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Revista Teias

versão impressa ISSN 1518-5370versão On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.19 no.53 Rio de Janeiro abr./jun 2018  Epub 19-Fev-2020

https://doi.org/10.12957/teias.2018.34148 

Imagens e sons para além das escolas

COMPREENDENDO A CULTURA SURDA POR MEIO DA IMAGEM: A arte surda em questão

UNDERSTANDING THE DEAF CULTURE THROUGH THE IMAGE: THE DEAFED ART IN QUESTION

COMPRENDANDO LA CULTURA SURDA POR MEDIO DE LA IMAGEN: EL ARTE SURDA EN CUESTIÓN

Mayara B. Raugust1 

1Doutoranda em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora do quadro efetivo da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL). Tem experiência na área de Tradução Interpretação em Libras/Língua Portuguesa com ênfase em vídeo conferências, eventos, concursos, etc., e na área de Educação de Surdos atuando principalmente nos seguintes temas: ensino da Libras como L2, subjetividades surdas, e arte surda. E-mail: maybataglin@hotmail.com


RESUMO

O artigo pretende problematizar diferentes formas de constituir a cultura surda para além dos locais institucionalizados, por meio de um dos artefatos que a compõem: a arte surda. Esta, compreendida como dispositivo pedagógico produtor de novas formas de conceber a cultura surda. Para tanto, a pesquisa contou com entrevista presencial de três artistas surdos de diferentes regiões brasileiras, a fim de investigar as formas de produzir a cultura surda por meio de sua arte. O referencial teórico da pesquisa é composto pelo conceito de dispositivo, (FOUCAULT, 1979), de cultura (HALL, 1997); e de cultura surda (GOMES, 2011). Conclui-se que a cultura surda foi e é significada pelos artistas surdos de diferentes formas, pois casa um a compreende e a expressa de formas particulares.

Palavras-chave: Cultura Surda; Arte Surda; Dispositivo

ABSTRACT

The article intends to problematize different forms of constituting the deaf culture beyond the institutionalized places, through one of the artifacts that compose it: deaf art. This, understood as pedagogical device producing new ways of conceiving the deaf culture. For that, the research had a face-to-face interview of three deaf artists from different Brazilian regions, in order to investigate the ways of producing the deaf culture through their art. The theoretical reference of the research is composed by the concept of device, (FOUCAULT, 1979), of culture (HALL, 1997); and deaf culture (Gomes, 2011). It is concluded that the deaf culture was and is signified by the deaf artists of different forms, because a house understands and expresses it of particular forms.

Keywords: Deaf Culture; Deaf Art; Device

RESUMEN

El artículo pretende problematizar diferentes formas de constituir la cultura sorda más allá de los locales institucionalizados, por medio de uno de los artefactos que la componen: el arte sordo. Esta, comprendida como dispositivo pedagógico productor de nuevas formas de concebir la cultura sorda. Para ello, la investigación contó con una entrevista presencial de tres artistas sordos de diferentes regiones brasileñas, a fin de investigar las formas de producir la cultura sorda por medio de su arte. El referencial teórico de la investigación está compuesto por el concepto de dispositivo, (FOUCAULT, 1979), de cultura (HALL, 1997); y de cultura sorda (GOMES, 2011). Se concluye que la cultura sorda fue y es significada por los artistas sordos de diferentes formas, pues casa uno la comprende y la expresa de formas particulares.

Palavras-chave: Arte; Dispositivo; Procesos de Subjetivación

1. INTRODUÇÃO

A surdez, como afirma Lopes (2007), é uma “grande invenção”. Com isso, não se está afirmando que não há uma materialidade no corpo de quem não escuta, mas que ela é “construção de um olhar sobre aquele que não ouve” (LOPES, 2007, p. 7). Ou seja, a surdez para além de uma marca efetivada num corpo, é constituída culturalmente a partir de diferentes narrativas, as quais vão delineando o corpo surdo. Estas narrativas produzem-se no interior de certos campos discursivos, sejam eles, clínicos, religiosos, históricos, educacionais, jurídicos, familiares, etc. Partindo do pressuposto de que a surdez é uma invenção discursiva, este texto busca problematizar as formas de compreender a cultura surda, para além da escola ou da associação de surdos - duas instâncias que, em seu cotidiano, ensinam e vivenciam a cultura surda - por meio da arte produzida por artistas surdos.

A partir disso, busca-se trazer alguns delineamentos de como cultura surda é compreendida por artistas surdos e empreendida em suas produções artísticas, como um dispositivo pedagógico, de modo a serem consumidas pela comunidade surda, constituindo estes sujeitos. Nesse sentido, compreende-se aqui que o sujeito surdo é um sujeito constituído histórica e culturalmente, produto e produtor de si mesmo. Por isso, não há mais como perguntar o que é o sujeito e sim como esse sujeito é constituído. A partir dessa concepção de sujeito, o objetivo do texto é problematizar como a cultura surda tem sido consumida pelos surdos em outros espaços e, a partir de outros dispositivos que não mais os tradicionais e institucionalizados como a escola e a associação de surdos, mas doravante a relação dos surdos com o “dispositivo pedagógico2 da arte”3.

Para que essa proposta de pesquisa seja delineada, é preciso estabelecer alguns questionamentos principais a fim de não os responder de imediato, mas problematizá-los, colocá-los em funcionamento. Destacam-se duas perguntas propulsoras para a pesquisa: Quais percursos são propostos para os surdos conhecerem a cultura surda, que não os tradicionais e físicos? Quais as estratégias ou, quais os dispositivos pedagógicos são possíveis de serem experienciados pelos surdos, a fim de que conheçam e se identifiquem com a cultura surda? Esses questionamentos permitiram o encontro com os sujeitos da pesquisa, os artistas surdos4, bem como com os conceitos que foram, ao longo da pesquisa, tornando-se cada vez mais centrais para pensar a constituição da cultura surda atrelada à arte.

2.CONCEITOS DELINEADORES DA PESQUISA

Para problematizar as formas de conceber a cultura surda a partir do contato com as imagens artísticas produzidas por artistas surdos, apresentam-se para as discussões a seguir três conceitos que, durante o desenvolvimento da pesquisa, adquiriram tamanha centralidade: o conceito de cultura, o conceito de cultura surda e o conceito e dispositivo.

Primeiramente, tratemos do conceito de cultura que este texto assume. Isso porque o termo “cultura” admite muitos conceitos, dependendo do que cada um entende como cultura. Cultura, neste texto, é entendida como produtora de significados que a legitimam, construindo identidades; também, nas suas relações de poder/saber, ela é produzida discursivamente, constituindo verdades a respeito dos sujeitos que dela participam. Como afirma Hall (1997, p. 2), “a cultura tem assumido uma função de importância sem igual no que diz respeito à organização da sociedade tardia”, o que a torna cada vez mais central na constituição dos modos de ser sujeito. Ela vem se fazendo presente em todos os aspectos da vida social dos sujeitos. Veiga-Neto (2000, p. 40) diz que “a cultura está imbricada indissoluvelmente com relações de poder, deriva dessas relações de poder a significação que é relevante culturalmente para cada grupo”.

A cultura, portanto, configura-se para além de gostos, ritos, crenças. Ela é constituída num emaranhado discursivo que, mediante a linguagem, significa e produz sujeitos por meio das relações de poder/saber. Esse emaranhado discursivo “toma sentido de verdade em uma constante disputa pela significação” (PINHEIRO, 2012, p. 14), em que o “outro é inventado, constituído e, portanto, significado” (Idem). Nesse processo de significação, a linguagem adquire importância assim como a cultura, pois “estamos sempre e irremediavelmente mergulhados na linguagem e numa cultura, de modo que aquilo que dizemos sobre elas não está jamais isento delas mesmas” (VEIGA-NETO, 2003, p. 14).

Também, no interior das culturas ocorrem mudanças de significados, evidenciando que ali há vários significados em jogo, cada um buscando legitimar-se e impor-se em relação aos outros. Esses significados, ao exercerem um poder, legitimam comportamentos, modos de agir, moldam e transformam sujeitos e grupos sociais. Sendo constituída por significados e identidades, os sujeitos que dela participam partilham um processo social e histórico, um modo de ser e estar no mundo.

Os surdos, nos últimos anos, têm se movimentado e lutado pelo reconhecimento de uma cultura surda, afirmando que esta é fator determinante para sua constituição como sujeitos. Nesse sentido, definir apenas um conceito para cultura surda é um tanto arriscado, pois como afirma Gomes (2011, p. 26) “a cultura surda constitui-se em uma recorrência discursiva em diferentes espaços e vem sendo tão frequente que este tema tem sido naturalizado ao invés de problematizado, a ponto de, em alguns momentos, engessar-se e produzir uma escrita fixa sobre o sujeito”.

Podemos perceber, portanto, que não há uma essência da cultura surda, mas há uma relação de forças discursivas que, a todo o momento estão lutando para imporem-se umas sobre as outras, seus significados. Apesar disso, alguns discursos são recorrentes entre os surdos e vários pesquisadores da área de educação de surdos como, por exemplo, de que a cultura surda se justifica por meio de um purismo cultural e “se apropria de enunciados discursivos como estratégias política, funcionando como um conceito fechado e fixo engendrando práticas pedagógicas, constituindo e significando o ser surdo” (GOMES, 2011, p. 12-13)

O termo cultura surda emerge como força discursiva nos mais diferentes lugares, e os discursos sobre ela se constituem por meio do saber dos sujeitos surdos, saberes locais, saberes produzidos pelos próprios surdos. Esses saberes são constituídos e legitimados, tomando um status de verdade no cotidiano dos sujeitos. Dentre as verdades constituídas discursivamente pelos surdos referimo-nos a algumas: que a cultura surda sempre existiu, como uma essência do sujeito; que a cultura surda é algo inato do sujeito, que ao descobri-la em si, encontra seu “verdadeiro eu”, como um fator biológico do sujeito; que a cultura surda é uma condição de ser surdo, etc.

Os discursos trazidos acima constituem-se como saberes, estes postos em movimento cotidianamente, sendo constantemente (re)negociados. Esses saberes sobre a cultura surda promovem a subjetividade de muitos surdos por meio dos discursos produzidos e legitimados sobre essa cultura, moldando as formas de constituir o sujeito. Dessa forma, a cultura surda é compreendida como algo que se constitui nos processos de significação, e “não são os sujeitos surdos que carregam a cultura surda, são os discursos que produzem tais representações, ou seja, existem tantas realidades quantas o nosso discurso pode inventar” (PINHEIRO, 2012, p. 61).

A partir do exposto acima, podemos inferir alguns discursos sobre a cultura surda que neste momento, se aproximam das intenções da pesquisa aqui produzida, bem como da prática que será analisada. Dentre os diversos discursos, as autoras Karnopp, Klein e Lunardi-Lazzarin (2011, p. 18) afirmam que a cultura surda “constitui os surdos como um grupo cultural, capaz de produzir significados a partir de suas experiências compartilhadas”. Com base na citação acima, não se busca aqui trazer uma concepção superficial de cultura, mas problematiza-la por meio dos discursos que os próprios surdos produzem sobre ela, discursos esses produzidos e expressos por meio das imagens que os artistas surdos entrevistados criam por meio de sua arte.

Por isso, não há como estancar um conceito único para a cultura surda, pois em cada imagem, em cada narrativa dos surdos entrevistados, ela se produz de formas diferentes, admitindo diversos conceitos dependendo do que cada sujeito produz a respeito dela. Vale ressaltar, que os diferentes discursos que têm sido produzidos sobre a cultura surda, vêm se constituindo e se legitimando há bastante tempo pela comunidade surda de diferentes maneiras e em diferentes lugares, e se apropriando de determinadas práticas, entendidas como práticas culturais surdas. Essas práticas são constituídas nas relações de poder/saber, instituindo novas formas de técnicas, de estratégias de negociação e de controle da cultura surda.

Entre essas estratégias e técnicas que os sujeitos surdos utilizam para produzir, fazer circular e tornar a cultura surda um artefato de consumo, destaca-se o dispositivo pedagógico da “arte”5. O termo dispositivo aqui é proposto a partir de uma concepção foucaultiana, e a forma de arte que este texto se propõe a problematizar como um dispositivo é a arte produzida por artistas surdos. O dispositivo, aqui, é compreendido a partir das discussões que a autora Dalla Zen (2011) propõe-se a fazer, compreendendo a arte como um dispositivo pedagógico. Partindo das discussões que a autora traz sobre o dispositivo pedagógico da arte numa perspectiva foucaultiana do conceito, utilizando-se também de outros autores6 que se filiam a essas discussões, busca-se estabelecer outra relação possível com esse dispositivo, o qual compreende um modo de conceber a cultura surda e fazê-la circular por meio da arte.

O conceito de dispositivo empreendido por Foucault, em meados da década de 1970, passou a ser utilizado por muitas pesquisas e trabalhos em sua composição como ferramenta analítica. O que Foucault fez foi reimprimir um sentido outro para tal conceito, permitindo assim a ele uma complexidade e dinâmica multilinear, sendo reapropriado por diversos autores. A autora Dalla Zen (2011) tomou os sentidos do dispositivo pensando-o como pedagógico por meio da arte, trazendo em suas discussões a relação que Foucault estabeleceu entre o dispositivo e a épistémè, sendo esta, “um dispositivo especificamente discursivo”, e aquele “ discursivo e não discursivo, sendo seus elementos muito mais heterogêneos” (FOUCAULT, 1999, p. 246).

Dessa relação entre o conceito de dispositivo e de épistémé em Foucault, Dalla Zen empreendeu em sua pesquisa “como o dispositivo pedagógico da arte “ensina-nos” modos de nos relacionarmos com as artes visuais hoje” (DALLA ZEN, 2011, p. 14). Como material investigativo, a autora utilizou-se dos materiais de arte produzidos por instituições culturais, ofertados a alunos e professores. Ela fez uso desses materiais em sua pesquisa, a fim de “identificar quais regularidades discursivas permitem separar o verdadeiro do falso no que tange à relação entre o público e a arte” (DALLA ZEN, 2011, p. 19). Essa relação, atualmente, não compreende mais uma relação privada, exclusiva de determinada camada social privilegiada, produto de um discurso tão presente e tido como verdade em nossa sociedade até pouco tempo. No caso acima, pode-se fazer uma relação com a épistémè trazida por Foucault, sendo a mesma concebida como o “conjunto de saberes de uma determinada época, que fazem com que determinados discursos adquiram, ou não, status de verdade” (Idem).

A épistémè, conforme proposta por Foucault, diz respeito ao campo do saber que permite que determinados dispositivos existam e tornem-se emergentes a partir da relação com determinados discursos que esse campo permite e demarca. O dispositivo, portanto, estará sempre relacionado com uma ou mais formas de saber que dele se produzem e o condicionam. Assim, o dispositivo, “muito antes de sobrepor-se à ideia de épistémè, introduz elementos que ajudarão na compreensão de novas racionalidades” (DALLA ZEN, 2011, p. 20).

O conceito de dispositivo é constituído por Foucault como

Uma rede tecida por um conjunto heterogêneo de discursos, instituições, formas arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas; a natureza da relação que pode existir entre esse conjunto de elementos heterogêneos; o tipo de formação resultante da relação entre esses elementos, em um determinado momento histórico (1999, p. 20).

Assim conceituado, ele estabelece-se como um conjunto de práticas e ferramentas, estratégias linguísticas, não linguísticas, jurídicas e técnicas que se relacionam ao mesmo tempo com o objetivo de produzir efeito sobre algo/alguém. Ele configura-se como uma “máquina que governa” por meio de suas práticas e ferramentas, possuindo em si uma relação de forças, uma produção de saberes, estando saber e poder relacionados. O dispositivo está sempre inserido nessas relações de poder e nos inscritos do saber.

No interior dessas relações de poder e inscritos do saber, o dispositivo busca produzir, cuidar, controlar e orientar as relações do sujeito consigo mesmo, com as coisas a sua volta, bem como com as suas ações. Dessa forma, constitui-se um conceito multilinear que possui três dimensões ou níveis: saber, poder e subjetivação. O dispositivo, portanto, torna evidentes os elementos que o constituem, fazendo relação entre eles, constituindo um espaço em que as três dimensões se relacionam. Essas três dimensões do dispositivo estão emaranhas e operam conjuntamente, não havendo no interior do dispositivo um lugar harmônico e calmo, mas um espaço de constantes tensões, lutas e resistências.

A primeira dimensão, o saber, é sugerido por Deleuze como uma rede tecida por relações entre o visível e o enunciável, compreendendo que em sua composição há duas dimensões relacionadas: as curvas de visibilidade e os regimes de enunciação. Essas curvas e regimes de enunciação e visibilidade vão afirmando, por meio de seus discursos, verdades sobre a arte surda, bem como sobre a cultura surda. Ou seja, dizem o que hoje “deve” ser concebido como cultura surda, bem como o que é, e como “deve-se” acessar a arte surda. Ou seja, nos materiais e produções artísticas que encontramos nos diversos meios de pesquisa - eletrônicos, impressos, etc. - vemos discursos que definem o que é cultura e arte surda neste momento. Esses discursos são postos em circulação como uma máquina engenhosa, que por meio de sua repetição, “naturaliza” uma ideia de cultura e arte surda.

A segunda dimensão do dispositivo diz respeito ao poder e suas linhas de força, que “atingem todos os espaços do dispositivo, naquilo que ele tem de “onipresente” (MARCELO, 2004, p. 204). Ao atingir todos os espaços do dispositivo, não pretende tornar tudo ali uma unidade hegemônica, mas se produz diferentemente em cada momento “a partir da complexa e estratégica relação entre todos os pontos de um dispositivo” (Idem). As linhas de força do dispositivo orientam os caminhos em que as curvas de visibilidade e os regimes de enunciação devem percorrer. De acordo com Dalla Zen, “nos mostrarão quais relações de poder o dispositivo pedagógico da arte põe em funcionamento” (2011, p. 20). Ou seja, se hoje há um convite para desenvolver um tipo de relação com cultura surda, isso ocorre porque as linhas de força do poder forjam um caráter normativo aos discursos sobre cultura surda. Existe então, um modo específico de acessar e compreender a cultura surda, bem como de ensiná-la.

A terceira dimensão do dispositivo diz respeito à subjetivação que, por meio de suas linhas de força, produzem uma subjetividade em um dispositivo e dizem respeito a uma contingência que o sujeito possui de não se prender aos poderes e saberes ali emaranhados, podendo escapar deles. Ela cria-se como estratégia para não deixar o dispositivo fechar-se ou fixar-se, não se deixando transpor pelas linhas de força que delimitam os contornos desse dispositivo. É necessário, no entanto, algo mais, algo que atravesse, transponha esse dispositivo, escape dos saberes e poderes de um determinado dispositivo para outro.

Essa ruptura, essa transposição que as linhas de subjetivação permitem, envolvem uma contínua produção de “efeitos sobre si mesmo - que, por sua vez, não são meras atuações passivas do sujeito; pelo contrário, [...] indicam também possibilidades, (des)caminhos, fugas e subversão do próprio sujeito (MARCELLO, 2003, p. 209). A produção de efeitos sobre si não diz respeito a algo que está finalizado, mas a um processo que é contínuo, uma produção contínua da subjetividade do sujeito em determinado dispositivo. Essa produção de si, possibilitada pelas linhas de subjetivação constitui-se em seu caráter pessoal, não estando associada nem às linhas de força nem aos saberes postos; mas distanciam-se destes.

A subjetivação, por fim, é compreendida como a forma pela qual o sujeito - nesse caso os sujeitos surdos - são convidados a relacionarem-se com o dispositivo e lidar com ele, uma vez “que tende a haver disparidade entre as formas de subjetivação previstas pelo dispositivo e o modo como o sujeito olha para si” (DALLA ZEN, 2011, p. 21). Ao lidar com o dispositivo pode haver indícios de fratura, ou seja, ao voltar-se para si mesmo o sujeito tem a possibilidade de transpor o controle do dispositivo. Quando o sujeito faz essa volta sobre si mesmo, ele pode fraturar, romper com os saberes e poderes do dispositivo em questão, sendo produto e produtor de sua subjetividade, sujeito visível e enunciável.

A subjetivação é compreendida como forma de resistir (ainda que não totalmente) aos modos tradicionais de acessar a cultura surda, bem como, a possibilidade de compreende-la de outras formas a partir de outros dispositivos, sendo um deles, o dispositivo pedagógico da arte. Dessa forma, a subjetivação permite a promoção dessa ruptura do sujeito surdo com as formas tradicionais e estigmatizantes de conceber a cultura surda, abrindo-se para novas possibilidades de pensa-la, através do dispositivo pedagógico da arte, a arte surda.

A respeito da arte surda, dispositivo que atua na elaboração do que os surdos compreendem sobre cultura surda, ela - a arte - é produtora de discursos a respeito dos sujeitos surdos e de sua cultura, pois ela legitima um grupo, uma comunidade que vivencia e experiencia o mundo e as coisas ao seu redor de uma forma específica e legítima. A arte, portanto, utiliza seus endereçamentos para tocar, transformar e produzir verdades sobre a cultura surda e sobre os sujeitos que dela participam. As formas de ser surdo e de ser constituído pela cultura surda são “discursivamente inventados, significados em “grande parte por enunciados de um discurso cultural” (GOMES, 2011, p. 14).

Os surdos passam a ser entendidos como sujeitos culturais que se constituem por atravessamentos que lhes acontecem. Esses atravessamentos ocorrem nas mais variadas formas, mas, especificamente neste texto, ressalta-se os que a arte surda pode produzir nos sujeitos surdos, subjetivando-os por meio dos discursos produzidos ali a respeito da cultura surda. Dentro desse cenário contemporâneo é possível se pensar a arte como produtora de discursos sobre a cultura surda, discursos esses que subjetivam os surdos, constituindo-os como sujeitos culturais.

3. O (DES) ENCONTRO COM A METODOLOGIA DA PESQUISA

Com base nas discussões trazidas até agora, pretende-se mostrar os delineamentos analíticos que potencializaram tais problematizações no intuito de detalhar, metodologicamente, como a pesquisa foi estruturando-se e quais as possíveis articulações que se pode referenciar com o aporte teórico. Primeiramente, a intenção de pesquisar sobre arte e cultura surda surgiu em meio a um Festival de Cultura Surda ocorrido em Porto Alegre - RS, evento no qual artistas, atores (as) e público em geral de diversas regiões do Brasil estiveram reunidos para mostrar e compartilhar como eles têm produzido, circulado e consumido a sua cultura. Após contato inicial com diversos artistas nesse evento, o segundo passo foi contatá-los via e-mail e redes sociais. Três artistas retornaram o contato aceitando participar da pesquisa, os quais passo a chamar de Artista A, Artista B e Artista C. O Artista A reside em Salvador (BA) e é um profissional em artes visuais; o Artista B reside em Belo Horizonte (MG), e é um profissional também na área de artes, reconhecido nacionalmente por suas pinturas; já o Artista C reside no Rio de Janeiro (RJ) e é um profissional na área de artes, doutorando na mesma área. Com o aceite de participação e esclarecimentos sobre a pesquisa, elaborou-se um questionário com dezessete perguntas pensadas e constituídas com base em inquirições teóricas que circulam em três eixos: constituição do sujeito enquanto surdo; elaboração da arte surda; expressão da cultura surda por meio da produção artística.

O primeiro eixo buscou compreender como se deu a trajetória do artista surdo, sua formação, atuação profissional, descoberta da sua surdez, relação familiar, relações sociais. O segundo eixo buscou compreender como a arte se fez presente na vida do artista, como ele se interessou pela arte e como a cultura surda foi emergindo como força produtiva de sua arte. Para tanto, perguntas como “qual a relação que você estabelece na sua trajetória, entre a surdez e a arte?”; “de que forma você percebe que a cultura surda pode ser inserida nas suas produções artísticas?”; “de que forma você percebe que a arte pode subjetivar culturalmente um sujeito surdo?”, fizeram parte do questionário enviado aos artistas. O terceiro eixo objetivou compreender as formas pelas quais esses sujeitos produzem a cultura surda por meio da sua arte, contribuindo para tal eixo perguntas como: “o que você procura expressar em suas produções artísticas? Qual o foco das suas produções?”; “O que você pretende causar, provocar em quem consome sua arte?”, e “você utiliza-se da arte para quais objetivos? ”.

O questionário foi produzido tanto na versão em Libras quanto em Língua Portuguesa escrita e, as respostas também foram enviadas em Libras (por um dos artistas) e em Língua Portuguesa escrita (pelos outros dois artistas). A tradução das respostas em Libras foi feita pela própria autora, já que há atuação da mesma na área de Educação de Surdos-Libras, possuindo conhecimento e experiência na tradução de vídeos e traduções simultâneas de surdos. As entrevistas escritas em português sofreram alguns ajustes de gramática e na coerência textual.

Posteriormente, surgiu a oportunidade de entrevistá-los pessoalmente, sendo utilizadas as mesmas perguntas do primeiro questionário, mas com o objetivo de ir até eles e deixá-los falar. Esse contato face a face, sem a tela do computador ou distância geográfica, permitiu sentar com eles e conversar no intuito de deixá-los falar sobre seus sentimentos, reflexões, emoções, memórias e ações vividas, as quais são reinterpretadas por eles a partir do momento presente, ou seja, memórias ressignificadas a partir de outras/novas experiências. Tanto os questionários aplicados aos artistas surdos quanto as entrevistas presenciais objetivaram colocar em evidência os modos de produção da cultura surda, por meio da arte, pelos próprios artistas.

4. ANÁLISE DOS DADOS E RESULTADOS

Após a transcrição das entrevistas (virtuais e presenciais), buscou-se identificar o que aparecia com maior recorrência nas falas dos três artistas a respeito da cultura surda e como ela é vista em suas produções artísticas. Após a identificação dessas recorrências, a categorização das análises ocorreu em três partes: a relação/contato com a arte; a produção, por meio da arte, de cultura surda; e as formas de consumo da cultura surda por meio da arte. As discussões propostas a seguir focarão, principalmente, em como a cultura surda é produzida pelos artistas surdos e como ela pode ser consumia pelos surdos, a fim de que conheçam a sua cultura por meio de outros artefatos, outros dispositivos, que não aqueles tradicionais.

4.1 Constituição de si enquanto artista por meio da cultura surda

A constituição do sujeito não tem lugar nem tempo fixo, é um processo no qual ele vai se compreendendo e fazendo operações sobre si mesmo. Compreende-se dessa forma que, apesar de os três artistas surdos entrevistados terem algo em comum, a surdez, eles a entendem e se entendem de formas distintas e, consequentemente, compreendem sua cultura também de formas díspares. O artista C, por exemplo, na sua infância começou a estabelecer contato com a comunidade surda passando a integrá-la e, para ele, faz sentido falar em uma experiência surda, em ser constituído culturalmente por uma comunidade surda, por uma língua de sinais e uma arte que propõe mostrar uma cultura surda. Esta é compreendida pelo Artista C como

Os sinais da Libras, da gramática, também o visual, da importância de se olhar no olho do surdo para e comunicar e não ficar olhando para os lados quando está conversando.... Eu coloco, sim, estratégias como a Língua de Sinais, eu aproveito e coloco, pois é cultura surda.

Para esse artista, compreender a cultura surda e inseri-la em sua arte é mostrar elementos que fazem parte de sua cultura, como a língua de sinais, as expressões faciais, a importância do contato visual. Esses elementos que o Artista C insere em sua arte são produto de suas práticas sociais com a comunidade surda na qual faz parte, bem como, pelos discursos ali presentes que vão constituindo formas de ser sujeito naquele espaço. Especialmente no caso desse artista, percebemos que ele atribui à cultura surda um caráter celebratório na produção de sua arte, como vemos abaixo:

Nas minhas produções, eu coloco arte surda, sim. É produção da cultura surda, da comunidade surda, da identidade surda. Eu coloco dentro o mundo dos surdos, porque dentro desse mundo dos surdos, isso é muito forte, muito valorizado, e eu aproveito para colocar isso nas minhas produções.

Esse caráter valorativo da cultura surda ocorre em função de estar permeado, desde pequeno, no interior de discursos que expressam e afirmam um pertencimento a essa cultura. Essas afirmações, portanto, vão adquirindo imensa força e expressividade no modo como esse sujeito vai se entendendo e produzindo-se a si mesmo e sua arte.

A constituição dos sujeitos surdos em meio a cultura surda muitas vezes se torna tão forte e expressiva, como descrito acima, que os surdos compreendem essa “cultura surda muito forte, nas “veias”” (Artista B). A expressão usada por esse artista referindo-se à cultura surda, pode ser relacionada com o que a autora surda Strobel (2008) evidencia, de que “a cultura surda é algo que penetra na pele do povo surdo que participa das comunidades surdas, que compartilha algo que tem em comum, seu conjunto de normas, valores e comportamentos” (p.25).

Por esse viés, a cultura surda aparece como um fator biológico, algo inato ao sujeito, parte integrante da pessoa surda que pode desenvolver-se com o tempo. É como se a cultura surda sempre estivesse ali, esperando para ser encontrada, descoberta e desenvolvida. Essa concepção da cultura surda por alguns surdos é criada a partir “da lógica de que, desde o nascimento, a pessoa surda já carrega elementos culturais que se desenvolverão ao longo de sua vida” (GOMES, 2011, p. 50). A mesma autora, ao analisar algumas falas de surdos, percebe que eles significam a cultura surda “como sendo vivenciada, e ‘produzida’ pelo corpo surdo” (Idem, p. 51). De acordo com o Artista C a cultura surda “significa entender-se e significar-se cultural e linguisticamente surdo”. Nessa perspectiva, a cultura surda não se relaciona somente ao fato de não ouvir, mas aos aspectos que só quem entende o mundo e as coisas ao seu redor por meio da visão, especificamente, se comunica por uma língua gestual e convive no interior de certas práticas culturais é capaz de entender, ou seja, os próprios surdos.

A partir das falas dos artistas surdos sobre ser surdo e compreender a cultura surda, podemos perceber que conceituá-la pode ser um caminho com diversas ramificações, pois depende de como cada sujeito se relaciona com ela e empreende seus significados sobre ela. As reflexões trazidas pelos artistas surdos nos dão caminhos para pensar que a cultura surda não é compreendia apenas pela língua de sinais, ou pela questão do meio ou de recursos e estímulos, nem propor que o surdo é somente aquele que pertence a determinado grupo ou se comporta de uma determinada forma. Não há como ser mais ou menos surdo em função de estar nessa ou naquela comunidade ou cultura. Ser surdo e pertencer a cultura surda é uma questão de experiência, de entender-se como tal, como sujeito significante e significado, aberto para as experiências ali presentes.

4.2 A cultura surda expressa por meio da arte

Até aqui, discutimos quais as concepções sobre cultura surda os artistas entrevistados produzem a partir de suas experiências ao longo de sua infância até o presente momento. Nesse momento, buscaremos compreender como os artistas surdos expressam a cultura surda em sua arte, buscando perceber nuances ali presentes que possam ser concebidas como pertencentes a cultura surda, como também, um dispositivo de ensino sobre a cultura surda aos demais surdos - sejam elas crianças, jovens ou adultos.

A arte, como já foi mencionado, é entendida como uma forma de expressão, de ensinar sobre algo que “busca no íntimo de cada um, suas características mais sensíveis” (ANJOS, 2008, p. 9). A arte, nesse sentido, se configura como forma e espaço de produção da sociedade, como forma de comunicação. E para produzi-la, o sujeito é convidado a voltar-se sobre si mesmo e pensar sobre si, sobre sua constituição, sobre suas verdades, sobre o contexto em que está inserido.

A cada volta do sujeito sobre si mesmo, há uma busca por entender seu processo histórico de constituição e de constante transformação, e ocorrem nesses momentos, a produção de novas experiências que vão constituindo esses sujeitos. Dessa forma, os artistas surdos ao olharem para si mesmos e entenderem-se enquanto sujeitos constituídos, dentre outras formas, culturalmente, buscam narrarem-se e mostrar suas experiências constitutivas, encontrando na arte esse canal de exteriorização. É por meio de suas produções que os artistas surdos conseguem expressar suas formas de se ver e se relacionar com o mundo, bem como, as práticas pelas quais eles foram constituídos, dentre elas, as práticas culturais. Em relação a essas práticas, as experiências que os artistas constroem com elas também podem ser vistas em suas produções.

O artista C empreende em suas produções vários elementos que ele mesmo, quando vai explicar suas obras, diz fazer parte da cultura surda. Um desses exemplos é visto quando afirma “é produção da cultura surda, comunidade surda, identidade surda, eu coloco dentre da arte o mundo dos surdos” (Artista C). Essa fala é produzida no momento que o artista mostra sua obra, a qual é composta por um bebê surdo que visualiza as mãos, os sinais feitos com as mãos, expressando a experiência visual surda. A língua de sinais e a experiência visual, conforme nos apresenta Strobel (2008), são artefatos que compõem a cultura surda, pois por meio da língua de sinais e da experiência visual, pode-se ver e sentir, estar em contato “com a cultura de uma comunidade” constituindo “produções do sujeito que tem seu próprio modo de ser, ver, entender e transformar o mundo” (p. 44).

Outro exemplo que podemos citar é do Artista A, quando diz que “expressa nas artes visuais o que significa a cultura... Faço as expressões de artes sobre a natureza humana, os movimentos”. Esse artista expressa na sua arte coisas do cotidiano, coisas que acontecem no movimento das cidades, coisas que ele sente e que para ele são importantes, pois o constituem. Dessa forma, o artista expressa locais, momentos do seu dia a dia, marcando cada pintura sua através das cores, de exposição de cores fortes. As cores que utiliza buscam levar o olhar dos sujeitos surdos a viver experiências, perceberem o mundo “de maneira diferente, a qual provoca as reflexões sobre suas subjetividades” (STROBEL, 2008, p. 44).

As cores fortes buscam despertar nos sujeitos surdos que a olham, um dos artefatos culturais compreendidos como extremamente importante para o sentimento de pertencimento a cultura surda, ou seja, a experiência visual. Esta, permite aos surdos, em função da perda de audição, perceberem o mundo “através dos seus olhos e de tudo o que ocorre ao redor deles” (STROBEL, 2008, p. 45). Como nos afirma Miranda:

Experiência visual significa a utilização da visão [...] como meio de comunicação desta experiência visual surge a cultura surda representada pela língua de sinais, pelo modo diferente de ser, de se expressar, de conhecer o mundo, de entrar nas artes, no conhecimento científico e acadêmico (2003, p. 218).

Outro exemplo da cultura surda expressa nas pinturas, principalmente pelo artefato da experiência visual, é a fala do Artista B que afirma que “quando eu estou pintando, eu sinto muitas coisas, eu penso em tudo porque é um momento de concentração... Quando eu estou pintando, eu estou prestando atenção em outras coisas e ouvindo através dos olhos”. O ouvir através dos olhos é experimentação da experiência visual e produção da mesma na obra de arte. Dessa forma, o artista se coloca nas obras, bem como o que o constitui, dando vistas à sua surdez, permeada não pela falta, ou seja, pela falta de audição, mas pela presença, a presença do olhar. A presença dessa experiência tão singular ao sujeito surdo, a experiência visual, que é parte da sua cultura.

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esse texto propôs-se, por meio das narrativas de artistas surdos, compreender como a cultura surda é expressa em suas produções artísticas, compreendendo um poderoso dispositivo pedagógico que visa mostrar, ensinar aos demais surdos, novas formas de conceber a cultura surda contemporaneamente. Fugindo dos padrões tão estereotipados que inscrevem regras de onde e como certas coisas devem ser ensinadas, pudemos ver no decorrer do texto, que a cultura surda pode ser ensinada por meio de outras práticas, dentre elas, a arte surda. Apesar de a cultura surda ser ensinada, tradicionalmente na escola de surdos, por meio um plano pedagógico que incorpora a disciplina de cultura surda no currículo escolar, como também nas associações de surdos, percebemos que há novos e diferentes dispositivos que permitem o contato com as diferentes formas de conceber essa cultura.

A arte surda foi demonstrada como um potente dispositivo que ensina, faz ver, faz falar sobre a cultura surda, bem como expõe elementos pertencentes a ela. Um exemplo é a fala do Artista C, quando diz que faz arte surda colocando todos os elementos que ele julga explicar, expressar esse tipo de arte. Ele diz “coloco na arte surda a primeira língua, a Libras, coloco sua marca... coloco na pintura, no desenho visual” (Artista C). Também, por meio de suas produções artísticas, viu-se suas particularidades em meio a um amplo campo das artes, além de suas escolhas, suas experiências.

Cada um desses artistas constituiu-se numa trajetória de experiências que foram sendo produzidas na relação com determinado tipo de arte. Dessa relação com a arte, padrões estabelecidos pelos saberes verdadeiros sobre ela, bem como sobre o que se pode e se deve produzir em arte puderam ser transpostas, rompidas e desestruturadas. Esse rompimento do sujeito com os discursos já tão arraigados sobre arte e, consequentemente, sobre a relação entre arte e cultura surda foi possível por meio dos processos de subjetivação que a própria cultura surda possibilitou ao sujeito surdo artista a fim de novas produções artísticas.

Da mesma forma, os processos de subjetivação que os artistas entrevistados sofreram, especificamente aqui, em contato com a cultura surda, permitiram que cada um deles constituíssem-se de formas particulares e produzem sua arte de formas bem específicas. Isso decorre de o processo de subjetivação de cada um deles ser específico, particular, apesar de estarmos nos referindo ao processo no qual a cultura surda desempenha papel formador desses sujeitos. Cabe salientar também que, apesar de a cultura surda ter estado presente na vida dos três artistas surdos, ela foi significada e constituída em cada um dos artistas de modo particular. É por meio desse modo particular de compreender a cultura surda que os artistas puderam produzir formas diferentes de arte e de expressar a cultura surda por meio dela.

Diante das questões aqui levantadas, diversas outras possibilidades abrem-se para pensar a constituição da cultura surda por meio da arte surda, ou melhor, por meios das artes, sejam ela visuais, teatrais, poéticas, etc. Dessa forma, a pesquisa buscou um deslocamento de formas tão arraigadas de conceber a cultura surda, buscando novos caminhos para pensar a educação de surdos.

2Pedagógico no sentido que afirma Fischer (1997) de que vivemos em um tempo em que algumas das funções básicas, como a pedagógica, deslocam-se de seus lugares de origem para exercerem-se de outras formas em outros contextos. O conceito de pedagógico nesta pesquisa desloca-se para indicar como a arte atua na formação do sujeito contemporâneo, ensinando modos de ser, de constituir-se e comportar-se.

3O termo “dispositivo pedagógico da arte” trazido neste texto é tomado a partir da autora Laura Habckost Dalla Zen (2011) em sua dissertação de mestrado. Abordou-se esse conceito no decorrer do texto e vale ressaltar também que a intenção da pesquisa não foi analisar um dispositivo. Primeiramente, porque se abordou uma dimensão em especial: a subjetivação. Será explicado mais detalhadamente que o dispositivo é composto por três dimensões (saber, poder e subjetivação). Em segundo lugar, porque mesmo que haja referência ao dispositivo da pesquisa como “dispositivo pedagógico da arte”, esta, na pesquisa, tratará da “arte surda”.

4Foram entrevistados três artistas surdos de diferentes regiões do país, a fim de problematizar como eles compreendem a cultura surda e de que forma a empreendem em suas produções artísticas como um dispositivo pedagógico.

5A intenção do texto não é analisar um dispositivo, porque mesmo que o texto se refira ao dispositivo como “dispositivo arte”, este texto refere-se a “arte surda”.

6Fischer (2002; 1999); Marcello (2005; 2004; 1999); Veiga-Neto (2007; 2003; 2000); Larrosa (1994).

6. REFERÊNCIAS

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