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Revista Teias

Print version ISSN 1518-5370On-line version ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.18 no.49 Rio de Janeiro Apr./June 2017  Epub Aug 25, 2021

https://doi.org/10.12957/teias.2017.26210 

Em Pauta

O EMPODERAMENTO DA ESCRITA NA ESCOLA: Cenas de uma aula de produção textual

THE EMPOWERMENT OF WRITING IN SCHOOL: SCENES OF A TEXTUAL PRODUCTION CLASS

Janaína Moreira Pacheco de Souza* 

Janaína Fernandes Rebello de Moraes Gonçalves2 

*Professora de Língua Portuguesa na Educação Básica do Colégio Brigadeiro Newton Braga, Ministério da Aeronáutica, na cidade do Rio de Janeiro. Mestre em Educação pela UNESA. E-mail: janamoreira91@gmail.com

2Professora no Ensino Básico do Colégio Brigadeiro Newton Braga, Ministério da Aeronáutica e no Centro Educacional da Lagoa. Doutora em Literatura Brasileira pela UFRJC. E-mail: janalit@oi.com.br


RESUMO

Este artigo discute a intrínseca relação entre os processos de aprendizagem da escrita na escola e a postura pedagógica do professor enquanto mediador deste processo. Para subsidiar este diálogo, apresento resultados de uma reflexão realizada com alunos do 2º ano do Ensino Médio, sobre a apreensão da escrita no momento da avaliação, tendo em vista que, observa-se um distanciamento qualitativo entre os resultados destas verificações e os debates temáticos realizados anteriormente. O material produzido por eles, após a discussão, evidenciou questões que giram em torno de uma prática pedagógica da “escrita modelo”, como algo pragmático e tecnicista. O “medo” também aparece como fator inibidor da produção textual, sendo representado por termos como “tenho dificuldade”, “não consigo colocar no papel o que penso” ou “é muito difícil”. Pensar sobre essas justificativas é ter em mente que a responsabilização do processo de escrever é algo criticável, criando marcas negativas sobre o ato de escrever. A memória afetiva do prazer em produzir textos na infância foi recorrente nos apontamentos dos alunos, sugerindo um paradoxo entre a representação da escrita nessa fase e o seu custo nos dias atuais. Com o intuito de compreender a vivência da escrita na escola desses alunos, é importante refletir sobre a necessidade de ajustamento no ensino que rompa paradigmas e não supervalorize a técnica em detrimento ao pensamento. Ao professor, fica o desafio de repensar uma prática em sala de aula que contemple a diversidade de seus alunos e valorize o ato de escrever como possibilidade de expressão de maneira autoral.

Palavras-chave: produção textual; prática pedagógica; aprendizagem significativa

ABSTRACT

This article discusses the intrinsic relationship between the writing learning processes at school and the pedagogical approach of the teacher as the mediator of this process. To support this dialogue, we present results of a reflection done with students of 2nd year of High School, about the appropriation of writing in the moment of evaluation. Given that, there is a qualitative gap between the results obtained of these analysis and the thematic discussions previously made. The material produced by the students, after these discussions, revealed issues that are around a pedagogical practice of "writing style" as something pragmatic and technicalities. "Fear" also appears as inhibitor factor for textual production, being represented by terms such as "I have difficulty", "I cannot put on paper what I think" or "it's very difficult." Think about these attitudes is keep in mind that the responsibilization of the writing process is something criticize, creating negative marks on the act of writing. The affective memory of pleasure in the text production in childhood was something that was always appearing in the notes of the students, what suggests a paradox between the writing representation at that period and nowadays. In order to understand the writing experience in school by the students, it is important to reflect about the necessity of adjustment in teaching that breaks paradigms and does not give so many values to technique instead the thought. The teacher has the challenge of rethinking his/her practices in the classroom, in a way that considers the student diversities and values the act of writing as a possibility of expression in authorial styles.

Keywords: Textual production; pedagogical practice; meaningful learning

INTRODUÇÃO

Culturalmente o sucesso escolar está relacionado a um padrão de comportamento de um indivíduo centrado, que atenda às normas estabelecidas pela instituição e apresente, acima de tudo, um rendimento que lhe possibilite alcançar êxito em sua escolha profissional. Qualquer indivíduo que fuja a esses requisitos faz com que ele não seja reconhecido como um sujeito protagonista do sucesso. Alunos que não se enquadram nesse cenário são vistos pela escola e pela sociedade como desinteressados e sem autonomia. Mas será que interessa à instituição saber a opinião deles sobre o que a escola ensina, como ensina e o que ele deve aprender? Como posso ser um professor que não conheço como os alunos pensam? Como posso ajudá-los?

Para esta análise, trago a figura do professor do mundo das Letras, o qual é inserido em um contexto que definiu como seria o mundo da escrita – aquele marcado por regularidades, prescrições, revisões e descrições linguísticas. Todavia, as representações do conhecimento, que deveria ser um ponto importante para a reflexão desse mundo vêm sendo deixadas de lado, o que representa um grande paradoxo, pois as categorias da gramática são subordinadas às categorias maiores do pensamento e da representação de mundo, tendo em vista que, quando um indivíduo nomeia a palavra, ele não tem absoluta consciência dos papéis atribuídos na construção. Ou será que ao pensar e escrever uma frase, o aluno automaticamente considera quem será o agente/ paciente/objeto? As funções sintáticas? As relações intrínsecas das frases? Será que nós imaginamos que nossos alunos são capazes de discriminar cada um desses requisitos no ato de escrever? Penso que não, pois o aluno não toma consciência imediata disso, desse ajuizamento automático.

Querer ver sob esse prisma é entender que, em alguns casos, os textos dos alunos não refletem impropriedades gramaticais, mas diversidade representacional. Ver essa diversidade representacional presente na escrita dos meus alunos e compreender as dificuldades que encontram em normatizar seu pensamento na hora das redações me fez assumir essa reflexão. Talvez porque isso aliviasse um pouco o peso da normatização que carrego comigo desde a formação. Pensar sobre me fez me aproximar de uma situação que me aflige há anos e que, a cada dia, se torna mais presente em minha prática pedagógica como professora de Língua Portuguesa. Tive a oportunidade de ministrar aulas em diversos séries/anos do ensino básico e tenho percebido que, à medida que os alunos aumentam o nível de escolaridade, eles apresentam menos motivação ou prazer no ato de escrever. A falta desses elementos muitas vezes é justificada por termos como “tenho dificuldade”, “não consigo colocar no papel o que penso” ou “é muito difícil”.

Pensar sobre essas justificativas é ter em mente que a responsabilização sobre o processo de escrever pode ser algo condenável. Em primeiro lugar, porque essa responsabilização pode provocar a morte da criatividade e da motivação, o que acaba gerando um distanciamento entre o texto e o autor. Em segundo, porque cria-se uma marca negativa no ato de escrever, fazendo com que ele seja visto como um critério de superioridade.

Neste estudo, optei por fazer uma amostra do cenário da escola, trazendo à tona a questão da dificuldade da escrita em um espaço onde professores dizem que alunos não sabem escrever e alunos produzem mecanismos de rejeição à produção escrita. Os depoimentos utilizados nesse artigo são de alunos, durante uma aula de redação em que compartilhamos uma reflexão sobre a vivência da escrita em nossas vidas. Os sujeitos sobre os quais me refiro foram indicados a constituir uma turma do projeto intitulado “Tirando dúvidas e sanando dívidas”, que tem como um dos objetivos promover a reflexão sobre a aprendizagem, já que o modelo que lhes era oferecido não estava conseguindo alcançar êxito. Esses alunos são marcados por uma trajetória acadêmica assinalada por dificuldade de aprendizagem, reprovações e baixa autoestima.

Com forma de subsidiar a discussão acerca da limitação da escrita na escola e o papel dos docentes inseridos nesse contexto, estabeleço um diálogo entre os depoimentos dos alunos, os quais tiveram a oportunidade de pensar sobre sua própria escrita, e os estudos de Delacampagne (1995), Fávero (1996) e Senna (2008).

MEU ALUNO NÃO SABE ESCREVER. O PROBLEMA É DE QUEM?

No cotidiano da escola, a língua escrita tem sido pauta de diversos debates, sendo bastante incluída em momentos de conselhos de classe. Muito se ouve, de diversos professores, que “os alunos não sabem escrever”, e essas reclamações são, na maioria das vezes, direcionadas aos professores de Língua Portuguesa, como se os demais não fizessem parte do processo de letramento desses alunos. Como se não bastasse, muitos profissionais endossam esse mesmo discurso em sala de aula, quando comentam resultados de avaliações, porém deixam de repensar práticas em suas próprias disciplinas que lhes possibilitem maior inserção de ferramentas que propiciem o ato de escrever.

A impressão que se tem é a de que a língua escrita aparece na escola como mais um conteúdo a ser trabalhado em sala de aula e não como um princípio de comunicação, o qual deve ser desenvolvido por todas as disciplinas escolares. Sobre esse papel da escola, Senna (2008, p. 46) adverte que:

O desenvolvimento da capacidade de se comunicar com os outros é uma tarefa fundamental da escola. Todavia, vale ressaltar que o seu desenvolvimento independe do pleno domínio do código escrito. Uma consequência natural da capacidade de ler o mundo, a comunicação é empregada para descrever e narrar fatos dos mais variados tipos.

Essa tendência de ver a escrita como reflexo do aluno tem motivado cada vez mais um pensamento estruturalista dentro da escola, o que vai na contramão da reflexão de que ele deve ir à escola para se desenvolver enquanto pessoa e não apenas para aprender conteúdos. O processo de letramento não deve ficar preso a uma única disciplina, mas ser conduzido por todos os profissionais da escola. Se eu passo a dar importância ao conteúdo, sem me importar com a aprendizagem num todo e, em especial, com o sujeito aprendente, eu não faço letramento. Se eu estudar o meu campo sem dialogar com o resto, não faço letramento. Mas o que nos resta é um profundo desespero, porque não fomos formados para compreender isso. As áreas não dialogam e o que aprendemos nas licenciaturas, muitas vezes, não nos permite entender o sujeito psicológico.

Outra questão que se levanta nesse contexto é pensar sobre a importância de se ter consciência crítica do que seja aprender uma língua, já que ela representa muito mais do que saber falar e escrever. O mito sobre a intrínseca relação fala e pensamento, difundido a partir do século XIX, propaga a ideia de que quem não escreve e fala de acordo com as regras, não pensa. Esse tipo de “poder” não deveria ter espaço entre educadores, pois, conforme aponta Auroux (1992, p. 87), “quando a gramática latina se torna, com a lógica, uma matéria de ensino universitário, sua orientação é totalmente diferente. Ela é uma disciplina abstrata e teórica, extremamente sofisticada e suscetível de argumentação”.

Há tempos temos convivido com uma ideologia de que ensinar uma língua é ensinar regras gramaticais e que procurar uma teoria metalinguística da linguagem é uma procura vã. É importante destacar que, em momento algum, despreza-se o ensino da gramática, já que ela tem um papel importante para a aprendizagem, todavia seu domínio não deve estar associado ao princípio positivista do “saber é poder”, do “aprender a pensar”. Pelo contrário, a condução equivocada desse processo, de forma utilitarista e tecnicista, acaba provocando sérios danos à aprendizagem, como aponta criticamente o autor:

Ora, quer se trate de uma palavra, quer de uma língua, a gramática não tem que ser explicada. Ela tem simplesmente que ser descrita, a fim de ser compreendida por seus usuários. E compreender uma gramática quer dizer compreender alguma coisa cuja evidência salta aos olhos, já que se trata de um simples modelo a seguir. (DELACAMPAGNE, 1995, p. 64).

Outro fato que se verifica sobre a relação “aprender gramática e pensar” é que, quanto maior é o contexto de diversidade escolar, maior é a reificação desse mito. O exótico das diferenças provoca a artificialidade entre o mundo da gramática normativa e o mundo dos alunos que “não pensam”, fazendo com que eles se sintam estrangeiros em seu próprio país e em sua própria língua. A gramaticalização da língua dentro das escolas muitas vezes está associada a imposições de ordem didática que deixam a desejar e acabam não promovendo uma aprendizagem de qualidade, como aponta Fávero (1996) sobre o entendimento de Verney (1713, p. 144).

O juízo que formo desta gramática é este: o autor, introduzindo um diálogo enfadonho, disse, em muitas folhas, o que podia dizer em poucas regras. Os diálogos não servem nada que de fazer mil repetições sem necessidade. Servem de cansar a memória dos rapazes, sem fruto, ensinando-os a falar como papagaio, visto que não entendem o que dizem; quando, pelo contrário, poucos preceitos, bem explicados como a viva voz do Mestre, ensinam mais com menos trabalho.

Fávero (1996, p. 171) reitera essa reflexão quando indica que “não basta ao professor transmitir ao aluno um saber; é preciso construir de tal modo esse saber para que ele possa reconstruí-lo quando tiver amadurecido”. Mais uma vez se evidencia a ideia de formar alguém para lidar com as circunstâncias reais, ver o aluno como processo central de ensino, e não o enxergar como ser passivo, reprodutor de regras que escuta no contexto escolar.

A despeito disso, é importante não pensar em um ensino que robotize nossos alunos, e sim numa prática que desenvolva sua capacidade intelectual. Não permanecer imune às contribuições teóricas que se fazem em torno do processo da escrita é um caminho para não promover a ideia de superposição de saberes, portanto, a gramática não deve se sobrepor ao discurso, nem vice-versa. É nessa dinâmica do aprender a escrever que podemos verificar que o sentido de ensinar é aprender a constituir-se com a língua escrita, porém nunca fazendo dela a linha de frente, como condição para que o sujeito seja reconhecido como ser pensante.

Portanto, a missão de não contribuir para que nossos alunos sejam robôs intelectuais, correndo o sério risco de sofrerem marginação e exclusão do sistema, deve passar por todos os profissionais que lidam com sua formação. O papel de “ousar”, para que eles confiem em sua própria produção escrita e formalizem seu pensamento, deve passar pela proposta de todo o corpo docente, através de práticas pedagógicas que lhes possibilitem criar, relacionar, ser e fundar seu próprio mundo, pois escrever é muito mais que conhecer regras gramaticais.

ESCREVER NO COTIDIANO ESCOLAR

O desejável acesso ao mundo letrado é uma das propostas da escola, ainda que esse mundo seja encarado pelos professores como um verdadeiro desafio nos dias atuais. Os questionamentos que ficam são os seguintes: por que escrever não é algo natural quando estamos diante de uma redação escolar? Quais são as dimensões envolvidas nesse processo que fazem com que o aluno não encare a escrita com naturalidade, tendo em vista que ela é um processo que o acompanha durante toda sua vida escolar?

Com a pretensão de vislumbrar possibilidades que possam responder a esses questionamentos, apresentarei trechos de produções textuais que retratam a vivência da escrita na escola, produzida por alunos do segundo ano do ensino médio regular. Observaremos que os depoimentos evocam mecanismos de bloqueio à produção escrita.

Antes a redação era feita sem nenhuma preocupação, pois não sabíamos o que seria avaliado. Quero dizer, pelo menos eu não sabia. Ao longo do tempo vão começando a dizer o que será avaliado na redação e a cada erro é tirado um ponto. Acho que por isso na hora de passar para o papel me dá um branco, pois penso no método de avaliação e até mesmo, por vezes, desconheço o assunto, tentando lembrar-se de algo que havia visto ou presenciado.

É possível fazer através desse relato uma breve análise e reflexão sobre o processo de letramento que muitas vezes é realizado na escola. Podemos observar que a sensação do medo de ser avaliado atrapalha o rendimento do aluno durante o ato de escrever. Aliado ao medo, ele deixa claro que o método de correção inibe o seu desenvolvimento, já que a “cada erro” perderá um ponto. Aqui fica clara a relação de fraqueza que o aluno tem sobre a escrita, não sendo permitido a ele o “erro”, pois isso representará uma forma de fracasso.

Ver o erro como uma vertente de fracasso tem sido algo habitual em nossa sociedade. Infelizmente não temos a cultura de transformar os desvios em algo produtivo, em lições que possam fortalecer as pessoas. Não somos criados para conviver com o erro como algo possível e produtivo, e, talvez por isso, o transformemos quase sempre em punição. A escola reproduz essa situação quase que com a mesma semelhança do que acontece fora dos muros. Didaticamente, nós, professores, reproduzimos tal prática quando utilizamos métodos de correção que visam somente rabiscar o erro do aluno nas redações, preferencialmente com caneta vermelha, sem o cuidado de refletir o porquê daqueles desvios. E o pior, muitos não compartilham dessa discussão com eles, pois acham que esse tipo de penalização faz parte de um procedimento educacional.

Outra situação temporal que aparece no fragmento e que deve ser evidenciada é a de que “antes a redação era feita sem nenhuma preocupação”. Essa passagem evoca uma posição de leveza do escritor para com o ato de produzir, demonstrando que “antes” preocupava-se menos com as regras impostas pelo corretor, produzindo o pensamento com maior naturalidade. Essa questão é recorrente em outros depoimentos, como:

Desde criança que eu gosto de escrever. Comecei a escrever com cinco anos e sempre tive prazer em escrever [...] já no ensino fundamental II e médio, eu comecei a ter menos criatividade para escrever um texto.

Amo português, porém tem várias coisas que me complicam. Tenho que dizer que na maioria das vezes me sinto insegura em ousar e errar, aí prefiro não me esforçar.

A relação estabelecida entre a escrita despreocupada e as normas impostas pelos professores talvez possa ser resumida através do trecho de um dos alunos que diz: “ Acredito que a maior dificuldade não é passar as ideias para o papel, mas mostrar que você sabe escrever, com todas as normas da língua portuguesa”. Mais uma vez, a questão normatizadora do ensino da língua se faz presente na vivência da produção textual, como se ela somente tivesse aparecido na vida deles no ensino fundamental II ou médio. O que se torna preocupante nesses depoimentos é a questão técnica que explicita a relação entre produzir bons textos e o cumprir todas as regras da língua portuguesa, como se a capacidade de pensar, criar e propor algo, com qualidade, tivesse como prerrogativa saber o conjunto de normas que a língua oferece. É óbvio que a composição gramatical é um componente que estabelece uma qualidade textual, porém não é uma condição sine qua non para a produção do pensamento.

A dimensão afetiva da escrita também aparece através de cenas da infância: “Desde bem nova, a escrita esteve presente em minha vida através de cartinhas para minha mãe”. De maneira paradoxal ao que se vê frequentemente no momento de uma produção em sala de aula, a escrita das crianças aparece para mostrar o prazer em dar sentido à cultura do escrever na infância. Elas já entendem que aquele ato representará, com maior propriedade, sua intenção e que, aquela cartinha terá uma dimensão duradoura, como se fosse a objetivação do que elas têm de mais importante para falar. Outra contribuição que se verifica na atitude desses escritos da infância tem relação com os propósitos textuais, os quais se apresentam de maneira bem definida pelas mensagens emitidas, estabelecendo e cumprindo o que tem como objetivo: a comunicação.

Em alguns textos aparecem exemplos de práticas pedagógicas que têm o propósito de promover a leitura e a escrita. Percebe-se a inferência dos alunos sobre a importância do planejamento do professor para propiciar o estímulo da leitura, fazendo com que obtenham melhor rendimento: “Meu professor, naquela época, sempre levava jornais ou livros para lermos e depois fazer uma redação do assunto. Foi nesse tempo que comecei a gostar de ler livros. Lia tanto, cada livro uma história diferente. Cada livro, uma paixão”.

Dar vida à palavra foi essencial para que esse aluno se apaixonasse pela leitura. Observar como ele apresenta a prática pedagógica, responsável por promover a paixão de ler, fez lembrar poetas como Apollinaire e Pessoa que se propuseram ver a linguagem como uma liberdade inconcebível. E sobre essa liberdade, Delacampagne (1995, p. 65) faz uma importante contribuição: “É verdade que as palavras resistem, mas não se pode brincar com elas sem pôr em perigo o significado”.

A expressão “escrever é brincar com as palavras” objetiva o sentimento desses alunos sobre a vivência da escrita. A escolha é pertinente devido ao fato de muitos terem apontado o paradoxo entre a representação da escrita na infância e o seu custo dela nos dias atuais. Ver o lado lúdico da escrita não significa que ela tenha que ser ausente de regras, de líderes, de acordos e entendimentos. A proposta é alcançar a aprendizagem, assim como propomos às crianças, através de algumas brincadeiras, cuja finalidade é promover a aprendizagem da melhor maneira possível, já que sabemos que a partir do momento em que praticamos atividades que nos dão prazer, consolidamos a memória afetiva em torno daquela ação e a vontade de repeti-la.

Mas, então, por que o ato de escrever se torna um fardo para tantos alunos no final do ensino fundamental e médio? Por que antes algo que era tão natural e prazeroso, agora causa desconforto? Talvez “porque agora fazer uso de um conhecimento amplo é mais difícil que antigamente”; “porque eu tenho nervosismo com o ENEM chegando”. As respostas dos alunos evidenciam a imagem da escola, através de uma prática pedagógica prescritiva e pragmática, que cria a imagem de um sujeito letrado capaz de obter sucesso. Lamentavelmente o que se vê é um método que visa à escrita por si mesma, como aprendizagem de códigos, regras e estruturas que servirão para concursos e vestibulares, desconsiderando práticas escolares ajustadas ao processo cognitivo e cultural dos alunos.

Tais métodos levam a crer que considerar esse processo do aprender é pôr em evidência a relação binária ensino-aprendizagem sem estabelecer de modo preciso a relação causa-efeito entre professor e aluno, ou seja, o professor ensina e o aluno aprende automaticamente, independente de um conjunto de experiências que o discente carrega consigo. Especificamente no que tange ao ensino da gramática, é importante não a considerar uma descrição da linguagem natural, mas um instrumento linguístico que propicie aos alunos alcançar algumas competências exigidas no dia a dia.

Foi interessante visualizar a criticidade que eles têm sobre o processo da escrita. Depois de terem apontado questões concernentes ao papel restritivo de uma prática pedagógica que os levam a um possível bloqueio da prática, eles reconheceram que isso deve ser superado, pois “a escrita nos permite um pouco mais de liberdade, pois tenho a possibilidade de expor, sem medo, meus pensamentos e argumentos”, “a escrita possui um grande valor na sociedade, pois através dela podemos fazer o principal, que é nos comunicarmos”, “escrever bem não é só garantir uma boa nota em língua portuguesa e sim em todas as disciplinas, porque todas as matérias necessitam da escrita”.

Dosse (1950, p. 306) reproduz o que filósofo Roger-Pol Droit pensava sobe o impacto de visão estruturalista em sua vida, reiterando que a escrita precisa ser contemplada para além de que um recurso técnico, caso contrário, ela terá o poder de engessar o pensamento.

Levei tempo para entender (foi preciso que partisse par isso) que o pensamento podia ser algo extremamente alegre, lúdico, tônico, risonho, ao passo que tudo o que eu tinha podido retirar das minhas mamadeiras estruturalistas era que precisava ser muito sólido, rigoroso, abstrato e frio. Que tudo que podia ser carnal era impensável.

Assim, mais do que um recurso técnico, a escrita deve ser comtemplada como um efetivo aprendizado linguístico que possibilite ao aluno fazer a escrita do dizer. Quando o fazer pedagógico, que se preocupa com a emancipação do pensamento se afasta da sala de aula, sobrepondo a técnica ao pensamento, corre-se o risco de esse fazer tornar-se algo sólido, rigoroso, abstrato e frio, conforme apontou o filósofo. Corre-se o risco de a escola formar pessoas que reproduzem belíssimos textos técnicos e péssimos escritores. Corre-se o risco de professores esquecerem que a escrita por si só não promove o letramento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Muitas vezes, na correria do dia a dia, abrimos mão de atitudes simples que serviriam para explicar tantos fatos que acontecem em sala de aula. Como professora de língua portuguesa, me vi muitas vezes imersa em um cenário marcado por correções técnicas, que me incitava a ter questionamentos, indignação e preconceitos. Como não sabe? Esqueceu? Desaprendeu? Talvez esse incômodo tivesse logo desaparecido se eu tivesse dado espaço, em minha prática pedagógica, a um posicionamento reflexivo sobre o impacto da escrita na vida dos meus alunos.

Há algum tempo tenho tido a oportunidade de participar de um projeto de inclusão, em uma escola pública federal do Rio de Janeiro, que tem como um dos objetivos um ensino que desafie alcançar o aluno real. Tendo à vista a proposta desse projeto, uma reflexão da prática pedagógica se faz presente a todo instante, já que ela é o diferencial para atingir o aluno que, por anos, foi deixado à margem de um sistema que contempla aqueles que se adaptam às metodologias da escola. Talvez por isso, um dos depoimentos obtidos em uma redação tenha objetivado a temática discutida até aqui neste artigo: “Escrever não é difícil, muito pelo contrário, é fácil. Nós é que fazemos ser complicado”.

Essa complicação surge de várias concepções errôneas e elitistas, propagadas historicamente, que dizem que a escrita é um modo de representação do sujeito que pensa. Ela passa a ser conferida ao aluno como instrumento de conferência sobre/para o ato de pensar. Se ele sabe, ele escreve. Se não sabe, não estrutura o pensamento em um papel e, infelizmente, não cabe na escola. Percebe-se que essa concepção atravessa o universo de nossas instituições, ignorando a dimensão sociocultural da linguagem, assim como, a pluralidade do aluno real.

O questionamento final que fica é o seguinte: o que o professor, em pleno século XXI, deve fazer para não propagar essa ideia, já que ela é uma falácia? A resposta para essa questão envolve toda uma mudança de paradigmas que circunda o campo da educação. Negar-se a esse diálogo é correr o risco do próprio professor se excluir de propostas pedagógicas inovadoras que busquem alcançar seu aluno e, pior, excluir aqueles que não conseguem se enquadrar na prática vigente, que procura o “melhor método”.

Como foi apontado ao longo do texto, essa busca inconstante pelo melhor método pode provocar a morte da criatividade e a motivação dos alunos no momento da escrita, o que acaba gerando um distanciamento entre o texto e o autor e criando marcas negativas sobre o ato de escrever. É preciso destacar que o objetivo nunca foi suprimir as normas gramaticais das aulas de Língua Portuguesa, muito menos deixar de indicar os desvios encontrados na produção de texto, pois isso seria condenável, já que levaria o aluno ao desconhecimento de instrumentos úteis para a vida. O que se pretende através dessa reflexão é pensar como ensinar.

Ensinar sem deixar marcas negativas seria o ideal. Ao banalizar a proposta de ensino da língua e desconsiderar a prática dialógica da escrita, deixamos essas marcas. É preciso repensar em estratégias que os próprios alunos indicaram como positivas e que, ao longo do tempo, foram massificadas por um propósito utilitarista que teve como finalidade preparar para os exames nacionais.

Sem a pretensão de esgotar as possibilidades que contemplem a discussão dessa temática, já que são múltiplas, muito menos criar receitas para a solução de uma cultura implantada nas escolas, vejo que se faz necessário refletir sobre os processos de produção textual e o ajustamento do ensino, para que não corramos o risco de supervalorizar a técnica em detrimento ao pensamento, desmerecendo assim o papel da produção individual e valorizando o foco pragmático do ato em si.

REFERÊNCIAS

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