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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.18 no.51 Rio de Janeiro oct./dic 2017  Epub 10-Mar-2020

https://doi.org/10.12957/teias.2017.30593 

Em Pauta

CURRÍCULO, SOCIALIDADE QUEER E POLÍTICA DA IMAGINAÇÃO

CURRICULUM, QUEER SOCIALITY AND POLITICS OF IMAGINATION

CURRÍCULO, SOCIALIDAD QUEER Y POLÍTICA DE LA IMAGINACIÓN

Thiago Ranniery(*) 

(*)Professor do Programa de Pós-graduação em Educação e do Departamento de Didática da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É doutor em Educação pela Universidade do Estado do Rio e Mestre em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais. Membro-Pesquisador do Núcleo de Estudos de Currículo e líder do Grupo de Pesquisa Bafo: Bando de Investigação em currículo, ética e diferença. É Bolsista PDJ do CNPq. E-mail: t.ranniery@gmail.com.


RESUMO

O artigo explora como a invenção do parentesco torna-se uma questão curricular ao apontar sua força instauradora de formas de estar no mundo. O argumento desenvolvido é que a socialidade queer está deslocando o currículo de projetos de reconhecimento de identidade para uma composição de laços que permitem tanto a sobrevivência quanto experimentação da existência. Reativar o currículo como uma trama insubstancial é habitar uma política de imaginação que questiona fronteira entre vida e currículo, recola a alteridade como um movimento imparável e indica a necessidade de imaginar categorias transversais de pensamento que escapem ao dualismo e ao determinismo.

Palavras-chave: Socialidade Queer; Imaginação; Alter-política

ABSTRACT

The article explores how the invention of the kinship become a curricular issue by pointing to its instauring strength of ways of being in the world. The argument developed is that the queer sociality is shifting the curriculum from identity recognation projects to a composition of bonds that allow both survival and experimentation of existence. Reclaiming the curriculum as an insubstantial composition is inhabiting a politics of imagination that questions the boundary between life and curriculum, replaces the alterity as unstoppable moviment and indicates the necessity to imagine transversal categories that escape dualismo and determinism.

Keywords: Queer socialiaty; Imagination; Alterpolitics

RESUMEM

El artículo explora cómo la invención del parentesco se convierte en una cuestión curricular al apuntar su fuerza instauradora de formas de estar en el mundo. El argumento desarrollado es que la socialidad queer está desplazando el currículo de proyectos de reconocimiento de identidade para una composición de lazos que permiten tanto la supervivencia como la experimentación de la existencia. Ractivar el currículo como una trama insubstancial es habitar una política de imaginación cuestionadora de la frontera entre vida y currículo, rechaza la alteridade como um movimiento imparable y indica la necessidade de imaginar categorias transversales de pensamento que escapen al dualismo y al determinismo.

Palabras-clave: Socialidad queer; Imaginación; Alterpolitica

Começo com uma história pessoal, que excluída da pesquisa1 da qual esse artigo deriva, apresentava o risco eminente de ser esquecida nos arquivos do computador. Vou abrir mão na primeira sessão deste texto da aquela reconhecível estrutura de apresentar argumentos e principais conceitos - percurso que farei mais adiante - na esperança que fragmentos narrativos anunciem as preocupações em torno das quais me dedico. Ainda que possam fracassar nessa tarefa anunciativa, esses enxertos rendem o reconhecimento às figuras que tornaram a pesquisa não apenas realizável, mas que a desviaram para outras paragens. No início, eu tinha muita certeza sobre o que desejava saber acerca de trajetórias escolares de meninos gays e políticas de reconhecimento. À medida que o trabalho avançava, aqueles meninos me surpreenderam ao apresentar amigos, me convidarem para dormir em suas casas, frequentar jantares que organizam ou passar finais de tarde em praças jogando conversa fora. Quando perguntava sobre a escola, me chamavam para as festas escolares, apresentavam professores, mostravam orgulhosamente o uniforme escolar. Talvez, por tudo isso, o caminho seguido, neste artigo, seja mais prospectivo em torno do lugar do currículo na constituição da socialidade queer à sombra das “formulações emergentes da política de gênero” (HALBERSTAM, 2013, p. 17), das quais se dependerá para responder ao cenário político corrente com alguma renovação imaginativa.

ENTRE BATISMOS, MANSÕES E FAMÍLIAS

- Eu te batizo, meu filho! Você é parte da família Bravo! Honre seu sobrenome, viu? Vá ser alguém na vida! - essa declaração de Fernanda marcou o ritmo de nossa amizade entre jantares, caronas e festas durante os três que residi em Aracaju, Sergipe. Fernanda era considerada a mais experiente travesti da cidade. Nascida em um município do interior do estado, Aquidabã, havia imigrado para a Europa ainda nos anos de 1990, residindo por lá por 27 anos interruptos, após trabalhar por anos como secretária em uma conhecida empresa de turismo da cidade. Isso deu as suas práticas artísticas uma habilidade de levantar entusiasticamente plateias. - Seu sobrenome veio daí, meu filho! Sempre que eu me apresentava, as pessoas gritavam: Bravo! Bravo! Então, pegou. Fernanda e eu nos conhecemos uns meses antes do meu batismo, logo após o seu regresso à cidade. Quase concomitante, eu também chegava à cidade para começar a pesquisa sobre trajetórias escolares de jovens marcados por experiências de trânsitos de gênero2. André, um ex-aluno, estudante da primeira turma com ações afirmativas do curso de medicina, me convidou para ir a um show promovido por drags-queens e travestis em um dos principais teatros da cidade.

Lá, eu não me contive a gritar em bravo com a plateia eufórica. Ao som de Freddy Mercury, dublando Who wants to live forever, Fernanda se apresentava vestida elegantemente em uma longa capa prateada e branca, cobrindo parte do palco. Seu verso eram camisinhas distribuídas pelo Ministério da Saúde. Ao fundo, imagens de artistas e ativistas nacionais e internacionais falecidos em virtude da AIDS eram projetadas. Ao final do show, tomei a iniciativa de ir agradecê-la. Dias depois, nos encontramos em diversas reuniões dos ativismos pela cidade. Eu não sei precisar ao certo em que momento nós nos aproximamos. Sei que teve algo a ver com as caronas que passou a me oferecer, com os bolos feitos por sua mãe que passou a me convidar para comer aos finais de tarde. Nós erámos vizinhos de condomínio e em menos de cinco minutos estávamos um na sala do outro. Também não sei apontar quando exatamente Fernanda indicou que havia feito seus filhos. André e Baruc, também foram batizados junto comigo. Baruc, outro ex-aluno, me chamou para frequentar as reuniões de um coletivo de estudantes universitários LGBTs que acabara fundar. Ele, estudante de jornalismo, vindo de outro município do interior do Estado, Poço Verde, vivia da bolsa permanência oferecida pela universidade.

- Só faço filhos inteligentes! Quem possam a ser alguém na vida! - disparou ela, que passou a ser figura certa em qualquer evento organizado pelo movimento estudantil da cidade. Enquanto eu realizava o trabalho de pesquisa em Aracaju, recebi a divulgação do concurso para universidade na qual, hoje, atuo. Contei, em tom de segredo, para Fernanda meu desejo de realizar a prova. Ela não só o guardou, como me visitou durante as madrugadas de estudo, conversou por Skype durante a semana de provas. André, prontamente, ao seu pedido, ajudou a organizar a documentação. Durante os anos, nós desfrutamos de discussões que oscilavam entre a ironia, a piada e o sarcasmo sobre um de nós, especialmente no Facebook. Quando passávamos do limite, Fernanda intervia para que seus filhos não passassem vergonha a um leitor desavisado. Sem pestanejar, obedecíamos. Nós nos vimos bêbados, comemos, demos festas, gritamos um com o outro com a mesma intensidade com que declaramos amor. Embora o propósito ostensivo de nossos encontros seja memorável, estávamos implicados tipo de prazer. Se eu, Fernanda ou eles tivéssemos nos preocupado mais com a empatia, provavelmente, meu relato de pesquisa seria menos irregular, mas nosso vínculo não teria sido tão rico. Em certo ponto, tive que decidir o que mais importava.

Não muito longe de onde residíamos, fui levado à mansão Malvadona, onde três jovens gays, o mais velho com 22 anos, viviam juntos. A casa, em um bairro da expansão imobiliária de Aracaju, era comandada por Clécio, que dá corpo a uma das drag-queens mais famosas da cidade. Ele e seu o companheiro, Clécio, viviam de pequenos bicos de maquiador e cabelereiro e de uma ajuda financeira provida por suas mães, professoras que moravam no interior do estado. Residia ainda na casa, Adriana. Expulsa de casa aos 13 anos quando se assumiu “gay”, a menina trans, amiga de infância, tinha sido adotada por Clécio antes mesmo que Pedro se juntasse a família. Junto deles morava Antônio, outro filho do casal, também drag-queen. Clécio me contou diversas vezes o quanto se preocupava com o futuro das filhas e, por isso, fez questão que estudassem nas melhores escolas públicas para que pudessem fazer um concurso. Clécio, que já havia se apresentado nas escolas que Antônio e Adriana estudavam, providenciava material escolar, cobrava bom desempenho e assumia publicamente a responsabilidade de mãe.

Quando conheci Clécio, ela me indicou seu perfil no You Tube. Dentre os vídeos, um deles chamava atenção por Clécio apresentando seu show em uma escola que, saberia depois, foi a primeira na qual Adriana estudou quando chegou à Aracaju. Desde então, Clécio frequentava regularmente as reuniões de responsáveis, especialmente, a partir do momento que a filha passou a marcar publicamente a experiência de travestilidade. Chegou a solicitar uma reunião com a direção para pedir o uso do nome social. Insistiu como Adriana gostava da escola, que se sentia responsável por ela, já que havia deixado o interior para vir estudar na cidade, e como era importante uma travesti terminar a escola. Na feira cultural da escola, evento no qual as turmas realizam apresentações em um esquema de competição, Clécio foi convidada a se apresentar pela direção da escola. A família Malvadona costumava colocar vídeos em seu canal no You Tube em momentos de descontração. Em um deles, o celular de Clécio toca durante a gravação realizada por Júnior - olha, mulher, é seu cliente! - diz Clécio - mas olha, pode um negócio desse, meu cliente? - retruca Júnior. - Quem é? - pergunta ele. É Cristiano! Diz um oi para o vídeo! - responde Clécio. - Fala: alô viado! - dispara Júnior.

Do outro lado da cidade, em um bairro que cresceu sobre uma zona de ocupação no mangue, Lorena, uma travesti também recém-chegada da Europa coordenava à distância, como dizia, outra mansão. Com uma vista para os manguezais do Rio Sergipe, moravam ali outros três meninos, Marcelo, seu namorado, Maicon, e Pedro. Os três haviam deixado suas famílias por não possuírem condições financeiras e foram morar juntos com a ajuda de Eduarda. Conheci a casa, após ser convidado para comemorar o prêmio de Top Drag Sergipe que Marcelo havia ganhado. Maicon trabalhava como ajudante em uma loja de festas infantis da cidade. Marcelo era atendente de uma loja de celulares em um dos shoppings da cidade. Pedro era o único que, naquele momento, estava na escola sob a insistência de Lorena. - Ah, tem essa não, filho meu tem que terminar a escola! - disparava. Com poucos móveis, um colchão no chão da sala recebia as visitas. A casa vivia lotada para lanches e jantares coletivos entre meninos saídos das escolas da vizinhança dos quais eram amigos. Ali, ouvi histórias de violência, de amores, de desejos, fofocas, brigas de namorados e sonhos entre garrafas de vodka barata. Era preciso ser rápido nas respostas ácidas que tomavam a sala. Certo dia, levei um amigo para um desses momentos. Retornamos juntos. O silêncio do carro contrastava com as risadas que ainda ecoavam. Vi as lágrimas escorrer pelo seu rosto, enquanto gaguejava: é de uma força tamanha, viado! É impossível passar ileso!

VAI TER QUE ENVIA-DESCER!

Há algo nessas histórias de fazer famílias, das quais me vi fazendo parte, que não se enquadravam nas narrativas de escolarização de meninos gays com suas perseguições normativas e eventuais subversões3. Suas histórias sequer eram sobre o corpo estranho como descrito por Louro (2004), mas se implicavam na formação de redes de suporte que colocam sujeitos imbricados em relações parentesco. Parentesco comporta, aqui, mais do que entidades ligadas por ancestralidade; é sobre redes de cuidado ao realizarem que alguém só sobrevive porque sua vida não é nada sem a vida que o excede (BUTLER, 2004a), ao exibir que não se está sozinho no mundo e de que não há espaço para independência. Por meio da criação de redes de suporte, a fabricação do parentesco vem transformando o currículo por instaurar “formas [...] de estar no mundo [...] como formas de aliança e herança” (FREEMAN, 2007, p. 311). Trata-se de uma experiência “que nos faz testemunhar o que não somos nós” (STENGERS, 2017, p. 12) e que está fazendo do currículo uma trama que oscila entre a sobrevivência e a experimentação da existência. Escolhi começar por essas histórias por apontarem como o parentesco traz a vida à existência ao capturar a alteridade constitutiva do mundo, dando-lhe subsistência (e não substância) diante do cenário devastador de precarização induzida e da sombra dilacerante da abjeção que, sinalizam Butler e Athanasiou (2013), não há razão nenhuma para negar.

De forma paralela, engajo essa argumentação com o apontamento de que, embora perspectivas consideradas “ousadas” - como os estudos queers - para aquilo que Taubman (2009) chamou de linguagem da pedagogia tenham sido admitidas, só foram passíveis de incorporação desde que refletissem uma narrativa épica garantidora da clarividência da crítica em investigar as normas que fundam a vida (RANNIERY, 2017b). Esse elo pede desconfiança com a vulgata sensação de que só se poderia experimentar o currículo como existencialmente preso, aquela “crítica deprimente e deprimida, [que ] de fato, reproduziu um sentimento de paralisia geral da imaginação radical” (HAGE, 2015, p. 33). Meu batismo me fez suspeitar dessa linguagem que faz do currículo horizonte normativo e seu raro espetáculo da transgressão ao reduzir componentes heterogêneos a uma “identidade ou modalidade visível, audível, legível ou tangivelmente evidente” (PUAR, 2005, p. 128), movimento comparável a um estancamento da diferença, para aprender que, seja de que forma for, “a vida nos torna inventivos [...] não para de fabricar laços e nos fazer fabricá-los” (DESPRET, 2016, p. 2). O parentesco conta outra maneira de sentir currículo e sua imantação na vida ao reativar laços “que geram transformações metamórficas em nossa capacidade de afetar e sermos afetados - e também de sentir, pensar e imaginar” (STENGERS, 2017, p. 16). Esses arranjos transformativos, nota Haraway (2015), implicam, porquanto, a expansão da política de imaginação.

Reativar não é sobre reaver um currículo que foi confiscado por quem quer que seja ou que confisca a vida, é sobre, restaurá-la onde se encontra imaginada como não existindo e, como corolário, desconfiar das fórmulas generalizantes do discurso pedagógico de um outro inteiramente alterizado como alguém estranho, diferente ou anormal ao currículo. Em tal movimento, há a possibilidade de fazer jus a força sinuosa da imaginação, um processo, muitas vezes frágil e difícil, através do qual modos de vida se situam diante das relações de poder (STOETZLER; DAVIS, 2002). Dito de outro modo, uma maneira de trabalhar “que vai além de apenas exigir uma ordem social existente” (HAIVEN; KHASNABISH, 2014, p. 48) e encena uma “política prefigurativa” (p. 53) na qual o currículo é reativado como uma parte vital de animar a vida por meio de laços que recolam a diferença como constitutiva de seu funcionamento. Diante de um mapa descrito por Mbembe (2003) como necropolítica, a subjugação da vida pela morte, ou, como Berlant (2015) apontou, de oferecimento da pior vida possível, esses laços integram histórias de violência e abandono em práticas de amizade alimentadas pela diversão, alegria e reciprocidade, afirmando “uma política que transita pelo humor” (LOPES, 2016, p. 5). Existir nessas condições é tangível em virtude de compartilharem dor e prazer, transbordando a sobrevivência e marcando, através dela, não por sua superação, momentos de experimentação da existência criadores de laços e relacionamentos, sem seu habitual acompanhamento de otimismo, mas que também não estão atolados em becos saídas.

Iniciei pelas histórias de parentesco exatamente para destacar essa “improvisação dentro de uma cena de constrangimento” (BUTLER, 2004b, p. 4), pois a urgência de defender posições no acirrado - para qualquer um que se aventure a dizer o mínimo - clima político sobre currículo, gênero e sexualidade, ecoa na conversa complicada, expressão usada por Pinar (2004) para descrever complexidade do campo curricular, uma tarefa dupla: pediria aquilo que Stengers (2005, p. 235) nomeou de retardar o raciocínio, “que resiste à maneira consensual em que a situação é apresentada e em que emergências mobilizam pensamento ou ação” consoante a uma aproximação a outra poética dos laços que inscrevem a vida, que não estão isolados do currículo; estão, ao contrário, nele implicados. Se currículo mantém um vínculo com quem se é, como destacava Silva (2006), com o cultivo da diferenciação da experiência educacional de torna-se sujeito (PINAR, 20016), a questão quem somos? “abre [...] para uma mais valiosa que é saber com antecedência o que nos mantém em comum, [...] o que vida futura pode ser” (BUTLER, 2004b, p. 35), posto que existir é “composto por material compartilhado com os outros” (PINAR, 2016, p. 21). Tornar-se quem envolve torna-se com, o que leva a tornar-se junto, haja vista que as vidas não preexistem aos laços, só existem em processo de constituição mútua, de entrelaçamentos de umas nas outras, revelando um campo de coexistências múltiplas, uma “coreografia espaço-temporal generativa sempre em movimento” (MASSEY, 2008, p.88). Em um mundo no qual laços se dão por paródia do parentesco, que “perturbam [...] a ordem das relações entre o autêntico e o inautêntico, o original e a mímica, o real e o construído” (HALBERSTAM, 2005, p. 43), é preciso levar as últimas consequências aquilo que já aparecia em Macedo (2006) e Alves (2002): o currículo como um campo intersticial, uma trama insubstancial, o espaço-tempo de suspensão intervalar que liga e separa vidas para que possam existir.

Currículo torna-se, por um lado, um enlace que permite sobreviver para quem a experiência de viver sob a precarização é, geralmente, hostil. Por outra via, é fraturado pela reativação de laços de parentesco, como que servindo para experimentação da existência ao se constituir através de “improvisações cinéticas e rítmicas do social” (FREEMAN, 2010, p. 172) que produzem uma distância temporal e espacial. Espaços e tempos queers, na expressão de Halberstam (2005), recolocam o diferimento e a lacuna como constitutivos dos currículos, reativando a relacionalidade confiscada pela lógica da simples relação entre a expressão normativa do currículo e sua interpretação sociológica. O que emerge não é apenas uma visão de currículo queer como também uma visão queer do currículo, que não apenas desalinha a aparente naturalidade das relações de gênero e de sexualidade, como se currículo fosse um território fixo, mas também as relações entre vida e currículo como se fossem controláveis. Se, como Butler (2004b) argumenta, qualquer sujeito é constituído por normas que não são passíveis de serem possuídas, o que se oferece nas histórias das mansões não pode ser subsumido à crítica da naturalização de gênero ou de sexualidade. Toma a forma de uma perspectiva imaginativa para ver no currículo não a transcendência dos problemas, mas como o seu tratamento em nome de um projeto para suprimi-los, sob o manto da promessa distintiva da vida, precisa ser dessacralizado.

A relação entre currículo e vida não é, portanto, de mera complementariedade (não é um currículo que dê conta da vida de determinados sujeitos estranhos e exteriores ao currículo), e, sim, de suplementariedade. Se, o suplemento é uma “adição exterior” (DERRIDA, 2010, p.177), viver se afigura para o currículo como um paradoxal “suplemento originário” (p.177), pois na relação, “a potência da exterioridade” aparece “como constitutiva da interioridade” (idem). Se currículo está mais para uma trama vital, a exterioridade está implicada em suas relações através das quais a alteridade está sempre interferindo, pois nunca o currículo pode ser selado hermeticamente. Logo, não é um signo de rigidez e impenetrabilidade, como se seu o encontro com a diferença fosse da ordem do embate entre unidades apartadas. Esse é mais um modo de elidir o potencial criador desses tantos outros a fim manter intactos códigos de linguagem que garantem o currículo como um objeto político a ser dominado e que “fracassa em reconhecer a significância epistemológica da alteridade” (FABIAN, 2006, p. 147). Reconhecimento crucial para enfrentar o sentimento que esteriliza a trama curricular ao converter a diferença em uma alegoria que não passaria de documento de uma realidade inconcussa e fazer do currículo uma espécie de máquina de destruição em massa com o poder imensurável de derreter tudo que toca.

Assim exposto, currículo não preexiste como lugar de relação de forças reversíveis, emerge em sua indeterminação ao apontar a justaposição de “lugares de ontologia incerta, de difícil nominação” (BUTLER, 2004b, p. 230), cuja captura em termos oposição “coloca em evidência a renúncia do possível” (2004, p. 230). Pode ser, deste modo, interessante reavivar a invenção do parentesco enquanto socialidade queer4, como “o efeito da interrupção do tempo determinado do contrato social da heteronormatividade [e que] ainda cria em um nível secundário uma nova ordem social” (POVINELLI, 2011, p. 289), constituindo e constitutiva da trama curricular, em virtude de qualquer coisa que se possa chamar de queer ter ficado restrito a um olhar sobre o currículo centrado na “problemática geminada da disciplina ou transgressão” (PROBYN, 2000, p. 13). A fabricação de famílias não oferece oposição às normas postas em funcionamento ou propõe uma visão política combatente. Seu estupefato adágio está em operar em uma dimensão política que é alter ao invés de anti (HAGE, 2015), que não se concebe pelo enfrentamento ou confronto. Como que correndo ao largo de que tudo que podem dizer de si não passaria de uma imposição sanguinária de normas ou pela recusa delas em nome de uma monolítica identidade “dissidente, resistente e alternativa” (PUAR, 2005, p. 128), é como que se deixassem traduzir nos termos que Foucault (2004) descreveu a amizade como modo de vida. Entre mansões, um modo de vida emerge quando “pode ser partilhado por indivíduos de idade, estatuto e atividade sociais diferentes [para] dar lugar a relações intensas que não se parecem com nenhuma daquelas que são institucionalizadas” (FOUCAULT, 1981, s/p).

Famílias e mansões são a textura (não a estrutura) do emaranhado das vidas umas nas outras diante do “empobrecimento do tecido relacional” (FOUCAULT, 2004, p. 120) promovido pela “política mais institucionalizada e reformista” (BUTLER, 1993, p. 320). A incorporação ao currículo desse campo de “intensidades, emoções, energias, afetos, texturas [que] habitam eventos, espacialidade e corporalidades” (PUAR, 2005, p. 128) excede fartamente a sujeição. Isto não é nenhuma novidade, nem para Butler (1997), que já havia sinalizado para o excesso da sujeição como condição que faz vivível a vida a partir de uma rede de horizontes temporais impossível de ser totalizada e apreendida. E, embora, a famosa fórmula da “repetição estilizada de atos” (BUTLER, 2003, p. 200) tenha se difundido, não me parece que seja um epitáfio de que a vida é a repetição da mesmidade ou, de forma mais suspeitável ainda, da mesmice, levando-me a realizar a tarefa apontada por Das (2014): aquela de perguntar que tipo de imaginação é necessário para tornar a vida habitável à contrapelo da posição que a vida ordinária é puramente suturada pela normatividade. Insisto, assim, na socialidade queer por suspender o deslizamento estatizado (e empobrecedor) de currículo, ao sugerir que o envolvimento do currículo nos mapas de sexualidade e de gênero foi deslocado de categorias fundacionais e abstratas como a história, o sujeito ou a identidade para categorias mais palpáveis como a vida e a morte.

A evocação da música de Lynn da Quebrada5 no título da sessão não é ao acaso. Insistir na relação do currículo com o suporte da vida é descê-lo ao mundo, inscrevê-lo na “experiência compartilhada de ‘finitude’ [em que] a morte dá foco ao viver” (PINAR, 2016, p. 21). Claro que se deve ter cuidado para não tomar por “mundo” o índice de um substrato histórico ou cultural a partir do qual o currículo funcionaria. Descer o currículo ao mundo é enviá-lo ao mundo, suspender a determinação e não lhe roubar a multiplicidade - aquela, inspirada em Deleuze (2010), que não é nem os muitos mais do mesmo ou oposto da unidade, antes singularidade. Enviar o currículo ao mundo é insistir que não se existe nele sem torcê-lo para, ao dar suporte a modos de vida, enviesá- lo, enviar-descer. Para parafrasear Zamboni (2016), é toda uma educação bicha reveladora de que só há educação quando se passa por aquilo que Povinelli (2001) designou por mundos sociais radicais, isto é, quando vir à existência é realizar um campo de enlaçamentos singulares que multiplicam possibilidades de viver por alongar trajetórias escolares diante de codificações normativas que os currículos fazem funcionar, mas que também fazem do currículo um catalisador afetivo quando se aposta que esses modos de vida podem ou deveriam desaparecer. Afinal, viver nunca foi uma certeza diante de um coletivo que os substancializa “com sua preocupação inevitável com a semelhança, a analogia, [...] e a associação honorária na abstração expandida do Humano” (HARAWAY, 2011, p. 32). A produção da vida via currículo não é a chegada a um estado, um atributo ou propriedade individual ou coletiva; é um “fazer/ser performativo” (BARAD, 2003, p. 826) - para ficar no vocabulário queer - que diz “respeito às possibilidades e responsabilidades vinculadas à reconfiguração de aparatos materiais-discursivos de produção corporal” (BARAD, 2003, p. 827), cujo efeito é trazer a vida à superfície para não se afogar.

Viver é constituir uma dimensão que se acessa ativamente não pela inclusão em um currículo tomado como um campo pré-existente, mas pela transfiguração do currículo em uma rede de laços através dos quais a vida se cria. Neste “crepúsculo límbico da intersticialidade” (FREIDMAN, 2006, p. 2) que é a existência de um currículo, se avança “para além dos cadinhos que erradicam a diferença e dos mosaicos que a entronizam, em direcção a uma região crepuscular habitada [...] pela possibilidade” (p. 14). Apreendida através desse interstício, a alteridade aparece em sua indispensabilidade a trama curricular, pois seus laços não são nada difíceis de realizar. O que há mais na vida de qualquer currículo são relações em que “os corpos [...] interpenetram, arrastam consigo e transmitem afetos uns aos outros” (PUAR, 2005, p. 152). O difícil é percebê-los posto que são mais provisórios do que aquelas funções elevadas a tarefa do que realmente um currículo faz. Provisórios, não no sentido de pouco duradouros, mas porque acontecem no corpo a corpos das vidas imbricadas umas nas outras sem levar a escolha entre que obedecer resignadamente às normas ou ultrapassá-las, esperando a sua superação. Provisórios porque lidam com o incognoscível, o que não pode ser compreendido (MILLER, 2014); com imponderável, aquilo que não pode ser previsto nem medido (MACEDO, 2015), mas, sobretudo, com o incomensurável. Isto é, a oportunidade de abertura ontológica - não somente pedagógica - de sentir a diferença sem lhe exigir semelhança, o que coloca em suspensão categorias de pensamento tomadas como óbvias com sua a pretensão de substancializar a alteridade como mais “uma reverberação da metafísica que assume a diferença inerente entre [...] sujeito e objeto, mente e corpo” (BARAD, 2003, p. 829). Despir o currículo da sua ipseidade é enfrentar a sua redução a um objeto pasteurizado; coisa separável e inerte, manipulável e disponível.

Ao permitir recolocar uma não-coincidência do currículo consigo mesmo, a socialidade queer não somente o permeia, mas mostra como seu funcionamento em termos de tessitura, que pode ser tão ou mais queer do que se imagina ou do que se gostaria que fosse. Em curso, uma solução simples e, por isso mesmo, drástica: queerizar um currículo não é se apropriar dele para um uso didático em sentido estrito, é se apropriar para romper a distinção objetivante de currículo e vida a fim de cultivar “virtualidades relacionais e afetivas, [...] ‘pela posição de ‘enviesado’, [...], as linhas diagonais que se podem traçar no tecido social, as quais permitem fazer aparecer essas virtualidades” (FOUCAULT, 1981, s/p). Esse enviesamento já está em curso quando a morte física ou social não é uma saída para modos vidas que podem não ser ninguém para certa cultura política, mas que, através de laços de parentesco, sonham com a “insistência na potencialidade ou possibilidade concreta para outro mundo” (MUNÕZ, 2011, p. 1). Outro mundo que não é uma projeção a ser alcançada em algum lugar, está incluído no mapa da vida social. A inquietante consequência é que o se pode chamar de currículo deixa de ser uma paisagem chapada e acachapante, na qual estariam dispostos sujeitos prontos para serem reconhecidos em sua diferença inquebrantável, para se transformar em um caleidoscópio disforme.

Inspirado em Gopinath (2005), esses modos de vida poderiam ser tomados em sua impossibilidade ao sinalizarem para a impensabilidade dentro da linguagem da pedagogia, para qual não bastaria dar visibilidade a sujeitos até então invisíveis, mas suspender narrativas que concluem, em sua fórmula tautológica, que só é possível reconhecer a diferença quando a encontra através da aniquilação. A socialidade queer se mostra como um composto de laços visíveis, mas que não são visíveis do mesmo modo que se faz campanha por visibilidade. É uma visibilidade que desloca a reabsorção consensual de todo o visível em seu sentido conhecido diante da antecipada sabedoria da denúncia que anuncia que não acontece nada nos currículos que não já seja a infinita reprodução do mesmidade. Essa reinscrição de mitos repressivos que “perpetua relações de dominação” (ELLSWORTH, 1989, p. 298) e “coloca como sua oposição um Outro irracional, o qual tem sido entendido historicamente a província [...] dos outros exóticos” (p. 301) deve-se a um estupor para a força desses laços queers em suspenderem as tradições curriculares herdeiras, ainda que possam ser a contragosto, das “mansões das liberdades modernas” (CHAKRABARTY, 2009, p. 208). Afinal, o currículo deixa de ser o espaço de representação ou de contestação, de luta ou de guerra - esse vocabulário resquício da (hetero)normatividade como regime político - para ser imaginado como se ecoasse a pergunta de Foucault (1984, s/p): “o verdadeiro desafio inevitável da questão: o que se pode jogar e como inventar um jogo?”.

Currículo é transfigurado em um jogo vitalista a fim de “ultrapassar os dolorosos efeitos antissociais [e] considerar a socialidade presente aqui [...] a vida social queer que existe além do fetiche, [...] além do puro choque do sexo humano” (CHEN, 2015, p. 26). Em outras palavras, a socialidade queer não me mostrou que há modos de se relacionar com o mundo “diferentes” daqueles ditos como “normais”, mas que o fascínio pela estagnação normativa como paradigma de funcionamento dos currículos termina por se contentar em declarar outros como “estranhos” ou “anormais”. O desejo por apaziguar essa descoberta substitui a miríade de arranjos heterogêneos de um currículo por uma coesão quase transcendental, obscurecendo redes de suporte da vida. As duas pontas - socialidade queer e política imaginação - podem ser, enfim, reunidas porque modos de vida não são projetos previamente instituídos e esquematizados pelos currículos; demonstram que a vida brota onde se julgava que não podia - não como realização, mas como “um agenciamento concreto de vida” (ZOURABICHILLI, 2000, p. 338), envolvendo a eclosão de sensibilidades - e não de tomada consciência - diante das “novas relações com o corpo, o tempo, a sexualidade, o meio, a cultura, o trabalho” (DELEUZE; GUATTARI, 2015, p. 119).

Em um arremate final: currículos estão sendo deslocados de projetos de reconhecimento de identidades para uma composição de laços que permitem habitar a vida, indicando a necessidade de imaginar categorias transversais de pensamento que escapem ao dualismo e ao determinismo. Isso não é um clamor para salvar o currículo através daqueles declarados outros por “códigos de inteligibilidade [para os quais], viver [...] no mundo é viver nas regiões sombrias da ontologia” (BUTLER, 2002, p. 52). Realizo que é para tornar o currículo mais desfigurado, menos sufocante e sufocado. Se modos de vidas estão ameaçados por esquemas de inteligibilidade, é por isso que temos de procurar um “ainda não” (MUÑOZ, 2011, p. 95), onde vidas “realmente começam a crescer” (idem), fazendo da imaginação não uma respiração fugaz, mas uma força em um cenário político que parece ser desprovido de qualquer criação. Trata-se deslocar o currículo como algo emanado seja lá de onde ou por quem for, capaz de salvar das pressões e valores contemporâneos, e devolvê-lo a partir de uma rede de amparo e de uma trama de ligações, nas quais as vidas se constituem por compartilharem experiências de deslocamento, antes que de unidade, de representação ou articulação, dissipando coerência e linearidade. Mais ainda, ecoa o que pude compreender com Fernanda: viver no mundo exige um compromisso político que não tem forma de adesão ou de articulação, mas de parentesco!

ISTO NÃO É UM FINAL

Com a família feita para mim, fui deslocado da ideia de que o currículo se organiza em torno de um horizonte saturado de normatividade contrastado por um projeto combativo de ruptura. Diante do insidioso quadro político, me vi perguntando se não estava em curso uma percepção de currículo que suspendesse a pulsão esterilizante da vida, permanecendo não apenas crítico diante da cumplicidade da imaginação curricular com a reificação da normatividade, mas reativando a alteridade como a tessitura da trama curricular. Talvez, não haja nada de novo nessa afirmação. Louro (2001, p. 550) já colocava que “a diferença deixaria de estar lá fora, do outro lado, [...] e seria compreendida como indispensável para a existência do próprio sujeito: ela estaria dentro, integrando e constituindo o eu. A diferença deixaria de estar ausente para estar presente”. Meu temor é que a história desses modos de vida, que desvelam como a diferença está trabalhando os nós, em sentido duplo (de coletividade e de entrelaçamento), seja dispensada ao enfrentar os embates sobre gênero e sexualidade, terminando por projetar nada mais do que agonia.

Eu me tornei filho de Fernanda durante a consolidação da agenda conservadora que fez de gênero e sexualidade campo de combate, convivendo com as expectativas que esperavam a defesa da importância do meu trabalho. O que poderia ser motivo de reconhecimento acadêmico me levou ao desconforto crescente de atentar para as respostas dadas aos eventos dessa agenda. A intervenção queer ganha força quando sua preocupação não é da ordem de purificação do currículo, onde não existiria mais nenhum vestígio da diferença, mas a coloca como uma força de imaginação. Esse é outro modo de pedir que o exercício político acerte as contas com a reinvenção do parentesco, com aqueles que, de fora da política, tem feito da política nada mais e nada menos que derivar a vida. Queer, nota Patton (2002, p. 2010), “se tem alguma utilidade, é melhor entendido, não como um modelo de identidade e prática que pode ser limitado ou modelado por configurações locais, mas como evidência de um tipo de alteridade imparável”. Dependeremos cada vez desse imparável movimento se quisermos escapar da lobotomia que se avizinha, o que exige uma abertura a desorientar o juízo político das correntes conceituais em currículo para habitar o presente como um sopro de energia. Há potência em imaginar como currículos carregam consigo um arquivo composto de transformações improváveis das condições de estar vivo, de reativá-lo em contornos que “jamais aquieta[m] o murmúrio de multiplicidade não teológica e não hierárquica que é o mundo” (HARAWAY, 2011, p. 38); que não se traduzem nas lutas políticas dadas as maneiras pelos quais os modos de vida tecem a fabricação de redes de suporte.

Lá pelo começo dos anos 2000, quando eu me preparava para prestar vestibular, o livro O meio do mundo, do escritor sergipano Antonio Carlos Vianna (1999), causou furor pelo conteúdo considerado impróprio para aqueles que o teriam como leitura obrigatória para a prova de entrada na universidade. Anos depois, ao retornar ao livro, o que me chamava atenção não era mais a descrição dos atos sexuais dos contos, mas as vidas que habitam um mundo no seu pleno anonimato. “E era uma casa só no meio do mundo” (p. 89) - disparava. “E eu achei a vida a coisa mais estranha do mundo, assim de repente, depois de uma caminhada sem fim, eu ali outro, mas o mesmo, bebendo água numa caneca de alumínio onde se lia Amizade” (p. 89-90) - continuava dando corpo ao insondável movimento de todos os dias. Que currículo não sai ileso à vida é, no jargão acadêmico, minha consideração final, que deixa outra interrogação: pode o pensamento curricular sair ileso à vida? O que acontece à teoria e à pesquisa em currículo quando é produzida através de laços de amizade e de fabricação de famílias? Esse artigo pode ser (re)lido, agora, como que ecoando essa pergunta. Isto não é mesmo um final.

1A pesquisa que subsidiou este artigo contou com financiamento do CNPq, nos anos de 2013 e 2014, por meio de bolsa de doutorado, e da Fundação Carlos Chagas de Apoio à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) no ano de 2015, por meio da modalidade de bolsa Doutorado Nota 10. Conferir, Ranniery (2016).

2A investigação aconteceu entre 2012 e 2015, acompanhado a vida de sujeitos na relação com professores, familiares e amigos, como um questionamento da unidade espaço-temporal da pesquisa, da delimitação marcada de sujeitos e da fronteira entre fora e dentro da escola.

3Extrapolaria as dimensões desse artigo retomar a relação entre currículo e normatividade, posto que o problema reside na incorporação de um sentido norma que lhe retira a ambivalência e a dimensão produtiva (RANNIERY, 2017a).

4Uso o termo queer em itálico para salientar está sob disputa e destacar que estou ciente das limitações que implica, em especial, a não de mais engajar a diferença em termos de coalizações e afiliações entre corpos marcados pela exclusão. Ver, por exemplo, Cohen (1997).

5Música disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=saZywh0FuEY. Acesso em agosto de 2017.

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