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Revista Teias

versão impressa ISSN 1518-5370versão On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.19 no.54 Rio de Janeiro jul./set 2018  Epub 05-Set-2021

https://doi.org/10.12957/teias.2018.35672 

Cotidianos, políticas e avaliação

TENSIONANDO CURRÍCULOS NA EDUCAÇÃO INFANTIL

TENSIONING CURRICULUM IN CHILDHOOD EDUCATION

TENSIONADOS CURRÍCULOS EN LA EDUCACIÓN INFANTIL

Cristiana Callai(*) 

Andréa Serpa(*) 

(*)Cristiana Callai. Pedagoga, Mestre e Doutora em Educação. Professora da Universidade Federal Fluminense (UFF).

(*)Andréa Serpa. Pedagoga, Mestre e doutora em Educação. Professora de Universidade Federal Fluminense (UFF).


RESUMO

Este artigo problematiza diferentes concepções de infância, ensino e aprendizagem, currículos e práticas de avaliação que se movem e se confrontam no cotidiano escolar. Pretendemos refletir sobre estes confrontos e suas implicações para pensar a educação das crianças desde a Educação Infantil. Há alguns anos, trabalhando na formação de professoras para o Ensino Fundamental e Educação Infantil, acompanhando as políticas públicas para diferentes redes no Estado do Rio de Janeiro, observamos como ainda se faz necessária a discussão sobre os currículos propostos para a educação das infâncias, como algumas concepções conteudistas e meritocráticas estabelecem-se como hegemônicas, transformando a escola em uma corrida de obstáculos.

Palavras-chave: Avaliação; Currículo; Educação Infantil

ABSTRACT

This article discusses different conceptions of childhood, teaching and learning, curriculum and evaluation practices that move and confront each other in everyday school life. We intend to reflect on these confrontations and their implications for thinking about the education of children since Childhood Education. A few years ago, we were working on teacher education for Elementary and Childhood Education, following the public policies for different networks in the State of Rio de Janeiro, we observed how it is still necessary to discuss the curriculum proposed for the education of children and how some Conduit and meritocratic conceptions establish themselves as hegemonic, transforming the school into a race of obstacles.

Keywords: Evaluation; Curriculum; Child education

RESUMEN

Este artículo problematiza distintas concepciones de la niñez, de la enseñanza y del aprendizaje, currículos y prácticas de evaluación que se mueven y se enfrentan en el cotidiano escolar. Pretendemos reflexionar sobre estos enfrentamientos y sus implicaciones para pensar la educación de los niños desde la Educación Infantil. Hace algunos años trabajando en la formación de profesoras para la Enseñanza Fundamental y Educación Infantil, acompañando las políticas públicas para diferentes redes en el Estado de Río de Janeiro, observamos como se hace necesaria todavía la discusión sobre los currículos propuestos para la educación de las infancias y como algunas concepciones conteudistas y meritocráticas se establecen como hegemónicas, transformando la escuela en una carrera de obstáculos.

Palabras clave: Evaluación; Plan de estudios; Educación Infantil

Observamos na organização do trabalho pedagógico a cobrança e urgência tanto por parte das famílias e responsáveis pelas crianças, como por outros profissionais da educação que compartilham de certas concepções conteudistas e meritocráticas, transformando a escola em uma corrida de obstáculos, em que o conhecimento deixa de assumir a centralidade curricular, e passa a ser apenas um meio para o exercício incansável de provas, testes, rankings, classificações, seleções, premiações e, claro, exclusões.

Diante das teorias estudadas nos cursos de pedagogia, vão se produzindo uma série de angústias nas professoras, que ficam divididas e penduradas no abismo que se estabelece entre o conhecimento teórico-científico aprendido e as práticas cotidianas que encontram, sendo muitas vezes confrontadas com a máxima: “na prática a teoria é outra”. Na prática, infelizmente, temos muitas outras teorias em movimento, mas são igualmente ignoradas por muitos profissionais da área da educação. Um fazer descolado de uma reflexão crítica, de fundamentos epistemológicos, totalmente cooptados por um senso comum moldado por ideais mercadológicos que se distanciam, e muito, de uma escola que respeite a infância e seus processos de aprendizagem.

Um senso comum, que apesar de anos de produção acadêmica, parece superar em muito o senso crítico e científico, nas concepções que habitam as escolas, como já nos alertava Luckesi,

Em geral, e a não ser em uma minoria de casos, parece que o senso comum é o seguinte: para ser professor do sistema de ensino escolar, basta tomar um certo conteúdo, preparar-se para apresentá-lo ou dirigir o seu estudo; ir para uma sala de aula tomar conta de uma turma de alunos e efetivar o ritual da docência: apresentação de conteúdos, controle dos alunos, avaliação da aprendizagem, disciplinamento etc.” (1994, p.97).

No projeto proposto por este neotecnicismo para resolver os problemas de fracasso escolar o senso comum pedagógico compreende que o professor bem formado deve ser o sujeito capaz de aplicar, preferencialmente com a menor interferência pessoal possível, técnica, um determinado método, que vai assim garantir a absorção de certos “conteúdos”. O aluno é compreendido “como um ser incapaz de criar. Ele tem que reter e repetir os conhecimentos e não inventá-los” (LUCKESI, 1994, p. 99). Por isso, os materiais são “estruturados” de forma a orientar os alunos para as já velhas conhecidas - e igualmente criticadas - atividades de reprodução, e, apesar dos discursos produzidos defenderem um “salto de qualidade ”, um aumento da eficiência e eficácia da educação, o que impera nestes materiais é a simplificação e redução do conhecimento, a tal ponto que este se torna incompleto e, portanto, irreal.

Ao nos tornarmos reféns desse senso comum, abrimos mão de pensar a Educação de seu lugar, como um campo de conhecimento científico, ético e politicamente comprometido com a construção de uma sociedade melhor, para seguirmos a reboque de todo um campo ideológico que pensa a infância como uma espécie de “investimento no mercado futuro”, simplesmente desconsiderando o que a criança é, em nome do que ela pode tornar-se, ou principalmente: render.

Neste quadro, há algum tempo estamos assistindo, denunciando e combatendo - em defesa das infâncias - as práticas perversas de uma escolarização precoce. E ao usar o termo “escolarização” de forma tão pejorativa, já refletimos também, como esse termo foi se tornando sinônimo de práticas mecanicistas, fragmentadas, desarticuladas, superficiais que, infelizmente, parecem cada dia mais consolidadas nas escolas. A vivência na escola deveria ser de aprendizagem e desenvolvimento, autonomia, criatividade, produção de novos saberes, partilha de conhecimentos e descoberta do mundo. Mas o que temos ouvido, por diferentes professoras de diferentes redes, está muito distante desse projeto de escola.

Almerindo Afonso nos ajuda a compreender como fomos produzindo e re-produzindo estas concepções nas últimas décadas:

A partir da década de oitenta, o interesse demonstrado pela avaliação, sobretudo por parte de governos neoconservadores e neoliberais, começou a ser traduzido pela expressão “Estado avaliador” (cf. NEAVE, 1988; HENKEL, 1991b; O‟BUACHALLA, 1992; HARTHEY, 1993). Esta expressão quer significar, em sentido amplo, que o Estado vem adotando um ethos competitivo, neodarwinista, passando a admitir a lógica do mercado, através da importação para o domínio público de modelos de gestão privada, com ênfase nos resultados ou produtos dos sistemas educativos (2005, p. 49).

Por isso, expressões como aluno/cliente, gerência de ensino, gestão escolar, indicadores, performances, custo/beneficio, invadem o vocabulário escolar com uma preocupação centrada no produto e não no processo da educação, contramão das epistemologias antipositivistas, interculturais e etnográficas.

Parece haver um entendimento de que o fracasso da educação, especificamente, da Alfabetização é a “dificuldade” que as crianças das classes populares. No pacto pela Alfabetização de nossas crianças, não garantimos uma escola de horário integral - como sonhou Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro - com toda infraestrutura para atender as necessidades educacionais em seu sentido mais amplo: saúde, esporte, cultura. Não garantimos a valorização docente diretamente: em termos de salários dignos, tampouco indiretamente como condições materiais e estruturais de trabalho e horários de planejamento e formação. Não garantimos o número máximo de crianças por turma, não garantimos condições reais de inclusão dos alunos com necessidades especiais, não garantimos sequer a merenda.

Ao estabelecer parâmetros para as crianças, o trabalho pedagógico será organizado com base em um determinado rendimento e como vemos em muitos relatórios avaliativos, discursos que denunciam a “falta”, a “ausência” de certos comportamentos desejáveis, de certas habilidades e conhecimentos prévios. Em outras palavras, começamos a produzir discursos sobre uma suposta “deficiência” das crianças, quando a “deficiência” se encontra exatamente no projeto de produzir parâmetros fora dos reais contextos que as diferentes infâncias estão inseridas. Como aprendemos com Maria Helena Patto (2005), continuamos a ignorar as diferenças e a confundi-las com deficiências. Mas quais as consequências dessas escolhas quando falamos de crianças?

Defendemos que a criança não precisa ser treinada a ler alfabeticamente na pré-escola, assim como sabemos que não fará diferença alguma na construção de um sujeito realmente competente como leitor/autor o fato de com três anos saber “declamar” as vogais, ou encontros vocálicos, ou numerais de 0-100. Que sentido esses simulacros de conhecimento tem para uma criança de três anos? Acreditamos que a organização do trabalho pedagógico deveria estar centrada no desenvolvimento das linguagens, experiências de cultura, interações e brincadeiras, dos sentidos e do corpo.

As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI), fixada pela Resolução 05 de 17 de dezembro de 2009, é um importante documento que problematiza e orienta o trabalho na Educação Infantil, o documento traz um olhar diferenciado ao atendimento a primeira etapa da educação básica, ao priorizar o currículo pensado, estruturado e centralizado na criança. Esse é um dos grandes avanços previstos nesse documento, que desloca o olhar assistencialista que predominou por tanto tempo na creche e pré-escola, com ênfase somente no cuidado, deixando de lado o trabalho pedagógico e também, propõe outra forma de conceber a criança, infância e o currículo.

As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 2009) em seu artigo 4º, destaca:

As propostas pedagógicas da Educação Infantil deverão considerar que a criança, centro do planejamento curricular, é sujeito histórico e de direitos que, nas interações, relações e práticas cotidianas que vivencia, constrói sua identidade pessoal e coletiva, brinca, imagina, fantasia, deseja, aprende, observa, experimenta, narra, questiona e constrói sentidos sobre a natureza e a sociedade, produzindo cultura.

De acordo com as DCNEI, a partir do princípio estético, o trabalho pedagógico “deve voltar-se para uma sensibilidade que valoriza o ato criador e a construção pelas crianças de respostas singulares, garantindo-lhes a participação em diversificadas experiências” (BRASIL, 2013, p. 88). A descoberta e o gosto pela palavra através do sentido social e significativo da palavra.

A palavra como experiência, como constituinte da comunicação entre eu e o mundo, a palavra que encanta, potencializa e permite dizer. Não essa palavra estéril, transmutada na escola em algo artificial, insosso e, portanto, desnecessário, como folhinhas de ba, be, bi, bo, bu.

Quando pensamos porque as crianças das famílias econômica e culturalmente mais favorecidas apresentam mais “facilidade” de aprender a ler e escrever, pensamos no universo cultural que elas têm acesso, e também, que diante de qualquer sinal de dificuldade um conjunto de profissionais será contratado para auxiliar essas crianças: fonoaudióloga, psicóloga, psicopedagoga, neurologista...

Enquanto, nós, na escola com crianças das classes populares, temos muitas vezes, apenas nós mesmas. O que não significa dizer que a “carência cultural” será um fator impeditivo para que essa criança aprenda, apenas um ponto para refletirmos: Que caminhos levaram ao sucesso da criança “bem nascida”, será que foi mesmo a cópia precoce de letrinhas? Os pontilhados, os livrinhos, os trabalhinhos? Ou seu sucesso terá sido referendado em experiências no e com um mundo que lhe proporcionou uma diversidade de vivências? Assim sendo, será que o caminho para construirmos o “sucesso acadêmico” das crianças das classes populares começa na cópia de letras que eles desconhecem não só o sentido, mas também a sua serventia? Ou começaria exatamente na possibilidade de vivenciar experiências plurais, de explorar o mundo, de ampliá-lo, de “pronunciá-lo”, antes de escrevê-lo alfabeticamente?

Nesse contexto, é importante indagarmos nossas práticas pedagógicas. O que temos vivenciado no cotidiano escolar da Educação Infantil? Práticas pedagógicas que antecipam atividades dos anos iniciais do Ensino Fundamental? E o brincar? E o experimentar? E o descobrir o mundo em suas formas, texturas, cores, cheiros, gostos, histórias?

Na rotina de grades e horários, organização dos espaços e tempos, preocupação com conteúdo e avaliação, o brincar tem sido esquecido, salvo alguns momentos em que a vigilância é menor. Essa organização do currículo não tem conseguido incorporar o brincar como dimensão de aprendizagem e desenvolvimento. Voltamos à polissemia dessas palavras/conceitos que nos desafiam: Como compreendemos o processo de desenvolvimento das crianças? Como compreendemos a relação entre as aprendizagens que a escola busca oferecer e este desenvolvimento? Diferentes correntes pedagógicas fundadas em diferentes paradigmas, ideologias, concepções filosóficas e epistemológicas oferecem respostas diferentes para estas questões.

Nos últimos anos temos vivido em várias redes e escolas um retorno aos programas educacionais, teorias, métodos e metodologias, que floresceram durante a década de 70, sob a Lei 5.692/71 (BRASIL, 1971) e com forte ênfase nas teorias da psicologia Behaviorista. São expressões desse retorno conservador e tecnicista em nossas escolas: os exercícios mecânicos que privilegiam a memorização e não a compreensão; métodos centrados em treinamentos e “adestramentos” das crianças e não na criação; a alfabetização compreendida ao seu aspecto restrito de codificação e decodificação; alunos compreendidos como “tabulas rasas”; conteúdos desprovidos de contextualização; culturas e linguagens ignoradas; avaliações de sistemas e sujeitos diferentes, como se diferença não houvesse.

Para esses programas, com esta fundamentação teórico-epistêmica, os sujeitos são compreendidos como uma massa homogênea, e, se forem “treinados” de forma eficiente, com os estímulos adequados que reforcem os comportamentos “certos”, teremos alcançado o sucesso do processo produtivo/educativo. Aqueles que não se ajustam a esse processo são compreendidos como “deficientes”. O processo não é questionável, é técnico e científico. O processo não falha, logo, a “falha” é do sujeito.

A culpabilização do sujeito implica em uma produção da existência “inferior”, uma invisibilidade que passa a ser ignorada pela sociedade. Boaventura de Sousa Santos (2004), no livro “Para uma sociologia das ausências e das emergências”, discorre sobre as relações sociais injustas e predatórias, demonstrando que a ausência constitui-se num artifício que permite a naturalização da desigualdade entre indivíduos supostamente mais qualificados e aquela população considerada desqualificada. Esse artifício surge como resultado de um acordo social excludente, que não reconhece a cidadania para todos, no qual a cidadania de uns é distinta daquela de outros, assim como também são distintos seus direitos, suas oportunidades e seus horizontes.

Para Boaventura (2002, 2004), existem formas específicas de produzir as não-existências, que se corporificam em lógicas de pensamento e de práticas sociais, e se constituem em monoculturas nas dimensões epistemológica, temporal, de classificação social, escalar e produtiva.

A monocultura do saber e do rigor do saber. Consiste na transformação da ciência moderna e da alta cultura em critérios únicos de verdade e de qualidade estética, respectivamente [...]. A monocultura do tempo linear, a ideia de que a história tem sentido e direcção únicos e conhecidos [...]. Lógica da classificação social, que assenta na monocultura da naturalização das diferenças [...]. A lógica da escala dominante. Nos termos dessa lógica, a escala adoptada como primordial determina a irrelevância de todas as outras possíveis escalas [...] A lógica produtivista assenta na monocultura dos critérios de produtividade capitalista (2002, p. 247 e 248).

O retorno de tendências pedagógicas tradicionais e tecnicistas no currículo escolar legitima algumas concepções: a padronização dos sujeitos, conteúdos, práticas pedagógicas e avaliações. Tudo é concebido de forma homogênea e para a produção da homogeneidade. Nesta perspectiva, o heterogêneo, a diversidade e a diferença são compreendidos como falta, como deficiência, como algo que precisa ser corrigido, devidamente adaptado e ajustado à cultura escolar. O sujeito deve ser levado de seu lugar - de barbárie, de escuridão e de ausências - para o lugar da “cultura”.

Muitas Secretarias de Educação em vários municípios do estado do Rio de Janeiro têm voltado a sua atenção para a Educação Infantil, o que, em parte é justificado pela mudança nas legislações, como a Emenda Constitucional nº 59 (BRASIL, 2009), que promulga a seguinte alteração ao texto do art. 208 da Constituição Federal: “educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos de idade, assegurada inclusive sua oferta gratuita para todos os que a ela não tiveram acesso na idade própria.

A obrigatoriedade da matrícula das crianças de quatro anos exige mudanças tanto nos discursos como nas práticas na Educação Infantil. Temos observado em nossas pesquisas, concepções pedagógicas que concebem a Educação Infantil no seu viés compensatório e assistencialista, um depósito de criança para liberação da mão de obra feminina para o mercado de trabalho.

Compensatório porque até hoje, muitas crianças das classes populares são pensadas e compreendidas apenas pelos seus limites e não pelas suas possibilidades. Estas supostas ausências atribuídas às crianças das classes populares, como já vimos em Paulo Freire (1983), em Pedagogia do Oprimido, desde a década de 60 são produzidas na comparação destas crianças ao modelo de criança burguês, ao ideal de “homem” produzido pelo liberalismo. A creche e pré-escola nessa perspectiva se apresentam como a possibilidade do preenchimento das “lacunas”, até se tornarem, como nos ensina Bhabha “quase o mesmo, mas não exatamente” (2005, p.134).

Essa ideia de tornar a criança um “alguém” via educação é presente nas concepções tradicionais de currículos que surgiram no final do século XIX e início do século XX, encontradas desde a invenção da escola como a instituição social responsável por levar a termo um projeto de Estado, até o currículo mais profundamente elaborado nas teorias tradicionais produzidas e comprometidas com os projetos de industrialização e produtividade da expansão capitalista.

As décadas de 80 e 90 foram profícuas em estudos sobre os sentidos da escola, sobre seus currículos elitistas, sobre seus ritos adestradores. Fazia-se necessário um projeto de educação que favorecesse a emancipação e não a regulação, um projeto voltado para a formação de um cidadão para o pleno exercício da cidadania e não para a subordinação e obediência cegas. A LDB 9394/96 contempla, pelo menos, em parte, a expressão desse desejo, e apresenta um texto onde são recorrentes as expressões cidadão, cidadania, democracia, autonomia, diversidade. Na Constituição Federal de 1988 surge, pela primeira vez, o princípio da gestão democrática da escola pública, a criação do Conselho Escola Comunidade e do Projeto Político Pedagógico, muitas vezes, “figuras de linguagem”, em muitas escolas.

Os currículos praticados com os sujeitos problematizam o projeto hegemônico de educação, os documentos oficiais que impõem comportamentos, valores, conteúdos e conhecimentos, assumindo o processo de alfabetização em seu sentido mais amplo, que considera os sujeitos e suas experiências com o mundo. Afinal, o processo de alfabetização acontece por toda a vida e não em um período pré-fixado, determinado, ordenado.

Pensar as práticas cotidianas sem as amarras do pensamento disciplinarizado e hierarquizado permite compreender as redes tecidas, as relações com os sujeitos e com os currículos. Ao discutir os currículos praticados no cotidiano,

“é com Certeau que vamos, mais uma vez, buscar a compreensão das formas de criação de alternativas curriculares, tentando evidenciar as “artes de fazer” daqueles a quem foi reservado o lugar da reprodução. [...] O cotidiano aparece como espaço privilegiado de produção curricular, para além do previsto nas propostas oficiais” (OLIVEIRA, 2003, p. 68).

Os currículos praticados pelos sujeitos nos oferecem outras possibilidades de compreender o cotidiano escolar, para além das explicações/informações/prescrições das propostas oficiais das escolas. A imprevisibilidade, característica da vida cotidiana, impossibilita o aprisionamento dos sujeitos praticantes que não estão alheios ao que se passa no cotidiano escolar.

As crianças não são seres passivos, mas sujeitos ativos no processo social, cultural e educativo que está a sua volta, elas interagem, recriam, ressignificam, reinterpretam, por isso, não são apenas “folhas em branco”, onde certa cultura será impressa, mas sujeitos que produzem cultura, que a transformam, e a reinventam cotidianamente.

Acreditamos que as políticas de avaliação, ao estabelecer conteúdos a serem cobrados nos instrumentos de avaliação, acabam orientando a rotina escolar, definindo o que irá acontecer na semana, em cada dia, em cada fração de tempo. A cultura das atividades acaba entrando na lógica da produtividade: traçar, cobrir, completar...

A busca tecnicista por esse controle do tempo escolar, desde a Educação Infantil não vem produzindo uma escola de qualidade, ao contrário, vem enchendo as pastas das crianças de papéis fotocopiados, desprovidos de sentido para muitas crianças e muitas professoras. O que aconteceu com o tempo de brincar?

“O brincar é, portanto, experiência de cultura, por meio da qual as crianças constituem coletivamente valores, habilidades, conhecimentos e formas de participação social. [...] Além disso, o brincar é um dos pilares da constituição das culturas da infância, compreendidas como significações e formas de ação social específica que estruturam as relações das crianças entre si, bem com os modos pelos quais interpretam, representam e agem sobre o mundo” (BORBA, 2008, p.82).

O brincar cada vez mais vai perdendo espaço no cotidiano escolar da Educação Infantil, até porque na lógica produtivista, brincar significa perder tempo, e na velha oposição entre perder e ganhar tempo vemos as crianças perdendo o tempo de sua infância com trabalhos que não produzem aprendizagens significativas, conhecimentos consolidados, experiências que promovam o desenvolvimento integral do sujeito, como almejam os documentos oficiais.

Ora, essa visão é fruto da ideia de que a brincadeira é uma atividade oposta ao trabalho, sendo por isso menos importante, uma vez que não se vincula ao mundo produtivo, não gera resultados. E é essa concepção que provoca a diminuição dos espaços e tempos do brincar à medida que avançam as séries/anos do ensino fundamental. Seu lugar e seu tempo vão se restringindo à “hora do recreio”, assumindo contornos cada vez mais definidos e restritos em termos de horários, espaços e disciplina: não pode correr, pular, jogar bola etc... (BORBA, 2006, p. 35).

Acreditando que é possível escalonar o comportamento das crianças, cultura, conhecimento e aprendizagem, não produzimos uma maior visibilidade sobre as necessidades de aprendizagem destas crianças. O que estamos produzindo são práticas e discursos sobre o fracasso de muitas crianças das classes populares que não se enquadram nos estreitos padrões de medidas.

Como pensar um trabalho de qualidade, no qual as crianças sejam provocadas a ampliar os seus conhecimentos, se tornem autônomas e críticas quando os seus professores não o são? Quando estes são executores de propostas cuja elaboração não participaram? Segundo Kramer (2006), além das condições materiais concretas que assegurem processos de mudança, é preciso que os profissionais da Educação Infantil tenham acesso ao conhecimento produzido na área para repensarem sua prática, se reconstruírem enquanto cidadãos e atuarem enquanto sujeitos da produção de conhecimento. E para que possam, mais do que “implantar” currículos ou “aplicar” propostas à realidade da creche e pré-escola em que atuam, efetivamente participar da sua concepção, construção e consolidação.

Precisamos pensar que ao se estabelecer políticas públicas estandardizadas de avaliação, estamos também direcionando e engessando cada vez mais o currículo escolar, regulando as práticas pedagógicas para que se tornem homogêneas e alinhadas com o sistema de tal forma, que muito pouco, sobra para que professoras e alunos possam se mover.

O que temos visto em nossas pesquisas no cotidiano escolar da Educação Infantil são práticas de treinamento, memorização e repetição como sinônimos de aprendizagem. Crianças que são “acostumadas” desde cedo a ficar horas sentadas, preenchendo linhas, para que aprendam a controlar o corpinho que insiste em escorregar pela cadeira. Corpos infantis que precisam se acostumar com a constante vigilância dos adultos. Se um determinado instrumento de avaliação cobrar por um comportamento, conhecimento e desenvolvimento específicos, logo, estará conformando certas práticas em detrimentos a outras, logo estará excluindo todos aqueles que por uma razão infinita de variáveis não atende, não se interessa ou não concorda com os parâmetros estabelecidos.

As vivências com as crianças no cotidiano escolar nos mostram o currículo praticado, movente, alterado pelos usos que os sujeitos fazem dos recursos disponíveis. A riqueza desses currículos praticados, para Oliveira, se encontra nas “misturas de saberes trazidos por alunos e professores com aqueles formalmente definidos como „conteúdo curricular‟, modificando uns e outros e criando, portanto, novos saberes, com novas tonalidades” (2003, p. 105).

A organização da rotina pedagógica compreendida no seu caráter de reprodução, controle, disciplinamento, padece ao imprevisto. Neste cotidiano, os sujeitos praticantes operam movimentos que fogem ao planejamento, chamando nossa atenção às invenções que eles são capazes de fazer no pulsar da vida.

Nesse cotidiano, embora invisibilizadas, as crianças estão presentes. Suas vozes nos dão pistas do que ainda não conseguimos compreender na relação com elas no cotidiano escolar: suas diferentes lógicas. É importante chamar a atenção para o fato de que as crianças escolarizadas já adquiriram, inseridas numa cultura escolar, uma forma de reagir às perguntas. E nós, professoras pesquisadoras, também inseridas nesta cultura, aprendemos a fazer perguntas estereotipadas, muitas vezes vazias, descontextualizadas e sem sentido.

As concepções que fizeram parte de nossa formação - criança, infância, escola, educação - atravessam a nossa prática pedagógica. Felizmente, em alguns momentos, somos despertadas pelas vozes, toques, gestualidades das crianças, que, no cotidiano, nos inquietam a buscar outras leituras possíveis para compreender o vivido, na contramão de práticas pedagógicas vinculadas a um modelo padrão de desenvolvimento e aprendizagem universal, de tempo linear e homogêneo.

Mesmo com os traços da modernidade presentes na escola, as crianças se insurgem, colocando-nos diante de outras possibilidades de pensar a educação, aproximando os conteúdos escolares da vida cotidiana, em uma relação dialógica em que as vozes que ainda não são ouvidas no interior da escola estejam presentes, uma escola que tenha como princípio compartilhar saberes e fazeres com os sujeitos da educação.

REFERÊNCIAS

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