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Revista Teias

versão impressa ISSN 1518-5370versão On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.18 no.49 Rio de Janeiro abr./jun 2017  Epub 25-Ago-2021

https://doi.org/10.12957/teias.2017.26708 

Em Pauta

A MEDIAÇÃO DOCENTE NO ENSINO DA LEITURA LITERÁRIA

Zizi Trevizan* 

Raimunda Abou Gebran2 

Cléber Ferreira Guimarães3 

1Professor do Departamento de Educação da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp – Presidente Prudente, SP). Membro do CELLIJ/Unesp, vinculado ao Programa de Mestrado e Doutorado em Educação. E-mail: zizi_trevizan@uol.com.br

2Professora titular do Programa de Pós-Graduação em Educação (Mestrado) da Universidade do Oeste Paulista (Unoeste); e coordenadora pedagógica do curso de Pedagogia do Instituto Educacional de Assis (IEDA). E-mail: ragebran@hotmail.com

3Mestre em Educação pela Unoeste. Especialista em Metodologia de Ensino de Língua Portuguesa e Literatura (UNIASSELVI); Pós-graduado em Educação Especial Inclusiva pela Uniasselvi; graduado em Letras (Português/Inglês) pela Faculdade de Presidente Prudente (UNIESP). E-mail: cleber_blod@hotmail.com


RESUMO

A pesquisa, de natureza qualitativa, teve como objetivos identificar e interpretar o papel mediador do professor no ensino da leitura literária, a partir da análise documental das atividades discentes de compreensão da linguagem estética da literatura, no material do Programa São Paulo Faz Escola. Focada na teoria bakhtiniana da Filosofia Materialista da Linguagem e nos estudos sobre a mediação semiótica de Vygotsky, revelou uma abordagem neutralizante das funções estéticas e ideológicas dos textos, apresentando uma conceituação inadequada de criação literária, configurando-a como produto de origem subjetivista/individualista e não como processo social e cultural, dotado de um papel ideológico produtivo.

Palavras-chave: Leitura Literária; Ensino Médio; Mediação Docente

ABSTRACT

This qualitative research aimed to identify and interpret the mediating role of teacher in the teaching of literary reading, from a documental analysis of student’s activities proposed for the comprehension of literature’s aesthetic language in materials of the “São Paulo Faz Escola” program. It focused on Bakhtin’s theory of Materialist Philosophy of Language and in the studies on Vygotsky’s semiotic mediation reveling a neutralizing approach to aesthetic and ideological functions of texts, presenting an inadequate conceptualization of literary creation, configuring it as product of subjectivist / individualist origin and not as a social and cultural process, endowed with a productive ideological role.

Keywords: Literary Reading; High School; Teacher Mediation

INTRODUÇÃO

Segundo Del Ré (2013, p. 16), “nos estudos recentes de Aquisição da Linguagem, admite-se que a metodologia seja determinada pela teoria eleita pelo investigador”; ou, em outros termos, “é a postura teórica que vai nortear a metodologia e a seleção dos dados”. Assim, a nosso ver, discutir práticas de ensino e recepção da literatura na educação básica inclui reflexões sobre teorias semióticas para uma abordagem metodológica crítico-ideológica do texto literário na sala de aula.

Em razão do exposto, explicitamos, inicialmente, que o aporte teórico selecionado para elaboração do texto desse artigo, foi centrado na teoria bakhtiniana da filosofia materialista da linguagem, incluindo os estudos sobre a mediação semiótica em Vygotsky. A seleção de tais teorias possibilitou o reconhecimento das contribuições significativas de uma metodologia sociointeracionista, de abordagem teórica histórico-cultural, para uma leitura crítica do texto literário na escola.

É fato constatado (TREVIZAN, SAMPAIO, 2015; TREVIZAN, LOPES, SOUZA, 2015) que as formas de abordagem dispensadas à leitura do texto literário são, frequentemente, muito superficiais, nos livros didáticos, cujos autores não tiveram a oportunidade de conhecer as especificidades discursivas, a profundidade filosófica e a função social da linguagem estética. Assim, estudiosos acadêmicos vêm se dedicando à busca de extrapolação dessas concepções superficiais de leitura, inscritas nos modelos pedagogizantes de abordagem da literatura e das artes visuais, tanto na educação fundamental como no ensino médio (PAULINO; COSSON, 2009; COSSON 2014 e outros).

A nosso ver, cabem, sobretudo, às Instituições de Ensino Superior, revisões das teorias e práticas sobre o assunto, no processo acadêmico-científico de formação de futuros professores, que atuarão na educação básica com a literatura, pois ela ainda continua a ser explorada, no uso docente das coleções didáticas e, como vimos nesse estudo, até nas atividades discentes planejadas por Programas/ Projetos Estaduais e Municipais, apenas em seus aspectos conteudísticos (dados temáticos e narrativos). Sua significação estética filosófica fica reduzida, na prática escolar, a um reconhecimento único e superficial dos sentidos literais (linguísticos) dos textos.

Apesar de ser frequente a afirmação dos produtores de materiais didáticos sobre a relevância, na Educação, das teorias materialistas da linguagem (sobretudo a Bakhtiniana e a Vygotskyana), nas atividades discentes sugeridas por eles para leitura da literatura, esses pressupostos teóricos anunciados na apresentação de suas produções (livros, cadernos, revistas, jornais) não são postos em prática. Portanto, com os objetivos de identificar e interpretar o papel mediador do professor no ensino da leitura do texto literário, foi efetuada uma análise documental do Caderno do Aluno (1ª série do ensino médio, 2014-2017), elaborado pela Secretaria de Estado de Educação de São Paulo, como Material de Apoio ao Currículo do Estado deSão Paulo (2010), no Programa São Paulo Faz Escola.

O referido programa paulista apresenta, adequadamente, os conceitos histórico-culturais de texto, de linguagem, de leitura, mas, no Caderno do Aluno, contradiz os conceitos informados (sob a perspectiva teórica histórico-cultural) e acaba não confirmando o espaço (social/ crítico/ reflexivo) da literatura na escola e na sociedade, como oportunidade ideal de uma revolução de ideias, resultante da leitura do necessário diálogo entre a essencialidade da linguagem poética e a profundidade da experiência humana.

Pelos resultados obtidos, identificamos uma abordagem neutralizante das funções estéticas e ideológicas dos textos de literatura, tradutora de uma abordagem metodológica inadequada da Criação Literária, concebida como um produto de origem subjetivista/individualista e não como um processo social, gerador de cultura, dotado de um papel ideológico, produtivo. Tais resultados causaram uma maior preocupação, em razão de esses procedimentos escolares de leitura do literário terem ocorrido em materiais didáticos produzidos pela Secretaria de Educação de São Paulo – SP. e distribuídos a todas as escolas estaduais.

A MEDIAÇÃO DOCENTE COMO FAVORECEDORA DE UMA ANÁLISE CRÍTICA DO CONHECIMENTO

O momento atual da educação insere-se em um processo de mudanças e incertezas e há necessidade de apontar valores importantes condizentes com a sociedade contemporânea escolar, em especial com a educação básica. Revela-se ao professor a necessidade de exercer um novo desafio, um novo papel que possa contribuir na educação de crianças e jovens com vistas à formação do cidadão crítico e reflexivo. Isso se viabilizará a partir do momento em que o professor assumir o seu papel de mediador do processo ensino-aprendizagem, favorecendo a postura reflexiva e investigativa, que deve estar de acordo com as concepções de ensino e de aprendizagem adotados.

O conceito de mediação tornou-se bastante presente no discurso pedagógico em razão da forte influência da abordagem histórico-cultural, que enfatiza a relação de reciprocidade entre o indivíduo e as possibilidades do conhecer, aprender. A partir dessa concepção, o fenômeno educativo é visto numa perspectiva de totalidade, concebendo a escola enquanto instância social e a prática pedagógica como uma modalidade da prática social, inserida em um contexto que visa a transformações sociais mais amplas. Assim, o caráter mediador da prática educativa escolar ganha, então, contornos sociopolíticos, sendo a escola uma instância mediadora entre a sociedade e os alunos que se educam, visando à sua transformação.

Isso nos remete à própria origem do termo mediação, que provém do radical grego mésos e, também, do latim mediatio. Em grego, significa o que está colocado no meio, o ponto médio. Do radical latim mediatio, o conceito de mediação significa intercessão ou intermédio; refere – se às ações recíprocas que interagem entre duas partes de um todo, significa o que está entre as duas partes e estabelece uma relação entre elas.

Para Vygotsky (1987), se somos sujeitos que nos construímos nas relações com os outros, é no tempo e no espaço em que essas relações acontecem que apreendemos e produzimos conhecimento, que desenvolvemos a nossa consciência como sujeitos. A ideia de mediação na escola, por meio de uma perspectiva vygotskyana, coloca a complexidade das relações na construção do sujeito/objeto. O conhecimento, portanto, é um produto dessas relações. Nesse sentido, o professor poderá colaborar para a construção da autonomia de pensamento e de ação, ampliando a possibilidade de participação social e desenvolvimento mental e capacitando os alunos a participarem ativamente de sua “prática social” como sujeitos no contexto em que estão inseridos.

Duarte (2000, p. 22) afirma que o conceito de mediação leva à expectativa de uma relação de reciprocidade entre o indivíduo e as possibilidades do conhecer, aprender. Enfatiza, pelo discurso oficial no plano da ideologia intersubjetiva, a “troca de experiências entre as pessoas”, para que a possibilidade de conhecimento esteja diretamente relacionada à interação entre sujeito/sujeito e ao conhecimento pelo “vir a ser”.

No contexto da sala de aula, o professor precisa ter o entendimento de que ensinar não é simplesmente transferir conhecimento, mas, ao contrário, é possibilitar ao aluno momentos de reelaboração do saber dividido, permitindo o seu acesso crítico a esses saberes e contribuindo para sua atuação como ser ativo e crítico no processo histórico-cultural da sociedade. Ou seja, o professor deve se colocar como ponte entre o estudante e o conhecimento para que, dessa forma, o aluno aprenda a “pensar” e a questionar por si mesmo e não mais receba passivamente as informações como se fosse um depósito do educador. (BULGRAEN, 2010, p. 31).

É fundamental que o professor atue como mediador, na relação do aluno com o conhecimento, de forma que haja a apreensão e apropriação do mesmo, estabelecendo um processo de problematização e interação das vivências, experiências e o saber sistematizado historicamente, acumulado pela sociedade, o que pode favorecer a reelaboração, reconstrução e produção de novos saberes.

Entende-se que a aquisição do conhecimento não deve ter como objetivo a erudição, o saber pelo saber, mas sim a possibilidade de que o conhecimento possa ser ferramenta a mais no processo de transformação social; para que o saber tradicional, que foi acumulado na evolução humana, possa ser útil ao aluno, se faz necessário que o professor seja o mediador entre o conhecimento e a prática social do aluno.

Nesse contexto, é imprescindível proporcionar aos educandos reflexão e compreensão do mundo que os cerca, levando-os a um posicionamento de vida em relação a sua participação como indivíduos na sociedade em que vivem e no ambiente que ocupam.

Para que isso ocorra, o educando deve ser desafiado, mobilizado, sensibilizado; deve perceber alguma relação entre o conteúdo e a sua vida cotidiana, suas necessidades, problemas e interesses. Torna-se necessário criar um clima de predisposição favorável à aprendizagem. (GASPARIN, 2009, p. 13)

Por isso o processo de mediação docente, bem fundamentado e embasado pedagogicamente, proporcionará criticidade e criatividade suficientes para o docente poder preparar suas ações/aulas/projetos para que também o estudante possa se “situar”, de forma mais atuante no interior das relações culturais e sociais. Portanto, a mediação docente constitui um processo permanente que envolve não só o conteúdo em si, mas as relações e o envolvimento que os sujeitos (educador e educandos) estabelecem com o mesmo, permitindo, especialmente, que os alunos se sintam estimulados e partícipes ativos do processo de ensino-aprendizagem.

De acordo com Santos (2013), isso só será possível, a partir do momento em que o professor assumir o seu papel de mediador do processo ensino-aprendizagem, favorecendo a postura reflexiva e investigativa. Dessa maneira, ele irá colaborar para a construção da autonomia de pensamento e de ação, ampliando a possibilidade de participação social e desenvolvimento mental, capacitando os alunos a exercerem o papel de cidadãos do mundo. É somente na relação entre sujeito-conhecimento-sujeito que a mediação se torna um conceito fundamental ao desenvolvimento humano.

A MEDIAÇÃO DO PROFESSOR NO ENSINO DA LEITURA LITERÁRIA

A sintonização cultural do leitor com o autor (ambos seres históricos, situados no tempo e no espaço) é reveladora, no ato da recepção de um texto literário, da natureza real, tangível (semiótica) do discurso estético da literatura e da sua função social estabelecida na interlocução humana.

Entretanto, ainda permanecem, na educação básica, conceitos de leitura neutralizantes da produtividade dos significados linguísticos e pragmático-sociais da linguagem da literatura; muitos educadores, desconhecendo as teorias materialistas da linguagem, ainda colocam a Arte Literária no plano único da ludicidade, do prazer fortuito, pois não têm ciência de que, pela filosofia bakhtiniana, a palavra inserida em um texto nunca está descontextualizada, tal como ocorre quando encerrada nos dicionários da língua. Para Bakhtin (2014), a palavra, ao participar de um texto, se transforma em fato social, gerador de diálogos entre a autoria e a recepção. E, dessa recepção, na sala de aula, participam professores e alunos. Portanto, é nesse processo recepcional, dialógico, da leitura – Autor x Texto x Professor x Aluno – que a mediação docente se edifica e o ato de ensinar leitura se constitui como compartilhamento cultural.

Bakhtin (2014) ressalta que o uso da palavra no texto implica um contexto ideológico, do qual emergem sentidos pragmáticos ou vivenciais. A leitura do literário pressupõe, portanto, a dialogia (entre o autor e os leitores) e a ambivalência (entre o texto e o contexto histórico-cultural), reveladoras da complexidade do movimento cultural do ato da leitura. No entanto, esses dois movimentos bakhtinianos da leitura semiótica da literatura (o dialógico e o ambivalente) que deveriam ser exercitados pelos professores, na função cultural de mediadores no ato da leitura literária, não têm sido considerados nas aulas, porque as próprias atividades discentes programadas para esse ensino não vêm oportunizando ações mediadoras dos professores para a sintonização cultural do aluno (leitor) com o texto e nem para a sintonização cultural do aluno (leitor) com o contexto histórico-cultural do texto, de modo a fomentar o intercâmbio social entre docente e alunos; alunos e alunos. Cosson (2014, p. 11) afirma: “Interpretar é dialogar com o texto, tendo como limite o contexto”.

Como amostragem dessa situação escolar de usos descontextualizados da literatura, selecionamos, nesse artigo, para análise das atividades discentes de leitura, um texto de Carlos Drummond de Andrade, extraído do Caderno do Aluno (edição 2014-2017), do Programa São Paulo Faz Escola (1ª série do ensino médio):

A palavra mágica

Certa palavra dorme na sombra de um livro raro.

Como desencantá-la?

É a senha da vida

a senha do mundo.

Vou procurá-la.

Vou procurá-la a vida inteira

no mundo todo.

Se tarda o encontro, se não a encontro,

Não desanimo,

procuro sempre.

Procuro sempre, e minha procura

ficará sendo

minha palavra.

ANDRADE, Carlos Drummond de. A palavra mágica. IN: ___. Discursos de Primavera. São Paulo: Companhia das Letras (com lançamento). Carlos Drummond de Andrade- Gráfica Drummond. http://www.carlosdrummond.com.br

FONTE: Programa São Paulo Faz EscolaMaterial de Apoio ao Currículo do Estado de São PauloCaderno do Aluno – Língua Portuguesa e Literatura- Linguagens, V.1, Ensino Médio, 1ª série, Edição 2014-2017.

Na análise efetuada, constatamos que, antes de se proceder à leitura do texto, os organizadores desse material didático, no tópico “discussão oral”, colocam uma primeira questão sobre o que o título da poesia “A palavra mágica” sugere para os alunos e acrescentam, na sequência, uma segunda indagação: “Quando uma palavra é mágica?” Pela natureza conteudística dessas duas questões propostas para discussão oral, pressupomos que o objetivo dos autores é introduzir reflexões sobre o que é Poesia (Arte Literária) e sobre a natureza do seu discurso estético, artístico. No entanto, ao condicionarem essa reflexão inicial sobre a Arte Literária e a sua linguagem à questão única do conteúdo que o título do texto drummondiano sugere para os alunos, eles acabam precipitando o ato interpretativo dessa poesia e conduzindo os alunos a divagações subjetivas, já que para falarem sobre o que, de fato, o título de Drummond sugere, necessitam de uma contextualização histórico-cultural do autor, da sua produção literária e da inserção desse texto na obra maior: Discurso de Primavera. É evidente que o título da poesia “A palavra mágica” estabelece relações de sentidos com o título da obra na qual ela vem inserida, ou seja, Discurso de Primavera.

A equivalência dos termos poéticos: “palavra” (no título da poesia) e “discurso” no título da obra maior é tradutora do objetivo de reflexões profundas (filosóficas) de Drummond sobre o discurso da Arte e a Vida nele contida; reflexões essas que perpassam todas as linhas poéticas do texto proposto aos alunos, para leitura e análise. A procura drummondiana da palavra que “dorme na sombra de um livro raro” é reveladora da busca continuada (do artista) de um novo modo de ver e de dizer a vida e de definir o poeta, a quem já se referira Cassiano Ricardo como uma lanterna mágica, como um ser sempre à frente do tempo, procurando uma nova ordem social, uma renovação sensível do mundo. Todo artista da palavra faz nascer o mundo INVERTIDO (o sentido novo, a imagem não refletida, o detalhe de vida não percebido, a concepção não formulada, não imposta). Por isso, no próprio discurso da poesia “A palavra mágica”, o eu poético dá, ele mesmo, a resposta à questão formulada sobre como desencadear a palavra adormecida na “sombra” de um livro “raro”; Drummond afirma que “a palavra mágica” (inerente ao sentido essencial da poesia e da existência humana) é “a senha da vida”, “a senha do mundo”. Ler poesia, é portanto, compartilhar do ato profundo da procura (poética) dos valores essenciais da vida.

Como, então, pedir aos alunos que falem sobre o que o título da poesia lhes sugere, sem contextualizá-los no ato específico do autor de uma produção “rara” (a poesia), de sentidos filosóficos sobre a vida? Como diz Drummond, sua procura é eterna: “Procuro sempre, e minha procura ficará sendo minha palavra”. A palavra e a sua relação íntima com a poesia definem a própria identidade humana, cultural, filosófica, do autor Carlos Drummond de Andrade: enquanto houver, no poeta, o sentimento da procura do sentido da sua VIDA, haverá POESIA.

No entanto, os organizadores das atividades de leitura dessa poesia, no Caderno do Aluno, se limitam a questionar os alunos leitores sobre a importância do adjetivo “raro” para a interpretação do poema; essa questão centrada na classificação gramatical do termo “raro” (como um adjetivo qualificando o substantivo “livro”), sem antes familiarizar o aluno com o universo temático da obra drummondiana e com o próprio poeta (o autor), acaba limitando o leitor a uma busca do significado gramatical do termo “raro”, desvinculado, portanto, dos sentidos literários de instauração de um novo discurso (o poético), para falar da vida humana com profundidade existencial. As próprias informações de sintonização cultural do leitor com o autor se restringiram, no Caderno do Aluno, a três linhas do tópico “Para saber mais”, onde são informadas apenas a cidade e a data de nascimento de Drummond; e a data de seu falecimento. Sobre a obra, apenas referências vagas: “modernista”, “tom melancólico e cético”, “fala de tempo” e “ironiza os costumes e a sociedade”. Nenhum desses elementos foi vinculado à interpretação da poesia selecionada pelos organizadores do Caderno do Aluno, talvez se pressupondo que o professor, na sua função mediadora, irá, com os alunos, buscar a contextualização necessária do discurso drumondiano, estabelecendo os diálogos necessários com os discentes sobre as dimensões profundas da linguagem literária

Também, na sequência dessas atividades discentes, propostas para análise desse texto drummondiano, novamente é solicitado que os alunos identifiquem, em outro verso da poesia, algo que “reforce o sentido do adjetivo ‘raro’ do primeiro verso”. Nenhuma relação desse termo “raro” foi estabelecida, por exemplo, com as expressões-chave da poesia: “senha da vida”, “senha do mundo”, para interpretação da função social e existencial, implícita no texto drummondiano. Assim, pela análise das atividades discentes inseridas nesse Caderno do Aluno, do referido Programa Paulista, foi identificado um modo simplista de compreensão literal (e não literária, estética e filosófica) dos signos da literatura. Se o professor, seguir, também literalmente, os passos estabelecidos pelo Caderno para a recepção do texto literário, estarão renunciando à relevância do seu papel de agente cultural (mediador) no ato de ensino crítico-ideológico da Arte Literária.

Segundo Bakhtin (2014), a Arte é construída de signos e onde há signos, há ideologia a ser interpretada. Para ele, os sistemas ideológicos constitutivos da Arte são cristalizados a partir da ideologia do cotidiano e exercem sobre ele o retorno da reflexão crítica. Também para Silva (2008, p. 55), “o sujeito necessariamente se educa ao fruir ou experimentar textos literários diversos”; mas nos alerta o autor sobre o fato de que nem toda forma de ensinar, principalmente a de cunho institucional (escolar) possibilita ao aluno leitor apreender (de modo filosófico e fruitivo) os aspectos educativos implícitos na literariedade (esteticidade) do texto da literatura. É o que observamos nas questões limitadoras, formuladas no Caderno do Aluno, pelo Programa São Paulo Faz Escola, que podem inviabilizar o processo da mediação docente no ensino da leitura literária.

Para Cosson (2009, p. 17) a literatura “é a incorporação do outro em mim sem renúncia da minha própria identidade”. Em outros termos, a literatura abre a possibilidade de rompermos nosso círculo de vida individual, de estarmos na condição do(s) outro(s), de ultrapassarmos tempo e espaço determinados e de podermos ser o(s) outro(s).Também para Bakhtin (2014), o texto literário é polifônico, dialógico e ambivalente. E esses traços culturais do texto literário (polifonia, dialogia, ambivalência) impõem a relevância da condição mediadora dos professores no processo de formação do leitor de literatura, para desenvolvimento da sua competência leitora, que lhe permita reconhecer o texto literário não apenas como um produto de origem individualista/ subjetivista, mas, sobretudo, como um processo social, gerador de cultura, portanto, de natureza ideológica, filosófica, artística.

Vygotsky (2007) ressalta que não podemos isolar um discurso (literário) da realidade social que o gerou. Afirma que o autor de uma obra de arte (2007, p. 350) não pode ser definido como uma “alma individual”, mas sim por sua “acción social”. Para ele, a Arte acende a emoção, desperta a vontade, eleva a energia e prepara para a ação.

Os autores acima citados destacam, portanto, o papel social da Arte e suas relações com a Cultura na construção do psiquismo humano. No entanto, os materiais didáticos, como vimos na análise efetuada do Caderno do Aluno do Programa São Paulo Faz Escola, ao elaborarem as atividades discentes de leitura da literatura, não estimulam o papel de mediador cultural do professor de literatura, para conduzir seus alunos ao reconhecimento dos aspectos dialógicos e ambivalentes do texto com o contexto de sua origem. A responsabilidade dessa condução pedagógica mediadora dos alunos à prática final da descoberta dos sentidos ideológicos e estéticos da obra literária não é fomentada no material analisado. Como, então, o professor poderá ser mediador desse processo cultural de leitura do literário, se a própria natureza das atividades de leitura, propostas pelo Caderno do Aluno, não contempla esse perfil crítico-ideológico do leitor de literatura a ser construído na sala de aula?

Tal constatação, a do desafio do próprio professor (enquanto receptor do texto literário) na formação crítico-reflexiva dos alunos, constitui um impasse no ensino da literatura e se justifica em razão de a literariedade de um texto ser pouco esclarecida, até mesmo nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), um Documento que, segundo Hernandes (2015), serve de embasamento à elaboração de projetos e currículos pedagógicos e, no entanto, das suas 144 páginas, pouco mais de uma se referem ao texto literário.

Para Todorov (2010, p. 89), citado em Cosson (2014, p. 69), a leitura das obras literárias na escola deveria “nos fazer ter acesso ao sentido dessas obras – pois postulamos que esse sentido, por sua vez, nos conduz ao conhecimento do humano, o qual importa a todos”. Com esse mesmo propósito, deveria ser formado, culturalmente, o papel mediador do professor de literatura, sobretudo nos Cursos de Pedagogia e de Letras.

Na educação básica (ensino fundamental e médio), o objetivo deve ser o de formar leitores competentes da linguagem específica da literatura, veiculadora dos valores ideológicos e dos princípios estéticos da Arte Literária que, em diálogo com a Filosofia e outras artes, possibilita a formação da identidade humana. E para essa construção cultural da condição de um leitor competente de literatura e da condição mediadora do professor, na sala de aula, são necessários saberes específicos e práticas frequentes de leitura das dimensões dialógicas (estabelecidas entre autor, texto e leitores) e das dimensões ambivalentes (firmadas entre o texto e o seu contexto); pois, se essas dimensões do texto e do contexto não forem exploradas no ato da mediação docente, a leitura do aluno fica reduzida à compreensão literal das estruturas linguísticas do discurso verbal; e desligado do contexto, o texto perde sua funcionalidade pragmático-social, no processo escolar de formação crítica dos leitores de literatura.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O modo simplista e redutor de análise do texto literário de Drummond, proposto no Caderno do Aluno do Programa São Paulo Faz Escola (Edição 2014 – 2017, 1ª série, ensino médio) provoca um outro questionamento: como o professor, no uso de atividades discentes limitadoras como as que foram sugeridas nesse material, pode exercer seu papel de mediador no ensino do texto literário?

Se considerarmos a concepção histórico-cultural de mediação, em Vygotsky (1987), ou seja, a sua aceitação da teoria das relações de interdependência entre aprendizado e desenvolvimento e o seu conceito de que o psiquismo humano tem origem social, mais relevante se torna o papel mediador do professor no processo de formação de leitores de literatura, pois, pela teoria vygotskyana da linguagem, desfaz-se, no processo formativo do aluno, a antiga oposição entre sujeito e objeto, considerando-se o indivíduo (um professor ou um aluno) “ao mesmo tempo, como sujeito (ativo) e como objeto (passivo) de um modo inseparável” (FRIEDRICH, 2012, p. 12). Para a autora, na concepção teórica de Vygotsky, “o saber é poder fazer”. Em outros termos, o saber só alcança a função de instrumento para poder fazer, assim que o sujeito (tanto o professor como o aluno) se torna apto a intercalar o saber adquirido entre ele próprio e o mundo. Se faltam saberes ao professor, seu poder fazer fica inviabilizado, comprometendo-se seu próprio papel de mediador. Assim, o modelo pedagógico inadequado de descontextualização do texto de leitura e a formação precária específica de ensino da leitura do discurso literário, tal como foram identificados no Caderno do Aluno (analisado nesse artigo) acabam determinando o não saber, também do aluno; o que, por sua vez, vem a comprometer a sua capacidade de poder fazer uma leitura crítico-reflexiva da Literatura.

Essa conclusão nos remete ao reconhecimento de que materiais didáticos dessa natureza não possibilitam ao professor (se esse seguir, passivamente, as atividades de leitura sugeridas) o exercício da condição de “agente cultural” (SILVA, 2003, p. 51) e, portanto, de mediador, no processo formativo da construção intelectual do seu aluno, enquanto leitor crítico-literário.

Como ressalta Bakhtin (2014), a compreensão é uma forma de diálogo firmado entre a enunciação e a réplica. Compreender a significação de um texto literário constitui, pois, um processo ativo e responsivo, resultante das interações do autor e do receptor. Se essas interações (aluno leitor x texto x contexto) não forem valorizadas no processo de ensino da literatura, o docente não põe em prática o papel de mediador e o efeito obtido só poderá ser o de uma leitura superficial do texto, não se alcançando a compreensão de que interpretar é dialogar com o texto, tendo, como ponto de partida (e de chegada) dessa interpretação, a identificação do contexto histórico-cultural do mesmo e as variantes culturais determinantes dos seus significados.

A escolarização do texto literário, no ensino fundamental I e II, ainda associa a Literatura diretamente ao ensino de língua e não ao ensino de linguagem; no ensino médio, o texto literário permanece associado à História da Literatura e à Cultura Clássica, para tornar o aluno culto. Assim, em todos esses graus da educação básica, neutraliza-se a possibilidade do letramento literário, ou seja, a oportunidade de formação do “leitor cooperante” (ECO, 1991 p. 75-9) da Arte da Palavra. Um leitor formado literariamente não é aquele capaz de apenas identificar (linguisticamente) os sentidos gramaticais do texto; nem o receptor capaz de identificar, isoladamente, as características históricas, estilísticas do código literário; é, na realidade, o leitor que, além desse desempenho duplo, é, sobretudo, capaz de extrair da experiência literária/estética, implícita em um texto, a sua “forma singular, diferenciada, de dar sentido ao mundo e a nós mesmos” (PAULINO e COSSON, 2009, p. 70). No entanto, se faz necessário lembrarmos que essa formação literária do aluno leitor, que pode lhe permitir situar-se de forma mais crítico-reflexiva no interior das suas relações e interações sociais, só ocorrerá pelo ato mediador do professor, que, para isso, também necessita de uma formação docente específica sobre a linguagem literária.

REFERÊNCIAS

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