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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.18 no.51 Rio de Janeiro oct./dic 2017  Epub 10-Mar-2020

https://doi.org/10.12957/teias.2017.31634 

Seção Temática

MICROPOLÍTICA, DEMOCRACIA E EDUCAÇÃO

Carlos Eduardo Ferraço

Antônio Carlos Amorim


TEMPOS SOMBRIOS E DEMOCRACIA

Nesses tempos sombrios em que estamos vivendo, de retrocessos por todos os lados associados à entrada cada vez mais forte dos burocratas, dos fundamentalistas e dos empresários na Educação, apostar em uma produção que valorize as micropolíticas ativas que acontecem nas escolas pode expressar movimentos de resistência e de (re)existência ao conservadorismo e a demais formas de opressão e de desvalorização do trabalho docente, mas não só.

Contra-reformas educacionais como a proposta de uma Base Nacional Comum Curricular (BNCC) se constituem como modos de violência à Educação, na medida em que instituem mecanismos de controle e de comercialização do conhecimento, resultando na desqualificação e no alijamento das práticas-teorias que estudantes e educadores criam nos cotidianos das escolas, tentando impedi-los de atuar-participar de forma coletivo-autoral dessas criações com suas singularidades, desejos, expectativas, interesses, acontecimentos, experiências e particularidades que trazem como potência para a educação. A democracia mereceria ser repensada em tal contexto?

Inspirados em Rolnik (2016), precisamos ficar alertas para o perigo representado pela atual derrocada mundial das esquerdas, provocada pela ascensão ao poder de forças macropoliticamente reacionárias e micropoliticamente reativas e conservadoras, forçando-nos a pensar que, por exemplo, não basta entender-analisar os efeitos das macropolíticas na Educação. Como adverte a autora,

Por mais que se faça no plano macropolítico, dentro e fora do Estado, por mais agudas e brilhantes que sejam as ideias e as estratégias, por mais corajosas que sejam as ações, por menos autoritárias e corruptas que sejam e por mais êxito que tenham em estabelecer menos desigualdade econômica e social e expandir o direito à cidadania, elas resultam numa reacomodação da cartografia vigente se não se acompanham de um deslocamento no plano micropolítico [...]. É que se a subjetividade e a cultura permanecem predominantemente regidas pela mesma lógica do ponto de vista micropolítico, tudo volta necessariamente para o mesmo lugar, exatamente aquele do qual pretendíamos sair (ROLNIK, 2016. p.7)

No sentido de contribuir para a problematização das questões provocadas até então, o presente Dossiê busca potencializar as relações entre Educação, democracia e micropolítica, assumindo os territórios-escola em meio aos seus processos de criação, resistência, singularidades, fluxos, intensidades e devires, a partir de paradigmas ético-estético-políticos da Educação, buscando escapar das tradicionais formas de representação que criam imagens-clichês para essas instituições e seus praticantes.

Interessa-nos apostar na pluralidade do mundo como característica e não como problema, reconhecendo a legitimidade de diferentes sujeitos, modos de ser e de compreender o mundo. Ensejando, portanto, formas de sair, linhas minoritárias de re-existir, traçados diferenciais para os processos democráticos.

É Rolnik (2016), mais uma vez, quem nos força a pensar quando afirma que é na presente etapa do regime capitalista, isto é, em sua versão financeirizada, neoliberal e globalitária, que ganha lugar central e se refina uma estratégia micropolítica de poder, se aprimorando e se articulando com a tradicional estratégia macropolítica que atua apenas no âmbito do Estado ou a ele é dirigida. Como infere a autora,

O imaginário das esquerdas não abarca a dimensão micropolítica, e, sendo assim, não tem como decifrar a estratégia de poder do capitalismo financeirizado globalitário, e muito menos combatê-lo. Se o que estamos vivendo na América latina é muito triste e assustador, há que reconhecer que, ao mesmo tempo, nos permite expandir a complexificar a noção de resistência - e mais amplamente, de política - por nos fazer enxergar tanto o que está ao alcance da esquerda quanto o que não está, dados os limites inerentes à sua própria lógica (2016, p. 3-4).

Ao ampliar sua análise, Rolnik (2016) considera a importância de não perdermos de vista a possibilidade de resistir no próprio âmbito do Estado, cujo objetivo seria a conquista da democracia que, para ela, não seria apenas política, mas também cultural, social e econômica. Assim, em termos da dimensão da macropolítica, nos posicionar a favor de um Estado mais justo e com menos permeabilidade ao neoliberalismo seria o mínimo que se poderia desejar. Não ter essa atitude, para a autora (2016), já seria o domínio da perversão e da psicopatia, patologias que se caracterizam pela inexistência do outro.

A resistência para Rolnik (2016), então, estaria relacionada à necessidade de nos deslocar da micropolítica dominante, reativa do inconsciente colonial-capitalístico, que, segundo ela, comanda o sujeito moderno ocidental encarnado em nós e nas esquerdas. De fato, tratar-se-ia de uma nova maneira de pensar-praticar a realidade, de situar os problemas e de atuação crítica a partir desses mesmos problemas, potencializando uma outra-nova concepção de política. Para Rolnik (2016),

É na direção de tal deslocamento que se move um novo tipo de ativismo que vem se propagando mundo afora e que na sociedade brasileira tem acontecido principalmente nas periferias - em especial entre jovens, negros, LGBT e dentre eles, ainda mais especialmente as meninas. Com uma lucidez e uma inteligência extraordinárias, inventam-se múltiplas formas de ação micropolítica em seu sentido ativo. Estas talvez não caibam no imaginário das esquerdas - sobretudo em sua versão partidária e sindical - e menos ainda no binõmio esquerda versus direita, no qual tal imaginário se situa e ganha seu sentido (p. 8-9).

DEMOCRACIA E MICROPOLÍTICA

Durante o 3º Congresso de Cultura Negra das Américas realizado na PUC-SP em 25 de agosto de 1982, Félix Guattari, ao responder a uma pergunta de João Silverio Trevisan, já antecipava, de certo modo, as problematizações apontadas por Rolnik (2016) ao questionar a possibilidade de se usarem modelos gerais na análise micropolítica, uma vez que esse tipo de analítica só pode ser levado a cabo pelos indivíduos e pelos grupos concernidos.

Como argumentou Guattari (2011) na época, o problema aí colocado refere-se ao fato de, em uma análise micropolítica, não ser possível ser usado um único modo de referência e, com isso, ser necessário se considerar diferentes possibilidades. A esse respeito Guattari (2011) dispara

Eu posso, por exemplo, ficar nesta tribuna pronunciando grandes discursos emancipadores e liberadores e, ao mesmo tempo, ter um investimentode poder paranoico para me apoderar do auditório, estabelecer uma relação de sedução falocrática, racista e sei lá mais o quê (p.154)

As provocações de Guattari nos forçam a pensar que o que chamamos de análise micropolítica se situaria, então, nos entrecruzamentos dos diferentes modos de apreensão de uma problemática, necessitando de nós o rompimento com o tradicional binarismo subjetividade X realidade social material, dispondo-nos a assumir-enfrentar a dimensão de multiplicidade de nossas vidas. Como infere o autor,

Sempre haverá ‘n’ processos de subjetivação que flutuam constantemente segundo os dados, segundo a composição dos agenciamentos, segundo os momentos que vão e vêm. E é nesses agenciamtentos que convém apreciar o que são as articulações entre os diferentes níveis de subjetivação e os diferentes níveis de relação de forças molares (GUATTARI, 2011. p. 155)

Ao considerar que a questão micropolítica está intimamente relacionada a como reproduzimos ou não os modos de subjetivação dominantes, Guattari (2011) rompe com o equívoco da lógica de contradição entre molar e molecular, argumentando que “[...] os mesmos tipos de componentes individuais podem funcionar de modo emancipador em nível molar e, coextensivamente, serem extremamente reacionários em nível molecular” (p.155). Continuando essa discussão, o autor salienta que

No nível molecular é muito mais difícil identificar o inimigo, pois não se trata como no nível molar de um inimigo de classe que vai se encarnar num ou noutro líder. O inimigo nesse casoé algo que se encarna nos nossos amigos, em nós mesmos, em nossas fileiras, a cada vez que o problema remete a um agenciamento de uninciação de um outro tipo (GUATTARI, 2011. p. 156).

Ao sucumbir com toda e qualquer iniciativa de se ter como referência de ideal uma liderança política, uma organização, um programa ou um partido, Guattari (2011) aposta na permanente criação de dispositivos que nos permitam, sempre, colocar de maneira diferente as situações a serem enfrentadas. Dispositivos entendidos não como ações ou recursos objetificados e representáveis, mas como emaranhados de linhas de naturezas diferentes. Assim, a dimensão multilinear dos dispositivos não delimita objetos, sujeitos, ações e sistemas, mas traça direções, traça processos sempre em permanente desequilíbrio. As linhas dos dispositivos que Guattari (2011) insiste em sua produção são, o tempo todo, quebradas, bifurcadas, submetidas a derivações.

Por isso, por mais politicamente engajado que estejamos, toda vez que nos propomos a determinar linhas gerais de atuação, princípios normatizadores, objetivos orientadores ou, ainda, projetos coletivos certamente estaremos invisibilizando problemáticas em nível das micropolíticas. Importa muito mais cartografar as formações subjetivas com as quais esperamos nos distinguir dos investimentos libidinais dominantes do que gastar energia em busca de ações emancipatórias acordadas-comuns.

E, como pensar, então, a democracia em relação à micropolítica? Para Guattari (2011), a democracia talvez, se expresse em nível das grandes organizações políticas e sociais. No entanto, ela só se consolidaria, isto é, só ganharia consistência, se existir no nível da subjetividade dos indivíduos e dos grupos em todos esses níveis moleculares, novas atitudes, novas sensibilidades, novas práxis, que impeçam a volta das velhas estruturas.

Ao questionar o clichê “[...] se a política está em toda parte, ela não está em parte alguma”, Guattari (2011, p. 158) destaca que a política e a micropolítica não estão em toda parte, e a questão seria justamente colocar a micropolítica por toda parte de nossas relações esteriotipadas de vida pessoal, de vida conjugal, de vida amorosa, de vida profissional etc, nas quais tudo é guiado por códigos. Para o autor,

Trata-se de fazer entrar em todos esses campos um novo tipo de pragmática: um novo tipo de análise que corresponda de fato a um novo tipo de política. Nos dias de hoje, qualquer problema importante, inclusive em nível internacional, está fundamentalmente vinculado às mutações da subjetividade nos diferentes níveis micropolíticos (GUATTARI, 2011. p. 158).

Ao concluir sua resposta à Trevisan, Guattari (2011, p. 158) sugere como regra única da micropolítica “[...] estar alerta para todos os fatores de culpabilização; estar alerta para tudo o que bloqueia os processos de transformação do campo subjetivo”, pois entende que esses processos de transformação acontecem em diferentes campos de experimentação social e, muitas vezes, podem ser mínimos, quase que imperceptíveis e, no entanto, constituir o início de uma transformação muito maior, ou não.

A fala de Guattari (2011) nos impulsiona a pensar na ideia de Efeito Borboleta da Teoria do Caos, que tem a ver com o fato de que mudanças sutis no início de um evento podem desancadear consideráveis alterações no decorrer do tempo. Assim, a micropolítica em Guattari poderia pensada como um efeito provocado a partir e com pequenas ações cotidianas, muitas vezes não previsíveis, pois não há como controlar. A análise micropolítica se daria, então, em meio aos sistemas complexos, múltiplos e instáveis, impossíveis de prever resultados futuros, tendo em vista as mudanças sutis que vão ocorrendo com as ações que acontecem nesses sistemas.

Aqui, poderíamos aproximar micropolítica da teoria do caos, sendo relacionada com vários aspectos das vidas cotidianas em suas multiplicidades e sistemas não lineares. Assim, mesmo que as ações e as diferenças, de início, sejam insignificantes, imperceptíveis teríamos a dimensão do tempo agindo de modo a provocar alterações, mutações, redes, hibridizações, expansões produzindo outras ações, outras condições, outras expansões, outras formas de micropolíticas.

Micropolítica e pesquisas em educação: os textos do Dossiê

Partindo da ideia de Rolnik (2016) de que nenhuma micropolítica existe em estado puro, tendo em vista que estamos sempre oscilando entre várias, vamos nos dar conta que o que faz diferença é a maneira como nos dispomos a combater as tendências reativas que existem nos diferentes cotidianos de nossas vidas e em cada um de nós, isto é, em nossas relações e ações. Como infere Rolnik (2016, p. 13): “Este é o trabalho de uma vida: um trabalho incessante que está no âmago de uma existência”.

E foi em direção à possibilidade de dar visibilidade a pesquisas em educação que combatem as tendências reativas e, com isso, insistem na “potência do vivo e daquilo que se realiza num incessante processo de construção da realidade (ROLNIK, 2016, p. 16) que pensamos a proposta do presente Dossiê. Uma proposta que tem como força o desejo de aumento da potência do vivo e a intensificação de processos de subjetivação que possam subverter tudo aquilo que busca anular ou invisibilizar a diferença.

É com esse espírito que abrimos o Dossiê com o texto “(In)visibilidades e poéticas indígenas na escola: atravessamentos imagéticos”, da autoria de Alik Wunder e Alice Vilela. O artigo em questão envolve-se por três atravessamentos imagéticos que mobilizaram pensamentos sobre a criação de outras visibilidades aos povos indígenas nos currículos escolares. O encontro com um vídeo, com um livro e a realização de uma oficina de criação com palavras e imagens foram três movimentos que um curso sobre temática indígena na escola possibilitou. Como encontrar, como receber e se deixar atravessar por imagens de povos secularmente silenciados? Os indígenas nos oferecem outras palavras, outras imagens, mundos outros, ampliam possíveis e intensificam micropolíticas inventivas. As leituras de Gilles Deleuze e Félix Guattari sobre micropolíticas, de Eduardo Viveiros de Castro sobre o perspectivismo ameríndio e de outros autores nos convidam a deslocar as imagens construídas sobre os indígenas e a criar a partir de suas poéticas e regimes conceituais.

Na continuação, trazemos o artigo “Gêneros e sexualidades praticados em currículos dissidentes nos/com os cotidianos escolares”, da autoria de Maria da Conceição Silva Soares, Vanessa Maia Bardosa de Paiva, Leonardo Nolasco-Silva, o qual problematiza as políticas que atualmente estão em debate a partir do Programa Escola “sem” Partido, transformado em projeto de lei que tramita no Congresso Nacional. O texto trata das atitudes conservadoras que avançam sobre a Educação, desconsiderando a diferença que habita o cotidiano nas/das escolas. Apresenta micro políticas de resistência que tencionam o poder de pensar a escola a partir dos gabinetes. A partir da metodologia das pesquisas com os cotidianos, apresenta resultados de pesquisas que indicam que não adianta proibir o debate sobre gêneros e sexualidades nas escolas porque este se atualiza com as práticas do dia a dia, desafiando o que está sendo recomendado como “o correto”.

Em seguida, aparece o texto de Thiago Ranniery, intitulado “Currículo, socialidade queer e política da imaginação”, no qual o autor explora, de modo instigante, como a invenção do parentesco torna-se uma questão curricular ao apontar sua força instauradora de formas de estar no mundo. O argumento desenvolvido é que a socialidade queer está deslocando o currículo de projetos de reconhecimento de identidade para uma composição de laços que permitem tanto a sobrevivência quanto experimentação da existência. Reativar o currículo como uma trama insubstancial é habitar uma política de imaginação que questiona fronteira entre vida e currículo, recola a alteridade como um movimento imparável e indica a necessidade de imaginar categorias transversais de pensamento que escapem ao dualismo e ao determinismo.

O texto “Os perigos da escola sem partido” escrito por Karla Saraiva e Juliana Ribeiro de Paiva evidencia, de maneira contundente, como o Movimento Escola sem Partido (ESP) vem promovendo, de forma crescente, ações de controle e coerção ao trabalho docente. No intuito de afastar a possibilidade de uma doutrinação por meio das práticas em sala de aula, o ESP incentiva a denúncia por parte de pais e alunos, visando instaurar uma vigilância pervasiva e ubíqua sobre os professores. O objetivo deste artigo é problematizar os perigos que a disseminação das ideias do ESP pode (im)por à Educação, seja em relação à ação docente, seja em relação à formação das próximas gerações, a partir de um quadro teórico de orientação pós-estruturalista.

Juliana de Favere e Geovana Mendonça Lunardi Mendes dão continuidade ao dossiê com o artigo intitulado “Juventudes em movimentos: materialidades escolares, performatividades e inventividades”, cujo principal objetivo é cartografar os movimentos das juventudes contemporâneas num espaço de escolarização. Os movimentos cartografados percorreram por materialidades escolares, performatividades e inventividades, não de modo separados, mas embaralhados e na constituição de macro e micropolíticas. O campo de pesquisa é uma escola estadual de ensino médio. Os movimentos foram registrados com um diário de bordo, com descrições e relatos, bem como registro fotográfico. No espaço escolar nada e algo podem acontecer. Os jovens afetam e são afetados pelos emaranhados de materialidades escolares, performatividades e inventividades; neste espaço que cria modelos e normas, há brechas às micropolíticas como potências criadoras, nas relações de poder.

Na discussão dos “Gestos (im)prováveis: ocupações e(m) afecções...”, Elenise Cristina Pires de Andrade, Elenilda Alves Brandão e Edivan Carneiro Almeida trazem como tema central a possibilidade de se viralizar a vida juntos aos movimentos maquínicos que se estendem e distendem dois processos de pesquisa realizados em escolas públicas baianas entre os anos de 2014 e 2016: o projeto “Cidades (des)enquadradas em imagens: experimentações (atra)versando o conceito de signo” que, aqui, apresentará algumas divagações nas relações entre as produções de imagens com alunos do ensino médio de uma escola pública em Ichu-BA e a dissertação de mestrado “Você tem fome de quê?: movimentos (e)m currículos de uma escola do ensino médio em Ipiaú, Bahia” (2017). Esse texto, portanto, tem a vontade de explorar ideias e ressonâncias e movimentos das filosofias da diferença nos acompanharão e invadirão esse texto na vontade de revirar a questão: quais gestos ocupariam as ruas-cidades em um devir intensivo, a provocar fendas no movimento maquínico da enunciação nos muros-escolas, nas fotografias, nas palavras, disparando forças criativas?

Danielle Piontkovsky e Maria Regina Lopes Gomes nos apresentam o texto “Micropolíticas, currículos e formações nas invenções das escolas”, cuja discussão central objetiva problematizar os mecanismos de controle e regulação das atuais políticas educacionais que têm desconsiderado o que é produzido nos cotidianos escolares, afirmando a luta por uma educação pública e de qualidade social. Metodologicamente, usa os estudos e pesquisas com os cotidianos e, nos encontros com os praticantes, produz pistas e indícios de que são nas negociações e composições entre os diferentes saberes e práticas que as micropolíticas cotidianas se inventam e produzem movimentos de (re)existência à imposição de verdades e tentativas de homogeneização das políticas de currículo e de formações docentes. Considera ainda essas micropolíticascomo possibilidades de construção do exercício de democracias nos cotidianos das escolas.

“O que aconteceu na aula? Políticas, currículos e escritas nos cotidianos da formação de professores numa universidade pública”, da autoria de Maria Luiza Süssekind, discute políticas consideradas não oficiais, disputas e suas implicações em relação ao que acontece nas salas de aula. Numa abordagem epistemológica do Sul e praticando uma sociologia das ausências, o texto objetiva desconstruir a ideia de escrita boa e correta a partir do trabalho de fim de curso de um estudante pensando a língua como armadilha incestuosa para as articulações precárias nas criações curriculares cotidianas. O artigo propõe contextualizar o papel do uso da escrita correta no espaçotempo da universidade e da formação de professores como fluxos e políticas cotidianas, como práticas de poder e em busca de políticas de astúcias.

Cistiano Bedin Costa, por sua vez, traz a discussão intitulada “Roland Barthes e a aula como fantasia idiorrítmica: proposições para um viver-junto”, na qual toma a obra de Barthes como matéria de investigação. Nela, a noção de Viver-junto sugere um imaginário de aula enquanto espaço idiorrítmico, uma vida em comum na qual desejo e ritmo individuais encontram seus lugares. Através de proposições sobre preparação, prática e registro da aula, lida-se com noções barthesianas tais como fantasia, corpo e texto. Nesse percurso, discutem-se as posições ocupadas por professor, aluno e os modos pelos quais saber e cultura veiculados ao ensino podem construir um espaço propício à produção de diferenças, à quebra da reprodução de papéis e de discursos. Enquanto prática de idiorritmia, o ensino efetiva um modo de estar junto no qual o movimento do sentido se constitui como a simples sugestão de um disparo, uma centelha capaz de acender o desejo.

Por fim, o dossiê nos brinda com o texto de Denise Taliaferro Baszile intitulado “Quando Vidas Negras Importam... De que vale o Curríulo?", defendendo que o que sempre minou o projeto de justiça nas Américas e em outros lugares é uma profunda falta de amor pelos Negros. Uma falta tão profunda e persistente que tem o potencial de corromper até mesmo o amor das pessoas Negras pelas pessoas Negras, não simplesmente ao colocar mais valor nas vidas Brancas, mas também ao engolir os lugares e momentos em que os Negros ou qualquer grupo de pessoas marginalizadas poderiam imaginar o contrário. Tal como funciona a (pato)lógica do patriarcado capitalista da supremacia Branca. Distorce o amor. Embora este fato seja bastante evidente nas realidades materiais da morte Negra e do aprisionamento Negro, também é evidente na forma como a escolaridade e como o conhecimento nela funciona através de uma série de currículos - oficiais e não oficiais - de morte Negra, desprezo pelas pessoas Negras e assassinato do espírito Negro.

O presente Dossiê vem, então, somar forças às discussões e proposições sobre micropolíticas defendidas por Rolnik (2016) e Guattari (2011), fazendo-nos perceber a urgência de abandonarmos o modo de subjetivação colonial-capitalístico o que passaria, necessariamente, por um devir revolucionário, impulsionado pelas irrupções de afectos que nos chegam pelo saber-corpo e que nos forçam a reinventar a realidade: são momentos em que a imaginação coletiva é acionada para criar novas maneiras de existir, outras alianças, novos sentidos. (ROLNIK, 2016, p. 26-27).

A produção de outros modos de vida e de subjetivação não passa, como já observado, pela intencionalidade-vontade de um partido ou líder político, muito menos de um sujeito dotado de uma consciência plena que, a exemplo de muitos educadores, se incumbiria de conscientizar-emancipar os demais, entendidos como alienados ou algo semelhante, mas a partir de redes de ações-relações que vão se tecendo e se expandindo, como na Teoria do Efeito Borboleta.

REFERÊNCIAS

GUATTARI, Félix. Políticas. In: GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: cartografias do desejo. Petrópolis: Vozes, 2011. [ Links ]

ROLNIK, Suely. A hora da micropolítica. São Paulo: N-1 Edições, 2016. [ Links ]

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