INTRODUÇÃO
Este artigo tem o intuito de analisar a inclusão educacional de crianças com Necessidades Educacionais Especiais (NEE) na Educação Infantil3, conforme ofertada pela rede municipal de ensino de uma pequena cidade localizada no sul do estado de Mato Grosso do Sul, no ano de 20164. De início, vale ressaltar que o termo necessidades educacionais especiais é aqui utilizado por sua amplitude e por abranger qualquer tipo de diferença significativa no desenvolvimento e aprendizagem das crianças, segundo a percepção dos participantes do estudo, sem fechar, a priori, apenas no conceito mais específico de deficiência. Afinal, durante a Educação Infantil, nem sempre se tem clareza acerca da condição ontogenética das crianças, de modo que, em muitos casos, seria apressado tachá-las como “deficientes”.
Por outro lado, é preciso justificar que o interesse quanto à inclusão de crianças com NEE nos centros de Educação Infantil é ainda recente, ganhando impulso com a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, oficialmente lançada em 2008 (BRASIL, 2008), que salienta a transversalidade da Educação Especial. Assim, esta é enfatizada como uma modalidade de ensino que perpassa todas as demais etapas e modalidades da educação formal, integrando-se aos tempos e espaços da escolarização comum, na forma de suportes e apoios para a inclusão dos estudantes público-alvo5 da Educação Especial junto aos pares de sua geração. Logo, na Educação Infantil também deve haver Atendimento Educacional Especializado (AEE) para que as crianças com NEE tenham condições de usufruir dessa que é a primeira etapa da educação básica (BRASIL, 1996).
Diante desse cenário, o objetivo geral que motivou a realização deste estudo foi compreender o processo de inclusão educacional de crianças com NEE na Educação Infantil da rede municipal de ensino desse município, no ano letivo de 2016. Esse ano emerge como um marco no contexto educacional brasileiro devido à implementação da Emenda Constitucional nº 59, de 11 de novembro de 2009 (BRASIL, 2009a). Tal emenda previa que, progressivamente, até 2016, a escolaridade obrigatória e gratuita se estendesse, no sistema escolar brasileiro, dos 4 a 17 anos (BRASIL, 2009a), sendo regulamentada pela Lei n. 12.796, de 4 de abril de 2013 (BRASIL, 2013), ora em vigor. Assim, se antes havia pouca ênfase na inclusão educacional de crianças pequenas na Educação Infantil, tal realidade, doravante, tende a ser alterada, pelo menos na pré-escola.
Nesse contexto, torna-se relevante conhecer, por meio de novas pesquisas, como está se desenrolando esse processo, perspectivando o futuro. Por outro lado, é preciso ponderar que as interfaces entre a Educação Especial na perspectiva inclusiva e a Educação Infantil não têm sido exploradas a contento na literatura especializada, porquanto ainda se nota “[...] a ausência de pesquisas que discutam a educação inclusiva no contexto da Educação Infantil o que provoca lacunas na produção científica neste âmbito” (MENDES, 2009, p. 20). Essa constatação é corroborada por Dantas (2012, p. 27), para quem “[...] existem poucos estudos publicados sobre a inclusão na educação infantil”.
Entendemos que o caso do município pesquisado pode contribuir, então, para suscitar reflexões pertinentes ao novo cenário educacional. Para tanto, definimos, como objetivos específicos da pesquisa: a) realizar um mapeamento das crianças com NEE matriculadas em instituições de Educação Infantil daquela rede municipal de ensino; b) investigar como é feita a triagem e atendimento dessas crianças; c) analisar, em ambientes escolares comuns e especializados, a prática pedagógica dos professores dessas crianças; e d) pesquisar as concepções desses professores sobre a inclusão dos alunos com NEE em suas turmas no ano de 2016. Os resultados encontrados ajudam a pensar os limites e os desafios prospectivos da educação inclusiva no âmbito da Educação Infantil, como se poderá constatar em seguida.
1 EDUCAÇÃO INFANTIL E INCLUSÃO
No Brasil, de acordo com os estudos de Kramer (2006), o olhar para a criança de 0 a 6 anos foi sendo transformado ao longo tempo. Inicialmente, buscava-se suprir algumas carências infantis, ou seja, a atenção às crianças pequenas tinha um acentuado caráter assistencialista, principalmente em relação àquelas vindas das camadas populares, como defendiam as políticas implementadas pelo governo brasileiro na década de 1970, que concebiam tais crianças como seres frágeis, carentes, deficientes e imaturos. Alguns teóricos e estudiosos passaram a contestar, porém, essa perspectiva assistencialista e compensatória, com base nos avanços democráticos da década de 1980. A partir disso, surgiram diversas discussões em defesa das crianças, de modo que, de lá para cá, “[...] ao mesmo tempo em que começaram a ter sua especificidade respeitada, as crianças passaram a ser consideradas [...] cidadãs, parte de sua classe, grupo, cultura. Assistência, saúde e educação passaram a ser compreendidas como direito social de todas as crianças” (KRAMER, 2006, p. 800).
Com a Constituição Federal de 1988, elas passaram a ser mais vistas e respeitadas, tendo seus direitos garantidos em lei (BRASIL, 1988). Tanto que, segundo Nunes (2015, p. 55), essa Carta Magna, “[...] no Artigo 208 (Inciso IV) assevera que, a educação infantil é um direito subjetivo das crianças de zero a seis anos, sendo dever do Estado assegurá-la em creches e pré-escolas6”. Posteriormente, a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) de 1996 reconheceu a Educação Infantil como primeira etapa da educação básica (BRASIL, 1996), incorporando-a definitivamente ao sistema de ensino brasileiro; portanto, não mais com enfoque assistencial como outrora. Nunes (2015, p. 58) explicita que:
Em relação à educação infantil, esta LDB reforçou os preceitos do direito de educação para todos ao colocar que, o atendimento das crianças de zero a seis anos é responsabilidade das instituições educacionais, representando um dos marcos legais que buscam a quebra do paradigma assistencialista. Além disso, estabeleceu que, a educação infantil passava a ser uma das etapas da educação básica e a educação especial fazia parte do sistema educacional, como modalidade. Portanto, as duas saem da condição de ‘fora’ da educação básica.
Em que pesem as conquistas mencionadas, há muito que se avançar na educação de crianças pequenas, pois ainda existem resquícios do caráter assistencialista nas práticas pedagógicas das instituições de Educação Infantil, gerando uma dicotomia entre o cuidar e o educar, dimensões que, nessa etapa, deveriam ser indissociáveis. No caso particular das crianças com NEE, estas têm enfrentado uma dupla discriminação, por serem crianças e sujeitos com deficiência, já que as duas situações são historicamente marcadas por práticas de exclusão, negligência, vulnerabilidade e inferiorização social. Nesse mesmo aspecto, Nunes (2015, p. 42) ressalta que:
Ao analisar a caminhada da Educação Especial e da Educação Infantil verifica-se ser similar em vários aspectos e momentos, para estes dois públicos, que durante séculos foram excluídos, estigmatizados e colocados na condição de subalternidade diante da sociedade. Embora haja especificidades nessas duas trajetórias, parte-se do pressuposto de que há um entrecruzamento de concepções e perspectivas.
No que se refere à defesa da inclusão escolar das crianças com NEE, importante marco histórico foi a Declaração Mundial de Educação para Todos, pensada na Conferência de Educação para Todos, realizada em Jomtien, na Tailândia, em 1990. Essa declaração propôs uma educação escolar que suprisse as necessidades básicas de aprendizagem dos estudantes, mediante o desenvolvimento pleno do indivíduo no âmbito social e cognitivo. Logo depois, com a Declaração de Salamanca e Linha de Ação sobre Necessidades Educativas Especiais, formulada em 1994, na Espanha, o atendimento à Educação Especial foi enfatizado, com a proposta de se incluir todas as crianças, inclusive aquelas com deficiências graves ou apenas com dificuldades de aprendizagem, no ensino comum.
No Brasil, com a promulgação da LDBEN 9.394/96, a inclusão de crianças público-alvo da Educação Especial na Educação Infantil passou a ser mais pesquisada, porém ainda com poucos estudos na área (LIMA; MACHADO, 2012; MENDES, 2010; SILVA, 2015; VITTA, 2010; VITTA; SILVA; ZANIOLO, 2016). Vitta (2010) explicita que há poucas pesquisas sobre a inclusão escolar na Educação Infantil e que os poucos dados levantados, muitos deles incompletos, permitem perceber que a Educação Especial inclusiva ainda está em processo de organização na Educação Infantil brasileira. Particularmente no que tange à creche, não se tem clareza de como devem ser ofertados os serviços educacionais a crianças menores de 3 anos, sendo necessário ampliar as discussões sobre a implementação da educação inclusiva nessa faixa etária. Além disso, como evidenciado por Vitta, Silva e Zaniolo (2016, p. 21):
É possível constatarmos que esse atendimento na creche é nomeado como estimulação precoce, criando uma ambiguidade por ser também designado, ao mesmo tempo, como modalidade de Educação Especial, o que dá a impressão de que não há inclusão da criança com deficiências, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação nessa faixa etária, ou que não existam dados que permitam um delineamento mais apurado da situação.
Em que pesem tais ambiguidades, sabe-se, todavia, que a intervenção precoce na Educação Infantil também é de extrema importância para o desenvolvimento da criança com NEE, como podemos identificar na análise de Amorim e Araújo (2016). As autoras defendem “que esta etapa escolar oferece um currículo que favorece o desenvolvimento de competências básicas para o aprendizado de funções superiores, exploradas e adquiridas nas seriações subsequentes” (AMORIM; ARAÚJO, 2016, p. 124). A respeito dessa intervenção nos centros de Educação Infantil, documento do Ministério da Educação brasileiro salienta que:
[...] a educação infantil, proposta nos espaços da creche e pré-escola, possibilitará que a criança com deficiência experimente aquilo que outros bebês e crianças da mesma idade estão vivenciando: brincadeiras corporais, sensoriais, músicas, estórias, cores, formas, tempo e espaço e afeto.
Buscando construir bases e alicerces para o aprendizado, a criança pequena com deficiência também necessita experimentar, movimentar-se e deslocar-se (mesmo do seu jeito diferente); necessita tocar, perceber e comparar; entrar, sair, compor e desfazer; necessita significar o que percebe com os sentidos, como qualquer outra criança de sua idade (BERSCH; MACHADO, 2007, p.19).
Segundo os estudos de Mendes (2010), a importância dessa intervenção precoce é discutida e praticada desde a década de 1960, porém essa prática demanda programas de intervenção bem organizados e planejados que atendam à especificidade da criança e lhe proporcionem maior desenvolvimento cognitivo, pois quanto mais experiências essas crianças vivenciarem, maior será seu desenvolvimento. Por isso, conforme expresso na Política Nacional de Educação Especial na perspectiva inclusiva, “Do nascimento aos três anos, o atendimento educacional especializado se expressa por meio de serviços de intervenção precoce que objetivam otimizar o processo de desenvolvimento e aprendizagem em interface com os serviços de saúde e assistência social” (BRASIL, 2008, p.16).
Dessa forma, deve-se evidenciar a diferença entre estimulação precoce e Educação Especial, para não entendê-las como sinônimos, mas sim como complementares na busca pela efetividade da educação inclusiva. Segundo Borges (2016, p. 11),
A estimulação precoce é o primeiro programa educacional dirigido às crianças público alvo da educação especial, na faixa etária de zero a três anos. Na Educação Infantil a estimulação precoce pode ser usada como uma forma de promover o desenvolvimento integral da criança público alvo da educação especial, que devido as suas características particulares necessitam de maior estimulação.
Nesse sentido, os centros de Educação Infantil, com a proposta de educação inclusiva, devem prover todos os meios para propiciar o aprendizado das crianças com NEE, que a fortiori necessitam desse espaço para o amplo desenvolvimento de suas potencialidades, recebendo a devida estimulação para tal fim.
2 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
A abordagem utilizada para entender como tem ocorrido o processo de inclusão de crianças com NEE na Educação Infantil, no contexto da realidade investigada, foi aquela de cunho qualitativo. Segundo Neves (1996), pela pesquisa qualitativa é possível entender os fenômenos pesquisados por meio da visão dos participantes do estudo e, assim, descrever e interpretar os dados adquiridos. Dito de outro modo, essa abordagem possibilita compreender e explicar a dinâmica das situações em análise, evidenciando, no caso deste artigo, as percepções subjetivas sobre o processo de inclusão escolar.
No que tange aos procedimentos empregados para viabilizar essa investigação qualitativa, recorreu-se às pesquisas bibliográfica, documental e de campo. Em relação às pesquisas bibliográfica e documental, segundo Sá-Silva, Almeida e Guindani (2009), embora as duas sejam tidas, erroneamente, como sinônimos, há, todavia, muitas diferenças entre elas. A bibliográfica utiliza-se de material produzido por vários autores sobre uma temática; a documental, por sua vez, recorre a materiais que ainda não receberam tratamento analítico. É também de campo, pois foi observado o meio próprio dos sujeitos. Já na pesquisa de campo, conforme Severino (2007, p. 123), “a coleta de dados é feita nas condições naturais em que os fenômenos ocorrem, sendo assim diretamente observados, sem intervenção e manuseio por parte do pesquisador.”
Dessa forma, a pesquisa realizada se configurou, também, como um estudo de caso, adotando-se como técnicas de coleta de dados, além das informações obtidas por meio dos estudos bibliográficos, a entrevista semiestruturada, a observação sistemática e não participante e a análise de documentos consultados. Operacionalmente, adotou-se, ainda, o trabalho de mapeamento das crianças com NEE matriculadas na Educação Infantil ofertada pela rede municipal de ensino. Nos subitens seguintes, essas técnicas são apresentadas em mais detalhes.
2.1 Da entrevista semiestruturada e dos participantes da pesquisa
O tipo de entrevista utilizado foi a semiestruturada, porque, nas pesquisas de abordagem qualitativa, segundo Belei et al. (2008, p. 189), pautando-se em Fujisawa7,
Um dos modelos mais utilizado é o da entrevista semi-estruturada, guiada pelo roteiro de questões, o qual permite uma organização flexível e ampliação dos questionamentos à medida que as informações vão sendo fornecidas pelo entrevistado.
A entrevista semiestruturada, mediante a elaboração prévia de roteiros, foi realizada com 3 coordenadoras pedagógicas de Centros de Educação Infantil, 1 coordenadora pedagógica de uma escola municipal onde havia oferta de pré-escola, 3 professoras da Educação Infantil, 1 técnica da Educação Especial e 1 da Educação Infantil, todas da rede municipal de ensino. Primeiramente, foram entrevistadas, individualmente, as coordenadoras dos centros de Educação Infantil e da escola municipal, para saber das mesmas se havia crianças com NEE matriculadas no ano letivo de 2016.
Posteriormente, a entrevista foi direcionada para a responsável pelo setor de Educação Especial na rede municipal de ensino e, depois, para a Técnica Pedagógica da Educação Infantil, para averiguar se havia atendimento especializado nos centros de Educação Infantil do município e, caso houvesse, como o serviço era ofertado. E, por fim, a entrevista foi feita com as professoras que possuíam alunos identificados com tais necessidades em suas turmas, buscando-se compreender suas concepções sobre a inclusão educacional das crianças pequenas com NEE, bem como verificar suas práticas pedagógicas.
As entrevistas foram marcadas previamente para esclarecimentos sobre os objetivos do estudo com as participantes, que aceitaram ter seus relatos gravados em áudio. Para isso, assinaram o Termo de Consentimento Livre Esclarecido (TCLE) para participarem da pesquisa. Posteriormente, suas falas foram transcritas e categorizadas de acordo com os objetivos do estudo.
O Quadro 1 apresenta, de modo sintético, os sujeitos entrevistados e funções que exerciam, em 2016, no contexto da rede municipal de ensino. Todos os participantes da pesquisa e as instituições a que estavam vinculados receberam nomes fictícios neste texto, para preservar suas respectivas identidades, como previsto no TCLE e nas exigências éticas de investigações envolvendo pessoas.
Sujeitos | Local de trabalho | Função |
Relma (R) | Centro de Educação Infantil SPA | Coordenadora Pedagógica |
Sonia (S) | Escola Municipal JP | Coordenadora Pedagógica |
Eniceia (E) | Centro de Educação Infantil PP | Coordenadora Pedagógica |
Julia (J) | Centro de Educação Infantil K | Coordenadora Pedagógica |
Gabriely (G) | Secretaria de Educação | Técnica de Educação Infantil |
Fabiana (F) | Escola Municipal JP | Técnica de Educação Especial |
Claudia (C) | Centro de Educação Infantil SPA | Professora |
Alexandra (A) | Escola Municipal JP | Professora |
Laura (L) | Centro de Educação Infantil PP | Professora |
Fonte: Os autores.
2.2 Da observação sistemática e não participante
Segundo Severino (2007, p. 125), “observação é todo o procedimento que permite acesso aos fenômenos estudados. É etapa imprescindível em qualquer tipo ou modalidade de pesquisa”. A observação não participante possibilita maior distanciamento para análise da realidade da instituição. No caso desta pesquisa, a observação sistemática e não participante foi realizada nos locais de Educação Infantil que, de acordo com as coordenadoras pedagógicas, a técnica de Educação Especial e a técnica de Educação Infantil da rede municipal de ensino, havia crianças com NEE matriculadas.
Pelo município, há oferta de Educação Infantil em 4 instituições de ensino comum, sendo 3 centros de Educação Infantil e 1 escola municipal com oferta de pré-escola, tal como evidenciado no Quadro 1. Todavia, em apenas 2 centros e na escola havia crianças com NEE matriculadas em 2016. Por isso, foram observados esses dois centros de Educação Infantil, sendo que um oferecia creche (0 aos 3 anos) e pré-escola (4 aos 5 anos) e o outro somente pré-escola, mais a escola municipal. Nesses espaços, analisou-se como ocorria o atendimento educacional dessas crianças e como era realizada a prática pedagógica das professoras diante da inclusão escolar nas turmas de Educação Infantil.
Para a realização das observações, as instituições com oferta de Educação Infantil eleitas para a pesquisa, representadas pelas respectivas diretoras, assinaram uma autorização permitindo a continuidade da coleta de dados in loco. Foi elaborado um roteiro de observação com alguns itens a serem focados, como os materiais pedagógicos utilizados em sala; estrutura arquitetônica e física das instituições; interação entre a(s) criança(s) com NEE, a professora, os profissionais de apoio - se houvesse -, e demais crianças; atividades feitas na classe de Educação Infantil; estratégias pedagógicas utilizadas pela professora e apoio(s) destinado(s) à(s) criança(s) com NEE.
Para o registro das observações foi utilizado como instrumento um diário de campo. Foram quatro dias de observação de 4 horas em cada turma, sendo que na Escola Municipal JP e no Centro de Educação Infantil SPA as respectivas crianças com NEE estavam matriculadas apenas no período vespertino. Já no Centro de Educação Infantil PP, as crianças com NEE encontradas frequentavam a instituição no período matutino e vespertino, na mesma turma.
2.3 Análise de documentos
Durante esta pesquisa, foi realizada a análise de alguns documentos legais, ou seja, buscou-se extrair da política educacional nacional informações de como deveria ser a inclusão dessas crianças na Educação Infantil, a fim de contrapor com o que ocorre na realidade investigada. Os principais documentos utilizados para análise, além da legislação sobre a educação em geral, foram: as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil, a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva e as Notas Técnicas Conjuntas n. 04/2014 e n. 02/2015 MEC/SECADI/DPEE (BRASIL, 2014, 2015).
3 RESULTADOS E DISCUSSÕES
Os resultados foram divididos em categorias temáticas segundo os objetivos da pesquisa: mapeamento das crianças com NEE matriculadas na Educação Infantil da rede municipal de ensino; triagem e atendimento delas; a prática pedagógica das professoras e suas concepções sobre a inclusão dessas crianças nas turmas de Educação Infantil. Nos subitens a seguir, são desenvolvidas as análises qualitativas correspondentes a tais categorias.
3.1 Mapeamento e identificação das crianças com NEE
No mapeamento das crianças com NEE, a partir das entrevistas realizadas, pôde-se constatar que somente três instituições tinham matriculados indivíduos com NEE. O total de crianças indicadas foi de três em todo o município, sendo que só foram citadas, inicialmente, crianças com laudo médico. As instituições que possuíam crianças com NEE matriculadas foram a Escola JP, o Centro de Educação Infantil PP e o Centro de Educação Infantil SPA. Elas foram citadas pelas coordenadoras Relma (R), Sonia (S), Eniceia (E), Técnica de Educação Infantil Gabriely (G) e Técnica de Educação Especial Fabiana (F). Porém, após as entrevistas, no momento da observação no CEI PP, foi matriculada mais uma criança na mesma turma de uma daquelas já mencionadas pelas entrevistadas. Pôde-se constatar que três delas têm deficiência física e uma hidrocefalia.
A deficiência física refere-se ao comprometimento do aparelho locomotor que afeta os sistemas osteoarticular, muscular e nervoso. Esses sistemas são prejudicados por qualquer grau de complexidade e tipo de doença ou lesão que os acometa, podendo produzir quadros de limitações físicas (BRASIL, 2006).
Já a hidrocefalia é caracterizada como uma má formação no Sistema Nervoso Central (SNC), que ocasiona um aumento da quantidade de líquido cefalorraquidiano, também chamado líquor, dentro da caixa craniana. O tratamento, na maioria dos casos, é cirúrgico, mas também são utilizados medicamentos para diminuir esse líquido no cérebro. Quando não há um imediato tratamento, a criança pode apresentar distúrbios motores e falhas no desenvolvimento de funções cognitivas (ALCÂNTARA, 2009).
O Quadro 2 resume a caracterização das crianças elencadas pelas entrevistadas. Aquelas, como estas, receberam, também, codinomes para preservar sua identidade.
Nome | Idade | CEI/Escola | Turma | NEE apresentada |
Lucas | 3 anos | CEI PP | Jardim | Deficiência física/dificuldade motora |
Eduarda | 3 anos | CEI PP | Jardim | Deficiência Física/dificuldade motora |
Matheus | 5 anos | CEI SPA | Pré-escola | Deficiência Física/dificuldade motora |
Vanessa | 5 anos | Escola JP | Pré-escola | Hidrocefalia |
Fonte: os autores.
Mediante o exposto, no que se refere às turmas observadas, foram duas turmas de pré-escola, sendo uma localizada na escola municipal denominada JP; a outra, no Centro de Educação Infantil SPA, mais uma de jardim I do Centro de Educação Infantil PP. Não houve indicação de crianças menores de três anos, relativas à creche, pelos profissionais da rede municipal de ensino.
3.2 Triagem e atendimento
A triagem ou identificação das crianças com NEE nas três instituições foi feita, primeiramente, a partir da fala dos familiares no ato da matrícula ou observação de comportamentos pelas professoras, como podemos perceber pelo relato das coordenadoras Relma (R), Sonia (S), Eniceia (E) e da técnica Gabriely (G).
Pesq: Como elas são identificadas como crianças com necessidades educacionais especiais?
Foi identificado pelo comportamento que elas têm, elas são crianças que não retêm o aprendizado. Você ensina elas hoje, amanhã elas já não sabem. Elas não socializam com as outras crianças; elas têm dificuldades de socialização e apresentam muita agressividade, choro, aparentemente hiperatividade, que a gente não tem nada comprovado, mas, como leigo, como professor leigo [isto é, em Educação Especial], a gente imagina que seja isso, que eles não têm... na verdade eles não tem um comportamento igual aos demais. Então, por isso, a gente deduz que eles sejam algum... algo diferente (Coordenadora R).
No começo, a mãe matriculou e não falou nada. Aí, quando aconteceu um dia de ela fazer cocô na sala, nós ligamos para a mãe, avisamos que ela tinha feito cocô, para a mãe poder trazer uma roupinha trocada. Aí a mãe passou para a gente a situação da menina (Coordenadora S).
Na verdade, a procura foi da mãe. A mãe nos procurou e nos relatou essa dificuldade que ele tem. E perguntou se a gente pegava ele por conta dessa dificuldade... na ficha de matrícula, no ato de se fazer a matrícula já tem um questionário e a gente pergunta sobre... (Coordenadora E).
Olha, eles fizeram a matrícula e, no ato da matrícula, os pais já falaram que ele precisava de uma pessoa para ajudar. A gente tem a Fabiana (F) também que é a técnica de Educação Especial, que trabalha com a gente. É ela que faz esse processo. O diretor chama e ela vai até a unidade [escolar] e se for [comprometimento] físico, nem precisa do laudo, mas se não for físico, porque a gente também tem crianças com outras necessidades, daí tem que ter o laudo, tudo certinho. E ela [F] analisa quem que precisa de um acompanhante ou não. Mas daí a gente identificou mesmo, no ato da matrícula. A mãe foi primeiro e já disse. Aí a gente já se preparou para receber essas duas crianças [com NEE] (Técnica G).
A partir das falas das profissionais, nota-se a valorização do laudo médico como critério que define a oferta ou não do apoio para a aprendizagem da criança com NEE, além de um diálogo por vezes limitado e falho com as famílias, cabendo mais a estas a iniciativa de relatar as necessidades educacionais das crianças, em vez de a instituição de Educação Infantil adotar uma prática investigativa ao recebê-las. Vale ressaltar que, de acordo com as orientações sobre a Educação Especial, emanadas do Ministério da Educação, o laudo médico não é pré- requisito para a disponibilização de AEE ou para a oferta de quaisquer suportes educacionais à criança com NEE na escola comum inclusiva. Entende-se que a educação é considerada um direito do indivíduo e não pode ser cerceada por exigência desse documento (BRASIL, 2014), “[...] uma vez que o AEE caracteriza-se por atendimento pedagógico e não clínico” (BRASIL, 2014, p. 3). Assim sendo,
A exigência de diagnóstico clínico dos estudantes com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento, altas habilidades/superdotação, para declará-lo, no Censo Escolar, público alvo da educação especial e, por conseguinte, garantir-lhes o atendimento de suas especificidades educacionais, denotaria imposição de barreiras ao seu acesso aos sistemas de ensino, configurando-se em discriminação e cerceamento de direito (BRASIL, 2014, p.3).
Logo, tais observações das entrevistadas demonstram um desconhecimento sobre as orientações oficiais do governo brasileiro e insegurança com relação ao atendimento das crianças nessa condição, esperando, muitas vezes, que a própria família já prescreva o tipo de apoio pedagógico que a criança necessita ou que se encarregue de providenciar o tal laudo. Essa constatação vai ao encontro dos resultados da pesquisa de Santiago, Santos e Melo (2017), vinculada ao Observatório Nacional da Educação Especial (Oneesp) no estado do Rio de Janeiro (Oeerj). De acordo com as autoras,
Nos casos em que as diferenças/deficiências podem não ser percebidas imediatamente, há uma ‘insistência’ (culturas e práticas) na obtenção de laudo e, em alguns casos, ocorre até mesmo uma pressão sobre a família (práticas) do aluno no processo de obtenção desse laudo com o diagnóstico da deficiência ou do transtorno do aluno (SANTIAGO; SANTOS; MELO, 2017, p. 5).
Desse modo, nas instituições pesquisadas no município sul-mato-grossense, acaba-se adiando ou até mesmo negando o trabalho pedagógico necessário para mediar o desenvolvimento e aprendizagem de tais crianças, porquanto se fica sempre à espera desse laudo clínico, cujo conhecimento traria, por si só, indicações e respostas de como se trabalhar com crianças que apresentem NEE no espaço educacional. Como evidenciado neste trecho pela coordenadora (R):
[...] Então, o que é que acontece: a gente passa para os pais. É obrigação do pai buscar ajuda médica com especialista, e aí a gente aguarda o resultado, que, infelizmente, até agora a gente não tem nenhum resultado positivo para que consiga uma pessoa de acompanhante, porque se tivesse alguém acompanhando tanto um quanto o outro desses que não tem laudo, talvez eles tivessem um grande avanço [...]. No momento, nós buscamos junto com os pais e a secretaria de educação, mas pedimos que eles busquem ajuda com profissionais, com ... as pessoas, psicólogo, médico pra que a gente entenda como trabalhar na unidade [escolar].
Aliás, o único apoio pedagógico especializado na Educação Infantil desse município são as professoras de apoio (as das salas observadas, todas com nível superior) que acompanham as professoras regentes, nas turmas comuns. Tal apoio, todavia, é condicionado ao laudo médico da criança para que o professor regente tenha o direito desse profissional em sala para auxiliá-lo com a criança com NEE, conforme relatado. Nas falas da Coordenadora (R), da técnica de Educação Infantil (G) e da Técnica de Educação Especial (F), fica comprovado esse aspecto de condicionar ao laudo médico a disponibilização de apoios às crianças, apesar de não haver legislação que respalde tal prática, corriqueiramente adotada pelo país:
[...] Não. No momento não, porque para ter professor de apoio, precisa ter laudo médico e nenhum tem laudo médico. [Apenas] Esse tem, o que é cadeirante, ele tem a professora que é orientadora dele, que acompanha ele o tempo todo. Ele tem alguém especial para ele (Coordenadora R).
[...] São os que tem problemas neurológicos é, deficiência de... déficit de atenção, essas coisas, porque nem sempre a lei ampara que tem uma pessoa pra cuidar deles. Um professor, por exemplo, com 25 ou 30 crianças numa sala, mesmo que tenha uma estagiária ajudando - o estagiário está lá para ajudar o professor - e, de repente, tem uma, duas crianças com esses déficits de várias coisas que tem até com laudo e a justiça, por exemplo, a lei não ampara para ter uma pessoa só para ele. Aí a gente tem bastante dificuldade nisso, eu acredito que as escolas sofrem com isso (Técnica G).
[...] Aí eu faço anamnese com a mãe. Primeiro, é a partir do que a mãe fala. Depois, no primeiro dia de aula, assim, já teve casos de antes de iniciar a aula, eu chamo a mãe aqui. Dependendo do laudo, já peço para ela trazer a criança e aí já inicia com o professor de apoio; dependendo do laudo, eu escuto a mãe, espero os primeiros dias de aula para os professores também conhecerem a criança, e a gente ver se realmente tem a necessidade de um professor de apoio ou não (Técnica F).
Em particular na fala da Técnica (F), é notória a apropriação do discurso clínico-médico, demarcado pelo emprego do termo “anamnese”, típico dos procedimentos da clínica médica. Como esclarecem Santos, Veiga e Andrade (2011, p. 356), “A anamnese é definida como a primeira fase de um processo, na qual a coleta destes dados permite ao profissional de saúde identificar problemas, determinar diagnósticos, planejar e implementar a sua assistência [do paciente].” Essa valorização do laudo médico é bem evidente em várias pesquisas na área da Educação Especial em todos os níveis de ensino. O município pesquisado corrobora essa perspectiva nacional. Como relatam Santiago, Santos e Melo (2017, p. 4), para os professores especialistas e gestores escolares, “[...] a preocupação com o laudo médico é contínua e central, principalmente em casos em que a deficiência não é aparente”.
É preciso ponderar que, se de um lado é importante saber como é o aluno com NEE, como ele se desenvolve, quais suas dificuldades; de outro, porém, não se pode limitar a prática pedagógica a esse tipo de diagnóstico, porque corre-se o risco de se rotular a criança e perder de vista o enfoque pedagógico que caracteriza o AEE. Nessa direção, Pereira e Grave (2012, p. 108), pautando-se em Buscaglia8, lembram que, no caso do indivíduo com NEE/deficiência, “[...] lhe é tirado o lugar de sujeito, ele é o ‘deficiente’, o ‘cego’, o ‘surdo’, o ‘aleijado’, enfim, é visto pelas suas limitações, nunca pelas suas possibilidades”. O discurso da coordenadora (R) apresenta essa problemática de enxergar o aluno somente pelas suas limitações e de rotulá-lo como alguém que não aprende:
Pesq: Como elas [as crianças com NEE] são recebidas pelo Centro de Educação Infantil?
Normalmente, como todas as outras crianças. São tratadas da mesma forma. O mesmo trabalho que é desenvolvido com as demais crianças, é desenvolvido com ela, com essas crianças [com NEE]. A diferença está no resultado, que elas não têm resultado positivo. O professor que trabalha diretamente com a criança [com NEE], ele chega a ser um professor frustrado, porque ele não consegue atingir o objetivo dele com essa criança, não só com essa, mas principalmente com ela, porque ela não consegue aprender igual aos demais.
Diante desse relato, é importante indagar: Será mesmo que é essas crianças não têm resultado positivo? Ou há falta de eficiente apoio pedagógico e de uma intervenção precoce para desenvolver as potencialidades desses indivíduos nessa faixa etária? Os professores têm se frustrado porque a criança com NEE não atinge o objetivo que seria esperado dela ou porque os objetivos propostos a essa criança não condizem com suas necessidades e possibilidades? Tais reflexões são necessárias ao educador se se quer avançar na proposta de uma Educação Infantil inclusiva.
3.3 A prática pedagógica das professoras
No que se refere à prática pedagógica das professoras entrevistadas das três instituições de Educação Infantil, houve alguns pontos controversos entre discurso e prática. Na fala das três profissionais, foi mencionado o auxílio de uma professora de apoio em sala e, de acordo com o que foi observado e o discurso delas, tal prática adotada está em conformidade com a Resolução nº 4, de 2 de outubro de 2009 sobre o apoio especializado (BRASIL, 2009b). Essa resolução preconiza que deve constar no projeto pedagógico da escola o provimento de profissionais de apoio para atividades de locomoção, higiene, alimentação, entre outros, que devem atuar de forma articulada com o professor regente. Isso ficou explicitado nas falas das professoras Claudia (C), Alexandra (A) e Laura (L):
[...] ele tem uma monitora que o acompanha e que faz com que... Auxilia ele para poder sentar, poder se arrumar na mesa, que leva ele para poder realizar a troca, porque como ele não utiliza o banheiro normal, ele tem que fazer a troca de fraldas. [...] O único apoio é a monitora mesmo presente que auxilia ele para poder se deslocar, pra poder realizar as necessidades fisiológicas (Professora C).
Tem sim uma pessoa que fica na sala só por causa dela, mas ajuda a sala toda. Mas só está na sala por causa dela (Professora A).
Nós temos uma monitora para cada um. Nós temos uma monitora pra estar com o Lucas e uma monitora pra Eduarda. Então, assim, eu sigo com a minha aula normal. Eles se interagem na minha aula, assim como as outras, só que acompanhados pela monitora. Também eles precisam..., eles usam fralda, eles... A Eduarda só na hora de dormir, que ela ainda consegue ter o sentido para fazer xixi, para fazer cocô. O Lucas não, não tem essa percepção (Professora L).
Nos quatro dias de observações nas três instituições, pôde-se perceber que houve esse apoio de locomoção e auxílio na alimentação aos alunos. Nas atividades em sala, as professoras de apoio auxiliavam a criança com NEE, mas também as demais, caso a professora regente necessitasse. Porém, ainda ficou perceptível que a responsabilidade pela criança com NEE ficava mais para a professora de apoio, como, aliás, transparece nos relatos supracitados.
No que se refere aos materiais pedagógicos e espaço físico para promover a acessibilidade dessas crianças em toda a instituição e na sala de aula, as carteiras, brinquedos e também o parque não eram adaptados. Somente no centro de Educação Infantil SPA havia rampas de acesso, portas mais largas, porém os materiais utilizados em sala ficavam dispostos em um local alto, de difícil acesso pela criança, sendo que a mesma sempre ficava dependente da professora de apoio para buscar esses materias.
Tal forma de organização do espaço não favorece a busca de autonomia e independência pela criança, o que é um dos eixos e objetivos da Educação Infantil. Conforme as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 2010, p. 26), um dos eixos da prática pedagógica, nessa etapa, é justamente garantir experiências que “Possibilitem situações de aprendizagem mediadas para a elaboração da autonomia das crianças nas ações de cuidado pessoal, auto-organização, saúde e bem-estar”.
Na instituição JP, a Professora A relatou que a maior que dificuldade é que o espaço físico da sala que é pequeno: “Então, o que tenho para dizer, que é a dificuldade que temos, é que o espaço é pequeno. Então, como ela tem problema intestinal, vai no banheiro e fica um cheiro na sala toda. E fica desagradável, mas para ela não, ela nem liga, não percebe” (Professora A). De fato, nas observações, pôde-se notar que o espaço físico dessa sala é bem pequeno, já que funciona em uma casa, localizada no fundo da escola, a qual agora é usada como sala para a Educação Infantil (pré-escola). A casa foi dividida em duas salas de aula, sendo que entre elas há um banheiro para as turmas utilizarem.
Tal realidade mostra que ainda persistem os improvisos na educação inclusiva. Para que haja a inclusão de crianças com NEE, também é preciso (re)pensar o espaço físico, conforme a necessidade que elas tenham, além da adequada formação docente e das flexibilizações pedagógicas. No caso de três das quatro crianças observadas, suas necessidades decorriam da deficiência física. Logo, é indispensável promover sua acessibilidade, eliminando as barreiras físicas. Essa questão destaca-se muito mais urgente e relevante do que a simples obtenção de um laudo médico.
Brandão e Ferreira (2013 apud VITTA; SILVA; ZANIOLO, 2016) salientam que, principalmente, quando há atendimento a indivíduos público-alvo da Educação Especial, deve-se ter conhecimentos específicos, adaptações dos espaços físicos e dos materiais para que se possa atender à diversidade e especificidade das crianças, promovendo sua inclusão. Tal forma de trabalho aproxima-se daquela relatada pela Professora (L), que disse promover a estimulação dos pequenos de forma sistemática. Todavia, durante os dias observados em sua turma, não houve essa intervenção docente, que, talvez, até ocorra em outros momentos, apesar de ser necessária cotidianamente, ainda mais nessa etapa da educação básica.
Ainda quanto às prática pedagógicas observadas, não houve diferenciação negativa ou mesmo exclusão explícita das crianças, porém, principalmente na instituição PP, as brincadeiras na sala e no parque eram mais livres e apáticas. A professora L colocava desenhos na televisão para as crianças assistirem e, nas brincadeiras com peças de encaixe e outros brinquedos, não se observou destaque à estimulação pedagógica, visto que foi priorizado o cuidado elementar de “guarda” das crianças, intervindo-se, basicamente, caso ocorresse algum conflito entre elas.
A interação das crianças com NEE com as demais também era, aparentemente, tranquila, diferentemente do discurso da Professora (A), que relatou: “Assim, cá entre nós, como ela é feinha [a Vanessa], as crianças ficam com medo dela, ela é muito brava. Então, eles não se aproximam. Ela é egoísta; não divide nada. Ela tenta se aproximar, mas não deixam”. As crianças não faziam toda essa diferenciação. Dessa forma, a criança da escola JP mencionada pela professora A, participava, sobretudo, de brincadeiras com pecinhas, momento em que interagia com as outras. O preconceito e a repulsa, nesse sentido, parece que estavam mais no olhar da professora que na percepção dos pequenos. Nas instituições analisadas, dificultava a interação o fato de que as demais crianças gostavam de brincadeiras de correr e, certamente, quanto àquelas com deficiência física, ficava difícil acompanhar a turma, sobretudo sem a proposição de outras atividades coletivas pelas professoras,
Logo, talvez tenha faltado uma intervenção pedagógica mais direcionada pelas professoras com vistas a aproximar mais as crianças, com e sem NEE. Como afirma Nunes (2015), a interação é propiciadora da aprendizagem, e o professor é responsável por proporcionar situações de aprendizado, de brincadeiras e diálogos entre todas as crianças para que possam conviver e interagir umas com as outras. Especialmente no caso da criança com NEE, essa interação com o professor e colegas estimula a imitação, a emergência das funções psicológicas superiores e de conceitos e, consequentemente, promove aprendizagem (VIGOTSKI, 2008).
Destarte, nesta pesquisa, com base nas observações das práticas docentes, pôde-se perceber que até havia alguma interação da criança com NEE com sua turma e professoras. Todavia, essa interação, por parte das professoras, nem sempre de forma percebida ou intencional, acabava permeada pela busca de normalização da criança, no sentido de que todas aprendessem e agissem igualmente. A não normalização era traduzida, pelas docentes e técnicas, como frustração em seu trabalho. Essa situação parece trazer resquício das práticas de integração, que, ao contrário da perspectiva de inclusão, preconizavam a adaptação da criança à escola e ao ambiente onde ela estava inserida, e não o contrário, forçando situações homogeneizadoras de ensino e aprendizagem.
3.4 Concepções sobre a inclusão das crianças com NEE
Os profissionais da educação ainda possuem muitas dificuldades de comunicação, angústias e medos no que se refere às crianças com NEE. Dessa forma, muitas vezes atribuem suas dificuldades de ensino à criança e à falta de apoio, seja da família, do poder público ou dos gestores, esquecendo-se de que a prática pedagógica pressupõe uma relação de troca, em que o professor tem seu papel, atitude e responsabilidade (VITTA; VITTA; MONTEIRO, 2010). No discurso das entrevistadas, foram patentes as preocupações em alegar falta de formação, evidenciando, em seus relatos, dúvidas sobre o que seja inclusão e necessidades educacionais especiais, bem como a ausência de propostas de adequações pedagógicas ou de estimulação específica para mediar o desenvolvimento das crianças com NEE, segundo corroboram estes excertos:
[...] A dificuldade que todos os pedagogos têm é de, na verdade, não saber trabalhar com essas crianças que apresentam essa dificuldade, mas que não tem nada comprovado, e que a gente busca ajuda, busca tentar uma solução, mas é que os professores chegam a ficar... [..] (Coordenadora R).
[...] é que, para a professora, ela tem um problema no intestino. Para falar a verdade, essa menina, ela, quando nasceu, ela nasceu com um probleminha no intestino, ela fez cirurgia no intestino. Mas não cabe ser necessidade especial, né, no caso dela? (Coordenadora S).
Olha, vou falar, vou ser bem sincera para você, esse ano está sendo... Eu estudei tudo, fiz a, né... pós, tudo... Mas esse ano é o primeiro ano que estou trabalhando com eles, então, assim, para mim, é uma experiência... É aquele friozinho na barriga, né.... Acreditando, assim, será que a gente vai, né?! Mas eu sou firme; as meninas que estão comigo, perfeitas. E assim o trabalho com eles... o trabalho não é diferenciado [...] (Professora L).
Além disso, persiste o senso comum de que a deficiência física é, por si mesma, uma condição mais fácil de atender no contexto institucional escolar por ser aparente, o que também transparece nos relatos de professoras entrevistadas para a pesquisa de Santiago, Santos e Melo (2017). Por conseguinte, as dificuldades apontadas para inclusão e atendimento das crianças com deficiência física ficam mais relacionadas à falta de recursos materiais e espaço físico, porquanto, nesse caso, não se tratam de limitações cognitivas, as que mais assustam os professores. Como afirmaram as profissionais entrevistadas:
A questão do aprendizado é uma rotina normal, porque a única coisa que impossibilita ele é a deficiência física [...] (Professora C).
Assim, o Lucas, para nós, não tem nada de diferente, assim, que a gente trata ele como uma criança normal. Ele faz as atividades normalmente, participa de tudo, e só mesmo ele tem essa dificuldade [física], né, aí tem alguém para auxiliar [...] (Coordenadora E).
[...] se for físico, né, já ele nem precisa do laudo, mas se não for físico, porque a gente também tem crianças com outras necessidades, e daí tem que ter o laudo tudo certinho [...]. Ainda quando é físico, é mais fácil, mas, por exemplo, a gente tem de Libras em outros lugares que a gente não tem professores formados em Libras suficientes. Isso eu falo nas outras etapas da educação, né, mas no infantil são essas mesmo [deficiências físicas], mas a dificuldade maior não são os deficientes físicos. [...] (Técnica G).
Então na... um é físico, né, é deficiência física. O outro não tem laudo concluído, mas eu falo que é deficiência física sim, pelo fato de que ainda ele não consegue andar [...] (Técnica F).
Fica explícito no discurso das profissionais essa representação de que o trabalho com a criança com deficiência física é facilitado por não interferir no aspecto cognitivo, sendo autoevidente e demandar, sobretudo, a dimensão do cuidado com o corpo da criança, uma prática típica da própria Educação Infantil, que, todavia, não se reduz a essa dimensão. As demais necessidades educacionais especiais, como aquelas decorrentes da deficiência intelectual, por não serem imediatamente reconhecíveis, ou, então, aquelas que demandam o recurso de códigos e linguagens mais especializados, causariam maior inquietação, impacto e até certo desespero entre os professores.
Essa visão está de acordo com os estudos de Vitta, Silva e Moraes (2004), visto que, para os autores citados, os conceitos sobre a deficiência estão pautados no senso comum, ou seja, na visão pessoal e de mundo dos professores. Essas concepções interferem na atitude e práticas de inclusão desses profissionais, pois serão influenciados pelos conhecimentos fragmentados e emocionalmente carregados que têm sobre Educação Especial, inclusão e deficiência. Dessa forma, mesmo sem intenção, podem contribuir para perpetuar práticas pedagógicas excludentes já na Educação Infantil, quando as crianças estão apenas começando sua vivência educacional, em espaços institucionais onde o cuidar e educar precisam ser inseparáveis e sistematicamente planejados.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na tentativa de se compreender o processo de inclusão de crianças com NEE na Educação Infantil de um município de Mato Grosso do Sul, pôde-se perceber inúmeros desafios, dúvidas, inadequações e fragilidades conceituais que dificultam práticas educacionais inclusivas nessa etapa, assim como vem ocorrendo no restante do país. Por outro lado, se essa inclusão, embora problemática, revela-se fundamental para o desenvolvimento infantil, é preciso atentar para o fato de que, pelas legislações nacionais, as crianças até os 3 anos, ao não se enquadrarem na faixa etária de escolaridade obrigatória, podem estar ainda mais desassistidas, justamente no período em que mais necessitam da estimulação intensificada para se desenvolver.
Aliás, os resultados da pesquisa demonstraram, além do reduzido número de crianças com NEE matriculadas em instituições da rede municipal de ensino, a escassez de matrículas de crianças com NEE com menos de 3 anos de idade, fase em que se oferta a creche. Assim, ficou a dúvida sobre onde estão essas crianças e como está o atendimento a elas direcionado, se é que estão recebendo algum. Como sugerem os dados discutidos neste artigo, na Educação Infantil, as crianças com NEE estão e estarão cada vez mais presentes, sobretudo a partir da pré-escola, devido à aprovação recente da lei de obrigatoriedade de matrícula de todos os brasileiros dos 4 aos 17 anos.
Diante dessa nova realidade, é importante que as instituições de Educação Infantil fiquem atentas e busquem conhecer as especificidades e a diversidade de suas crianças focando-se, principalmente, em suas potencialidades de aprendizagem. Para tanto, no caso das crianças com NEE, será preciso constituir programas de estimulação precoce que favoreçam ao máximo seu desenvolvimento, mediante apoios e suportes especializados. Segundo Vitta (2010), essa estimulação propiciada pela Educação Infantil favorece não só o indivíduo que já apresenta uma deficiência confirmada, mas, principalmente, é fundamental para a prevenção de possíveis dificuldades de crianças que não tenham estimulação no ambiente familiar ou que apresentem alguma necessidade especial.
Um avanço importante no caminho para educação inclusiva é o trabalho colaborativo. Nas instituições de Educação Infantil do município, pôde-se notar o embrião dessa prática, com a existência, ainda incipiente, de colaboração entre a professora de apoio, que, todavia, não era especialista em Educação Especial, e a professora regente na mesma classe. Tais práticas precisam ser conscientemente aprimoradas mediante a contribuição de todos os envolvidos no processo educacional, sejam técnicos da secretaria de educação, diretores, coordenadores, família, professores e demais funcionários. É imprescindível, ademais, o planejamento didático conjunto entre essas professoras para que, no contexto da classe comum, as crianças com NEE se beneficiem da educação inclusiva.
Vale ressaltar, porém, que, por definição, o trabalho baseado no ensino colaborativo, conhecido também como coensino, é feito entre um professor de Educação Especial e o professor da sala comum, sendo reconhecido como um dos mais relevantes para proporcionar a inclusão escolar (VILARONGA; MENDES, 2014). No caso da Educação Infantil, a título de exemplo, para se repensar a prática docente na perspectiva da educação inclusiva, os estudos de Amorim e Araújo (2016) demonstram que foi benéfico o AEE ser realizado no mesmo turno em que a criança com NEE estava matriculada, pois tal iniciativa tornou viável essa parceria entre os professores para sanar dúvidas, possibilitando discussões pedagógicas para melhor aprendizado da criança.
Aliás, na Nota Técnica conjunta n° 02/2015 (BRASIL, 2015) fica estabelecida essa articulação entre professor especialista e professor regente. Pelo documento, recomenda-se que, no âmbito da Educação Infantil, ambos atuem no mesmo espaço, de forma articulada, estabelecendo o diálogo para descobrir as necessidades educacionais das crianças público-alvo da Educação Especial e supri-las, eliminando-se as possíveis barreiras existentes com a oferta do AEE no contexto da instituição educacional comum.
Destarte, é indispensável promover, nas redes de ensino, a perspectiva do trabalho colaborativo entre esses profissionais para que se organize uma educação condizente com as demandas específicas das crianças com NEE e, ao mesmo tempo, capaz de mediar o alcance dos objetivos gerais da Educação Infantil, entre estes o de propiciar o desenvolvimento da criança em todos os seus aspectos: físico, motor, cognitivo e psicossocial, tenha esta ou não uma deficiência ou NEE. Esse é o caminho para vislumbrarmos uma educação infantil inclusiva, que apenas se esboça em nosso país.