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Educação: Teoria e Prática

versão impressa ISSN 1993-2010versão On-line ISSN 1981-8106

Educ. Teoria Prática vol.34 no.67 Rio Claro  2024  Epub 05-Set-2024

https://doi.org/10.18675/1981-8106.v34.n.67.s17674 

Artigos

Educar pela experiência da leitura: o poema “O último andar” sob um céu de sentidos

Teaching through reading experience: the poem "O último andar" under a sky of senses

Educar a través de la experiencia de la lectura: el poema “O último andar” bajo un cielo de sentidos

Flávia Brocchetto Ramos1 
http://orcid.org/0000-0002-1488-0534

Estella Maria Bortoncello Munhoz2 
http://orcid.org/0000-0001-9907-5624

Marli Cristina Tasca Marangoni3 
http://orcid.org/0000-0002-2581-5404

Adair de Aguiar Neitzel4 
http://orcid.org/0000-0003-0096-5892

1Universidade de Caxias do Sul, Caxias do Sul, Rio Grande do Sul – Brasil. E-mail: ramos.fb@gmail.com.

2Universidade de Caxias do Sul, Caxias do Sul, Rio Grande do Sul – Brasil. E-mail: munhozestella@gmail.com.

3Prefeitura Municipal de Bento Gonçalves, Bento Gonçalves, Rio Grande do Sul – Brasil. E-mail: marli.ctasca@gmail.com.

4Universidade do Vale do Itajaí, Itajaí, Santa Catarina – Brasil. E-mail: neitzel@univali.br.


Resumo

Este estudo qualitativo objetiva analisar o poema “O último andar”, escrito por Cecília Meireles, com o intuito de ampliar as discussões sobre as funções estética e artística da literatura e seu tratamento em sala de aula. Para a análise, convergem-se elementos estruturais, semânticos e visuais do poema como potencializadores do sentido. Barthes (1974, 1987, 2004), Bachelard (1978), Heidegger (2015), Marangoni e Ramos (2020) e Ramos e Marangoni (2013) embasam a reflexão sobre a natureza do texto literário e a relação do poema com o leitor. A leitura é pensada como possibilidade de fazer-se uma experiência. A análise do poema ilustrado constrói-se pelo viés estético e artístico, explorando a potencialidade simbólica da escrita literária, anunciando-o como um texto escrevível. Problematiza-se que a mediação sensível do texto pode ampliar as possibilidades de percepção do leitor sobre o texto.

Palavras-chave Mediação de leitura do literário; Leitura poética; Poesia infantil

Abstract

This qualitative study aims to analyze the poem “O último andar”, written by Cecília Meireles, in order to broaden the discussions about the aesthetic and artistic function of literature and its treatment in the classroom. For the analysis, structural, semantic and visual elements of the poem converge as potentializers of meaning. Barthes (1974, 1987, 2004), Bachelard (1978), Heidegger (2015), Marangoni and Ramos (2020), and Ramos and Marangoni (2013) form the basis for reflection on the nature of the literary text and the relationship between the poem and the reader. Reading is thought of as a possibility of undergoing an experience. The analysis of the illustrated poem is constructed from an aesthetic and artistic point of view, exploring the symbolic potential of the literary writing, announcing it as a writable text. It is problematized that the sensitive mediation of the text can expand the possibilities of the reader’s perception of the text.

Keywords Literary Reading Mediation; Poetic Reading; Children’s Poetry

Resumen

Este estudio cualitativo tiene como objetivo analizar el poema “O último andar” , escrito por Cecília Meireles, con el fin de ampliar las discusiones sobre las funciones estética y artística de la literatura y su tratamiento en el aula. Para el análisis se confluyen elementos estructurales, semánticos y visuales del poema como potencializadores de sentido. Barthes (1974, 1987, 2004), Bachelard (1978), Heidegger (2015), Marangoni y Ramos (2020) y Ramos y Marangoni (2013) constituyen la base para la reflexión sobre la naturaleza del texto literario y la relación entre el poema y el lector. La lectura es pensada como una posibilidad de hacerse una experiencia. El análisis del poema ilustrado se construye desde un punto de vista estético y artístico, explorando el potencial simbólico de la escritura literaria, anunciándolo como un texto escribible. Se problematiza que la mediación sensible del texto puede ampliar las posibilidades de percepción del texto por parte del lector.

Palabras clave Mediación de la lectura literaria; Lectura poética; Poesía infantil

1 Palavras iniciais: “de lá se avista o mundo inteiro”

Porque eu sou do tamanho do que vejo

E não do tamanho da minha altura...

Fernando Pessoa (1993)

Qual é o meu tamanho? Qual o seu tamanho? Os versos de Alberto Caeiro aventam uma possibilidade de resposta para essas questões: o tamanho do sujeito corresponde ao alcance do seu olhar. Para além da mera estatura física, como se pode ampliar a visão sobre as coisas e sobre o próprio existir? Ao mobilizar a experimentação da alteridade e refinar a compreensão da existência, a leitura poética pode facultar ao ser humano alcançar a visão do outro ou até uma visão do “mundo inteiro”, revelando um horizonte novo, mais longínquo e dilatado. A poesia, ao mesmo tempo contida e ampla, oculta e reveladora, sussurra no ouvido e na vida do leitor dimensões talvez ainda não percebidas.

Barthes (1974) faz o exercício de ampliação dos sentidos do texto por meio do levantamento sistemático de lexias no conto de Honoré de Balzac, Sarrasine. Esse exercício do pesquisador intenta trazer para a cena o revozeamento que subjaz o texto e compõe seu palimpsesto. Ao estrelar o texto, Barthes (Barthes, 1974, p. 18) nos provoca a alargar nossa visão sobre os seus sentidos, “[...] comparável a um céu simultaneamente plano e profundo, liso, sem margens nem pontos de referência […]”. As lexias criadas por Barthes são zonas de leitura que, por meio da digressão e da reversibilidade, fazem aflorar os cinco códigos que indicarão passagens para o substrato semântico que compõem um texto plural. Assim como Barthes, queremos explorar o texto literário por meio de uma leitura e releitura plural, que nos permita sinalizar as forças do texto de Cecília Meireles, tendo em vista que “[...] quanto mais o texto é plural menos se escreve antes de eu o ler” (Barthes, 1974, p. 16).

Para que nossa leitura seja plural, é preciso que nos provoquemos a imaginar, a sonhar, devolvendo ao texto seu caráter poético, e, nesse sentido, Bachelard (2008, p. 146) nos ajuda ao afirmar: “O ser do sonhador de devaneios se constitui pelas imagens que ele suscita”. Quando lemos um texto e ele produz em nós ressonâncias e repercussões, suas imagens poéticas nos habitam e fazemos dele morada. “Com a poesia a imaginação coloca-se na margem em que precisamente a função do irreal vem arrebatar ou inquietar – sempre despertar – o ser adormecido nos seus automatismos” (Bachelard, 2008, p. 18). Essa é a função estética e artística do texto literário que desejamos salvaguardar aqui neste artigo, analisando o poema por sua força criadora, que nos arrebata dos automatismos e nos alça à imaginação – potência viva da literatura. Segundo Bachelard, “[...] a imaginação aumenta os valores da realidade” (Bachelard, 2008, p. 23).

Nem sempre a dimensão estética e artística do texto literário é valorizada no ensino da literatura, seja na Educação Básica ou no Ensino Superior, porque não se escolariza adequadamente o texto literário, com mediações de leitura que possibilitem que a poesia seja experienciada pelo viés da fruição. O tratamento da literatura como proposição estética e artística mobiliza saberes que podem levar o leitor a jogar com a obra, a dialogar com ela, entrar em suas fugas, a ler para além do que está no texto, estabelecer relações diversas com ele, tornando-se um leitor produtivo. Este é o exercício que aqui propomos: adentrar o texto de Cecília Meireles pelo viés da fruição, considerando seu poema “O último andar” como um texto escrevível, aquele que “somos nós ao escrever” (Barthes, 1974, p. 12), sem reprimir sua pluralidade de entradas e aberturas.

Como e por que fazer isso? Marangoni e Ramos (2020, p. 37-48) propõem procedimentos mediadores do texto literário que incentivam o letramento poético daquele que lê. As pesquisadoras exploram o potencial estético da palavra, desafiando mediações automatizadas, saindo de lugares-comuns, centrando-se no fazer poético, isto é, na atmosfera lúdica do texto, mobilizando recursos intencionalmente artísticos para potencializar a liberdade poética, apelando para a sensibilidade do leitor. Essa dinâmica da abordagem do texto literário traz à baila a discussão acerca do tratamento da literatura na escola, a sua função estética e artística, a fuga de seu valor funcional e pragmático.

Pesquisas como a de Vetter e Neitzel (2022) e de Neitzel, Pareja e Santos (2022) sinalizam que a mediação de leitura do literário necessita oferecer aos alunos da Educação Básica e acadêmicos do Ensino Superior a oportunidade de apreciar o texto literário como objeto estético e artístico, o que implica mediações que façam uso de objetos e espaços propositores, além de obras com potência estética. Para as pesquisadoras, “[...] a literatura educa esteticamente quando ela se dá no fazer uma experiência, quando a leitura gera um acontecimento individual, único […]” (Neitzel; Pereja; Santos, 2022, p. 164). As pesquisas voltam-se à mediação do literário como acontecimento, movimento de emancipação que provoque o leitor ao diálogo com as entrelinhas do texto, a fazer uma experiência com o literário.

O conceito de fazer uma experiência com a linguagem tem sua matriz em Heidegger (2015, p. 121), que afirma que fazer uma experiência com algo significa “[...] que este algo nos atropela, nos vem ao encontro, chega até nós, nos avassala e transforma”. Entretanto, para que o texto nos atravesse e transforme, segundo Heidegger, é preciso renunciar às nossas verdades para que uma nova verdade seja reanunciada. Desse modo, diante do texto, acionamos razão e sensibilidade, para entendermos aquilo que a obra nos sussurra de forma subliminar, policiando-nos para não direcionar nossa leitura, para lermos o que nós desejamos ler, cegando-nos para as possibilidades que o texto acena. Fazer uma experiência com o texto literário é explorarmos o vigor da linguagem sem enrijecê-la, descortinando seu trançado de relações, uma saga do dizer que vai se mostrando de forma apropriante ao leitor (Heidegger, 2015).

Nessa perspectiva, neste artigo, objetivamos analisar o poema “O último andar” (Meireles, 2012), escrito por Cecília Meireles e publicado no livro Ou isto ou aquilo, com o intuito de ampliarmos as discussões sobre a função estética da literatura e seu tratamento em sala de aula. Cecília Meireles foi criadora de uma vasta produção literária para crianças, mas essa obra não foi produzida especialmente para elas. O livro surgiu do olhar de Walmyr Ayala, que garimpou no conjunto da produção ceciliana poemas que dialogam com as crianças no contexto em que o livro foi organizado, em 1964. Se hoje há poemas no livro que nos causam estranheza, como “Uma palmada bem dada”, à época, a coletânea “[...] rompe com uma tradição ligada exclusiva e predominantemente à produção de poemas recheados de conselhos, normas, ensinamentos, orientados por uma pedagogia com valores tradicionais, predominantes até a década de 1960” (Ferreira, 2009, p. 187). Em meio aos poemas didatizantes, alerta a professora Regina Zilberman (2005, p. 128), são os poetas modernos brasileiros que escrevem para crianças, seguindo o padrão anunciado por Olavo Bilac em Poesias infantis, editado em 1904. Cecília Meireles desponta ao lado de Vinícius de Moraes e Mário Quintana, pertencentes à Geração de 1930.

Assim, um olhar mais cioso das especificidades e das necessidades infantis vai sendo construído e norteando o direcionamento de textos cecilianos para a infância. Com esse movimento, a possibilidade de experiência literária, em discussão neste estudo, fica mais perto do leitor infantil. Para a presente análise, convergem elementos estruturais, semânticos e visuais do poema, além de marcas da escritura feminina como potencializadoras dos sentidos, associadas à possibilidade de adentrar em si por meio da interação com os versos do poema. A construção tem razão de ser apenas se for acolhida e acolher o leitor, uma vez que, ao significar o texto, o leitor o toma para si.

Nessa perspectiva, esta pesquisa auxilia na reflexão sobre a natureza do texto literário, ao discutir como podemos lidar com os sentidos inesgotáveis da linguagem literária na escola e compreender como se dá a relação do leitor com o poema. Trata-se de pensarmos a leitura como possibilidade de amadurecimento e de acesso à amplidão da vida, dito de outra forma, como uma experiência.

2 Tensões entre o espaço e o passo: “Custa-se muito a chegar”

[...] o outro lado de mim me chama.

Os passos que eu ouço são os meus.

Clarice Lispector (1998)

Que espaço existe entre o que sou e minha dimensão etérea, de onde meu sonho me chama? Quantos passos me separam do outro lado de mim? Do térreo ao último andar, quantos passos são necessários? Para começar a interlocução, vamos ler o poema? Possivelmente você já o leu, mas para apropriar-se da poesia, muitas são as entradas que fazemos no texto, inclusive, pelo seu arranjo espacial: observamos que a disposição do poema eleito na página mimetiza, em sua “silhueta”, a estrutura vertical de um prédio, pois “o último andar”, que se exibe no título, sinaliza a subida, como convergência final da arquitetura poética de sons e de silêncios. Leiamos:

O último andar

No último andar é mais bonito:

do último andar se vê o mar.

É lá que eu quero morar.

O último andar é muito longe:

custa-se muito a chegar.

Mas é lá que eu quero morar.

Todo o céu fica a noite inteira

sobre o último andar

É lá que eu quero morar.

Quando faz lua no terraço

fica todo o luar.

É lá que eu quero morar.

Os passarinhos lá se escondem

para ninguém os maltratar:

no último andar.

De lá se avista o mundo inteiro:

tudo parece perto, no ar.

É lá que eu quero morar:

no último andar.

(Meireles, 2012, p. 25)

O poema é constituído por sete estrofes, sendo seis com três versos e a última composta por um verso único. O título do texto é também um estribilho: o poema inicia com “no último andar”, tem essa frase repetida quatro vezes por entre as estrofes e se encerra com ela. As rimas são formadas a partir do vocábulo “andar”, e todos os tercetos contam com rimas – ricas e pobres – no segundo e terceiro versos a partir das palavras: “mar”, “morar”, “chegar”, “luar”, “maltratar”, “ar”. Os verbos “morar” e “andar” são as palavras que mais aparecem no poema.

Ao longo do texto, o eu lírico declara sua fascinação e seu desejo pelo último andar. Em sua visão, trata-se de um espaço mais bonito do que os outros, com vista para o mar, onde há a luz do luar e o canto dos pássaros: “No último andar é mais bonito: do último andar se vê o mar” (Meireles, 2012, p. 25). Contudo, o último andar ainda é inalcançável porque está distante dele: “O último andar é muito longe: custa-se muito a chegar” (Meireles, 2012, p. 25). Apesar dos empecilhos, a conjunção adversativa reforça a vontade inabalável do eu lírico de chegar até esse local: “Mas é lá que eu quero morar” (Meireles, 2012, p. 25). Desse modo, a perspectiva do sujeito poético explicita que seu lugar de fala assume a perspectiva dos pequenos, pois, ao almejar o distante e superior, assume posição encolhida.

Habitar o elevado espaço... alcançar uma perspectiva privilegiada... enxergar o horizonte além... além do que os olhos físicos alcançam... Ter uma visão do “todo”. Tudo isso é possível no último andar. O gosto humano pelo desafio e pela vertigem causados pelas alturas possibilita-lhe associar a altitude à conquista: o cume da montanha é o prêmio da escalada. O último andar será alcançado após grande esforço, pois fica “muito longe” e, nele, “custa-se muito a chegar”. Desse modo, o último andar pode representar a meta do existir do sujeito, e atingi-la recompensa-o dos seus empenhos.

Em uma leitura inicial, os versos tendem a parecer simples, por abordarem o desejo de alguém por um bem material. Contudo, o fruir estético que se estabelece entre obra e leitor na leitura desse poema o tira do lugar-comum e alavanca uma significação que vai além do que está posto, que ultrapassa o sentido dicionarizado das palavras e escorrega por seus vazios e suas dobras. Por meio da leitura, é possível romper com a rigidez da língua fascismo, diria Barthes (1974) – e deixar-se levar pelos versos, pois o texto literário convida o leitor a abrir-se para outras experiências.

A proposta do poema leva-nos a dialogar com ideias sugeridas por Barthes (1974, p. 14) por tratar-se de um texto “[...] comparável a um céu, ao mesmo tempo plano e liso, profundo, sem bordas e sem marcas”. Para o autor, pelo texto literário, observa-se a migração dos sentidos e o aflorar dos códigos. Desse modo, o eu lírico do poema busca mais do que um apartamento no último andar, sua busca é pela imensidão que esse espaço lhe embrecha. Em cada um dos versos, o lirismo vai além do que está posto e possibilita que o leitor divague sem nunca concluir as possibilidades de sentido.

O eu lírico confessa: “Todo o céu fica a noite inteira / sobre o último andar / É lá que eu quero morar” (Meireles, 2012, p. 25). Trata-se, portanto, do desejo de alcançar um espaço perto do céu: um local longe da terra, distante do caos, perto do silêncio e da calma da noite e, como o próprio poema sugere, iluminado pelo luar. Há uma questão quase etérea que permeia os versos, como se o eu lírico almejasse não um lugar físico, mas o alcance do sublime e do divino. A própria noção de céu é deslocada, pois, nos versos, o verdadeiro céu só existe sobre o último andar. Neitzel e Ramos (2022, p. 23) concebem “[...] o texto literário como material plural, organizado pelo escritor como um estado de possibilidade, à espera do leitor para realizar-se plenamente”.

O poema convida a ir além do céu físico e conhecido: ele transforma os versos em um céu infinito porque, em analogia à escrita de Barthes (1974), o leitor jamais enxerga seu fundo em um aglomerado de sentidos que não se findam. Isso porque a sonoridade e as rimas da estrutura textual abrem espaço para o leitor se deixar levar pelo ritmo, enquanto a semântica dos versos gera uma divagação sobre o que está escrito. É justamente jogando com esses sentidos instáveis que o leitor pode traçar ligações entre os dados textuais, compondo constelações de significado que o orientam em sua caminhada pelos versos.

Pela descrição do último andar, o eu lírico constrói a imagem de um prédio cuja altura o leitor não consegue mensurar, pois não se sabe, numericamente, que andar é o último: “De lá se avista o mundo inteiro: / tudo parece perto, no ar” (Meireles, 2012, p. 25). O andar como símbolo de casa é tomado pelo leitor. Aliás, a casa como morada é aspecto presente na literatura. Em estudo sobre poesia para crianças, Marangoni e Ramos (2020) fazem uma incursão sobre cinco poemas publicados em obras para crianças e neles levantam peculiaridades da dimensão poética que podem fazer moradas para acolher o leitor criança. As autoras expõem que o componente imagético recompõe a percepção da realidade por meio de procedimentos metafóricos e metonímicos: “Por seu apelo sonoro e imagético, a poesia implica o leitor cognitiva e subjetivamente, constituindo-se como jogo de linguagem” (Marangoni, Ramos, 2020, p. 39).

A leitura do literário, por constituir-se no jogo de linguagem, orienta o leitor para um espaço distante de si, que nem sempre é alcançado pelo olho que lê, que decodifica, precisando do nosso segundo olho, o da imaginação. No conto O olho de vidro de meu avô, Queirós (2004) constrói um personagem que possui um olho para ver e outro para enfeitar, uma metáfora para nos encaminhar a pensar sobre o olho como uma parte de nosso corpo que é capaz de captar as imagens de forma racional, mas também que nos oportuniza perceber o mundo sensível. Pela leitura desse conto, compreendemos que, para apreender os sentidos do mundo que nos rodeia, é preciso fazer uso de ambos os olhos, pois assim conseguiremos apreender não apenas o mundo visível, mas também o invisível, sem apartamentos entre o mundo sensível e o inteligível, sem perder de vista que “ninguém esgota o mundo com o olhar, mesmo possuindo dois olhos sem vidro” (Queirós, 2004, p. 11).

Essa narrativa de Queirós convida-nos a pensar como se dá a relação do leitor com o texto. Diante dele, pode o leitor lê-lo apenas com o olho da racionalidade, tratando-o como um texto que tem uma mensagem a ser decifrada e interpretada. Ou pode lê-lo com os dois olhos, alargando possibilidades de sentido, de modo a oportunizar ao leitor jogar com o texto e com ele fazer uma experiência estética.

A possibilidade de fazer uma experiência com o texto literário habita justamente a ambiguidade da linguagem, quando sentidos plurais e até contraditórios coexistem e recusam a redução a um enunciado unívoco. A experiência, contudo, não se dá gratuitamente: “custa-se muito a chegar” (Meireles, 2012, p. 25) a essa circunstância, pois ela pede ao leitor quietude, disponibilidade e coragem diante dos estranhamentos e das exigências do texto. Uma atitude que costuma deflagrar uma experiência literária é “deixar o texto falar”, silenciando ante a estrutura textual. Reiterando essa posição, Neitzel e Ramos argumentam: “É preciso que o leitor se debruce sobre a obra e não tenha pressa de relacionar-se com ela para que o projeto estético da obra alcance seu fim último, que é afetar o leitor e levá-lo a colocar perguntas sobre o texto, a elaborar perguntas” (2022, p. 29).

À primeira leitura, o poema analisado fala-nos de uma habitação e de suas especificidades. Nesse ponto, convidamos outra voz para compor o movimento de escuta poética: Bachelard (1978, p. 200-201) ajuda-nos a pensar a casa, entendida como morada ou refúgio, como “[...] nosso canto do mundo. Ela é, como se diz frequentemente, nosso primeiro universo. É um verdadeiro cosmos”. A casa também adquire valor onírico, pois abriga o devaneio e protege o sonhador. Nesse sentido, a morada acolhe um corpo de imagens que dão ao homem razões ou ilusões de estabilidade. Nos versos cecilianos, o sentido da “casa” é estruturado em sua verticalidade: por trazer a acepção de um edifício, essa morada se eleva. Sublinhando essa característica, o sujeito aspira ao “último andar”: almeja estar perto do céu.

Se, para Bachelard (1978), o porão de uma casa simboliza o inconsciente, o sótão compreende a elevação espiritual. Por sua vizinhança com o sótão da casa, o último andar se estabelece no âmbito do devaneio, do elevado e do sublime. Outrossim, o último andar abraça a simbologia maternal da casa, como espaço de refúgio, de proteção, como seio que nutre e acolhe, imagens que colhemos a partir de versos como “[...] os passarinhos lá se escondem / para ninguém os maltratar [...]” (Meireles, 2012, p. 25).

Por isso, a forma onírica pela qual o espaço é evocado no poema sugere que o último andar não pareça físico e sequer faça parte de um grande prédio de concreto, ao contrário, ele se mostra leve a ponto de flutuar perto do céu. Assim, para fazer uma experiência com o literário, faz-se necessário que, por meio da leitura, o leitor não busque o conforto dos signos que indicam um só caminho, mas que tente fazer ressoar no poema sentidos que ecoam em sua própria vida e que geram deleite e descobertas. Nas palavras de Barthes (1987, p. 27), o leitor fica à deriva, permitindo-se guiar pela fruição do texto: “A deriva advém toda vez que eu não respeito o todo e que, à força de parecer arrastado aqui e ali ao sabor das ilusões, seduções e intimidações da linguagem, qual uma rolha sobre as ondas, permaneço imóvel, girando em torno da fruição intratável que me liga ao texto (ao mundo)”.

Estar à deriva da linguagem é colocarmo-nos para espreitar seus deslocamentos. Heidegger (2015) afirma que fazer uma experiência com algo é um movimento único, singular, porque depende de como nos relacionamos com o texto, com as percepções que são construídas no percurso da interação com a linguagem, em nosso caminhar. Ao longo dos versos, em sua relação singular com o texto poético, o leitor também pode divagar sobre o sentido de “andar”. A palavra aparece seis vezes ao longo das estrofes de “O último andar”, e seu emprego em cada verso pode ampliar a leitura. Na primeira parte, são utilizadas preposições antes do vocábulo: “No último andar é mais bonito / do último andar se vê o mar” (Meireles, 2012, p. 25), de modo que “andar” parece ser algo físico como a cobertura de um edifício, visto que o eu lírico consegue estar dentro dele e ver o mar a partir da posição do andar. Contudo, há versos em que o eu lírico utiliza “o último andar”, de modo que o artigo amplia o sentido da leitura. O último andar pode tanto ser uma construção quanto um caminhar.

O último andar – com artigo definido – faz com que esse andar se torne único: a última caminhada, o último passo a ser dado na vida. Seria esse o andar final que levaria o eu lírico tão alto quanto o último andar de um prédio, bem perto do céu? Tal leitura se torna possível pois, ainda consoante Barthes (2004, p. 24), “[...] ler é fazer o nosso corpo trabalhar ao apelo dos signos do texto, de todas as linguagens que o atravessam e que formam como que a profundeza achamalotada das frases”.

Nesse movimento de construção de significação, o leitor vê no poema uma revelação capaz de atravessar os signos. Se o andar não é mais físico, mas quase espiritual, toda a analogia das frases com a construção predial desmorona e abre espaço para uma nova escavação de sentidos. O leitor, imerso em possibilidades, ao mergulhar nas profundezas da leitura, divaga que o eu lírico não quer morar na cobertura de um edifício, mas quer que sua alma habite um espaço celestial, protegido dos maus-tratos do existir físico, quando sua vida e seu andar cessarem. Nessa tensão entre sentidos possíveis, equilibra-se “O último andar”, efeitos que a visualidade da obra recupera, a seu modo.

A ilustração de Odilon Moraes para a edição da editora Global (Figura 1) ressalta a verticalidade da construção a que se refere o poema, ao representá-la à semelhança de uma torre. O telhado em ponta e a chaminé em formato de seta ainda destacam esse intuito de tocar o céu. A estrutura piramidal do telhado pode simbolizar ascensão, elevação, bem como o poder da vida sobre a morte. A altura é denotada pela presença de nuvens no entorno da edificação, como também pelo contraste com relação às outras moradias, que se estendem horizontalmente na página, ladeando o edifício. Esta imagem que acompanha o texto verbal de Cecília Meirelles pode limitar a perspectiva do leitor, por identificar o último andar com um andar em um edifício. Enquanto o texto verbal provoca no leitor um movimento de deslocamento do sentido literal, a ilustração o conforta, pois apresenta uma imagem que reforça, encobre e corresponde àquilo que um leitor menos ousado desejaria ver.

Fonte: Imagem extraída de Meireles (2012, p. 25).

Figura 1 Poema “O último andar”. 

À altura do último andar, vemos o guarda-corpo do avarandado. O guarda-sol aberto e a árvore plantada no vaso sinalizam a condição habitável do espaço, além de sugerir aconchego. Um passarinho pousado no guarda-corpo da varanda volta-se na direção do texto verbal, à esquerda. Sua presença indica que o último andar é esconderijo seguro o suficiente para que o habitante fique à mostra em plena luz, aliando o desejo de estar, simultaneamente, protegido e em liberdade. Esses são sentimentos que limitam a saga de dizer anunciada pelo texto verbal e evidenciada em nossa análise e, assim fazendo, podem comprometer o acontecimento apropriador de que fala Heidegger (2015).

Conforme o filósofo, para que possamos fazer uma experiência com a linguagem, esta precisa provir do acontecimento apropriador, e esse provir está relacionado com a inauguração do novo, ao seu vigor sob outro prisma, à rasgadura do dizer. Desse modo, a representação visual de um texto pode dar voo à conotação ou, ainda, encaminhar o leitor a uma leitura denotativa; pode priorizar o olhar sensível e o diálogo com o onírico e o intangível ou um movimento que se distancia dele. O projeto gráfico do livro traça também possíveis caminhos de leitura, pois, a partir dele, o leitor cria seus percursos ao interagir com as dimensões verbal e visual. Sobre esse ponto, sublinhamos que o poema “[...]é um texto cuja estrutura é bastante esquemática e que, portanto, abre espaços de atualização para o leitor. No caso da poesia infantil, a ilustração desempenha um papel fundamental de apoio ao leitor iniciante” (Ramos, 2015, p. 133).

O poema espraia peculiaridades da construção poética que revelam a identificação do texto verbal à escritura feminina, em que o tom introspectivo desponta, ampliando a significação. O desejo de atingir outro patamar, um lugar mais elevado, rompendo com posição que pode ser subalterna. O rompimento, contudo, não é total, o eu lírico se manteria no espaço próximo, apenas com deslocamento para o último andar de onde contemplaria o todo. Trata-se, segundo Ramos e Marangoni (2013), de acessar a construção de certo modo de olhar, pensar e dizer que particulariza a atuação feminina sobre a realidade e singulariza a sua escrita. Para além das determinações biológicas, entendemos que a construção de um modo feminino de ser resulta de interações culturais, as quais vão delineando papéis e espaços sociais preferencialmente destinados às mulheres. Nesse tocante, o reconhecimento tardio da figura feminina como autora sinaliza a extensão social do silenciamento atribuído às mulheres no âmbito doméstico. Como observam Ramos e Marangoni (2013), Cecília Meireles talvez tenha sido a primeira poeta reconhecida na história da Literatura Brasileira. Ela ocupou o lugar que lhe era destinado como mulher, mãe e professora; e escreveu poemas com finalidade didática, como A festa das letras, de 1937. Somente mais tarde, em 1964, surgiu a obra Ou isto ou aquilo, ícone da poesia infantil brasileira, como uma coletânea de textos já escritos pela autora, cuja organização foi realizada por Walmir Ayala.

A organização da obra denota sensibilidade no sentido de criar um produto cultural que se desvincule da vertente didática e se aproxime do viés artístico e estético, criando uma frincha na produção editorial, anunciando que o livro é um produto que começa a tomar novos ares, se aproximando do imaginário infantil. O comparecimento de temas mais sensíveis em obras dirigidas às crianças, além de auxiliá-las na compreensão da complexidade humana, marca nova empreitada no mercado editorial, que evoluirá para o grande boom literário da década de 1990. Além disso, esse poema de Cecília Meireles acena alguns deslocamentos que podemos sinalizar como precursores de um pensamento feminista.

Desde tempos imemoriais, o espaço da casa é associado predominantemente ao feminino. A aspiração por um lar “bonito” e seguro (quase escondido) não costuma ser indiferente às mulheres, inclusive em outros tempos, quando chegava a motivar uniões conjugais. Nos versos lidos, contudo, esse anseio matiza-se de outro, aparentemente conflitante em relação ao primeiro: anseio pela liberdade e pela amplidão; pela possibilidade de “enxergar longe”, e esse longe parecer “perto, no ar”. Nesse sentido, se o espaço privado é destinado, via de regra, ao feminino, o espaço externo e aparentemente inacessível também compõe o seu ideal de “último andar”.

A contraditoriedade, que, aliás, caracteriza o feminino e suas paixões, torna esse “último andar” tão impossível quanto necessário ao sujeito poético, erigindo-o à altura da complexidade humana. Assim, o texto poético oferece possibilidade de abrigar as inquietações e os vazios do interlocutor. O poético pode acolher o horizonte do leitor e o seu amadurecimento cognitivo e subjetivo, fazendo-se sua morada. O interlocutor que os textos poéticos potencialmente (a)guardam resulta, possivelmente, de duas atitudes distintas e complementares:

[...] o leitor extensivo que, numa atuação marcada pela interatividade, abre e sobrepõe janelas, passeia ao sabor dos ventos na superfície da página, desobedece a linha e o verso, segue simultaneamente diversos links para depois abandoná-los, investiga as margens das palavras, inaugura suas interfaces; e o leitor intensivo, que assume atitude contemplativa e tateia a linha com cautela, olha atento para o fundo do texto, buscando nas palavras a própria imagem, perscruta o poço de cada palavra, escuta seus ecos surpreendentes, repete-os para que confessem sua poeticidade

(Marangoni; Ramos, 2020, p. 47).

O exercício de tais ações possibilita ao sujeito construir sua competência para interagir com o poético e para fazer dele um abrigo, onde suas perspectivas e problematizações tenham lugar, pois esse leitor (a)guardado pelo texto não está pronto: precisa do texto e das suas demandas para constituir-se. Ainda, a leitura de mundo, como assegura Cunha (2022, p. 187), não tem uma receita unívoca. Entretanto, a autora aponta um conjunto de princípios, categorias e ferramentas que capacitam os sujeitos a cruzarem olhares e a perspectivarem “[...] cenários de leitura e interpretação que rebatam o pensamento linear e simplista”.

Nesse sentido, a presença da literatura em sala de aula acolhe o leitor e o ajuda a perspectivar. Por isso, enveredamo-nos nesta análise para sinalizar que a dimensão simbólica, intrínseca ao texto literário, é sua riqueza, devendo não apenas ser preservada como explorada em mediações de leitura adequadas, sensíveis, que respeitem a função estética e artística da literatura. Por meio de mediações sensíveis, a leitura do texto poético pode dar-se pelo viés da experiência e contribuir para a educação estética e a cidadania global das crianças, pois, pela sutileza e potência da linguagem verbal e visual, são abertos caminhos para a escuta, a interlocução com o outro e a produção de saberes.

3 Considerações finais: “é lá que eu quero morar”

O que precisa nascer

aparece no sonho buscando frinchas no teto,

réstias de luz e ar.

Adélia Prado (2011)

A experiência de leitura pressupõe não apenas o acesso ao livro, mas, principalmente, uma mediação que considere os aspectos conceituais que problematizamos neste artigo, em especial o tratamento do texto literário como uma areia movediça que vai tomando conta de nós à medida que nela mergulhamos até estarmos inteiramente habitados por ela. O texto literário é sempre dinâmico, poroso, cheio de raízes que vão atravessando o leitor quando ele se deixa atravessar pelo texto. Adélia Prado poetisa na epígrafe: “O que precisa nascer tem sua raiz em chão de casa velha”. A escola pode ser este chão onde podem nascer muitas raízes que nos levarão do porão ao sótão (parafraseando Bachelard, 2008).

Contudo, para isso, é preciso renovar nossa forma de pensar a literatura em sala de aula, permitir-nos a um letramento poético que nos oportunize explorar seu potencial estético e artístico, o que exige muitas vezes que renunciemos à vontade de pedagogizar a literatura. Adélia Prado (2011, p. 37) continua a nos inspirar: “À sua necessidade o piso cede,/ estalam rachaduras nas paredes/ os caixões de janela se desprendem”. É hora de o mediador causar fissuras no discurso de utilitarismo da leitura e ter confiança nas potencialidades da linguagem, apostar nas forças que residem na literatura. Assim, poderemos ver “frinchas no teto, réstias de luz e ar” causadas pelo nosso sonho.

Ao longo deste artigo, fomos desdobrando as frinchas do poema de Cecília Meireles, cuja morada sonhada se projeta do chão ao infinito, em um distante “lá”, supondo estágios de progressiva elevação a cada andar. Ora, se as palavras também se assemelham a pequenas casas com porão e sótão, como sugere Bachelard (2008), podemos entender a própria organização linguística do poema em foco como uma estrutura verticalizada cujos “andares” de significado se sucedem, se tornando mais complexos. Habitar o texto literário significa, assim, explorar a verticalidade dos seus sentidos: caminhar do sentido literal que se acessa no nível do solo até o último andar, eivado de sonho e de devaneio. Esforço exigente para o leitor, mas certamente recompensador, por aproximá-lo de outro horizonte de leitura, de onde “se avista o mundo inteiro”.

“O último andar” é um poema sobre sonhos e desejos, além de apresentar uma divagação sobre a existência. Não se trata de um desejo material, mas da busca pelo que vai além da vida. Para o eu lírico, o último andar da caminhada é o que o possibilita chegar ao último andar perto do céu. Entre os sentidos escorregadios de “andar”, o leitor percebe o poder do texto literário cuja significação não se finda. O andar torna-se literário pelo uso que o eu lírico faz dele e pela interpretação que ganha espaço no jogo da linguagem: o leitor sente a fluidez dos versos e, depois, raciocina sobre o lido, permitindo-se devanear sobre possibilidades e ampliar seu olhar sobre si e sobre a alteridade.

Afinal, do que tratam esses versos? Não há uma resposta capaz de definir o poema. O texto é moldável e permite se levar pelo significado que cada um lhe confere: o último andar se constrói por meio da capacidade de o leitor conseguir transpor sua vida e seus próprios anseios em cada um dos versos. Assim, atingir o último andar, fazer o último andar, adquirir o último andar, estar no último andar, entrar no último andar, subir no último andar, olhar do último andar, dar o último andar, ter o último andar, andar o último andar são possibilidades que se abrem para que o leitor escolha qual caminho de leitura quer construir a cada vez que pousa seus olhos nas palavras do texto.

Mas afinal quem é, então, esse sujeito: para quem o texto guarda um lugar e que intenta ascender ao último andar da vida? Que se sente diminuto e inseguro ante os ultrajes do mundo? Que busca, ao mesmo tempo, a liberdade, a elevação e a proteção? Embora esse ser possa ser identificado como o sujeito infantil, considerando-se a perspectiva adotada e a destinação à obra, cada leitor, independentemente da idade, pode surpreender-se desejando um “último andar” para o seu existir e assumindo como sua a voz do sujeito poético.

Os versos cecilianos convidam-nos a escavar e, também, a escalar o poema para encontrar o que está escondido entre as palavras e, ao mesmo tempo, a olhar para o céu à procura de significados inacabáveis e que estão constantemente em movimento, como constelações. O último andar de Cecília Meireles é muito longe e custa-se a chegar, mas o caminho até lá permite novas descobertas de sentidos. Se o texto literário é arquitetura de sons e de silêncios, ele guarda um céu possível visto por meio da névoa em seu último andar, ao abrigar inúmeras constelações e possibilidades de relações imprecisas entre as ancoragens da linguagem, que engendram significados potenciais. A leitura do literário expande, assim, o céu de vivências do leitor e oportuniza a experiência estética e artística por meio da linguagem.

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Recebido: 20 de Maio de 2023; Revisado: 30 de Julho de 2023; Aceito: 01 de Agosto de 2023

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