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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.18 no.51 Rio de Janeiro oct./dic 2017  Epub 13-Mar-2020

https://doi.org/10.12957/teias.2017.30560 

Elos

QUANDO VIDAS NEGRAS IMPORTAM... De que vale o currículo?(*)

Denise Taliaferro Baszile(**) 

(**)Jornalista, PhD em Curriculo, Professora e Reitora para Assuntos de Diversidade e experiência estudantil na Miami- University, OH.


RESUMO

Questionando o currículo a partir de narrativas em que "vidas negras importam" o ensaio defende que o que sempre minou o projeto de justiça nas Américas e em outros lugares é uma profunda falta de amor pelos Negros. Uma falta tão profunda e persistente que tem o potencial de corromper até mesmo o amor das pessoas Negras pelas pessoas Negras, não simplesmente ao colocar mais valor nas vidas Brancas, mas também ao engolir os lugares e momentos em que os Negros ou qualquer grupo de pessoas marginalizadas poderiam imaginar o contrário. Tal como funciona a (pato)lógica do patriarcado capitalista da supremacia Branca. Distorce o amor. Embora este fato seja bastante evidente nas realidades materiais da morte Negra e do aprisionamento Negro, também é evidente na forma como a escolaridade e como o conhecimento nela funciona através de uma série de currículos - oficiais e não oficiais - de morte Negra, desprezo pelas pessoas Negras e assassinato do espírito Negro.

Palavras-chave: currículo; subjetividades étnicas; micropolítica educacional

ABSTRACT

Questioning curriculum from narratives in which “BlackLivesMatter” the essay argues that what has always ailed the project of justice in the Americas and elsewhere is a profound lack of love for Black people. A lack so profound and persistent it has the potential to erode, even Black people’s love for Black people, not simply by placing more value on White lives, but also by swallowing up the places and moments where Black people or any marginalized group of people might imagine otherwise. This is exactly how the (patho)logic of white supremacist capitalist patriarchy works. It distorts love. While this fact is quite evident in the material realities of Black death and Black imprisonment it is also evident in the ways that schooling and how the knowledge therein functions through a series of curriculums-offical and unofficial--of Black death and disregard.

Keywords: curriculum; black subjectivities; educational; educational micro-politics

Em 29 de abril de 1992, o júri absolveu três oficiais do Departamento de Polícia de Los Angeles do brutal espancamento de Rodney King. Na época, eu estava trabalhando para uma afiliada de notícias da ABC em Detroit e fui convocada para o trabalho naquele dia para apoiar produtores e escritores seniores no que certamente seria um dia de notícias bem ocupado. Geralmente, eu gostava da agitação da sala de redação em dias de notícia de última hora, porque o tempo passava rápido. No entanto, não estava ansiosa para estar no trabalho neste dia específico. Quantas vezes eu teria que assistir ao vídeo do espancamento? Quantas conversas eu teria que evitar com colegas de trabalho sobre como isso era ou não era sobre raça? Como eu poderia conter minha inexplicável descrença por que ainda estamos surpresos com o que é um padrão histórico? Como lidar com minha raiva? Como eu poderia explicar o que, eu sabia, estava prestes a acontecer a seguir?

No caminho para o trabalho naquele dia, eu estava lembrando de uma conversa que eu tive com o âncora principal quando vimos o infame vídeo dos policiais batendo vigorosamente num homem Negro1 ao lado da autoestrada. Bill tinha feito uma observação e queria ouvir o que pensava sobre isso. Do ponto de vista dele, ele explicou, os Brancos pareciam estar mais indignados com o vídeo do que os Negros2. Em resposta, sugeri que, enquanto eu pensava que todos estavam indignados, ao contrário de muitos Negros, muitas pessoas Brancas também ficaram chocadas, surpresas e um pouco impactadas com a violência gratuita e suas implicações raciais. Infelizmente, lembrei-lhe que a violência perpetrada em corpos Negros por autoridades oficiais não é novidade. Das patrulhas de escravos no período de 1700 até as forças policiais atuais, "servir e proteger" significou disciplinar corpos Negros para proteger interesses Brancos. Existe um tipo de normalidade profundamente perturbadora sobre esta violência, como geralmente voa sob o radar, até que um espetáculo totalmente desorientador - ou uma série de espetáculos- conduza as pessoas, que já chegaram ao limite, a criar um inferno, o que - é claro - é onde nos encontramos no momento atual.

Hoje, graças a três organizadores estratégicos, às mídias sociais e um meme poderoso como #BlackLivesMatter3, a brutalidade policial em comunidades marginalizadas está recebendo alguma atenção negativa na mídia, na universidade e em várias esferas da comunidade. Nós temos testemunhado uma interminável procissão de relatos e vídeos profundamente perturbadores com homens Negros, mulheres e crianças Negras sendo mortos pela polícia ou pessoas que fingem ser a polícia. E, na maioria desses casos, e semelhante ao caso Rodney King, ver, aparentemente, não é equiparado a acreditar. Nós temos testemunhado a dureza de evidências frias e concretas, e ainda júris, tribunais, policiais e, às vezes, vizinhos, amigos, colegas de trabalho e nossos estudantes racionalizaram a violência e tudo o mais embora ignorem os danos colaterais.

É realmente assombroso compreender o desprezo irresponsável pela vida Negra, repetidamente. A repetitividade, como já disse em outro lugar, é como morrer um milhão de mortes, porque nunca é apenas sobre um assassinato isolado de uma pessoa. A brutalidade, cíclica e frequentemente injustificada, é também o assassinato espiritual4 de muitos, que ficaram para trás para registrar o persistente desprezo, a violência padronizada e as palpitações que acompanham cada lesão racial recorrente. A violência, em seu âmago, é também de gênero. Enquanto ouvimos principalmente sobre a morte de homens e meninos Negros, mulheres e meninas Negras também foram mortas e especialmente mulheres transgêneras Negras. E há, também, a violência transmitida às jovens mulheres que testemunharam, primeiramente, a morte de seus amigos, amantes, irmãos e filhos. Embora praticado de maneiras diferentes, o ataque deve ser mais apropriadamente entendido como sendo algo perpetrado no bem-estar Negro.

Sem dúvida, o surgimento e a energia do Movimento #BlackLivesMatter despertaram muitas lembranças para mim, enquanto tento ouvir, processar e me comprometer seriamente com suas demandas à luz e além das mortes injustas dos Negros nas mãos da polícia. No ano passado, falei em um painel focado no alcance global do Movimento #BlackLivesMatter, onde um estudante perguntou: "Não é melhor usar todas as vidas importam, se isso trará mais pessoas para o movimento pela justiça?" Fez-se um silêncio enquanto o painel contemplava a questão. Finalmente respondi chamando Bell Hooks (1990) e a ideia de amar a negritude como uma forma de resistência política. Suponho que minha resposta de 30 segundos foi apropriada, mas, durante alguns dias, eu queria rebobinar e transmitir algo mais específico sobre amar os Negros e não simplesmente a negritude e a importância vital disso para incitar e trabalhar em direção a mudanças revolucionárias.

Não escondo o fato de ter um amor feroz e implacável pelas pessoas negras, um amor que colore tudo o que eu faço como professora, acadêmica, mãe, amante da justiça e muito mais. Esta semente foi plantada no início da minha vida e alimentada frequentemente por minha família, professores e comunidade. Eu cresci na década de 1970, cantando "Eu sou Negra e com orgulho!5" E usando camisetas com a frase "Negro é lindo" exibido de forma proeminente na frente em letras vermelhas, pretas e verdes ou pequenos parafusos prateados, ou, com o simples e antigo marcador de texto, mas preto.

Apesar de ter crescido em uma cidade com 85% da população afro-americana que estava sofrendo e afundando profunda e rapidamente com o declínio - industrial e de outras formas - eu cansei de testemunhar, todo e cada dia, atos de amor Negro revolucionários. Vindos de professores como a Sra. Long, que falou com nós estudantes da quarta série regularmente sobre o orgulho e a determinação do Negro, ou do pessoal da família como meu tio Chokwe que lutou incansavelmente e sem medo - e muitas vezes sem compensação monetária - para defender a humanidade e os direitos civis de inúmeros Negros, e de pessoas da comunidade e familiares que juntaram dinheiro cada verão para criar um acampamento de herança Negra para crianças do bairro sem meios para ir a outro lado ou de meus pais que achavam que era importante que meus irmãos e eu estivéssemos conectados à uma variedade de espaços contra culturais Negros na cidade que alimentaram nosso senso de orgulho e possibilidade. Vejo estes como atos de amor revolucionários porque são ações que têm o poder de não só salvar vidas, mas também de transformar vidas.

A coisa verdadeiramente linda sobre crescer em um espaço e num tempo e com pessoas cujo amor pela negritude - por pessoas Negras - era ativo, é que minha educação nunca correu o risco de ser mantida refém pela escolaridade inadequada ou por professores tendenciosos, ou currículos que faziam pouca ou nenhuma menção de pessoas Negras. Também não correu o risco de ser dominada por estereótipos da mídia, omissões e representações falsas intencionais. Embora todas essas coisas, que são assassinas espirituais, estivessem presentes e ativas no meu meio ambiente, sempre fui envolvida por uma poderosa contra narrativa, que recusou a total desvalorização da negritude inerente à cultura americana. Por outro lado, uma narrativa que enfatizou a autodeterminação Negra como um princípio vital na perseverança dos Negros em um estado suprematista Branco e que também se baseou na ideia de que a liberdade, a igualdade e a justiça eram nulas sem os esforços contínuos dos Negros e de outros povos marginalizados, que historicamente desafiaram os EUA a viver de acordo com sua imagem de si mesmo como uma sociedade livre, igual e justa. A contra narrativa era multifacetada e dinâmica e não sem o seu próprio conjunto de tensões e limites apesar de poderosamente afirmadora e geradora. Meu acesso à e minha emergência nesta contra narrativa foram devidos, em parte, ao compromisso dos meus avós em relação ao ativismo social e político, ao envolvimento do meu pai - junto com seus irmãos e irmãs - na política nacionalista Negra, aos professores Negros da velha guarda que intencionalmente conectavam aprendizagem à libertação e à estética Negra vibrante que trouxe bonecas Negras, livros Negros, dança Negra, música Negra e história Negra para minha zona de inteligibilidade. Infelizmente, o impacto de tais coisas nem sempre é discernível até que a estrutura que provia suporte a elas comece a erodir-se.

Infelizmente, ao mesmo tempo que eu era alimentada por esta narrativa, seu potencial público e pedagógico estava literalmente sendo desfeito, apagado, destruído pelo Cointelpro6 que desmantelou as organizações Negras radicais e levou professores e diretores Negros a perderem seus empregos. As políticas de cegueira racial estavam se tornando a nova norma e muitos espaços contra culturais Negros estavam sendo dizimados. O país entrou em uma década de retração séria e estratégica.

Não foi, no entanto, simplesmente a política de endurecimento do presidente Hoover ou a contenção da era de Reagan que desmantelou a narrativa. A supremacia Branca provou ser muito mais sofisticada, adaptável e furtiva em seus esforços para negar a autodeterminação e o amor dos Negros. A atração do progresso e da possibilidade em um estado neoliberal emergente também trabalhou para desmembrar a contra narrativa, para fazê-la parecer ilógica, antiquada e fora do caminho do progresso amar a negritude e as pessoas Negras em toda a nossa diversidade.

Na época em que eu saí de casa e arrisquei-me pelo mundo, a contra narrativa que encorajava amar pessoas Negras como uma forma de resistência política dificilmente era visível. Na verdade, em muitos casos, foi-me dito que amar pessoas Negras era semelhante a ser racista; significava odiar pessoas Brancas. A narrativa dominante da criminalidade Negra, ineducabilidade e dependência estava trabalhando continuamente para captar a imaginação pública e para customizar conversas entre Negros como respostas a essas representações.

Para mim, o impacto foi tangível e minha luta para me apoiar em algo tão vital e central para o modo como via/vejo o mundo era real. Nos meus primeiros anos ensinando em escolas e programas comunitários, encontrei muitas crianças Negras sem conhecimento de um discurso público em torno de amar a sua negritude ou pessoas Negras. Quando perguntei a um dos estudantes do ensino médio o que ele pensava dos novos programas especiais em sua escola secundária, historicamente Negra, em Bottom, ao sul de Baton Rouge (LO), ele disse com indiferença: “Essas são para as crianças Brancas porque são mais inteligentes do que nós. Eles merecem coisas melhores”. Seu colega de classe se juntou e disse: “Sim, eu não sei por que você está desperdiçando seu tempo aqui conosco”. Eu respondi convidando ambos os estudantes a passar algum tempo trabalhando comigo e com outras pessoas da comunidade montando uma peça sobre a história afro-americana.

Infelizmente, o sentimento por trás de suas palavras não era incomum. Me deparei com isso novamente quando eu trabalhava com estudantes do ensino médio em Detroit (MC) que estavam interpretando clássicos contos de fadas como se tivessem acontecido em seus bairros. O tema que apareceu ao longo de suas histórias era que os bairros Negros estavam cheios de perigo e pobreza. Não era um lugar para amar. Agora, com certeza, penso comigo mesma e, eventualmente, disse a eles, há amor no gueto, mas por que nós não reconhecemos ou não podemos reconhecê-lo. A questão mudou o foco de nossa conversa, do desespero Negro para contemplar todos os atos do amor Negro revolucionário que são considerados como garantidos diariamente. Isso, obviamente, nos levou a conversas mais críticas sobre o que significa ser Negro e como atos de amor também implicam indignação, determinação, coragem, desobediência e obstinação.

O mais desafiador de todos os meus encontros foi com uma espirituosa estudante da terceira série chamada CeeCee. Ela era uma menina achocolatada com cabelos Kinkky7 que me jurou que o medalhão de couro com formato do continente Africano que pendurava em volta do pescoço era, na verdade, a Califórnia. Eu amava tudo sobre CeeCee, mesmo a atitude que muitas vezes a colocou em problemas com seus professores. Seu jeitinho levado foi uma das razões pelas quais eu a escolhi para ser Cleópatra em uma peça escolar que eu tinha escrito para as crianças. A Sra. Robertson estava preocupada com a minha escolha, porque pensava que as crianças ririam da ideia de CeeCee ser a linda Cleópatra. Eu pensei que era uma preocupação injustificada. Mas eu estava errada. Quando a luz brilhou sobre CeeCee no palco, e ela disse sua fala - “Eu sou a linda e mais poderosa Cleópatra”, o público explodiu em gargalhadas. CeeCee fugiu do palco em lágrimas. E eu passei as próximas horas segurando CeeCee - contra todas as políticas da escola - em meus braços e lembrando-lhe de todas as coisas bonitas sobre ela por dentro e por fora.

Eu não quero cair em triste nostalgia aqui, nem estou tentando sugerir que o que está atormentando Negros americanos-EUA ou Negros brasileiros ou Negros em África é uma falta de autoestima, de maneira nenhuma. Mas, o que eu quero dizer é que eu acredito que o que sempre minou o projeto de justiça nas Américas e em outros lugares é uma profunda falta de amor pelos Negros. Uma falta tão profunda e persistente que tem o potencial de corromper até mesmo o amor das pessoas Negras pelas pessoas Negras, não simplesmente ao colocar mais valor nas vidas Brancas, mas também ao engolir os lugares e momentos em que os Negros ou qualquer grupo de pessoas marginalizadas poderiam imaginar o contrário (HAYMES, 1995; GLAUDE, 2016). Isso, eu diria, é exatamente como funciona a (pato)lógica do patriarcado capitalista da supremacia Branca. Distorce o amor (MATIAS; ALLEN, 2013). Embora este fato seja bastante evidente nas realidades materiais da morte Negra e do aprisionamento Negro, também é evidente - como insinuei - na forma como a escolaridade e como o conhecimento nela funciona através de uma série de currículos - oficiais e não oficiais - de morte Negra, desprezo pelas pessoas Negras e assassinato do espírito Negro.

Desde a desastrosa chegada às Américas, o povo Negro tem lutado, marchado, cantado, dançado, ensinado, escrito e morrido, numa luta que requer uma autêntica consideração pela nossa humanidade. Para entender por que ainda nos encontramos exigindo tanto no século XXI, por que os fantasmas da morte Negra sem sentido clamam nos cantos da nossa consciência, se apegam ao ar e ocupam nossa respiração (FANON, 1967), não devemos considerar o ódio, o mal-entendido, ou medo, mas sim a lógica e os aparelhos de reforço que os tornam todos possíveis, prováveis e até mesmo normais.

Em No Humans Involved: An Open Letter to My Colleagues8, Sylvia Wynter, apresenta duas questões críticas do currículo, que compõem a consideração dessa lógica. Ao refletir sobre o uso do acrônimo N.H.I. (significando “nenhum humano envolvido”) pelos funcionários públicos de Los Angeles em referência a incidentes que envolvem jovens Negros (geralmente que abandonaram ou foram expulsos da escola e estão desempregados), ela pergunta primeiro que lógica obriga os funcionários a perceber e, assim, se comportar com os jovens Negros como se fossem “a Ausência do Humano”. Em segundo lugar, ela nos pede - acadêmicos, estudiosos, educadores, intelectuais - em breve seus colegas, que consideremos nosso próprio envolvimento na construção de tal lógica. “Qual é nossa responsabilidade”, ela escreve,

para a construção desses “olhos internos?” Uns em que humanidade e a norte-americanidade já estão sempre definidas, não apenas em termos perfeitamente Brancos, mas também em uma classe perfeitamente média (ou seja, Semi Valley e secundariamente famílias Cosby-Huxtable da TV), variantes desses termos? O que tivemos que fazer, e ainda temos que fazer, com a colocação da lógica de classificação desse modo compartilhado de "compreensão subjetiva" (Jaime Carbonell, 1987) em cujos "olhos internos", jovens Negros podem ser percebidos como sendo justamente excluídos, o que Helen Fein chama de "o universo da obrigação moral" que liga o interesse dos jurados do Semi Valley como Brancos e não-Negros (um asiático e um hispânico) aos interesses do policial Branco e dos oficiais judiciais de Los Angeles que são nossos graduados? (WYNTER, 1994, p.44).

Wynter responde a ambas as questões observando que a falta de consideração humana para com a vida Negra está profundamente enraizada na atual "ordem do conhecimento" que foi estabelecida e propagada na agonia da conquista, colonização, escravidão pelos europeus, e na capitalização de todas as coisas sagradas. Através destas a superioridade Branca/inferioridade Negra (classe média/pobre) tornou-se a lógica fundamental das sociedades colonizadas. Esta lógica, Wynter continua a explicar, é gerada a partir da representação europeia do ser humano como um organismo biologicamente selecionado (e que pode ser concebido como mais ou menos humano ou mesmo não humano), que pode ser induzido a ver todos aqueles que estão fora do nosso

santificado universo de obrigação. Um outro presente, seja como Raça ou o Outro desempregado, como tendo sido colocada em seu status inferior, não por nossos mecanismos institucionais específicos da cultura, mas sim pela ordem extra-humana bio-evolucionária Seleção natural (WYNTER, 1994, p. 54).

Esta lógica classificatória, de acordo com Wynter, é a base de nossas Ciências Humanas e Sociais atuais e sua produção de "olhos internos" que não podem conceber a humanidade fora das hierarquias de raça, classe e gênero entre outras. Ao levantar e justapor estas questões, Wynter faz uma conexão profunda e delicada entre o assédio injusto e persistente e o assassinato de jovens Negros e não apenas o ensino que fazemos todos os dias, mas também e talvez mais fundamentalmente a leitura, o pensamento, a teorização e escrita que nós fazemos. Embora seja fácil ler a chamada de Wynter como um pedido de revisão curricular, é mais difícil e talvez perigoso enfrentar todo o peso de sua disputa.

Seguindo Woodson, Fanon e outros, ela reitera três pontos fundamentais: 1) Muito antes do desprezo pelo e da morte do povo Negro serem materializadas são conceituadas logicamente e reproduzidas e circuladas através de currículos oficiais e não oficiais. 2) Nessa atual ordem de conhecimento, a importância das vidas Negras é praticamente inconcebível, pois nos força a perguntar a perpétua questão - como educamos no meio de nossa má educação? -; e, 3) Nosso único recurso para libertar nossa concepção de humanidade de tais hierarquias e do domínio do homem eurocêntrico é reescrever a nossa atual ordem de conhecimento, de forma a permitir modos múltiplos/coexistênciais/relacionais de ser humano.

Ao contemplar mais profundamente o chamado de Wynter, comecei a preparar-me para escrever um documento que tem estado em mente por algum tempo: "Quando Vidas Negras importam, o que é Teoria Curricular?" No trabalho, eu pretendia interrogar os desafios da reescrita/recurricularização de um curso sobre currículos apresentando o campo a partir da perspectiva de pessoas cujas vidas muitas vezes foram aterrorizadas e/ou invisibilizadas nos processos dominantes de produção, avaliação e legitimação do conhecimento. Mas no decorrer da tentativa de reescrever, fui obrigada a reconsiderar.

Foi numa manhã de julho passado, quando comecei a escrever. Eu estava sentada na varanda do que, suponho, já tenha sido uma destacada fazenda de plantation da Geórgia, com vista para 72 acres de grama verde e um glorioso nascer de sol laranja e amarelo. Depois de aproveitar um momento para reconhecer os antepassados que podem ter pisado em tal lugar, organizei meus materiais e caí na loucura normal do meu drama de escrita (ou trauma pode ser uma palavra mais apropriada) - leitura e releitura, desenho e rabiscos , formulação e reformulação, redação e reescrita de tópicos, e lutando com a conversa incessante na parte de trás da minha cabeça sobre objetividade, clareza, validade, legitimidade, generalização, soar acadêmica, mas não muito acadêmica, evitando narcisismo, quem se importa e todo esse tipo de besteira.

Normalmente, quando isso acontece, eu sou capaz de chamar minha escritora guerreira e empurrar a cacofonia para fora da minha cabeça. Mas quando eu finalmente me sentei na frente do meu computador uma semana ou mais depois para realmente começar o trabalho de escrever, não havia nada, nada, nada por horas e dias. Após as primeiras horas, minha respiração tornou-se superficial e as únicas palavras que vibraram nas minhas têmporas foram: não consigo respirar...

Não consigo respirar...

Não consigo respirar.

Depois de alguns dias, eu decidi que provavelmente era melhor parar de tentar empurrar essas palavras - que agora estavam passando pela minha cabeça como um trem de carga - para fora da minha mente e, em vez disso, tentar respirar profundamente, localizar o medo e escutar a mensagem tentando me alcançar através dessas palavras assombrosas.

É claro que a primeira imagem que me veio foi o vídeo de Eric Garner perdendo o ar e a vida pelas mãos da polícia de Nova York. A próxima coisa que me lembrei era algo que eu havia esquecido até eu ter visto e ouvido o assassinato de Eric Garner. Embora eu nunca tenha sido atacada de tal maneira, eu conhecia a sensação de não ser capaz de respirar e estar perto de morrer por causa disso.

Eu tinha experimentado um ataque de asma (apesar de eu nunca ter tido asma antes desse ano) provocada por um pesticida que o Condado de Los Angeles pulverizou no meu bairro para minimizar a invasão de uma pequena mosca de frutas mexicana. Os funcionários nos alertaram para cobrir nossos carros, pois o pesticida poderia tirar a tinta, mas não era, como a transmissão da WKLA assegurou aos moradores, perigosa para os seres humanos. Eu acordei no meio da noite, sentindo que eu tinha um peso de 100 quilos no meu peito e uma pequena passagem de ar aberta através da qual eu lutava para respirar com toda a concentração que eu poderia reunir... sem remédio, sem carro e sem telefone no momento. 28 anos depois e certas coisas ainda podem desencadear esse sentimento de perder a capacidade de respirar - o mais básico dos direitos humanos, pensaria. Meu corpo se lembra e minha mente às vezes tira proveito disso. Como agora, no meio da tentativa de reescrever as vidas dos Negros de modo que tenham importância.

Lembrando desses momentos, pude ver ainda mais claramente a anatomia do meu problema. Meus pensamentos aparentemente desconectados estão, de fato, todos emanando da mesma força de tirar o fôlego. O recrutamento do nosso direito e da capacidade de respirar livremente surge da pretensão generalizada de que não há humanos envolvidos no caso de Garner, ou no caso do pesticida que induziu a asma, ou no caso daqueles de nós tentando reescrever as vidas Negras como dignas de importância. É a conexão entre a morte literal através da sufocação e da morte metafórica através da sufocação de nossas palavras vivas/vidas/significados que me param no meio do caminho e retornam ao chamado de Wynter para reescrever.

Como uma mulher-mãe-professora-acadêmica do currículo Negra fui forçada em várias ocasiões nos últimos anos a revisar o trabalho de Wynter, enquanto tentava responder às perguntas nos olhos dos meus filhos, saindo da boca dos meus estudantes, e no melodrama de colegas preocupados - todos os que também sentem os fantasmas da morte Negra clamando, agarrando, reunindo e exigindo, como Avery Gordon (2008) poderia dizer, "algo a ser feito". Nas minhas releituras e pesquisas do que exatamente eu/nós podemos fazer, as duas primeiras realizações sempre tiram meu fôlego em confirmações implacáveis, mas é o terceiro imperativo que insiste em toda minha atenção. O que, eu imagino, a reescrita implica? É a criação de histórias revisionistas? É a apresentação de mais representações fora da concepção Branca /classe média de uma vida boa? Precisamos apenas reorganizar evidências e tirar conclusões diferentes? E o próprio ato de se escrever?

Ao contemplar essas questões, percebo que há muito trabalho a fazer em universidades e escolas para abordar essas questões. Mas também me lembra que o que foi tão poderoso no meu crescimento, não eram as narrativas oficiais nas universidades e escolas, era a narrativa da educação popular, era a narrativa da autodeterminação e do amor Negro que vieram dos espaços da comunidade onde a educação que abraçava o amor à negritude salvou e enriqueceu minha vida. Foi essa educação que me posicionou para ir à escola, não apenas como aprendiz, mas também como professora - quando questionei e desafiei o conhecimento oficial - subversivamente, incluindo o conhecimento Negro em todos os espaços e lugares em que eu me aventurei.

Finalmente, acredito que mudanças radicais para a justiça nas sociedades dependem, em parte, de mudanças radicais feitas em universidades e escolas - geralmente realizadas por movimentos sociais liderados por estudantes -, mas lembremos que esses estudantes são inspirados por teorização/escrita/conscientização crítica feitas por professores - muitos professores dentro da universidade ou escola, mas também muitos fora da universidade ou escola que ativam uma educação de raiz, um projeto de autodeterminação e amor. Isso é tão vital para o trabalho curricular e digno de nossa compreensão como qualquer outro meio de produção do conhecimento. Embora isso possa parecer um esforço para revalorizar a negritude por causa dos Negros, lê-lo dessa maneira é perder o objetivo final - abraçar a importância das vidas Negras, pedir por mais amor à negritude como uma forma de resistência política é uma luta profundamente importante da qual depende todo o nosso bem-estar. Ele incorpora e encoraja o espírito e a conexão com as lutas indígenas, as lutas de gênero, as lutas contra a pobreza e muito mais. Lembro de que um dos pontos mais importantes de Freire é que decretar, facilitar, não resistir aos processos de desumanização é desumanizante. Portanto, independentemente da raça, do credo, da cor, do status de classe, da sexualidade - é vital para nossa busca desafiar-nos a nos tornarmos seres humanos mais humanos, em todos os nossos diferentes, mais relacionais, modos de sermos humanos.

(*)Versão deste manuscrito foi apresentada no evento “Conversas na/da/com a Formação: currículo feminino e luto étnico”, em 9/10/2017, na Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro/UNIRIO com apoio JCE/Faperj. Disp.: <http://www.unirio.br/news/grupo-de-pesquisa-praticas-educativas-e-formacao-de-professores-promove-nova-edicao-do-2018conversas-na-da-com-a-formacao2019-no-dia-9-de-outubro>.Tradução: Renata Westminster Shaw e Manuela Moreira Porto (IC/UNIRIO). Revisão Técnica: Maria Luiza Süssekind (UNIRIO/FAPERJ).

1Nota das tradutoras: Chamamos atenção aqui para a tradução de Black/black para preto (a) e/ou negro (a) e os cuidados linguísticos, culturais, históricos, sociológicos e políticos necessários com os usos de ambos os termos.

2NT: Seguimos o uso de maiúsculas adotado pela autora.

3NT: O Movimento #BlackLivesMatter pode ter seu nome traduzido para “Vidas Negras Importam”. Começou em 2013 após a absolvição de George Zimmerman, que assassinou a tiros o adolescente negro Trayvon Martin. O movimento organiza protestos públicos e nas redes sociais contra o genocídio do povo negro nos Estados Unidos e no mundo e se mobiliza em torno de assassinatos polêmicos de pessoas negras pela força policial. Acesso: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Black_Lives_Matter>.

4NT: No original: spirit murder.

5NT: No original: “I’m Black and I’m proud!” e “Black is Beautiful”.

6NT: Programas de cooperação para operações de inteligência do governo Americano. Eram, em grande parte, operações ilegais e clandestinas que tinham por objetivo desestabilizar grupos de protestos, de esquerda, ativistas e dissidentes políticos e outros (1956-1971).

7NT: Expressão utilizada para referir-se aos cabelos crespos Negros penteados de modo a valorizar a negritude.

8“Sem humanos envolvidos: Uma carta aberta a meus colegas” (1944).

REFERÊNCIAS

HOOKS, Bell. Yearning: race, gender, and cultural politics. 1990 [ Links ]

HAYMES, Stephen Nathan. Race, Culture and the City: A Pedagogy for Black Urban Struggle. SUNY Press, 1995 [ Links ]

GLAUDE, Eddie. Democracy in Black: How Race Still Enslaves the American Soul. Crown/Archetype. 2016 [ Links ]

MATIAS, Cheryl E.; ALLEN, Ricky Lee. Loving Whiteness to Death: Sadomasochism, Emotionality, and the Possibility of Humanizing Love. Educational Foundations and Social Studies Faculty Publications, 2013 [ Links ]

FANON, F. Black skin, White masks. New York, NY: Grove Press, 1967 [ Links ]

WINTER, Sylvia. No Humans Involved: An Open Letter to My Colleagues. Duhran: Duke University Press, 1994 [ Links ]

WOODSON, C. G. The miseducation of the Negro. Trento, NJ: Africa World Press, 1933. [ Links ]

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