 2 ilustra os percentuais apresentados de aprovação e reprovação.

Fonte: Dados da pesquisa (2015).

Figura 2 Frequência de alunos aprovados e reprovados na Escola A, modalidade EJA no ano letivo de 2014. 

A partir destes resultados averiguamos o índice de aproveitamento na modalidade. Para isso, consideramos o índice de aprovação, reprovação e evasão. Vejamos, dos 158 alunos matriculados, 113 permaneceram até o final do ano letivo, isto é, não evadiram ou abandonaram a escola. Destes, 76 foram aprovados, o que nos fez constatar que houve, no ano de 2014, um baixo aproveitamento na modalidade EJA quando comparamos o quantitativo de aprovação com aquele referente à soma dos reprovados com o dos evadidos, que é de 82 alunos, atestando que o fracasso escolar, tendo em vista essas variáveis, ultrapassou o êxito e o aproveitamento, já que atingiu 51,90% do total de matriculados, fato que suscita uma avaliação do próprio funcionamento da modalidade.

É a partir do baixo aproveitamento que buscamos melhor analisar e refletir o processo de avaliação, uma vez que ele é, conforme Barcelos (2014), um dos principais fatores contribuintes para tal resultado. Partimos de dados obtidos das cadernetas acessadas, nas quais há a existência de notas que eram, ao final das unidades letivas, convertidas em conceitos, situação que explicita que esses não refletiam uma avaliação, de fato, qualitativa dos estudantes, já que partiu de uma equivalência nota/conceito, o que pode conduzir a vieses avaliativos, ao excluir aspectos outros próprios às particularidades do perfil educando da EJA. Além disso, por meio de observação da dinâmica de funcionamento da unidade escolar, durante as visitas ao colégio no turno noturno, constatou-se que, apesar de as turmas de EJA não realizarem, no período em questão, provas formais estabelecidas pela instituição, as notas/conceitos eram obtidos por meio de exercícios ou atividades cujos acertos ou tão somente as participações – que, não raro, é tomada meramente apenas pela presença física do sujeito – conferiam um atributo que autorizava a aprovação do estudante.

A análise de tal situação implica, a princípio, conhecer e compreender a proposta de avaliação por conceitos na EJA, de modo a contrapô-la com a avaliação por notas, apontando divergências que inviabilizam uma tentativa de equivalência. Para isso, um passo inicial é averiguar quais são as orientações a respeito da verificação da aprendizagem fornecidas pelo organizador curricular da EJA (Bahia, 2022), afinal, a adoção pelo sistema de conceitos nas escolas estaduais da Bahia é uma determinação curricular da Secretaria de Educação do Estado. Logo, de acordo com as Diretrizes Curriculares da EJA do estado, o processo de verificação da aprendizagem deve seguir o que preconiza a LDB 9394/96, isto é, necessita ser conduzida de forma processual, contínua e formativa. Nesse sentido, tal normativa estadual ratifica uma avaliação para além dos momentos finais das unidades letivas, advertindo a necessidade de averiguações periódicas, que considerem o acompanhamento da aprendizagem por meio de instrumentos capazes de indicar “fragilidades e intervir” (Bahia, 2022, p.87).

É com base neste princípio que o organizador curricular estabelece conceitos que fazem referência à experiência formativa do aluno ao longo do ano letivo, ou seja, define índices que irão qualificar a aprendizagem do estudante no tempo que ele tem na unidade escolar. Tratam-se, pois, de referenciais dinâmicos que traduzem em que etapa do processo o aluno se encontra. Assim, pelas próprias diretrizes, a avaliação não é definida por um cálculo cuja soma e média aritmética determina o êxito formativo do aprendiz, mas o acompanhamento qualitativo de como ele começou e como ele se encontra, suscitando uma análise criteriosa e, de fato, processual. É em conformidade com isso que foram estabelecidos os seguintes conceitos pelo organizador curricular da EJA: a) Aprendizagem Construída (C); b) Aprendizagem em Construção (EC); c) Aprendizagem a Construir (AC); d) Sem Construção (SC). Eles expressam o percurso do aluno em toda trajetória e, embora tenha finalidade de estabelecer aprovação e reprovação, também são parâmetros que viabilizam intervenções de reorientação, a fim de garantir o direito de aprender.

Essa breve descrição da avaliação por conceitos nos permite vislumbrar como a transposição nota para conceito, observada nas cadernetas dos componentes curriculares da EJA na unidade pesquisada, não coaduna com o que se preconiza nesse tipo de verificação da aprendizagem, apontando para uma atribuição de conceito que não está articulada ao acompanhamento dinâmico do processo formativo do discente, mas associada a uma correspondência arbitrária entre nota e conceito. Indicar essa possibilidade não visa culpabilizar o professor, uma vez que, conforme Vasconcelos (2012), avaliar se inscreve como o maior desafio docente, pois tal processo tem um longo percurso de hierarquização, historicamente, voltado para a classificação do alunado, fornecendo índices que fogem ao propósito ao qual deveria estar atrelado, qual seja, o de fornecer parâmetros sobre os procedimentos de ensino adotados, podendo modificá-los e adequá-los ao público em questão (Vasconcelos, 2012).

Reconhecer que estamos historicamente condicionados a avaliar por notas, fato também apontado por Hoffman (2014), demonstra que, apesar do dado concreto de que os professores da pesquisa atribuíram conceitos a partir dos critérios de notas, replicando ainda as mesmas lógicas de obtenção de médias, faz-se necessária a realização de uma pesquisa que melhor qualifique tais resultados, ouvindo as dificuldades docentes da avaliação na perspectiva processual e dinâmica dos conceitos. Para além disso, os resultados apontam a necessidade de que a avaliação seja um ponto de maior discussão na formação de professores, preparando-os para o seu exercício de modo a desconstruir o significado de ação punitiva e categorizadora, fornecendo sentidos que potencializam a aprendizagem. Isso pressupõe que haja, antes de tudo, segundo Hoffman (2014), uma reflexão constante por parte do professor, processo no qual ele se interroga sobre a própria prática vivida e exercida. Assim, para a autora:

Nessa tarefa, de reconstrução da prática avaliativa, considero premissa básica e fundamental a postura de “questionamento” do professor. A avaliação é a reflexão transformada em ação. Ação, essa, que nos impulsiona a novas reflexões. Reflexão permanente do professor sobre sua realidade, e acompanhamento de todos os passos do educando na sua trajetória de construção do conhecimento

(Hoffman, 2014, p. 24).

Nessa perspectiva, elucida-se o porquê da conversão nota/conceito vai na contramão da dinamicidade do que se preconiza como avaliação processual. Diz respeito à anulação mesma do processo, reduzindo-o ao desempenho pontual em avaliações também pontuais, ainda que diversas outras atividades e experiências possam ter ocorrido ao longo da unidade com a possibilidade de avaliação mais holística e processual. Pouco adianta, e Hoffman (2014) também pontua isso, fazer microtestes ou inúmeras atividades ao longo da unidade para única e exclusivamente somá-las e gerar uma nota, pois, com isto, não se está a realizar a reflexão de que fala a autora, já que visa apenas conferir valores que possibilitem a aprovação, perdendo-se de vista o diagnóstico real do que foi aprendido e daquilo que da prática docente não foi eficaz para a aprendizagem. Nesses casos, como afirmaram Hoffman (2014) e Vasconcelos (2012), nesses casos, a avaliação perdeu o seu significado, uma vez que nada diz sobre o percurso formativo do aluno, apenas lhe dá um passe para o ano seguinte.

Com isso, também não podemos perder de vista que a atribuição de valores travestidos em conceitos pode perpetuar a natureza do fracasso escolar para os alunos da EJA. Esse aspecto, salientado por Barcelos (2014), ao ruir com a real proposta dos organizadores curriculares de realizar a verificação de aprendizagem através de conceitos (Bahia, 2022), faz que a EJA, por si só, perca o seu propósito de subsidiar novas oportunidades de aprendizagem aos privados de escolarização, reproduzindo, como já assinalamos, a experiência de fracasso escolar.

Afinal, quem é o reprovado neste tipo de avaliação feito na EJA? Os 33,63% dos remanescentes matriculados que apresentamos no início desta seção, que, por extensão, pode abarcar também aqueles que desistiram ao longo do processo, saltando desse valor aos 51,90% que não concluíram com aproveitamento o ano letivo.

Mas por que trazer a reprovação e a evasão ao falarmos de avaliação? Porque o ato de avaliar, comumente reduzido à aprovação e reprovação, tal como foi assinalado por Luckesi (2006), provavelmente contribuiu com os índices encontrados, uma vez que, ao invés de servir para dar subsídios à tomada de decisões sobre a aprendizagem, a avaliação tem sido utilizada para definir se o estudante está apto, ou não, a prosseguir formalmente nos estudos (Luckesi, 2006).

Se considerarmos o valor de 51,9% mencionado, também podemos estender a falibilidade à dimensão institucional da escola ao atribuir a ideia de fracasso à maioria dos discentes sem considerar “a importância estratégica da concepção mais ampla de educação, expressa na frase: “a aprendizagem é a nossa própria vida” (Mészáros, 2008, p. 53). Afirmação esta, do nosso ponto de vista, relevante para pensar o público da EJA cujas experiências formativas passaram ao largo da institucionalidade formal e não conseguem ser lidas e aproveitadas como parte de processos de avaliação mais adequados aos seus contextos de vida. Tal ponderação nos remete às reflexões de Arroyo (2007), ao afirmar que, comumente, na EJA, o currículo pouco fala dos aspectos materiais da vida, como o trabalho, por exemplo. Para o autor, “Não se trata de não ter currículos. Não se trata de não ter conhecimento. Não se trata de negar o conhecimento, mas que conhecimento? É preciso muito conhecimento para sobreviver nessa vulnerabilidade, tanto mais do que para sobreviver na segurança do trabalho” (Arroyo, 2007, p. 10).

Ademais, ao constatarmos que a EJA reproduz o modelo classificatório, já que os conceitos se mostraram substitutos de uma média, reforçamos a inferência de que seus moldes ainda têm sido responsáveis pelo fracasso escolar e pela manutenção do status quo no qual se inscrevem as histórias de vida do seu público. Afirmar isto não significa que se deva procurar formas de avaliar que aprovem os estudantes a qualquer custo, mas operar a avaliação de modo a corrigir as fragilidades que inviabilizam uma aprendizagem efetiva, antes que o estudante chegue ao final do processo sem ter atingido os objetivos que foram propostos pelo próprio professor e, em última instância, pelas diretrizes da própria EJA.

4 Desafios da avaliação da aprendizagem na EJA: sistematização de experiência

Iniciamos esta seção apresentando informações gerais que contextualizam a prática docente na qual se inscreve a experiência sobre o processo de avaliação na EJA a ser compartilhada. Tendo isso em vista, iniciaremos a caracterização inicial do contexto da prática a ser relatada. O ensino nessa modalidade ocorreu no ano de 2022, ainda em estado de pandemia de Covid-19, em um colégio estadual localizado em um bairro periférico da cidade de Salvador, Bahia, com um público bastante diversificado em termos de idade e sexo, mas majoritariamente marcado pela pobreza. Além disso, a unidade escolar encontrava-se em uma região de alta vulnerabilidade social e violência, tanto é que, em diversas ocasiões as aulas eram suspensas em função da insegurança que o cenário gerava. Lecionei, nesse período, o componente biologia em turmas do Eixo VI, cuja característica marcante, desde o início do ano letivo, foi o número reduzido de estudantes frequentes em sala, embora, pelas listas de chamadas, as turmas estivessem cheias.

De início, acreditamos que o esvaziamento estivesse associado ao início das aulas, com perspectiva de melhora à medida que elas avançassem, todavia, isto não ocorreu. Ademais, não podemos perder de vista os fatores contextuais apresentados, mais especificamente, a dinâmica de violência enunciada, uma vez que eles podem ter contribuído para esse quadro de evasão. É relevante levar em conta, mais uma vez, a concretude e a transversalidade dos fatores contextuais que perfazem o público da EJA, como no caso da violência, uma vez que essa, segundo Arroyo (2007), não é somente um fenômeno que marca um contexto dos bairros das escolas, mas

passou a ser uma nova categoria segregadora, classificatória. E o que ela traz de novo? A violência traz de novo para as escolas uma outra divisão. A escola sempre trabalhou com categorias, sempre separou. O que as violências estão trazendo de novo é que se trata de um referencial ético, não de um referencial cognitivo. Violento não é aquele que tem problemas de aprendizagem, mas que tem problemas de conduta, de valores. Essa categoria que estava distante da escola, a categoria moral, para classificar as pessoas e os alunos, está entrando de cheio, agora. Isso muda os tipos de classificação, de hierarquização, de polarização. Antes as escolas mandavam para a EJA adolescentes com problemas de aprendizagem, agora os mandam por problemas de indisciplina, de violência. Outra visão da EJA está em jogo

(Arroyo, 2007, p. 15).

Considerando, portanto, esta dimensão ampliada da violência que atravessa o contexto cotidiano da EJA, e os demais fatores das histórias de vida dos jovens e adultos que acentuam a evasão, pontuamos que, no enquadre vivenciado, de turmas com 40 matriculados, apenas seis a sete alunos frequentavam, tendo as maiores entre 10 e 15 sujeitos. Em muitas sextas-feiras, inclusive, pela ausência massiva dos estudantes na escola, tínhamos que realizar aulas coletivas no pátio para não ter que dispensar os poucos que haviam ido à escola. Quando tentávamos incentivá-los a aumentar a frequência, a impressão era de que havia uma acentuada desmotivação em ir e permanecer na escola. Essa situação de evasão, tão precoce, já deveria ter nos servido de indicador para algum tipo de mudança pedagógica que convocasse nossos estudantes a ocuparem a escola. Neste momento, até iniciamos uma busca ativa, mas o resultado não foi a termo, já que permanecemos com praticamente o mesmo contingente de estudantes até o final do ano letivo.

Não se trata, todavia, aqui, de fazermos os mesmos levantamentos realizados no estudo de caso que apresentado na seção anterior, mas a breve descrição pode fornecer um quadro geral da situação contextual da unidade escolar em questão, a partir da qual iremos refletir sobre a avaliação; processo, portanto, que foi realizado com esse pequeno contingente de sujeitos que retornaram à escola, muitos, inclusive, após anos sem estudar. Avancemos, pois, à experiência, mas comecemos pelos aspectos do planejamento realizado neste ano letivo e como ele se dava no coletivo de professores.

Ao iniciar o ano letivo, recebemos alguns informes gerais em relação ao calendário escolar e foram definidos os dias de Articulação Complementar (AC), cuja função era reunir professores por área para que pudessem dialogar sobre estratégias de ensino e dificuldades enfrentadas na sala de aula, a fim de que nossos planejamentos fossem feitos através de um trabalho colaborativo. Contudo, os encontros assumiram natureza burocrática, servindo-nos para determinação de prazos de avaliação e de atividades vinculadas às datas relevantes, a exemplo do dia da consciência negra. Também não tínhamos disponível uma ementa que norteasse a escolha dos conteúdos e habilidades a serem desenvolvidas, ficando a critério do professor decidi-los de forma arbitrária. Além disso, faltava-nos o hábito de nos reunir formalmente para ajustarmos o que deveria ser trabalhado nas unidades, mesmo tendo disponíveis os dias de AC. Logo, o que se fazia era uma troca verbal esporádica sobre o que cada um estava trabalhando em sala de aula, sem maior aprofundamento no diálogo que pudesse conduzir a uma deliberação coletiva sobre as situações.

Cada docente, portanto, decidia quais conteúdos e habilidades trabalhar em suas turmas, respeitando, contudo, alguns temas apontados pela coordenação pedagógica como pertencentes à unidade, como o carnaval, a festa junina etc., temas esses, aliás, relacionados mais às datas festivas do calendário civil do que aqueles potencialmente mais correlatos à proposta dos componentes curriculares e suas rotinas pedagógicas. A partir daí, planejamos nossas aulas e definimos as atividades a serem executadas. Apesar de o dissenso e da reiterada ponderação de que a avaliação da EJA se dá por conceitos, havia uma semana de provas e era comum o fornecimento de notas e sua posterior conversão em conceitos, não diferindo, neste aspecto, do que vimos ocorrer na escola A.

Desse modo, se inscreve, nesta experiência, dois aspectos sobre a avaliação na EJA que parecem constituir dois lados de uma mesma moeda, a saber, o não cumprimento de uma avaliação processual e dinâmica, e o desconhecimento de como fazê-la por parte do professor, aspectos atrelados, a nosso ver, às fragilidades formativas docentes, conforme discute Barcelos (2014). Buscarei demonstrá-los apresentando como foram conduzidas a avaliação em minhas turmas e nos Conselhos de Classe dos quais participei, momentos de encontro dos professores para a execução de uma avaliação mais ampla e dialogada sobre a aprendizagem dos estudantes.

No que diz respeito às avaliações do meu componente curricular, destaco como procedi no início do ano letivo e, em seguida, reflito sobre as mudanças que se sucederam ao longo do ano. Na unidade I, sempre que iniciava uma aula, buscava fazer perguntas diagnósticas sobre aspectos centrais do tema estudado, a fim de averiguar o que os alunos sabiam, para trabalhar a partir daí e, mais adiante, fazer uso de novo instrumento que indicasse o que aprenderam do ponto anterior até ali. De modo geral, acreditamos que essa perspectiva se aproxima do objetivo da avaliação conforme aponta Luckesi (2006), afinal, buscava examinar o que os estudantes aprendiam em uma linha temporal, obtendo informações que dessem subsídio ao aperfeiçoamento pedagógico, que, por conseguinte, pudesse melhorar o ensino e otimizar a aprendizagem. É nesse sentido que, segundo o autor, a avaliação, diferente da mera verificação, assume um caráter processual, visto que intenta apreender um percurso de aprendizagem, fornecendo indicadores para tomadas de decisão no exercício da prática pedagógica.

Em termos práticos, ao trabalhar as características dos seres vivos, por exemplo, percebi que, pela redução da participação, bem como pela ausência de respostas quando dirigia uma pergunta aos estudantes, não havia compreensão da célula como unidade estrutural e funcional de todo ser vivo. Quando falávamos do crescimento, do metabolismo e do material genético, eles antecipavam respostas, traziam exemplos de conversas na academia acerca do metabolismo ou do que assistiram em telejornais sobre o DNA e os exames de paternidade, mas a noção de célula parecia por demais abstrata. Neste caso, a mudança da dinâmica e a diminuição da participação não poderiam se inscrever como aspectos da avaliação? Afinal, tal percepção, como assinalou Luckesi (2006), conduziu-me a uma tomada de decisão, a de não avançar para o próximo aspecto, sem revisitar o conteúdo sobre o conceito de célula a partir de outra metodologia.

Não obstante, alguns estudantes faltavam em momentos decisivos de algum tema, e a impressão que tinha era de que sempre havia lacunas, sobretudo se considerasse esse processo como linear e com ações cuja sequência encadeavam-se obrigatoriamente com outra anterior. Ademais, era preciso cobrar algum tipo de produção por parte deles para que pudessem compor um conceito justo, uma vez que alguns alunos estavam sempre presentes e outros ora iam, ora não iam. Além disso, quando se aproximava o final da unidade, tínhamos que elaborar provas para uma semana de avaliação, situação que me levava a, muitas vezes, abandonar a contextualização e a conversação do tema – até mesmo buscando uma aproximação com a perspectiva comunicativa dialógica e horizontal de Freire (1983) –, trabalhando exercícios de múltipla escolha que os treinassem para a prova, visto que essa teria tal formato e o tempo de aulas no noturno era curto. Com efeito, nestas circunstâncias, percebo-me na lógica de verificação da aprendizagem assinalada por Luckesi (2006), mais preocupado em garantir dados concretos que me permitissem aprovar ou reprovar.

Essa percepção não acontece necessariamente em um tempo posterior, se dá na própria execução, e, muitas vezes, imputa-nos culpa de operar um desvio de trabalho que realmente pode promover a melhoria da aprendizagem, ao mesmo tempo que faltam ideias de conciliação ou subversão de um processo em que a maioria dos docentes está a executar. Quando a coordenação nos lembra das datas de entrega da avaliação, começo a discutir junto aos estudantes quais seriam os melhores conteúdos para a prova, e, só isto, já demonstra a falência do processo avaliativo, uma vez que não aplico aquilo que me permitirá saber o que não foi aprendido, mas aquilo que, tendo sido melhor trabalhado, oportunize a aprovação, sob a égide de não prejudicar o discente. Olhando em retrospectiva, nos perguntamos, no entanto, o que, de fato, perfaz um prejuízo no processo avaliativo? E mais: por que se mantém uma categorização que dicotomiza a aprovação e reprovação como reflexos da ideia de sucesso ou fracasso escolar, justamente reproduzindo uma estrutura sócio discursiva sobre as quais se perpetuam exclusões que a educação tem por dever combater? E como desdobramento deste aspecto, por que se tende a responsabilizar individualmente o discente pelo índice que obtém quando a avaliação é resultante de um processo coletivo que inclui os agentes da escola mediante conhecimento dos contextos das suas práticas? Esses questionamentos são necessários para que possamos, em comunicação, produzir uma reflexão crítica de tudo que está em jogo na avaliação; e, no caso da EJA, mais ainda se perde quando, nesse processo, colocamos em jogo os conteúdos, na maioria das vezes afastados de seus contextos de vida, desconsiderando o que Gadotti (2011) apontou como ponto de partida para um exitoso trabalho com a EJA, a saber, sua história de vida e os temas que podem contribuir para a melhoria dela.

E por que, apesar de sabermos, não conseguimos, muitas vezes, operar real mudança? Não gostaria de acreditar que se trata de uma falta de responsabilidade, mas tenho a impressão de que esta mudança tem mais a ver com um elemento apontado por Hoffman (2014), qual seja, o fato de termos internalizado o modelo tradicional de avaliação, aquele que vivenciamos em nossa época de estudantes e que acabamos por reproduzir em nossa prática, ainda que inconscientemente. E, em concordância com Freire (1996), podemos dizer que esse modo introjetado e presentificado em nossa prática não está desinvestido de intencionalidade, mas cumpre uma função ideológica de classificação que mantém as desigualdades sociais, impedindo que as classes subalternizadas façam bom uso dos conhecimentos produzidos pela humanidade, libertando-se. Assim, resta-nos admitir, mas não nos conformar, que nossa prática avaliativa vai, muitas vezes, de encontro com essa lógica e, ao invés de viabilizar a autonomia do público da EJA, fomentamos a sua permanência no lugar dos oprimidos. Na verdade, recuando um pouco mais a lente, podemos perceber com maior acurácia que se trata de uma estrutura que enreda não só discentes, mas docentes, técnicos, gestores e comunidades em formatos de educação que assegurem as condições de reprodução do capital e as posições daqueles que realmente produzem a riqueza, como bem pontua Mészáros (2008) e Freire (2020).

Esse reconhecimento, decorrente de um contexto complexo, permite-nos enxergar a avaliação a partir do que apontou Soares (1997), como um instrumento de controle das oportunidades educativas que, ao invés de subsidiar melhorias na oferta, mantém as desigualdades sociais, seja porque preconiza o mérito e esquece que nem todos os estudantes apresentam condições de vida que favorecem alto desempenho em exames, seja porque, em muitas modalidades, ela apresenta o que a autora pontuou como a ilusão do sucesso escolar. Na primeira situação, a avaliação é realizada pelo professor e pelos sistemas de ensino na falsa crença de que é objetiva e, na segunda, ela é desenhada para aprovar o estudante, evitando prejudicá-lo, ainda que não tenha aprendido, fato que está sob a égide de que se deve avaliar considerando as particularidades do alunado. Ora, não é isso que acontece quando selecionamos os conteúdos supostamente mais fáceis ou tentamos pontuar todas as atividades feitas para que o estudante não seja reprovado? Ao fazê-lo, temos a impressão de uma ajuda que, após reflexão crítica, tomamos consciência do desserviço que prestamos a nosso estudante.

Diante disso, a saída que encontrei, que não assume, ainda, real pertinência de uma avaliação processual por excelência, mas que tenta se aproximar de um processo que aponta para novas decisões, como salientou Luckesi (2006), foi trabalhar, após a aplicação dos testes, os erros cometidos nas provas e tentar dar sentido aos conteúdos que foram acertados, numa assumida tentativa de compensação. Nesse momento, esforço-me para sair da posição daquele que fala e busco escutar mais os sujeitos, tentando me aproximar de suas experiências, como sugeriu Gadotti (2011) e Barcelos (2014), e, a partir disso, viabilizar uma análise crítica dos temas que muitas vezes lhe apresentamos como dados e prontos.

Também busquei, com isso, pôr em prática a proposição de Hoffman (2014), de fazer da avaliação um momento de diálogo, onde o erro é debatido e tomado como ponto de investigação. Por meio disso, damo-nos conta de que, de fato, os conteúdos descontextualizados não só não têm sentido, como ferem certas realidades de vida. Em conformidade com isso, até hoje não me esqueço da coragem de uma estudante ao dizer, em uma aula sobre alimentação saudável, que a questão que estava posta não era a de reconhecer o bom alimento, mas a possibilidade de comprá-lo, o que ensejou uma rica discussão crítica do que chamamos de qualidade de vida. Creio que essa ação tenta se aproximar da perspectiva freiriana apontada por Gadotti (2011).

Reconhecê-la coloca questões como, por exemplo, de que forma avaliar considerando uma aula que tem como base não o conteúdo em si, mas sua análise e contextualização? É um desafio, pois não se trata, como salientou Hoffman (2014), de uma prática por nós apreendida e vivenciada, o que, todavia, de acordo com a própria autora, não significa ser impossível, desde que nossa postura seja reflexiva e crítica. Barcelos (2014) também salienta a possibilidade da adoção de uma nova forma de avaliar, cuja realização esteja a favor da aprendizagem e da elaboração de novos caminhos de ensinar, ato avaliativo que está pautado em ações solidárias e cooperativas entre estudantes e professores, que exige dos últimos a coragem em adotar novas atitudes, subvertendo a ação hierárquica e segregadora que está posta.

Por fim, gostaria de comentar sobre como eram realizados os Conselhos de Classe, para fomentar a ideia de que não fazemos uma avaliação processual na EJA, ainda que haja recomendação para isto, por não sabermos ou, talvez, por uma ilusão de que fazemos dentro das condições que tem o discente da EJA, marcado por um saber menor e que, para o modo de vida que tem, não necessita de mais; modo de proceder que ratifica o que apontou Soares (1997) acerca da ilusão do sucesso escolar. Assim, tendo isso em vista, os Conselhos aconteciam a cada final de unidade e objetivavam debater a situação de aprendizagem dos estudantes. Para isso, todos os professores deveriam se reunir e discutir, considerando as atividades avaliativas executadas por cada um, com vistas a dar um parecer final de aprovação e reprovação e, teoricamente, proceder encaminhamentos de intervenção em prol da aprendizagem.

Parcialmente, podemos afirmar que isto acontecia, uma vez que nós, professores, discutíamos, em tais reuniões, o desempenho dos discentes e até considerávamos seu contexto de vida, reconhecendo que vários trabalhavam muito, mas frequentavam e faziam os exercícios. Isso nos colocava em defesa desse sujeito, buscando sua aprovação. E, por isso mesmo, que a função era parcial, pois nosso debate colocava em centralidade o fornecimento de conceitos para aprovar e reprovar, desviando-se da aprendizagem, o que corrobora o que afirma Luckesi (2006) sobre os professores brasileiros realizarem verificações de aprendizagem ao invés de avaliações, já que a preocupação é fornecer um parecer pontual. Logo, faltaram, a nosso ver, os encaminhamentos de reorientação e um planejamento que considerasse os resultados discutidos nos Conselhos.

A despeito disso, outro ponto que chama a atenção é a defesa por aprovação para ser justo com a realidade do educando, enquanto espécie de compensação desta realidade. É claro que devemos considerar a dificuldade do estudante que trabalha todo período diurno e não tem tempo para estudar fora do horário de aula, momento que, inclusive, demonstra estar exausto. No entanto, essa consideração deveria nos fazer ponderar a aplicação de avaliações meritocráticas e classificatórias, e não ser lenientes, correndo o risco de atestar o sucesso escolar de quem conclui um curso sem aprender e, por conta disso, experimentar o fracasso fora da escola, como assinala Soares (1997). Ademais, precisamos considerar o contexto do estudante, antes que haja um baixo desempenho que me faça advogar a seu favor em um conselho, inclusive recorrendo a questões, diversas vezes, dissociadas da avaliação efetiva de uma aprendizagem consistente mediante as condições de vida de cada estudante. Antes, deveríamos, como sugeriu Barcelos (2014), partir dele para otimizar nossa prática, isto é, ver meios pelos quais a aprendizagem se efetue, oportunizando a avaliação funcionar como uma parte de uma etapa do processo formativo cujos efeitos retroalimentam a aprendizagem e não se limitam a verificá-la mediante classificação. Assim, como afirma Hoffman (2014), a avaliação seria um instrumento que afere não só a aprendizagem do sujeito, mas também a nossa prática docente, aspecto que não tem sido considerado.

Finalmente, por que desvelar isso em um relato de experiência? Porque trata-se de uma tentativa de, ao relatar, desenvolver uma reflexão crítica como sugeriu Hoffman (2014) e Barcelos (2014), uma vez que tal processo viabiliza a possibilidade de reorientar a nossa prática, ao passo que, por meio de seu compartilhamento, tem potência de reverberar em outros profissionais, produzindo diálogos, no sentido proposto por Bakhtin (2016), isto é, pressupondo um outro como ponto de interlocução, ainda que virtual, que amplie as discussões da avaliação na EJA, assumindo novas posturas na prática educativa.

5 Considerações finais

A proposição legal da EJA atende aos requisitos da educação e está positivada no direito brasileiro de modo a, em tese, assegurar o acesso a uma educação de qualidade que considere os diferentes perfis de público que buscam gozar deste direito fundamental; viabilizador de melhores condições de vida, por meio do aprimoramento das suas práticas socioprofissionais e relacionais. À luz dos dispositivos legais nacionais, a proposta da EJA estaria condizente, portanto, com a ideia de materializar, via modalidade escolar diferenciada, um currículo que permita o desenvolvimento dos sujeitos frente aos seus contextos de vida.

A prática escolar da EJA deveria apontar, desta forma, para aspectos como a superação dicotômica entre fracasso e sucesso de modo a não replicar a lógica ambivalente do mercado de trabalho nos moldes do capitalismo pós-industrial e neoliberal que, inclusive, se apropria da escola para reproduzir as condições de produção de um modelo excludente de sociedade. É nesta perspectiva que os autores aqui mencionados ratificam a EJA como possibilidade de concretização de uma educação que não replique o fracasso escolar como reflexo de vivências expropriadas de direitos elementares. Reiteram, assim, a potência política da EJA ao considerar o perfil concreto do seu público para superar experiências marcadas pela precarização do trabalho, pelas diversas formas de violência e estigmatização social que visa ampliar a marginalização dos sujeitos que já vivem nas bordas do mundo neoliberal.

Tendo em vista esse contexto, buscamos, ao longo deste trabalho, refletir sobre os desafios da avaliação na EJA, a partir dos resultados obtidos em um estudo de caso e da sistematização de experiências enquanto docente em turmas de EJA no nível médio.

O estudo de caso realizado, por meio de pesquisa documental, apontou, em relação às turmas da EJA da escola A, no ano de 2014, para os seguintes resultados articulados, a nosso ver, ao modo de avaliação realizado: a) um índice significativo de reprovação (33,63%); b) um índice expressivo de evasão (28,48%); c) um baixo índice de aproveitamento (48,10%), uma vez que 51,90% corresponde ao percentual de alunos que não concluíram com aproveitamento o ano letivo com êxito, considerando o total de matriculados e não apenas os que permaneceram até o final do período. Esses resultados expressam, de alguma forma, que a EJA, neste caso específico, não atingiu o objetivo reparatório pretendido, considerando que a maior parte dos alunos continua a evadir e a ser reprovada, mantendo-se em condição que aumenta as chances de permanência em posições de subalternidade. Tal situação, na contramão da sua missão, prevista nos dispositivos legais, aponta que a EJA se não tem produzido, tem mantido as condições que engendram o fracasso escolar, de acordo com os dados aqui apontados.

Fatores como a fragilidade na qualificação docente para a EJA, a baixa frequência dos próprios professores e o tipo de avaliação realizada devem ser considerados possíveis contribuidores para os índices observados. Em relação a esta última, a própria literatura utilizada neste trabalho demonstra sua relação direta com a experiência de fracasso escolar, o que inclui evasão e reprovação. No caso da escola A, vemos esse aspecto se expressar não somente pelos índices apresentados, mas por meio do registro em cadernetas do tipo de avaliação conduzida, que por se assemelhar à realizada no ensino regular, com ênfase na atribuição de notas, também vai na contramão da proposição qualitativa que consta nas próprias diretrizes da EJA. A transposição de notas para conceitos registrada em diários é o que nos permite tal afirmação, pois indica uma tentativa de equivalência nota/conceito, o que não condiz com o que pretende a avaliação por conceitos, cuja natureza é processual.

No que se refere à sistematização de experiências em turmas de EJA em uma escola na cidade de Salvador, Bahia, chamou a atenção a dificuldade no cumprimento de uma avaliação processual e dinâmica pelo desconhecimento de como fazê-la por parte de docentes, uma vez que o modo como avaliamos, atrelado à forma como ensinamos, parece ter relação com as nossas fragilidades formativas enquanto docentes. Apesar de haver uma tentativa no sentido de fazer um uso diferenciado de formas de avaliação, a lógica de funcionamento da escola tende a induzir o professor a reproduzir os mesmos formatos que apontam mais para uma verificação de aprendizagem com atribuição de notas. Não se trata de se eximir ou culpabilizar um “sistema”, mas em reconhecer uma cultura já estabelecida de avaliação de viés classificatório que, não obstante, espera-se superar por meio de um exercício de reflexão crítica cujo ponto de partida é admitir a responsabilidade docente no processo. Cabe, no entanto, o reconhecimento de que, apesar desta percepção geral, há movimentos, ainda que tímidos, de fazer da avaliação uma forma de identificar as demandas faltantes e de estabelecer nortes para práticas docentes disruptivas. Entre esses movimentos, destacamos a retomada, por meio do diálogo, dos erros cometidos em avaliações durante as aulas para repará-los, inclusive trabalhando-os a partir de outros métodos.

Nas duas abordagens utilizadas nas pesquisas, observamos que a EJA, na prática, ainda está longe do cumprimento pleno das suas finalidades previstas nas suas diretrizes, aproximando-se mais de uma modalidade de aceleração de estudos que ainda não considera, de fato, as especificidades do seu público, o que requer metodologias também específicas e modos de avaliar condizentes com a realidade de vida de seus estudantes. Assim, é preciso que o docente ressignifique o sentido da avaliação para compreendê-la para além da atribuição de nota/conceito, vislumbrando-a como processual, isto é, percebê-la não como instrumento de aprovação e reprovação, mas como um norteador do seu trabalho ao longo de todas as suas práticas de modo que essas possam servir como um termômetro que aponte as melhores formas de condução de diagnósticos de aprendizagem, não na perspectiva desses como indicadores de valoração, mas como bases para modos de leituras amplas e contextuais para a redução do efeito de fracasso escolar. Com isso, espera-se deslocar, também para os estudantes, o sentido de avaliação de um momento pontual, tenso, verificador e, eventualmente, condenatório para uma entre tantas etapas do processo de uma aprendizagem contextualizada, aplicável às suas realidades de vida e com potência transformativa.

1Os Eixos VI e VII são duas etapas da EJA que teriam correspondência com as séries do Ensino Médio regular. Embora haja referência ao Eixo VI como etapa equivalente aos 1º e 2º anos do Ensino Médio e ao Eixo VII como etapa final (3º ano) do Ensino Médio, na época, tais eixos dividiam as áreas e componentes a serem estudados no nível médio da modalidade EJA. Assim, à época, no Eixo VI os estudantes tinham aulas das disciplinas de Ciências Humanas e Linguagens, e no Eixo VII eram oferecidos os componentes de matemática e de Ciências da Natureza. Hoje, por sua vez, com a mudança curricular, os dois eixos ofertam todas as disciplinas, tendo, pois, maior correlação com as séries do Ensino Médio regular, guardando, entretanto, as especificidades da modalidade.

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Recebido: 25 de Março de 2023; Aceito: 31 de Julho de 2023

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