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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.19 no.52 Rio de Janeiro ene./mar 2018  Epub 10-Mar-2020

https://doi.org/10.12957/teias.2018.31599 

Entrevista

UM OLHAR SOBRE UMA INFÂNCIA INDÍGENA

Beatriz Fabiana Olarieta

Conceição Firmina Seixas Silva

Lisandra Ogg Gomes


Dos belos e casuais encontros que a vida nos proporciona! Durante a organização do I Congresso de Estudos da Infância (I CEI), Paula Mendonça de Menezes nos procurou com a proposta de exibir o documentário que co-dirigiu - Wappa: um olhar sobre a infância indígena Yudja1 - para aquele público interessado na infância e nas crianças. Com poucas informações acerca da proposta, mas abertas para a diversidade que o Congresso abrangia, aceitamos e tivemos um belo encontro cinematográfico que aguçou nosso interesse sobre outros modos de se pensar a infância e as relações estabelecidas entre as crianças, delas com os adultos, sua educação e seus modos de atuação e participação social.

Paula é graduada em pedagogia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), e atualmente é mestra pelo programa de pós-graduação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP). Atuou por cerca de 10 anos no Parque Indígena do Xingu, com iniciativas voltadas à educação e ao registro cultural de comunidades indígenas, por meio do Instituto Socioambiental (ISA2). Durante este período, participou do processo de formação de professores, da produção de material didático e da elaboração de Projetos Político Pedagógico de escolas indígenas. É também parceira do projeto Território do Brincar3 na pesquisa de brincadeiras indígenas, e produtora de conteúdo no Curso de Especialização Cultura e História Indígena da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Além disso, trabalhou como educadora no ensino fundamental e, atua como consultora autônoma, desenvolve cursos de formação para professores voltados à cultura da infância e à inclusão da temática indígena no currículo escolar, de acordo com a lei nº. 11.645/2008.

Em um dos seus trabalhos nesse percurso acadêmico, realizou, na FEUSP em 2016, um minicurso sobre a temática indígena na escola e, dentro dessa proposta, ponderou que não é simples adotar uma abordagem adequada ao estudar os povos indígenas, pois ainda são presentes e fortes os estereótipos que circulam pela sociedade, os quais são construções histórico-sociais. Quando os povos indígenas não se apresentam da forma como são concebidos pelo imaginário social, fica a ideia de que são menos índios do que antes. Paula, então, aponta a necessidade de nos aproximar da realidade atual desses povos e considerá-los como nossos contemporâneos.

Foi um pouco isso que ocorreu durante o I CEI, muitas questões surgiram sobre a infância indígena e muitas foram respondidas, porém outras tantas ficaram sem respostas. Tentamos, nesta entrevista, trazer mais um pouco desse universo tão desconhecido para maioria de nós das cidades, mas um mundo tão encantador por sua diversidade, riqueza e simplicidade, e que não é nada simplista. Desde já, agradecemos à Paula pela disponibilidade e generosidade em nos conceder esta entrevista.

Gostaríamos que você nos contasse sobre sua trajetória acadêmica, especialmente seus estudos e práticas com as comunidades indígenas. Por que essa escolha de pesquisa e trabalho?

Eu me formei em pedagogia pela PUC, São Paulo, e foi durante o curso que conheci o ISA, que é uma organização que atua com populações tradicionais, pensando que essas populações são os principais agentes de conservação da floresta. O Instituto tem como estratégia trabalhar por bacia hidrográfica e, nessa minha trajetória, o meu interesse por essas populações tradicionais se deu porque eu sempre gostei muito de cultura, de cultura popular e arte. Achei que a educação seria o grande guarda-chuva que conseguiria abarcar essas grandes áreas de meu interesse. Na Faculdade de Educação, percebia que existia uma ausência de estudos em relação às populações tradicionais. Eu me lembro que, das culturas estudadas (a africana, afrodescendente e indígena), havia nos PCNs - Parâmetros Curriculares Nacionais - apenas um único tema abrangendo a pluralidade cultural, o que é um espaço muito diminuto dentro da proposta curricular. Já naquela época eu pensava que isso merecia mais espaço dentro da Faculdade. Foi quando conheci o ISA, e fui me interessando mais sobre o tema. Acabei por conseguir uma vaga de estágio nesse Instituto e, assim que me formei, dei continuidade ao trabalho com a formação de professores indígenas no Xingu4. Esse trabalho começou em 2004 e fiquei lá até 2011. Foram quase 10 anos em campo fazendo a formação e o acompanhamento pedagógico dos professores indígenas que atuavam em suas escolas e nas suas aldeias. Foi nessa trajetória que conheci mais de perto o povo Yudja, o povo com o qual me vinculei mais, e também foi aí que passei a me interessar pela infância deles. Eu percebia que a infância Yudja tinha um outro tipo de paradigma com muito mais liberdade e com mais inteireza na vivência dessa infância do que daquela que eu via na cidade. Passei a querer entender os porquês: como era vista tal situação, quais valores permeavam a vivência dessa infância, como eles pensavam. Para mim, era um grande mistério, por exemplo, o que as mães falavam na língua delas com seus filhos e eles, de pronto, atendiam. Eu pensava: o que ela está falando? O que está por trás de tudo isso? E tudo isso foi me despertando uma grande curiosidade. Nesse percurso, enquanto trabalhava no Xingu, eu também tive duas filhas, e esse fato acabou por abrir uma porta de diálogo com essas mulheres indígenas. Foi assim que fui me aprofundando no meu tema de pesquisa que são os cuidados despendidos no crescimento das crianças, os modos de criação dos Yudja e o modo como as crianças aprendem. Para fazer esse estudo - que no dia de hoje deposito minha dissertação5 - acabei indo na fonte tanto da antropologia como da educação. Embora eu tivesse interessada nos processos educativos deles, seria impossível compreendê-los sem o aporte da antropologia. O meu estudo tem afinidade com a antropologia da criança. Essa pesquisa tem um pouco a intenção de contribuir e fazer esse diálogo entre áreas do conhecimento.

Você poderia fazer uma fotografia de como é o Parque do Xingu?

O Parque fica na região norte do Estado do Mato Grosso, fazendo divisa com o Pará6. No Parque habitam 16 etnias e algumas delas, como os Wauja, estão mais na parte sul. São populações que vivem naquela região há centenas de anos. Há registros históricos e arqueológicos que indicam que essa população está há muito tempo ali. Já os povos que estão mais ao norte do Parque, alguns deles chegaram espontaneamente, como foi o caso dos Yudja, que foram migrando da foz do Xingu e indo em direção à cabeceira do rio. Quando o Parque foi demarcado, eles já estavam nessa região. Os Kisêdjê também tiveram nessa mesma situação dos Yudja, eles moravam ali perto. Já os Kaiabi e os Ikpeng foram transferidos para o Parque na época da demarcação. A política que imperava na década de 60, frente às aberturas das estradas que visavam interligar as regiões sul e norte do país, era de passar por cima dos territórios onde eles habitavam. Então foi feita uma política de transferência desses povos para dentro dessa área demarcada, que é o Parque. Alguns povos não se adaptaram, como foi o caso dos Panará, que regressaram ao território tradicional e conseguiram conquistar uma parte de floresta que tinha sobrado, e outros povos continuaram ali, como é o caso dos Kayabi e Ikpeng. É uma diversidade cultural muito grande e tem uma vegetação em transição que está entre o cerrado e a floresta amazônica. É uma região que possui grande diversidade ecológica por conter espécies desses dois biomas7. O Parque tem uma conjuntura um pouco difícil porque as cabeceiras formadoras do Rio Xingu8 estão fora do território, em uma área em que o entorno do Parque é praticamente dominado pela lavoura da soja, tem pecuária também, mas a soja predomina. Então os povos acabam sofrendo com os agrotóxicos das plantações. Hoje em dia eles vivem em constante diálogo com o entorno do Parque para que sejam preservadas as cabeceiras e as matas ciliares dos rios, para garantir alguma sustentabilidade para esse território. Outra questão complexa é a Usina de Belo Monte, que acabou por alterar os fluxos dos peixes e da piracema, por exemplo. Os povos sentem esse impacto e é preciso que eles possam criar ferramentas, tenham entendimento dessa situação e da legislação, para poderem se defender e negociar com seus vizinhos.

Gostaríamos que falasse um pouco sobre a cultura da infância do Xingu, a posição e função das crianças nas comunidades, a relação e as interações entre elas e delas com os adultos, a transmissão cultural.

Eu costumo falar que para fazer uma análise da infância - e isso também me ajudou a entendê-la, com base no olhar da Ângela Nunes9 e seu trabalho com os Xavantes - são importantes as categorias de tempo e espaço. Acho que são categorias muito úteis para visualizar a infância. Foi um pouco por essa trajetória que comecei a minha investigação e a percepção que eu tenho dessa infância, e posso falar mais do povo Yudja e talvez um pouco dos Panará, com os quais tive alguma convivência. De certa forma, o que vou falar aqui acaba por representar aspectos comuns entre eles. Diferente do que a gente vê na cidade, onde existe uma cisão do tempo e espaço vivido por crianças e adultos. Lá (com os povos indígenas) não é assim, a gente vê uma união do tipo de atividade que crianças e adultos fazem. A criança pode vivenciar as atividades ao seu modo, do seu jeito e com a liberdade de participar e também de parar, pois não existe uma obrigatoriedade. Então ela é incluída em todos os afazeres que fazem parte da manutenção da vida. Ela vai para a roça junto com seus pais, ela acompanha a pescaria. Tem muito essa ideia de que é a própria experiência da criança que constitui o conhecimento dela. É através da prática, da interação que ela tem e das possibilidades que lhe são dadas de praticar, que ela vai aprendendo. Tem uma outra característica muito forte - além da participação na rotina, no dia a dia da aldeia -, é a liberdade. A criança, no começo da vida, fica muito na tipoia com a mãe, acompanhando o ambiente doméstico, sobretudo próximo às mulheres. Tem um pouco dessa geografia - nos Yudja e Paraná - da cozinha ser do lado de fora e ali as mulheres passam grande parte do tempo, cozinhando e preparando os alimentos, e a criança fica por ali perto. Elas dormem e acordam sempre ali por perto da mãe e das mulheres, e também das outras crianças que ajudam a cuidar dos bebês. Na medida em que a criança vai crescendo e que começa a andar, ela vai aos poucos ganhando o espaço da aldeia junto com as crianças mais velhas, e cada vez mais vai explorando esses limites. De acordo com a sua capacidade de ação, a criança vai conseguindo acompanhar os demais. Na medida em que ela cresce, ela vai sentido o corpo e vendo se consegue acompanhar esses meninos mais velhos e essas meninas mais velhas. Ela tem essa autopercepção de ir pouco a pouco conquistando esses limites do espaço da aldeia. Para mim, o ápice da imagem da liberdade é quando as crianças pegam a canoa e vão sozinhas para a prainha do outro lado do rio. Elas já conseguem ter esse tipo de vida ativa, de pegar a canoa e de ter confiança. Tem essa ideia de que as crianças são capazes. Existe um olhar dos adultos para elas e para essa capacidade, elas são capazes, elas conseguem. Elas estão sempre observando, participando e isso da para elas uma propriedade de saber, saber o uso das ferramentas. Por exemplo, elas pegam o facão e conseguem abrir uma fruta, elas pegam o arco e a flecha e sabem fazer o uso. Se, por um lado, tem essa liberdade de circulação no espaço, por outro, tem uma confiança na capacidade delas por parte dos adultos.

Quais outras relações e distanciamentos (ou diferenças) você percebe entre a infância vivida por essas crianças indígenas - as Yudja e outras com quem você conviveu - e a infância vivida por algumas crianças com que você se depara e/ou convive nas cidades grandes ou em outras cidades. Sem querer, com essa pergunta, achar que a criança indígena faz parte de um bloco homogêneo e também que as crianças não indígenas fazem parte de outro bloco homogêneo. Você percebe igualdades e distanciamentos na forma como essas crianças vivem suas infâncias?

Acho que essa questão da infância e dos estudos sobre a infância ficam muito dentro desse lugar: entre a universalidade e a diversidade de situações culturais, sociais, econômicas. Um aspecto que eu acho que é comum a todas as infâncias, que parte da vida humana mesmo, é o brincar. Esse modo de expressão genuíno das crianças tem a ver com o modo como elas apreendem o mundo, o modo como elas se manifestam através do seu imaginário, a sua própria relação com as coisas e com as pessoas, a forma como elas vão lendo o mundo. Eu gosto muito da etimologia da palavra brincar, ela em latim vem da palavra “brinco”, que quer dizer vínculo. Essa ideia faz muito sentido para mim: a criança vai se vinculando ao mundo por meio da brincadeira. Ela vai brincando com o corpo da mãe desde o início, ela se vincula à mãe, aos objetos. E essa é a maneira como ela vai se vinculando ao próprio mundo. Eu acho que isso é algo essencial da infância. É muito difícil ter uma criança, em qualquer cultura, em qualquer situação, que não brinque. Agora, olhando para os aspectos da diversidade, existem algumas diferenças entre povos indígenas e, de toda forma, acho que também existem para aqueles que vivem na aldeia, que têm seu território demarcado e que têm essa possibilidade de vida, de expressão do seu modo de vida mais autêntico. Eu vejo essas diferenças no jeito que a gente vivencia a infância. Como a gente tem vivenciado a infância na cidade? Já que eu falei como vejo a infância na aldeia. Acho que na cidade há uma cisão do tempo e do espaço vivenciado pelo adulto e pela criança que trouxe muitas consequências. Uma delas é a própria escola. A escola é o espaço, por excelência, onde deixamos nossas crianças. Delegamos para outros adultos essa tarefa de educar. Lá na aldeia indígena essa tarefa de ensinar, de mostrar para a criança como faz tal coisa para que ela se prepare para viver no mundo é dos próprios pais, dos parentes e das pessoas que estão mais próximas. Por outro lado, a gente, nós adultos, estamos inseridos em um mundo de trabalho que nos tira de casa. E esse sair de casa, estar fora de casa faz com que a gente tenha que ocupar o tempo da criança com outras atividades, e também quando ela volta da escola. Lá no Instituto Alana, a gente costuma falar das crianças emparedadas. Hoje em dia, a maioria das crianças, ainda mais com o crescimento da violência em centros urbanos, passa a maior parte do tempo em espaços fechados e com atividades dirigidas. Quando você sai do âmbito das cidades maiores para as cidades menores, você vê a situação mudar um pouquinho. A criança tem mais liberdade na rua. A rua e a praça são espaços ainda de convivência. E essa relação de cuidado você vai vendo que vai mudando. No mundo dos indígenas o cuidado passa por outras vias, tanto na inclusão quanto na proteção espiritual. Já nas crianças não indígenas, em crianças da cidade, a gente vê se constituindo uma certa noção de cuidado que é bem assim: “eu vou formar bem meu filho, vou protegê-lo, vou deixá-lo em segurança. Vou protegê-lo de um certo mundo hostil que é vida urbana pública”. Eu vejo essas diferenças.

Você fala desse espaço que foi constituído para educar a criança, um lugar instituído como o espaço da transmissão, que é a escola. Entrando nesse tema, há uma escola dentro do Parque que serve à comunidade Yudja?

Sim.

Como é essa escola? Como ela se situa em relação à paisagem natural e cultural dessa comunidade?

A escola do povo Yudja é uma escola de caráter bastante participativo. Tem bastante participação das pessoas mais velhas, dos pais das crianças e dos próprios alunos. Tem assembleias - duas vezes por ano - e lá eles decidem os rumos da escola e, nesse sentido, como tradicionalmente é lá na aldeia, são as pessoas mais velhas que vão opinar o que deve ser ensinado, o que deve acontecer, e vão pensar juntos com a escola. O nome da escola na aldeia onde eu faço os trabalhos mais de perto se chama Kamadu. Kamadu, para eles, é uma grande cuia onde tomam o caxiri, que é a bebida fermentada da mandioca. Ela é uma cuia usada nos dias de festas ou quando eles recebem visitas. E essa cuia é oferecida para as visitas para compartilhar a bebida entre todos. Então, eles fazem uma alusão a essa imagem com a própria escola. Eles dizem que a escola deve ter um pouco desses atributos de Kamadu, ela deve ser partilhada com todos, ela deve ser atraente para que as crianças queiram aprender, tenham vontade de aprender. E diferentemente do ensino que é feito em casa, eles veem o ensino na escola como algo para ser feito de forma coletiva. Eles enxergam na escola o lugar do encontro e do aprender. Essa é a ideia geral que está por trás da escola que querem formar. Mas, entre a idealização e a própria realidade, acho que fica um buraco, um abismo quase. Porque as Secretarias de Educação - embora a educação indígena tenha um respaldo de legislação para poder funcionar de um modo diferenciado, e isso significa poder alterar o currículo e o calendário escolar para atender ao ritmo e às necessidades de cada povo indígena - não têm mecanismos regulatórios que garantam essa possibilidade que a legislação oferece. Como são as escolas? Existe um Censo Escolar que vai determinar os repasses de verbas para cada escola. E esse Censo é feito numa época determinada. É preciso que a escola diga ao final de cada ano letivo se as crianças foram aprovadas ou não. A escola indígena já é amarrada a um sistema maior, nacional, ao qual eles têm que se enquadrar. Então, de fato, esses povos têm poucas brechas para o funcionamento diferenciado da escola indígena, como propõe a Resolução 03/99, que leve em conta um currículo e um calendário referente às atividades econômicas e culturais de cada povo. Às vezes, há Secretarias de Educação que que querem ajudar as escolas indígenas a funcionarem de modo diferenciado, que se encantam com a forma como eles veem a escola, mas que sofrem muitas dificuldades de regularizar a situação, de fazer a escola funcionar, de fato, de uma maneira diferenciada como a lei propõe. Então tem essa dificuldade ainda. No movimento indígena existe uma grande vontade de que as escolas indígenas tenham um sistema próprio, inspirado no modelo de saúde indígena, que funciona em um modelo distrital por território indígena, o que é mais condizente com a organização social dos povos indígenas do que a divisão municipal e estadual que, muitas vezes, incide sobre um mesmo território indígena. Esse modelo conseguiu avançar alguns passos na criação de um sistema próprio, porque não da para entender os territórios indígenas dentro de um munícipio só, ou de um estado. Às vezes, os territórios indígenas pegam três municípios, pegam dois estados, ficam nas fronteiras. Então é necessário ter um olhar mais para o território, e não tanto em função dessa gerência municipal ou estadual, como a nossa sociedade se organiza.

Ainda sobre a escola, quando e como é a ida das crianças indígenas, essas que você acompanhou, para escola? Quais seriam os encontros e desencontros que acontecem entre essas crianças e a instituição escolar: o que elas valorizam na escola? O que elas também têm dificuldade de ver naquela instituição escolar?

Uma grande pergunta que a gente faz, que nos acompanhou e que provocou muitas reflexões durante esse tempo de trabalho é se a criança precisa estar na escola ou não. Existe cada vez mais uma pressão para que a criança esteja na escola. Primeiro, a obrigatoriedade a partir dos seis anos. Agora, essa negociação pela obrigatoriedade desde os quatro anos. O que acaba sendo uma diminuição do tempo que essa criança tem para vivenciar aquelas atividades que estava descrevendo junto aos seus familiares, que são essenciais para sua formação. Então, a escola acaba ocupando um espaço, um tempo grande no dia a dia dessas crianças. A escola começa realmente a ser uma necessidade a partir do momento que aquela criança já cresceu um pouco e ela tem mais trânsito, quando ela começa a transitar mais, vai para outra aldeia, vai para a cidade, tem uma necessidade maior de comunicação. Aí o português é uma ferramenta essencial para ela se comunicar. Então, eu entendo que é preciso antes a leitura de como a criança vive para depois avaliar a necessidade de ela entrar ou não na escola. Se ela entrar na escola, é necessário avaliar se ela deve aprender o português já de cara ou não. É necessário se perguntar: é importante primeiro que seja fortalecida a língua indígena e que depois entre o ensino do português? Os conteúdos da escola dialogam com a realidade daquela criança? Eu vejo acontecer isso direto: chegam livros da cidade, os professores usam livros da cidade e tem lá um problema matemático falando de um trem, por exemplo, “tinham X pessoas no trem, saíram Y, quantas pessoas ficaram no trem?”. Para crianças que nunca viram um trem, qual sentido faz um problema como esse? Então é um descompasso muito grande. Acho que o importante mesmo é ter essa leitura e se perguntar: o que essa criança precisa? Ela vai usar isso? Ela está entendendo isso? É muito importante que a escola, para acolher aquela infância, esteja muito pautada na realidade que as crianças vivem. Isso, de um modo geral, com todas as crianças. Mas lá na aldeia esse fosso acaba sendo maior porque são realidades muito distintas. Os materiais que chegam lá geralmente são materiais da cidade. No tempo que o ISA atuou lá, fez materiais mais contextualizados. Mas, hoje em dia, o que eles recebem são aqueles materiais fora de contexto enviados pelas Secretarias. Esse é um lugar perigoso porque a escola tende a ocupar um tempo da criança que é essencial para formação dela. Na medida em que ela entra mais tarde, a escola começa a fazer sentido, funcionando mesmo como uma ferramenta para ela se comunicar melhor, para ela se relacionar melhor, principalmente com o mundo externo.

Você acaba de colocar as dificuldades da escola ao entrar em contato com as crianças e das crianças ao entrar em contato com a escola. Contou também que trabalhou na formação de professores indígenas. Gostaríamos de saber sobre essa experiência, sobre os desafios enfrentados na hora pensar e atuar nessa formação, na construção do material didático, de ter que enfrentar o desenvolvimento de um projeto pedagógico em uma escola indígena.

Vou falar a partir da experiência que eu tive no ISA. O ISA oferecia um curso de formação de professores indígenas, que foi coordenado por Maria Cristina Troncarelli e que funcionava em locais centrais ali no Xingu. Ele reunia professores provenientes de dezesseis etnias que participavam de dois módulos anuais, entremeados por acompanhamento pedagógico. Esse acompanhamento implicava que uma equipe fosse até a aldeia para ver como esse professor estava atuando na prática. Um dos desafios principais foi, precisamente, a formação em serviço. A escola no Xingu é relativamente recente. Chegou na década de 90. Por esse motivo, teve gente que chegou ao curso sem saber nem ler nem escrever, e o ISA teve que enfrentar a grande tarefa de alfabetizar os professores (em português) que seriam alfabetizadores. O processo foi desde a alfabetização até a formação dele como professor. O princípio norteador nesse processo foi o diálogo intercultural. A gente tinha uma equipe de consultores, de professores especialistas na área de matemática, língua, geografia, história, etc. que compunham os módulos do curso, partindo desse princípio. Quando se ia apresentar, por exemplo, um conteúdo de matemática, primeiro a gente tentava compreender como esse conteúdo era entendido nas diversas etnias. Se vai falar sobre grandezas e medidas, é claro que os povos indígenas também têm suas noções de grandezas e medidas. Como eles medem para fazer uma casa? Como eles pensam a altura que ela deve ter? Como que eles pensam o equilíbrio? Tudo isso está atravessado pelo conhecimento das noções de grandeza e medida embasado na experiência, em uma prática que dá um suporte para esses saberes que estão muito consolidados nas aldeias. O primeiro movimento, então, era cultivar esse olhar um pouco pesquisador de compreender esses entendimentos geográficos, históricos, etc.; compreender como é, para eles, a história da formação do mundo, do universo, da humanidade, os itinerários nos territórios. A partir desse levantamento, era possível colocar o modo como nossa sociedade entende esses conhecimentos. Era nesse diálogo que se chegava na produção de materiais. Organizados por módulos temáticos, os especialistas produziam textos e faziam desenhos sobre o entendimento dos povos indígenas a partir dessa discussão intercultural. E, com base nessa produção, se sistematizavam os materiais didáticos. O desafio de fazer um livro era poder tratar o conhecimento indígena de uma forma respeitosa, em pé de igualdade e legitimidade com o conhecimento ocidental. O esforço era por não cair na armadilha de uma supremacia do conhecimento científico e de certa desvalorização dos conhecimentos que vêm mais da prática, o que impera tradicionalmente nas escolas.

Essa forma de trabalho conseguiu chegar, efetivamente, nas escolas?

Nem tudo chega às escolas, mas acho que alguma noção fica. Quando eles vão estudar, eles chamam uma pessoa mais velha para contar uma história e para entender melhor como é, mas existe esse contraponto com o modo em que tradicionalmente a escola trata o conhecimento. Hoje em dia, a formação dos professores de lá, como a de qualquer lugar, está a cargo da Secretaria de Educação. Isso mudou muito os princípios de trabalho dos professores atuantes. Ainda tem os professores que a gente formou, que convivem com as novas gerações de professores que foram formadas pela Secretaria. Sem uma formação adequada é muito difícil de acontecer esse diálogo intercultural. Sem esse apoio acaba que o professor pega lá o livro de matemática falando de trem para quem nunca viu um trem. Assim, a escola acaba trabalhando de forma reprodutora e todo esse princípio intercultural vai se perdendo. Isso acaba produzindo uma tensão que está muito presente nas escolas: entre o que a Secretaria de Educação propõe, o que a Secretaria oferece, o que a comunidade pede e o que os professores têm capacidade de fazer. É complexo.

Agora sobre o curta metragem Waapa que você co-dirigiu junto a Renata Meirelles e David Reeks. O documentário mostra o brincar do povo Yudja, que habita as margens do rio Xingu e, a partir desse brincar, apresenta uma certa influência de uma dimensão espiritual com a natureza que envolve a infância desse povo. Poderia nos contar como surgiu a ideia ou a necessidade de fazê-lo? Como se deu a proposta à comunidade? Vieram dela algumas sugestões? Como foi o processo de idealização, organização e realização do filme?

Em realidade, a ideia não saiu de mim. O processo foi inverso. Minha pesquisa de mestrado foi uma pesquisa participativa realizada no Parque do Xingu. Eu queria saber como as crianças aprendem. E os Yudja foram me mostrando o que devia observar: “Olha isso!” “Olha! Esses remédios aqui são importantes”. Em função desse olhar, fui definindo meu trabalho. Sobre o Waapa, me mostraram a importância que tinha essa dimensão dos remédios para eles, me disseram que queriam fazer um filme sobre isso. Partiu deles essa demanda: “A gente quer registrar esses conhecimentos”. “É muito importante esses rituais no crescimento das crianças”. “A gente acha que as crianças não estão fazendo como se fazia antigamente”. Foi a partir dessa demanda deles que eu saí da aldeia e dessa pesquisa de campo, em 2015, para começar uma conversa com Renata Meirelles e David Reeks do projeto Território do Brincar. A pesquisa deles sobre o brincar e sobre a infância tinha muita afinidade com a proposta do filme. Não havia parceiros melhores para fazer isso. Foi assim que nasceu a ideia. Renata e David conseguiram os recursos para fazer o filme com apoio do Instituto Alana e da produtora Maria Farinha. Depois a gente fez uma parte de negociação juntos com os Yudja sobre os termos em que ia ser realizado esse filme: seria um filme gratuito, sem fins lucrativos. Isso foi acordado com eles. E incluímos no processo também uma oficina de áudio visual para jovens indígenas, coordenada por David, como contrapartida para a comunidade. Dois dos jovens que participaram da oficina e que tinham um pouco mais de experiência com câmera trabalharam como assistentes para fazer o filme. Com respeito ao roteiro, a gente divide o argumento com Yabaiwa Juruna. Ele nos ajudou muito. Conduziu muito do que a gente filmou. Ele é parte da idealização. De qualquer jeito, a realização do filme, o tempo todo foi muito dialogada com toda a comunidade, seja explicando seja convidando a participar. A gente fez algumas sugestões da articulação do que foi filmado, mas muito partiu deles. Eles estavam realmente muito interessados no processo.

Como foi o papel das crianças nesse processo? Elas também tiveram intervenção na construção do argumento?

As crianças estavam presentes nas reuniões com a comunidade. Os adultos contavam para elas o que ia acontecer. Mas o modo indígena da participação da criança é diferente daquilo que a gente entende. Não tem isso de levantar a mão e a criança dizer “eu acho que tem que ser assim”. Eles não falam em público. É uma regra social. Dentro dos valores deles o desafio é muito mais ouvir do que falar. Então, a participação aconteceu de outra maneira. De repente, as crianças apareciam com uma brincadeira, apareciam em nossa frente com uma perna de pau. A gente chamava a comunidade e as crianças sempre estavam junto com os adultos, com os pais que falavam para elas. A gente comentava, por exemplo, que estava pensando em filmar na praia e no outro dia a criançada aparecia às cinco horas da manhã brincando na praia. Foi uma participação mais espontânea. Nossa negociação foi mais com os adultos, mas nossa interação foi com as crianças.

Você disse que o desafio dessa comunidade é mais escutar do que falar. Como fizeram para escolher a voz do narrador do documentário? Como construíram esse lugar da fala que guia o argumento do filme?

Isso foi acontecendo de maneira espontânea e teve a ver com o modo de organização social dos próprios Yudjas. Eles têm uma figura social que é a figura do “dono”, que se chama iua. Aquela pessoa que está se responsabilizando, que está tocando um processo, é “dona” daquilo. Isso vai desde um nível maior, como o de ser o “dono” da aldeia, que é o cacique, até o nível das coisas menores, como é o caso de quem faz um mutirão para abertura de sua roça e chama todo mundo para lhe ajudar. Ele é o dono daquela atividade. Ele vai coordenar a atividade do início ao fim. Quando acaba, qualquer outra pessoa pode virar “dono” de uma atividade, caso queira também organizar um mutirão para abertura de sua roça, ou para fazer uma caçada, pescaria, festa, enfim, qualquer atividade que uma pessoa queira puxar. Há uma transitoriedade na figura do “dono”. Então o Yabaiwa logo assumiu essa figura de dono no processo da filmagem e foi nosso grande parceiro. O Yabaiwa, por ser um professor indígena, tem a possibilidade de ser um interlocutor muito forte. Ele manifestou a ideia de fazer um filme. A partir desse momento, ele virou o “dono”. Depois foi acontecendo tudo de maneira natural. Ele foi nos orientando. A gente fez as entrevistas com ele, com o cacique e com outras pessoas. Mas ele foi guiando todo o processo. Foi muito natural que fosse o “dono”.

Foi uma grande aposta pensar em fazer um filme. Em um sentido mais geral, que possibilidade você vê no cinema para desvendar o olhar da infância dentro desse povo e, ao mesmo tempo, o olhar para a infância de parte daqueles que assistem ao filme e não foram parte de sua construção.

Acredito que esse recurso do filme e do audiovisual tem a potência de ir para além da fala. A imagem diz muito mais do que a gente consegue dizer com a fala. De certa forma, tem a capacidade de criar empatia entre as crianças. Ao observar, a criança pode perceber como essas outras crianças são diferentes e, ao mesmo tempo, iguais a ela. Ela pode se ver ali, naquela vontade de brincar. Acho que o cinema tem uma força capaz de aproximar, até de desconstruir estereótipos de uma maneira mais potente do que quando a gente apenas fala, escreve ou estuda. A gente acredita que o filme pode ser um material de entrada nas escolas para que as crianças conheçam, para despertar sua curiosidade sobre a questão das diferenças e das semelhanças. O recurso audiovisual tem a capacidade de aproximar realidades.

Entrevista de Beatriz Fabiana Olarieta, Conceição Firmina Seixas Silva, Lisandra Ogg Gomes com Paula Mendonça de Menezes

1Direção de Renata Meirelles, David Reeks e Paula Mendonça; co-realização do Instituto Alana e Território do Brincar; produção da Maria Farinha Filmes, 2017.

22Segundo consta em seu site, o ISA “[…] é uma organização da sociedade civil brasileira, sem fins lucrativos, fundada em 1994, para propor soluções de forma integrada as questões sociais e ambientais com foco central na defesa de bens e direitos sociais, coletivos e difusos relativos ao meio ambiente, ao patrimônio cultural, aos direitos humanos e dos povos”. Cf.: https://www.socioambiental.org/pt-br

3Um projeto de registros da cultura da infância pelo Brasil, desenvolvido por Renata Meirelles e David Reeks. Cf.: http://territoriodobrincar.com.br

4O Parque Nacional Indígena do Xingu foi idealizado pelos irmãos Villas Bôas e regulamentado pelo Decreto nº. 51.084, de 31 de julho de 1961, no governo de Jânio Quadros.

5Título da dissertação: A cultura das crianças Yudja.

6Segundo dados do programa Povos Indígenas do Brasil, do Instituto Socioambiental, o Parque ocupa uma área de 2.642.003 hectares na parte sul amazônica brasileira. Cf. https://pib.socioambiental.org/pt/povo/xingu/1539

7É uma região de transição ecológica, que contém savanas e florestas semideciduais, floresta ombrófila amazônica, cerrados, campos, florestas de várzea, florestas de terra firme e florestas em Terras Pretas Arqueológicas. Cf. https://pib.socioambiental.org/pt/povo/xingu/1539

8O Parque abriga a cabeceira do Rio Xingu, composta por uma bacia drenada pelos rios Von den Stein, Jatobá, Ronuro, Batovi, Kurisevo e Kuluene. Cf.: https://pib.socioambiental.org/pt/povo/xingu/1539

9Antropóloga com investigações que focalizam as crianças das sociedades indígenas brasileiras.

REFERÊNCIA:

MENEZES, Paula Mendonça de. Projeto Pós-graduandos na Escola. Temática indígena na escola. Faculdade de Educação. Universidade de São Paulo, 2016. [ Links ]

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