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Revista Teias

versão impressa ISSN 1518-5370versão On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.19 no.53 Rio de Janeiro abr./jun 2018  Epub 19-Fev-2020

https://doi.org/10.12957/teias.2018.34520 

Imagens e sons para além das escolas

O CONFINAMENTO JOVEM NO FILME “MAZE RUNNER”: Cultura e pedagogia tecnocapitalística

Greice Rosane Gomes(*) 

Cynthia Farina(*) 

(*)Greice Rosane Gomes. Mestre em Educação pelo Instituto Federal Sul-rio-grandense (IFSul) e graduada em Comunicação Social - Jornalismo pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: greiceg@gmail.com.

(*)Cynthia Farina. Professora do Programa de Pós-graduação em Educação do Instituto Federal Sul-riograndense (IFSul), doutora em Ciências da Educação pela Universidade de Barcelona, com pós-doutorado em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). E-mail: cynthiafarina@pelotas.ifsul.edu.br.


RESUMO

Este artigo trata de alguns processos de subjetivação na contemporaneidade que se dão na inter-relação entre juventude e cinema. Voltado à leitura do filme “Maze Runner”, a pesquisa coloca em conversa os conceitos de sociedades disciplinares (Foucault) e sociedades de controle (Deleuze). O artigo foi construído com base no método cartográfico, e o referencial teórico utilizado é norteado prioritariamente pelos autores já mencionados, além de Sibilia e Rolnik. As principais temáticas envolvidas são processos de formação, capitalismo mundial integrado, cartografia, juventude e cinema.

Palavras-chave: Cinema; Juventude; Subjetivação

ABSTRACT

This article deals with some processes of subjectivation in the contemporaneity which is present in the interrelation between youth and cinema. It aims at the “observation” of the film “Maze Runner”, this research generates the debate between the concepts of disciplinary societies (Foucault) and societies of control (Deleuze). The article was written based on the cartography method, and the theoretical reference used is guided, mainly, by the authors mentioned above, as well as Sibilia and Rolnik. The main topics involved are processes of education, integrated worldwide capitalism, cartography, youth and cinema.

Keywords: Cinema; Youth; Subjectivation

RESUMEN

Este artículo trata de algunos procesos de subjetivación en la contemporaneidad que se dan en la interrelación entre juventud y cine. Volcado a la lectura de la película “Maze Runner”, la investigación coloca en conversación los conceptos de sociedades disciplinares (Foucault) y sociedades de control (Deleuze). El artículo fue construido con base al método cartográfico, y el referencial teórico utilizado es orientado prioritariamente por los autores ya mencionados, además de Sibilia y Rolnik. Las principales temáticas envueltas son procesos de formación, capitalismo mundial integrado, cartografía, juventud y cine.

Palabras-clave: Cine; Juventud; Subjetivación

INTRODUÇÃO

Quais os sentidos produzidos nas relações atuais predominantes entre cinema e juventude? A partir dessa pergunta, vejo na linguagem fílmica uma fértil possibilidade para pensar a constituição do jovem na contemporaneidade. Abordar a educação pelo viés da formação permite que lancemos um olhar para esse tipo de questão considerando as múltiplas relações estabelecidas entre o jovem e o mundo que lhe atravessa.

Neste artigo, trato, então, de processos de formação de jovens a partir do cinema, especialmente blockbusters - feitos para o consumo em massa -, pois entendo que as experiências vividas por esse grupo podem nos fornecer elementos sobre sua forma de relacionar-se com o mundo e produzir sentidos com ele. Como nos diz Rolnik (1993, p. 3), “o sujeito engendra-se no devir: não é ele quem conduz, mas sim as marcas”. Daí, utilizar o consumo cultural desse público como forma de extrair elementos que permitam acercar-nos aos modos de pensar da juventude é, de certa forma, levar novos subsídios à escola para aproximar-se do estudante; é perceber, nos diferentes espaços de suas vidas, os elementos que podem lhe produzir marcas que perpassarão a própria escola.

Para conduzir a discussão sobre o tema, lanço um olhar sobre a minha experiência com o filme Maze Runner - Correr ou Morrer (2014), voltado ao público jovem e interpretado também por atores dessa faixa etária. Por ser uma pesquisadora jovem, faço, pois, essa investigação a partir da minha própria condição geracional. Ao adotar o método cartográfico de trabalho, busco problematizar alguns aspectos suscitados pelo filme, mas sem esperar que eles tragam respostas conclusivas sobre a identidade dos jovens retratados e a quem se dirigem. Não buscando estabelecer relações causais e lineares entre o cinema e a realidade do público, tento, antes, perceber as linhas e conexões em que produções como essa cruzam com a vida dos jovens. Para isso, abordo alguns conceitos importantes suscitados pelo filme, como sociedades disciplinares e de controle e Capitalismo Mundial Integrado, segundo Foucault, Deleuze e Guattari, respectivamente.

DISPOSITIVOS DE FORMAÇÃO

Os processos de formação que aqui discuto se dão na relação, vista por meio do cinema, de jovens com o mundo. Trabalhar com a educação a partir desse prisma significa considerar as potencialidades formativas de dispositivos situados, inclusive, fora da escola. Isso porque, para Larrosa (1994, p.54), um dispositivo pedagógico “será, então, qualquer lugar no qual se constitui ou se transforma a experiência de si [...] e no qual se aprendem ou se modificam as relações que o sujeito estabelece consigo mesmo”. “Sair” da sala de aula na pesquisa em educação, no entanto, não significa desconsiderar a relação estreita entre a escola e esses dispositivos pedagógicos que habitam os ambientes por onde transitam os jovens.

Ainda conforme Larrosa (1994), a experiência de si é transmitida e aprendida dentro da cultura, que fornece os dispositivos de subjetivação segundo um certo repertório de formas de ser e estar nessa cultura. Segundo o autor, é como se a educação, além de “construir e transmitir uma experiência ‘objetiva’ do mundo exterior, construísse e transmitisse também a experiência que as pessoas têm de si mesmas e dos outros como ‘sujeitos’” (LARROSA, 1994, p.9).

Em seu trabalho sobre cinema como prática de si, Almansa (2013, p.15) também traz a ideia de formação a partir de uma perspectiva com a qual me alinho. A autora vê a formação como um processo, que gira em torno de uma forma de cultura “na qual a relação consigo é sobremaneira importante para uma aprendizagem que mobiliza, ética e esteticamente, o si do sujeito”.

Tal perspectiva é adotada por Fischer, para quem a formação deve ser entendida

como uma operação que se dá para além do institucional (escola, igreja, família, por exemplo), embora tais espaços não sejam jamais ignorados; para além de um sistema de autoridade, normativo ou disciplinar; formação assumida como uma escolha da própria existência, como busca de um estilo de vida, de um cuidado consigo, que de maneira alguma poderia ser identificado com o culto narcísico de nossos tempos (FISCHER, 2009, p.95).

Ao entender a formação como uma ação do sujeito consigo mesmo, a partir de suas experiências, esse texto busca trazer à luz meus próprios encontros sensíveis com o cinema - não para generalizá-los, mas para pensar a dimensão coletiva da experiência de uma percepção jovem urbana - e produzir sentidos a partir dessas experiências. A seguir, abordo mais detidamente o método por meio do qual esses encontros com o filme são trazidos para a pesquisa.

EDUCAÇÃO, CINEMA E JUVENTUDE: UM OLHAR SENSÍVEL

É a partir do olhar sensível trazido pela cartografia que o método de construção dessa pesquisa se desenrola. Por permitir ao pesquisador lançar mão de sua própria experiência na relação com o mundo, o método cartográfico não pretende levar a respostas fechadas ou conclusivas sobre o assunto pesquisado, mas abordar cientificamente o processo investigativo a partir de suas múltiplas experiências.

Ter como ponto de partida o processo investigativo vai ao encontro do método de trabalho do cartógrafo. De acordo com Rolnik (2007, p.65), para o pesquisador cartográfico “todas as entradas são boas, desde que as saídas sejam múltiplas” (ROLNIK, 2007, p.65). Com isso, a autora sugere que o cartógrafo é um verdadeiro antropófago, recolhendo elementos de diferentes áreas e origens para propor saídas diversas para sua pesquisa, ainda que nenhuma dessas saídas consistam em respostas conclusivas e definitivas. Isso porque, de acordo com a autora, o cartógrafo não busca explicar, tampouco revelar algo sobre determinado assunto, pois não acredita haver nada além de “intensidades buscando expressão” (ROLNIK, 2007, p.66), as quais se deve trazer à luz do questionamento e da inter-relação. Por isso, “o cartógrafo não ‘revela’ sentidos (o mapa da mina), mas os inventa, já que não está dissociado de seu corpo vibrátil: pelo contrário, é através desse corpo [...] que procura captar o estado das coisas, seu clima, e para eles criar sentido” (ROLNIK, 2007, p.71).

Para colocar uma pesquisa cartográfica em prática, portanto, é necessário, segundo a autora, que o pesquisador tenha como principal critério de trabalho uma abertura para a vida, buscando situações em que ela encontre canais de efetivação. Essa abertura coincide com o próprio viés micropolítico do trabalho do cartógrafo, que entende o caráter político da sua prática como uma análise da produção de subjetividade dos diferentes elementos que põe em relação.

Portanto, assim como descarto a possibilidade de isolar os blockbusters do seu processo produtivo e da cultura na qual estão situados, também renego a classificação do jovem como simples objeto de pesquisa. Totalmente imbricados, não há como determinar em que momento um filme aborda a juventude ou é por ela impelida a existir como linguagem. É por isso que o interesse deste artigo concentra-se menos em possíveis respostas sobre como a juventude é retratada no filme e mais nos sentidos que se pode produzir a partir desses encontros.

BLOCKBUSTER? O QUE ESSE CINEMA TEM A NOS DIZER?

Na produção cultural dominante da atualidade, na qual o cinema insere-se com grande peso e importância, a imagem ganha cada vez mais destaque como elemento condutor do processo de identificação entre a obra e o espectador. Trabalhar com blockbusters, nesse sentido, permite nos aproximarmos dessa presença que persiste de forma dominante na produção cultural do ocidente. Ao romper com as fronteiras nacionais, eles nos permitem perceber pontos consonantes sobre a subjetividade dominante da juventude trazida nas telas. Geralmente produzidos a partir de best-sellers da literatura, estes filmes misturam enredos cada vez mais complexos, trazendo temas com conflitos psicológicos e sociais repletos de pistas sobre esse público.

Com histórias envolventes, esses filmes não simplesmente passam por seus espectadores, como muitas vezes se constituem em verdadeiras experiências para eles. É cada vez mais comum o agrupamento de jovens identificados com determinadas tramas em fãs-clubes ou comunidades virtuais. Para se ter uma ideia da abrangência desse tipo de películas, busquei alguns números sobre o envolvimento de jovens com o filme aqui tratado. A partir de números coletados no dia 02 de maio de 2018, verifiquei que a página no Facebook “Maze Runner” tem mais de 4,1 milhões de seguidores.

Se a produção artística não pode ser descolada de seu espaço e de seu tempo, é possível ver no cinema um importante marco do contexto sócio-cultural de uma época. Com elementos repletos de sentidos produzidos e reproduzidos pela coletividade, os filmes podem carregar consigo o imaginário da sociedade pela e para a qual foram elaborados. Para Deleuze (2013), “há fatores históricos e geográficos que atravessam o cinema, colocam-no em relação com outras artes, fazem-no sofrer influências e também exercê-las” (DELEUZE, 2013, p. 66).

O cinema hollywoodiano, nesse aspecto, parece-me o mais emblemático representante da leva de filmes portadores de uma estética pensada para captar um sentimento coletivo, abordando-o sob uma linguagem universalizante e de fácil compreensão. Por pertencer a uma indústria que movimenta a economia cinematográfica mundial - abarcando também muitos outros mercados vinculados ao consumo desses produtos -, as películas norte-americanas são produzidas sob uma forte influência comercial. Os filmes lançados por essa indústria, portanto, nascem não apenas com o intuito de entreter o público a que se destina, mas também de gerar empatia com esse público, levando para as telonas os principais conflitos, desejos e frustrações que inquietam grande parte das pessoas.

Canevacci (2001), ao propor uma tipologia para pesquisar o cinema, divide-o em três níveis diferentes para estudo: o cinema direto, científico ou de documentário, o cinema de ficção e o cinema sincrético ou indireto. Para este trabalho, interessa-nos particularmente o aprofundamento do segundo nível tipológico, que, segundo o autor, opera com base na cultura de massa e no imaginário dentro da lógica de produção da indústria cultural.

No cinema ficcional, Canevacci (2001) identifica que a antropologia visual executou uma tarefa essencial à sua manutenção: compreender os modelos e tendências que invadem as periferias no plano mundial a partir dos centros de produção na sociedade contemporânea. Segundo ele, a nova cultura do consumo “conseguiu construir um sistema polissêmico de fruição adaptável a cada realidade sociológica” (CANEVACCI, 2001, p. 169). Desta forma, salienta, as referências históricas são descartadas e a dimensão social da obra resume-se a apresentar redundâncias psicológicas. O autor cita como exemplo as tramas que envolvem homens e mulheres, nas quais tudo é traduzido numa base dramatúrgica de paixões elementares.

Ainda que concebidas dentro de um sistema marcadamente capitalista, essas películas não podem ser compreendidas através do reducionismo que as coloca à parte do circuito cultural. Compreendendo a cultura numa perspectiva antropológica, na qual, segundo Chauí (1995), o conceito pluraliza-se e alarga-se para além da produção artística, é possível ver nesses filmes o agenciamento de diferentes elementos que produzem novos sentidos sobre a realidade. Tais elementos - narrativa, temáticas, sonoplastia, figurinos, planos de filmagens, etc -, vistos sob a perspectiva deleuziana de agenciamento, entram em uma conexão viva entre eles, mudando de natureza à medida que aumentam suas conexões (DELEUZE e GUATTARI, 2011).

SOBRE ESSA TAL JUVENTUDE

Antes de seguirmos para um estudo mais focado no filme, parece-me importante contextualizar onde se insere esse jovem na atualidade e como se manifesta seu pertencimento geracional. Para Canevacci (2005), a categoria jovem encontra-se dilatada, com faixas etárias cada vez mais abertas. O termo “jovem”, nascido em meados dos anos 1950, “afirma-se com prepotência na comunicação metropolitana e midiática do Ocidente, particularmente por meio de sua visibilidade musical e fílmica” (CANEVACCI, 2005, p. 20-21). Segundo o autor, foram a ascensão da mídia e a autonomia das culturas juvenis nas metrópoles que impulsionaram a criação de uma categoria própria para os jovens. Posteriormente, um novo elemento fixou o jovem como faixa etária num momento em que se transitava diretamente da adolescência para o trabalho: a escola de massa. Assim, a escola, a mídia e a metrópole constituíram, segundo Canevacci (2005), os três eixos sobre os quais se sustentou a concepção moderna do jovem como categoria social.

Na contemporaneidade, Canevacci (2005) propõe a ideia de “jovens intermináveis” para definir o alargamento das faixas etárias e a multiplicação das identidades móveis e nômades. Para ele, a incerteza e a imprecisão em definir a percepção de si e do outro como jovem constituem um elemento caracterizador do nosso tempo. Hoje, o autor aponta diferentes motivos para a elasticidade do conceito: o fim do trabalho (mais criativo e temporário, ele não aparece mais como aquele marco fundamental da passagem da adolescência para a fase adulta), o fim do corpo (cada vez mais a tecnologia dissolve as fronteiras entre o orgânico e o artificial) e o desmoronamento demográfico (o casamento perde valor, os estudos esticam-se na pós-graduação e a substituição do planejamento do futuro pelo viver no presente aniquilam a necessidade da reprodução).

É nesse contexto de sobrepujança da mídia como poder modelador que seus apelos passam a invadir a esfera social, redesenhando novos modos de ser jovem. Schmidt (2006, p.18) destaca que, nesse contexto, “o próprio corpo torna-se um espaço midiático, carregando grifes de marcas internacionais ou mesmo palavras de ordem”. Esta cultura veiculada pela mídia, segundo Schmidt (2006), fornece o material capaz de criar identidades por meio das quais os indivíduos se inserem nas sociedades tecnocapitalistas contemporâneas, produzindo uma nova forma de cultura global.

A relação tão próxima da juventude com a mídia pode ser explicada, segundo Schmidt (2006), por ela ocupar um espaço pedagógico considerável na vida desse público, pois ensina novas formas de viver, de relacionar-se consigo mesmo e com o outro. A autora acrescenta que essa proximidade surte efeitos na produção de subjetividades sociais, já que “a cultura da mídia nos acolhe, nos conforta e nos capta para a construção do nosso modo de ser” (SCHMIDT, 2006, p.19).

Pela proximidade com a tecnologia, os jovens encaram a conexão digital de forma muito natural, levando para a escola os efeitos de suas experiências em rede. Retomando Foucault, Sibilia (2012) lembra que o modelo analógico da sociedade disciplinar era a prisão, sendo a escola um dos lugares onde se usava o confinamento como esse mecanismo de poder. Já na atualidade, com a internet “se infiltrando nas paredes da escola sem necessidade de derrubá-las fisicamente” (SIBILIA, 2012, p.174), em vez da prisão, tem-se, agora, um modelo universal ao qual nos conectamos espontaneamente. Essa espontaneidade é formada em rede e forma, ao mesmo tempo, a própria rede.

MAZE RUNNER: OS JOVENS DA CLAREIRA TAMBÉM ESTÃO FORA DA TELA?

O filme Maze Runner pertence a uma série baseada em best-sellers. Na saga, um grupo de jovens é submetido ao desafio de encontrar a saída de um labirinto que cerca uma grande clareira onde foram colocados. Para tentar encontrar um caminho, os jovens mais rápidos e fortes - os chamados “corredores” - entram todos os dias no labirinto a fim de mapear todos os trechos e todos os padrões possíveis de mudanças de percurso, já que o labirinto é móvel e se altera todas as noites. Dentro da clareira, os jovens que não fazem parte do grupo de corredores são divididos em outras funções necessárias à manutenção da ordem e da sobrevivência de todos.

Todos jovens, do sexo masculino e hierarquicamente organizados entre si. Em uma primeira mirada sobre Maze Runner, algo já se delineia: temos no filme uma espécie de organização quase militar desses jovens. Aprisionados dentro de uma grande clareira circundada por um imenso e mutável labirinto, dezenas de meninos compartilham diariamente a necessidade de sobreviver e manter a ordem dentro desse local. Para isso, estabelecem entre eles uma disciplina muito clara, com uma divisão de tarefas absolutamente fixa e contínua: há, por exemplo, construtores, socorristas e, claro, os corredores.

Ao recorrer a Foucault (1987), é possível ver que o autor, fazendo um recorrido histórico das formas de disciplinarização do corpo, coloca as instituições militares como uma dessas formas de normatização. Ele destaca que, em organizações como essa, a disciplina, tal qual vemos no filme, “individualiza os corpos por uma localização que não os implanta, mas os distribui e os faz circular numa rede de relações” (FOUCAULT, 1987, p.125). Essa, então, seria uma das características da disciplina: cada elemento é definido pelo lugar - ou, nesse caso, pela atribuição - que ocupa na série.

Não apenas a distribuição de tarefas no filme, no entanto, pode ser vista a partir da perspectiva foucaultiana. Algo ainda mais elementar para o estabelecimento da disciplina está escancarado na trama. Dá nome ao filme, inclusive. Conforme Foucault (1987, p.122), “a disciplina às vezes exige a cerca, a especificação de um local heterogêneo a todos os outros e fechado em si mesmo”. Exato. O imenso labirinto, rodeado de mistérios, é responsável por delimitar até onde vai o espaço de regulação daqueles corpos. É o lugar onde e pelo qual se dá essa relação. Se no filme o labirinto delimita o espaço da disciplina e a divisão de tarefas estabelece o lugar de cada corpo dentro de uma rede de relações, poderíamos pensar o que essa disciplina trazida pela película nos dá a ver sobre as formas de controle que se colocam sobre os jovens em nossa sociedade. Além das instituições militares e hospitalares, por exemplo, outro clássico exemplo dado por Foucault são as instituições escolares, que, claro, interessa-nos particularmente. Mas não apenas. Vivemos em uma configuração político-econômica, a qual não podemos desprezar. Essa configuração, construída sobre o capitalismo neoliberal, perpassa toda e qualquer relação disciplinar que possamos identificar. A escola, por exemplo, atravessa esse sistema e, ao mesmo tempo, é por ele atravessada.

Longe de pretender abordar a docilização dos corpos para uma adaptação do sujeito ao trabalho mecânico ou para pensar a obediência em termos de influências unilaterais (a “manipulação midiática”, por exemplo), recuperei um pouco de Vigiar e Punir para problematizar de que forma as engrenagens desse grande sistema - o Capitalismo Mundial Integrado, para conversar com as proposições de Guattari (1996) - opera sobre nossos corpos na contemporaneidade. Sibilia (2012), inclusive, destaca que há uma crise atual no funcionamento das engrenagens disciplinares. Além da deterioração do Estado como a antiga megainstituição situada sobre as demais, a autora aponta que “perdem peso e gravidade as investiduras que revestiam figuras-chave da autoridade moderna, como o pai e o professor” (SIBILIA, 2012, p.25).

Outro elemento do filme ajuda a desenrolar a discussão. Após apresentar a aldeia a Thomas, que recém havia sido enviado para dentro da clareira, um dos jovens habitantes do local comenta com o novato o quanto a organização foi útil para a harmonia do lugar. Enquanto trabalham em uma das plantações da clareira, eles conversam:

- Está muito tranquilo, não acha?

- Sei que é difícil de acreditar, mas nem sempre foi assim aqui.

Passamos por dias obscuros. O medo acabou com muitos de nós.

Tivemos muito progresso desde então. Estabelecemos regras e trouxemos a paz. [...] Mas, veja, quer ser útil? Toma, vá pegar mais fertilizante (MAZE RUNNER, 2014, 00:18:12 a 00:20:12).

É possível ver nesse trecho a naturalização da divisão de tarefas como código disciplinar. Também vemos que a disciplina na comunidade da clareira foi estabelecida a partir do medo, sentimento substituído pela sensação de paz trazida pela manutenção da ordem. Se no filme a disciplina está associada à paz, de que maneira somos nós, também, constituídos por ela? O trabalho, para nós, não seria o correspondente à divisão de tarefas apresentada no filme? Seria apenas o trabalho a disciplina que nos constitui ou haveria outros elementos associados a essa nova configuração político-econômica? Aparentemente, a divisão econômica do trabalho expressa a vida útil para a qual somos formados; a política da pedagogia fílmica insiste nela.

Se o filme nos possibilita traçar paralelos com a sociedade disciplinar de Foucault, também podemos utilizá-lo para pensar a realidade contemporânea a partir da perspectiva da sociedade de controle. Enquanto na película o confinamento nos remete diretamente ao conceito moderno da disciplinarização, temos, hoje, segundo Deleuze (1992), sociedades que funcionam por meio de controle contínuo e comunicação instantânea.

Ao falar sobre a crise das instituições, como prisões, escolas e hospitais, o autor comenta que, nas sociedades de controle, o que está sendo implantado são novos tipos de tratamento, de educação e de sanções. Segundo ele, a educação será cada vez menos um meio fechado, assim como o meio profissional (outro meio fechado), “mas os dois desaparecerão em favor de uma terrível formação permanente, de um controle contínuo se exercendo sobre o operário-aluno ou o executivo-universitário” (DELEUZE, 1992, p.216).

Mas por que Deleuze já começava a diferenciar as sociedades disciplinares e as sociedades de controle, nas quais a juventude contemporânea se constitui? O autor esclarece que em cada sociedade opera um tipo de máquina: nas sociedades disciplinares operavam as máquinas energéticas, já nas de controle são os computadores e as máquinas cibernéticas que operam sobre a nossa subjetividade.

TRABALHOS FINAIS

Vemos hoje que o controle sobre o corpo juvenil atende a novas demandas da organização social e econômica em que nos encontramos. Recuperando Deleuze, Sibilia (2012, p.45) destaca que a contemporaneidade é regida pelo excesso de produção e pelo “consumo exacerbado, pelo marketing e pela publicidade, pelos fluxos financeiros em tempo real e pela interconexão em redes globais de comunicação”. Nessa nova configuração, a autora fala da empresa como a atual instituição-modelo, ao redor da qual edificou-se uma mitologia baseada no desempenho individual e no culto da performance.

E é justamente na transição fábrica-empresa que podemos ver uma das principais diferenças entre as sociedades disciplinares e de controle, segundo Deleuze:

A fábrica constituía os indivíduos em um só corpo, para a dupla vantagem do patronato que vigiava cada elemento na massa, e dos sindicatos que mobilizavam uma massa de resistência; mas a empresa introduz o tempo todo uma rivalidade inexpiável como sã emulação, excelente motivação que contrapõe os indivíduos entre si e atravessa cada um, dividindo-o em si mesmo. O princípio modulador do “salário por mérito” tenta a própria educação nacional: com efeito, assim como a empresa substitui a fábrica, a formação permanente tende a substituir a escola, e o controle contínuo substitui o exame. Este é o meio mais garantido de entregar a escola à empresa (DELEUZE, 1992, p.221).

Oportunamente, Sibilia (2012) trabalha com a mesma inquietação que essa discussão me proporcionou. Ao falar sobre esse novo contexto do qual fazemos parte, a autora alerta para a necessidade de indagar “como se encarnam essa docilidade e essa utilidade no tempo presente, e em que medida essas tendências poderiam (ou mereceriam) ser recebidas com resistência” (SIBILIA, 2012, p.47). Embora não vivamos literalmente cercados por um labirinto dentro do qual nos organizamos hierarquicamente para a manutenção da ordem, arrisco supor que a nova lógica mercadológica e comunicacional que nos abraça solicita aos jovens uma disposição muito maior para o consumo do que para o trabalho. É claro que para haver consumo deve haver trabalho, mas é cada vez mais perceptível uma inversão da lógica também do próprio trabalho, que passa não mais a ser necessário apenas para a sobrevivência, mas para inserir-nos na lógica do consumo. Ao integrar essa nova configuração, entretanto, vivenciamos um grande paradoxo, conforme aponta Bifo:

Quanto mais tempo dedicamos à aquisição de meios para poder consumir, menos nos sobra para poder desfrutar do mundo disponível. [...] Para ter mais poder econômico (mais dinheiro, mais crédito) é necessário emprestar cada vez mais tempo ao trabalho socialmente homologado. Mas isso supõe reduzir o tempo de gozo, de experimentação, de vida (BIFO, 2007, p.87).

Além do trabalho em si, a escola entra aqui também como aparelho da sociedade de controle, já que, na era do mercado, ela muitas vezes assume a função de preparação para ele. O trabalho “socialmente homologado”, como fala Bifo. Para o autor, o trabalho que caracteriza essa geração possui uma uniformidade física: permanecemos sentados diante de uma tela e diferenciamos nossa produção pelo conteúdo, geralmente criativo, daquilo que fazemos. Não mais mecânico, o trabalho hoje é difícil de ser mensurado e, por isso, trabalhamos muito mais - e por vontade própria - do que se trabalhava antigamente.

Por um lado, nós, jovens, somos formados para o consumo: para caber na roupa da vitrine, moldamos nosso corpo ao padrão de beleza vigente; para pertencer a determinado grupo, adotamos (compramos!) um estilo de vida capaz de nos inserir nele. Por outro lado - dos múltiplos lados -, somos impelidos a também consumir nosso trabalho: livre da carga negativa que a palavra “trabalho” trazia, hoje desenvolvemos nossas atividades quase como consumimos. O trabalho, parece, virou prazer. E esse prazer tem saído caro. Poderíamos, nós, sair desse labirinto?

REFERÊNCIAS

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REFERÊNCIA FÍLMICA:

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