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Revista Teias

versão impressa ISSN 1518-5370versão On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.19 no.54 Rio de Janeiro jul./set 2018  Epub 05-Set-2021

https://doi.org/10.12957/teias.2018.37616 

Entrevista

ENTREVISTA COM JUSSARA HOFFMANN1

Maria Teresa Esteban* 

Virginia Louzada* 

Fabiana Eckhardt* 

*Professora da Universidade Federal Fluminense (UFF). Professora da Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Professora da Universidade Católica de Petrópolis (UCP).


O TEMA DESSE DOSSIÊ É “COTIDIANOS, POLÍTICAS E AVALIAÇÃO”. GOSTARÍAMOS DE INICIAR A NOSSA ENTREVISTA PEDINDO QUE VOCÊ FAÇA ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE ESSA RELAÇÃO.

Referindo-me especialmente à avaliação, ousaria reordenar os assuntos que compõem o tema do dossiê da seguinte forma: “políticas, cotidianos e avaliação”. Pensando em “políticas educacionais”. Sobre políticas? Muitos gestores e professores, ao falarem sobre avaliação, justificam a manutenção nas escolas da avaliação classificatória – com a qual dizem não concordar – porque o sistema os obriga a adotar. Há uma pergunta reincidente na maioria dos debates sobre a avaliação da aprendizagem: “Como avançar, se as políticas educacionais nos impelem a seguir tais práticas?” “Essas práticas”, no caso, são de caráter classificatório, tais como a aplicação de provas finais, o sistema de atribuição de notas e médias, a recuperação terapêutica, a reprovação de alunos no Ensino Fundamental e Médio, entre outras. A manutenção da avaliação classificatória é uma determinação legal? Analiso a questão pelo seguinte ângulo: nunca como nas duas últimas décadas, escolas e universidades sofreram tanto o espectro dos exames em larga escala, de caráter institucional. De tal forma que a “avaliação” passou a ser assunto recorrente e polêmico por parte de professores, familiares, profissionais de outras áreas, da mídia em geral, enfim de toda sociedade. Esse fato provocou, sim, influências perversas no dia a dia das salas de aula de todos os segmentos do ensino. Diria, até mesmo, que resultando em práticas ainda mais excludentes do que as que se seguia no século passado, uma vez que se nomeiam por “avaliação” os referidos exames. É o caso, por exemplo, de escolas que norteiam sua organização curricular, testes, exercícios e outros tomando por base a Prova Brasil e/ou outros exames aplicados por secretarias estaduais e municipais, “treinando” os alunos para responder a essas provas e desvirtuando o próprio sentido dos exames em larga escala. Cito também o caso de escolas de Ensino Médio que se transformaram em preparatórias para o Enem, aplicando testes objetivos similares aos desses exames, e classificando, aprovando/reprovando os alunos nas escolas a partir das notas/médias neles obtidas. Assinalo que as provas do Enem, principalmente, tal como outras provas de concursos, são “intencionalmente” de caráter excludente, tendo por objetivo obter dados quantitativos para comparar, classificar e eliminar candidatos. Utilizá-los nas escolas, sem conhecimento de sua finalidade, é insensato. O uso de testes e tarefas avaliativas, nas salas de aula, não visa à eliminação do aluno, mas investigar seus avanços e/ou dificuldades para poder intervir pedagogicamente e alcançar a melhoria de suas aprendizagens.2 Essa utilização de testes e provas elaborados a partir de uma visão classificatória é um dos fatores que prejudicam seriamente os estudantes do EM e das universidades. Retomando, então, o início dessas considerações, diria que a inter-relação dos termos se dá, efetivamente, nessa ordem: políticas – cotidiano – avaliação. Ou seja, a proliferação dos exames em larga escala, de caráter político/institucional e classificatórios em sua concepção, influenciam as escolas quanto a decisões regimentais e sistema de avaliação a adotar, um modelo que passa muitas vezes a ser “exigido” das escolas pelas famílias com a justificativa de que crianças e jovens estão a todo momento vivendo experiências de uma avaliação competitiva e classificatória e que precisam aprender a enfrentá-las ao longo de sua escolarização. O grande perigo está na falta de entendimento dos gestores, professores e da sociedade em geral acerca da radical diferença entre a finalidade da avaliação classificatória e a finalidade da avaliação mediadora. São procedimentos totalmente distintos em termos de instrumentos e registros, com finalidades igualmente distintas. Os dois são válidos em seus pressupostos, mas não podem nem devem ser confundidos.

O CONCEITO DE AVALIAÇÃO MEDIADORA, APRESENTADO POR VOCÊ, NA DÉCADA DE 1990, TEVE GRANDE REPERCUSSÃO E SE MANTÉM MUITO RELEVANTE NO DISCURSO VIGENTE SOBRE A AVALIAÇÃO; NO ENTANTO, PERCEBEMOS TAMBÉM UMA AMPLA ACEITAÇÃO DA AVALIAÇÃO NUMA PERSPECTIVA CLASSIFICATÓRIA. VOCÊ CONCORDA COM ESSA NOSSA COMPREENSÃO? O QUE NOS DIZ A ESSE RESPEITO?

Dando continuidade às considerações já feitas, não usaria o termo “aceitação”, mas o termo “manutenção” dessas práticas e/ou “recrudescimento” delas pelos fatores a que me referi na resposta anterior. Em contraponto a tais entraves, foram feitos grandes avanços, nas últimas décadas, em termos de estudos sobre avaliação formativa e/ou avaliação mediadora3. Há inúmeras teses em Mestrado e Doutorado produzidas/em produção sobre o tema. Foram publicados, após os anos 90, muitas obras que versam sobre o tema, tanto da autoria de especialistas brasileiros quanto traduções de obras estrangeiras. Meus livros se incluem nesse rol de publicações, e tenho o orgulho de perceber que eles alcançaram milhares de leitores no país e no exterior, com uma significativa repercussão da teoria de avaliação mediadora. Contudo, considerando a imensidão desse país e da sua rede escolar, bem como o incontável número de estudantes de cursos de Pedagogia e Licenciaturas (muitos deles em EAD), diria que há muitíssimo a avançar para a consolidação da concepção mediadora. Avançamos no discurso pedagógico? Sim. Mas as práticas escolares evoluíram? Muito pouco em termos do que se desejaria. Há um longo e penoso caminho a trilhar nesse sentido. Andamos na contramão da história no que se refere à avaliação da aprendizagem. Os exames em larga escala apontam os índices do fracasso gradativo em termos da qualidade da educação no país. Buscamos alcançar uma “Escola para Todos”, mas não a “aprendizagem para todos”. Somos um dos últimos países do mundo que reprova/exclui crianças e jovens da Educação Básica – um direito que lhes é garantido por lei, direito a uma escola inclusiva e a uma educação de qualidade4. Devido à concepção classificatória ainda vigente para um grande número de professores, “não reprovar”, em nosso país, é sinônimo de uma escola pouco exigente, de baixa qualidade de ensino. Pior do que isso, “não reprovar”, no entendimento de muitos, significa “não avaliar”, o que levaria os alunos ao abandono total. Importante frisar, em relação tais comentários, que a avaliação mediadora, em seus pressupostos, é muito mais “exigente” em seus procedimentos do que a avaliação classificatória, uma vez que sugere o acompanhamento individualizado, permanente e gradativo do aluno, a partir de instrumentos de avaliação frequentes, gradativos, complementares que resultem em indicadores qualitativos e norteadores do adequado apoio pedagógico e a melhoria de sua aprendizagem. A avaliação classificatória, ao contrário, pauta-se em provas periódicas, na atribuição de notas e médias, resumindo-se a apontar os resultados alcançados pelos alunos ao final de um período letivo. Eles serão aprovados/reprovados a partir desses resultados quantitativos5. Voltando à reprovação, há inúmeras pesquisas nacionais e internacionais que apontam para os sérios prejuízos aos alunos decorrentes do uso dessa medida6. Ao coordenar o Programa de Assessoria em Avaliação Educacional (PAAE)7 acompanhei junto aos participantes do programa, cerca de duzentos alunos de escolas públicas e particulares que foram “escolhidos” para esse acompanhamento por apresentar sérias dificuldades de aprendizagem em escolas e universidades públicas e particulares. Vários deles com história de repetências (no plural). Nunca encontramos um aluno que tivesse se beneficiado de alguma forma ao repetir uma, duas ou três vezes a mesma série/ano escolar. Entretanto, ao serem acompanhados em seus estudos por um semestre apenas, efetivando-se uma ação mediadora, revelaram progressos imediatos em todas as áreas de conhecimento. O que nunca conseguimos resolver foi a séria defasagem idade/série em que já se encontravam – extremamente prejudicial a todos. O fato é que os índices de evasão e reprovação no Brasil continuam alarmantes. Há milhares de jovens sem concluir o Ensino Fundamental, sem concluir o Ensino Médio – consequências funestas de uma avaliação escolar punitiva, sentenciva e obstaculizante. Estamos encarcerados em concepções ultrapassadas e equivocadas de educação, enviando para as ruas as crianças e jovens que mais precisam permanecer no ambiente escolar, respeitados em sua diversidade, acolhidos e educados por profissionais competentes. Não teríamos assim uma evolução sociocultural? O que podemos fazer, contudo, para “acordar” esse país imenso? Para conscientizar milhares de gestores e professores que ainda se orgulham de usar a avaliação como arma, poder, autoritarismo? Minha missão primeira, peregrinando por esse país afora, é, sobretudo, alertar que “precisamos cuidar mais da aprendizagem dos que precisam mais, retirando tantos alunos do anonimato em que se encontram nas salas de aula, refletindo muito sobre o que não sabem e por que não sabem para ensiná-los melhor, respeitando-os primeiro em suas diferenças, educando-os depois”8. Países que avançaram em suas reformas educacionais apostaram, para isso, em processos avaliativos mediadores, não obstaculizantes, na formação e valorização dos professores, na socialização e convivência saudável de crianças e jovens nas escolas, visando à sua formação plena, moral e intelectual9.

PENSANDO NAS ÚLTIMAS DÉCADAS, HÁ MODIFICAÇÕES EXPRESSIVAS NA ABORDAGEM DA AVALIAÇÃO NO COTIDIANO ESCOLAR? O QUE VOCÊ DESTACA?

Vejo, sim, modificações expressivas no cotidiano escolar, por vezes, por parte de escolas e/ou municípios, outras vezes, por parte de professores, isoladamente, principalmente da Educação Infantil e dos Anos Iniciais. Mas volto a destacar a necessidade de aprofundar as discussões sobre avaliação mediadora nas escolas e, em especial, na universidade, espaço de formação de futuros professores que, em um círculo vicioso, irão reproduzir o modelo classificatório aí predominante. Destaco as Licenciaturas em Matemática, que ainda apresentam altos índices de reprovação10.

Conforme as pesquisas que acompanho, são raros os cursos de formação de professores (Pedagogia e Licenciaturas) que oferecem, em seus currículos, disciplinas específicas sobre avaliação. As disciplinas de formação pedagógica, por sua vez, tendem a discutir com brevidade alguns modelos teóricos, sem uma análise mais profunda de seus pressupostos metodológicos e das práticas vigentes nas escolas. Outro ponto a destacar é o desconhecimento costumeiro por gestores e professores da legislação educacional referente à avaliação do desempenho escolar. Desde 1996, alguns preceitos contrários à perspectiva classificatória estão presentes em documentos legais. Tal como a LDB/96, de 22 anos atrás, que determina a prevalência da “análise qualitativa” sobre a “análise quantitativa” em termos de aferição do desempenho escolar, estabelecendo, já naquela época, a improbidade da aprovação/reprovação em creches e pré-escolas públicas e particulares (FERNANDES, R., in: Plano Nacional de Educação 2014, p. 114):

Um sistema educacional que reprova sistematicamente seus estudantes, fazendo com que grande parte deles abandone a escola antes de completar a Educação Básica, não é desejável, mesmo que aqueles que concluem essa etapa de ensino atinjam elevadas pontuações nos exames padronizados. Por outro lado, um sistema em que todos os alunos concluem o Ensino Médio no período correto não é de interesse caso os alunos aprendam muito pouco na escola. Em suma, um sistema de ensino ideal seria aquele em que todas as crianças e adolescentes tivessem acesso à escola, não desperdiçassem tempo com repetências, não abandonassem a escola precocemente e, ao final de tudo, aprendessem. Em suma, um sistema ideal seria aquele no qual todas as crianças e adolescentes tivessem acesso à escola, não desperdiçassem tempo com repetências, não abandonassem os estudos precocemente e, ao final de tudo, aprendessem (FERNANDES, 2007, p. 7).11

A perspectiva formativa/mediadora de avaliação, por outro lado, está referida nos Parâmetros Curriculares Nacionais, nas Diretrizes Curriculares da Educação Infantil e, recentemente, na Base Nacional Comum Curricular, conforme os trechos que cito a seguir, respectivamente para a Educação Infantil e para o Ensino Fundamental:

Parte do trabalho do educador é refletir, selecionar, organizar, planejar, mediar e monitorar o conjunto das práticas e interações, garantindo a pluralidade de situações que promovam o desenvolvimento pleno das crianças. Ainda, é preciso acompanhar tanto essas práticas quanto as aprendizagens das crianças, realizando a observação da trajetória de cada criança e de todo o grupo – suas conquistas, avanços, possibilidades e aprendizagens. Por meio de diversos registros, feitos em diferentes momentos tanto pelos professores quanto pelas crianças (como relatórios, portfólios, fotografias, desenhos e textos), é possível evidenciar a progressão ocorrida durante o período observado, sem intenção de seleção, promoção ou classificação de crianças em “aptas” e “não aptas”, “prontas” ou “não prontas”, “maduras” ou “imaturas”. Trata-se de reunir elementos para reorganizar tempos, espaços e situações que garantam os direitos de aprendizagem de todas as crianças (BNCC, p. 35).

(...) construir e aplicar procedimentos de avaliação formativa de processo ou de resultado que levem em conta os contextos e as condições de aprendizagem, tomando tais registros como referência para melhorar o desempenho da escola, dos professores e dos alunos; selecionar, produzir, aplicar e avaliar recursos didáticos e tecnológicos para apoiar o processo de ensinar e aprender (...) (BNCC, p. 17).

Os trechos citados estão em perfeita sintonia com pressupostos da avaliação mediadora, tais como: o acompanhamento sistemático de cada aluno e de todo o grupo – suas conquistas, avanços, possibilidades e aprendizagens; o aperfeiçoamento das práticas pedagógicas com o uso de novos recursos e estratégias educativas para melhorar o desempenho de alunos, professores e escolas; a elaboração de registros/relatórios/portfólios; bem como a inadequação de fichas de comportamento classificatórias na Educação Infantil – que infelizmente se mantêm em grande número de escolas brasileiras. Volto a ressaltar, com essas considerações, que precisamos urgentemente ampliar as discussões sobre essa prática nas escolas e universidades, bem como divulgar de forma mais compreensiva o que o sistema educacional apregoa sobre a avaliação da aprendizagem. De um ponto de vista esperançoso, destaco, ao longo desses 30 anos de experiência com a formação docente em avaliação, um gradativo “dar-se conta” da responsabilidade e do compromisso que temos na escola com a aprendizagem dos alunos, a consciência de que o acompanhamento individual e o apoio pedagógico adequado a cada um e ao grupo fazem muita diferença, de que nossa missão, ao avaliar, é a de criar oportunidades dignas de aprendizagem para todos, mesmo e “apesar” das carências e dos entraves burocráticos, da falta de recursos humanos e materiais, dos baixos salários dos professores, das carências socioculturais dos alunos, etc. Vejo como sinal positivo que muitos professores, “ao fechar a porta de suas salas de aula”, praticam a avaliação mediadora, por vezes silenciosamente, solitariamente, mas felizes e realizados com o retorno positivo que recebem dos alunos e de suas famílias.

VÁRIOS PESQUISADORES TÊM SE DEBRUÇADO SOBRE A QUESTÃO DA AVALIAÇÃO NA EDUCAÇÃO INFANTIL. NO BRASIL, VOCÊ É PRATICAMENTE UMA PIONEIRA NESSE SENTIDO. QUAIS FORAM OS MOTIVOS QUE A LEVARAM A SE DEBRUÇAR SOBRE ESSA TEMÁTICA? COMO VÊ, ATUALMENTE, A QUESTÃO DA AVALIAÇÃO NA EDUCAÇÃO INFANTIL?

Esse interesse teve uma forte razão de ser: um envolvimento muito grande com creches e pré-escolas nos anos 80 e 90, como docente da Faculdade de Educação da UFRGS e orientadora de prática de ensino na Habilitação Pré-Escola por onze anos consecutivos. Acompanhei estagiárias em inúmeras instituições públicas, assistenciais e da rede privada de Porto Alegre, observando-as e compartilhando do seu trabalho pedagógico, aprendendo muito com isso sobre o desenvolvimento infantil. Vivi intensamente essa experiência. Nessa época, eu havia recém concluído o Mestrado em Avaliação Educacional na UFRJ, tendo ingressado por concurso na Faced/UFRGS. Meus estudos, pesquisas, projetos de extensão e primeiros delineamentos teóricos tinham por embasamento as teorias de avaliação contemporâneas (Marvin Alkin, Egon Guba, Michael Patton, Robert Stake, Daniel Stufflebeam, entre outros) que vieram a se somar aos teóricos do conhecimento (Edgar Morin, Jean Piaget, Lev Vigotsky, George Snyders, entre outros), todos muito discutidos na época. A experiência com a educação infantil levou-me a consolidar alguns rumos já delineados em avaliação mediadora, sobretudo a necessidade de observar muito o aprendiz, sensivelmente, reflexivamente, um “exercício do aprendizado do olhar”, lembrando Madalena Freire12. Nem sempre o olhar das estagiárias se dirigia efetivamente às crianças, a cada uma delas. De início, estavam sempre mais preocupadas com o planejamento e a execução das atividades do que com as próprias crianças e o seu desenvolvimento. Perguntas que eu costumava lhes fazer: por que a Keila está chorando? Hoje o Paulinho mamou? Do que a Gabi gosta de brincar? Quem veio hoje buscar o Lúcio na escola? Onde ele mora? – ficavam sem respostas por parte das alunas. Esse foi um desafio a enfrentar: transferir o olhar da estagiária para cada criança em sua individualidade, em seu próprio desenvolvimento. Aos poucos, cada criança ganhava nome, identidade, desejos, jeitos de brincar... Houve um gradativo “dar-se conta” pelas alunas da importância de prestar atenção em cada uma, sem deixar de tomar conta de todas. Um olhar de natureza interpretativo, subjetivo, muitas vezes “falível”, que nunca nos traz a certeza do que um bebê está pedindo, como se sente, até onde nos compreende... Com esses desafios constantes, fui consolidando alguns princípios já delineados da teoria da avaliação mediadora, tais como a importância do acompanhamento individual, do trabalho com grupos heterogêneos, do respeito aos interesses e necessidades de cada bebê ou criança, da importância de anotar dia a dia o que percebíamos de seu desenvolvimento para o adequado apoio pedagógico. Nessa ocasião, publiquei a primeira versão do livro “Avaliação e Educação Infantil: um olhar sensível e reflexivo sobre a criança”13, que vem sendo revisado/reeditado ao longo desses anos e é um dos mais conhecidos no país. De fato, fui ousadamente pioneira em divulgar minhas ideias. Hoje, minha defesa, de início tímida, está referendada por estudos internacionais (Portugal, Itália, Finlândia, entre outros) além de constar da legislação educacional brasileira. Defendi/defendo que avaliar não é julgar se as crianças aprendem/não aprendem, são aptas/não são. Precisamos definitivamente ultrapassar esse ranço da avaliação na Educação Infantil. Avaliar bebês e crianças é observá-los muito em termos do seu desenvolvimento em todas as áreas, conhecê-los, compreendêlos em suas diferenças, interesses, possibilidades, oferecer a todos cuidados, afeto, desafios, oportunidades ricas para que se desenvolvam como seres autônomos, participativos, criativos, produtores de cultura... É no dia a dia, ao planejar, agir, afagar, propor jogos e brincadeiras, lidar com conflitos de ordem afetiva que fazemos diferença como avaliadores. Registros/relatórios de avaliação refletem essa história colorida, com várias entrelinhas, vivida/produzida pelas crianças e por seus professores e professoras. Histórias que não podem se transformar em fichas de avaliação, que não são padronizáveis, que não podem ser narradas por quem não as viveu.

DOCUMENTOS OFICIAIS, COMO AS DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS PARA A EDUCAÇÃO INFANTIL, DEFENDEM A IMPORTÂNCIA DA OBSERVAÇÃO E DO REGISTRO PARA A AVALIAÇÃO NESSA ETAPA DA EDUCAÇÃO BÁSICA, O QUE NOS PARECE EXPRESSAR UM FORTALECIMENTO DA PERSPECTIVA QUALITATIVA DA AVALIAÇÃO. NO CONTEXTO DE UMA AVALIAÇÃO MEDIADORA, QUE PAPEL ESSES PROCEDIMENTOS CUMPREM? NA COMPOSIÇÃO DOS RELATÓRIOS, QUE CUIDADOS SÃO NECESSÁRIOS PARA QUE ESSE INSTRUMENTO DE AVALIAÇÃO SEJA SIGNIFICATIVO PARA AS FAMÍLIAS DAS CRIANÇAS E PARA OS/AS PRÓPRIOS/AS PROFESSORES/AS DE EDUCAÇÃO INFANTIL?

Os instrumentos de avaliação (testes e registros do desempenho escolar) estão a serviço das concepções teóricas que se defende. As notas e médias, bem como as fichas de comportamento, por exemplo, são condizentes à visão classificatória e burocrática da avaliação. Notas e médias são dados quantitativos superficiais e genéricos em relação à qualidade da aprendizagem dos alunos. Como bem assinala Pedro Demo, a quantidade é apenas uma das dimensões da qualidade14. Não se sabe o que significa uma nota 4, por exemplo, alcançada pelo aluno em um teste ou em um bimestre letivo, apenas pelo número 4. Se não houver uma “descrição/explicação” do seu significado, esse número não será representativo de nada. Quais as quatro questões que ele acertou? Ou o quatro representa meio acerto em oito questões? O teste tinha somente quatro questões? A superficialidade, arbitrariedade das notas é um fator muito grave em avaliação mediadora, porque, sem o professor ter clareza do que o aluno aprende/compreende a cada etapa do percurso, nada poderá ser feito em termos de apoio pedagógico15. É preciso o professor interpretar o que vê, saber narrar, descrever, detalhar percursos de aprendizagem percorridos por cada aluno e pelo grupo, atribuir sentido ao que vê. Da Educação Infantil à universidade, os alunos podem e devem ser partícipes da constituição desses relatórios como protagonistas de uma história que está sendo constituída. A participação dos alunos favorece a sua autonomia e responsabilidade como aprendiz. Relatórios de avaliação, na minha opinião, são instrumentos essenciais da perspectiva mediadora, pois revelam a concepção de sujeito aprendiz, os princípios educativos, os objetivos de aprendizagem, as áreas de conhecimento trabalhadas e o cenário educativo/avaliativo de professores e escolas. Para além disso, favorecem sobremaneira a reflexão crítica do processo pedagógico pelo coletivo dos professores. Quando se compartilham relatórios entre gestores, professores, familiares, abrem-se possibilidades de: revisitar as práticas da sala de aula por diferentes professores e com diferentes alunos; repensar metodologias de ensino e avaliação, reorganizar o currículo escolar; redefinir objetivos de aprendizagem, planejar ações de apoio pedagógico para determinados estudantes, entre outras. Por certo, estamos ainda “engatinhando” em relação a isto. Há uma nítida evolução na Educação Infantil e nos Anos Iniciais, mas raras experiências nos Anos Finais e no Ensino Médio, ainda muito atrelados ao sistema de atribuição de notas e/ou conceitos, sistema que torna a avaliação dos alunos por demais arbitrária, comparativa e, por isso mesmo, bastante falível.

HÁ DOIS ASPECTOS QUE SE COLOCAM QUASE COMO OBRIGATÓRIOS QUANDO TRATAMOS DE AVALIAÇÃO: O ERRO E A REPROVAÇÃO. QUAL O LUGAR DO ERRO NO PROCESSO DE AVALIAÇÃO? TEM SENTIDO A REPROVAÇÃO NA EDUCAÇÃO BÁSICA?

Inicio pela pergunta final. Creio que já devíamos ter superado há muito tempo essa questão. Somos um dos raros países do mundo que ainda reprovam na Educação Básica, que, por lei, é um direito de todas as crianças e jovens brasileiros. Escolas que reprovam são melhores do que as que não reprovam? A repetição de um ano escolar contribui para que o aluno supere suas dificuldades? Professores que reprovam são bons professores? Inúmeras pesquisas comprovam que não, absolutamente não! Esses são mitos macabros da avaliação classificatória! Vencemos esses mitos?16 Por todas as considerações feitas até aqui, ainda temos essa batalha a vencer. Em relação à questão do erro, minhas considerações poderão chocar os leitores, mas preciso fazê-las. No afã dos certos e errados, da atribuição de pontos, décimos e centésimos a uma questão, da preocupação com o que “considerar” certo, meio certo ou errado em testes e tarefas, os professores cometem erros absurdos! Não fiquem bravos, eu explico. É erro um alfabetizando escrever “vou a escola” (e não “vou à escola”? É erro um aluno de nono ano escrever assim? Com certeza, os dois cometem erros de natureza gramatical. É errado escrever assim, mas é um erro muito mais dos professores considerarem essas duas situações equivalentes em termos de avaliação. O que está em jogo? Corrigir para atribuir notas OU interpretar o erro para saber como proceder? Duas condutas avaliativas muito diferentes, atreladas a concepções classificatórias OU mediadoras. A aprendizagem em qualquer área de conhecimento é complexa e se dá gradativamente a partir das possibilidades cognitivas dos alunos a cada etapa do seu desenvolvimento. Sob essa ótica precisam ser adequadamente “interpretados” os “erros” dos dois alunos, sob pena de prejudicá-los seriamente. Suas dúvidas, erros ou desacertos decorrem de uma série de fatores a analisar, tais como: suas possibilidades cognitivas em determinado ano/idade escolar; noções estudadas/objetivos pretendidos; metodologias utilizadas para o alcance dos objetivos; e a ação mediadora que se promove para que a aprendizagem ocorra efetivamente (explicações, desafios, problematizações). Muito precisaria desenvolver acerca da “correção” dos erros em tarefas. Não há como ser breve sobre um assunto tão relevante (abordo esse assunto em vários dos meus livros). O que posso acrescentar sobre essa questão é que o “erro” do aluno é apenas sinalizador da ação futura do professor. O que fazer a partir do que observei? O que faço a partir da tarefa que fiz? O alfabetizando estará em tempo de compreender o uso da crase nessa frase? Com certeza, AINDA não. Se o professor rasurar seu texto, ele irá aprender/compreender essa noção? Absurdo! Mas e o aluno do nono ano? Não seria esperado que já tivesse aprendido? Como proceder pedagogicamente para que seja desafiado a pensar, repensar, compreender essa noção que já deveria ter compreendido/aplicado? Não pretendo dizer ao leitor “como” proceder nos dois casos, mas meu intuito é insistir que não há certos/errados absolutos no caminho da aprendizagem. Todo o “erro” é um ponto de interrogação a exigir uma nova resposta/ação do professor e tendo em vista a evolução do aluno. Essa ação mediadora dependerá, além disso, de conhecer o aluno em questão e das múltiplas dimensões do conhecimento desenvolvidas nas situações da sala de aula.

HÁ EM SEU TRABALHO A REFERÊNCIA AO TEMPO DE ADMIRAÇÃO NA AVALIAÇÃO. O QUE PROPÕE COM ESSA BELA EXPRESSÃO?

Fico feliz com a pergunta, porque esse é um dos tempos que melhor define “O jogo do contrário em avaliação”17. A avaliação mediadora consiste em observar + refletir + agir, configurando-se em três tempos, não lineares, mas contínuos, inter-relacionados: o tempo de admiração dos alunos; o tempo de reflexão sobre suas aprendizagens e o tempo de mediação/reconstrução das práticas educativas. O tempo de observação/admiração de cada aluno é um dos pilares da avaliação mediadora. É tempo de conversa, de mão no ombro, de olho no olho, de “querer saber” sua história escolar, sua história de vida, seu jeito de aprender, de fazer, de ser, de conviver na escola e fora dela. Admirar o aluno, acredito, vai além, muito além de observá-lo, acompanhá-lo (palavras muito ditas, já um tanto gastas no discurso pedagógico). É um tempo de todo dia, de um olhar curioso, aberto à imprevisibilidade de cada momento e sujeito à alteridade, a vivências que não fazem parte da minha própria experiência como professor. Um olhar que pergunta e que se deixa perguntar. Por vezes, ouço juízos enunciados sobre crianças ou jovens que beiram à agressão, à indiferença, ao preconceito de todas as ordens. Pareceres infundados, aligeirados, sem um olhar mais atento e intenso sobre o seu passado e o seu presente, sobre suas aprendizagens, sobre sua vida em casa, em sociedade, sobre seus projetos de vida. O que defendo, nesse sentido, é a garantia de espaços e tempos para o diálogo, para a conversa nas escolas, entre professores e gestores e familiares, entre alunos e professores, entre alunos, entre pequenos e grandes. Tempo para conversar sobre interesses, necessidades, projetos de vida, pontos de vista, afetos, desafetos, desvinculando essas “conversas” de qualquer compromisso ou viés burocrático. Foi essa a minha finalidade primeira ao acompanhar cerca de duzentos casos de alunos com dificuldades em várias escolas do país, um programa de formação que se estendeu no tempo e que deu origem a este livro. Percebi, sobretudo, quantos alunos pedem socorro, embora calados, e quantos professores estão angustiados por não saber como ajudá-los. Então, convidei outros colegas professores a reaprender a olhar aluno por aluno, sem o “todos” que tanto nos assusta. Tratamos de conversar muito com cada um deles (isso foi o início de tudo), por mais tempo, sem pressa de chegar a explicações ou justificativas. Paramos no tempo para entendê-los antes de julgá-los, respeitá-los antes de ensiná-los – por vezes não se faz o contrário em avaliação? Devo finalizar essa entrevista, pois o meu “tempo” já se alonga em demasia18. Deixo com os leitores, últimas reflexões pertinentes a esse “tempo de admiração dos alunos em avaliação”:

O desenvolvimento do ser humano como processo de significação do mundo é sempre dinâmico, de aprendizagem gradual e, portanto, de continuidade, de evolução, de crescimento. O que pressupõe olhar para a sua história e para o seu presente, ou seja, compreender a trajetória de vida do aluno na família e na escola procurando captar-lhe as experiências vividas para projetar o futuro das ações pedagógicas (visão prospectiva), estando sempre atento às dimensões em que deve ser desafiado para avançar em todas as áreas do saber, “admirar” o estudante pela própria diversidade de experiências e pela capacidade infinita de produzir sempre alguma diferença em nós, educadores (HOFFMANN, 2018, p. 64).

2HOFFMANN, Jussara. Avaliação mito & desafio: uma perspectiva construtivista. 45. ed. Porto Alegre: Mediação, 2017.

3______. Avaliação mediadora: uma prática em construção da pré-escola à universidade. 34. ed. Porto Alegre: Mediação, 2018.

4EDLER CARVALHO, Rosita. Educação inclusiva: com os pingos nos “is”. 8. ed. Porto Alegre: Mediação, 2011.

5HOFFMANN, Jussara. Avaliar para promover: as setas do caminho. 16. ed. Porto Alegre: Mediação, 2017.

6HADJI, Charles. Avaliação desmistificada. Porto Alegre: ArtMed, 2001.

7HOFFMANN, Jussara. O jogo do contrário em avaliação. 10. ed. Porto Alegre: Mediação, 2018.

8HOFFMANN, J. Avaliar: respeitar primeiro, educar depois. 4. ed. Porto Alegre: Mediação, 2013.

9______ . O jogo do contrário em avaliação. 10. ed. Porto Alegre: Mediação, 2018.

10______ . Avaliação mediadora: uma prática em construção da pré-escola à universidade. 34. ed. Porto Alegre: Mediação, 2018.

11Reynaldo Fernandes, Presidente do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – Inep/MEC.

12FREIRE, Madalena et al. Observação, registro e reflexão. São Paulo: Espaço Pedagógico, 1995.

13HOFFMANN, Jussara. Avaliação e Educação Infantil: um olhar sensível e reflexivo sobre a criança. 21. ed. Porto Alegre: Mediação, 2017.

14DEMO, Pedro. Ser professor é cuidar que o aluno aprenda. 8. ed. Porto Alegre: Mediação, 2011.

15HOFFMANN, Jussara. Avaliar para promover: as setas do caminho. 16. ed. Porto Alegre: Mediação, 2017.

16

HOFFMANN, Jussara. Avaliação mediadora: uma prática em construção da pré-escola à universidade. 34. ed. Porto Alegre: Mediação, 2018.

____ . Avaliação mito & desafio: uma perspectiva construtivista. 45. ed. Porto Alegre: Mediação, 2017.

17HOFFMANN, Jussara. O jogo do contrário em avaliação. 10. ed. Porto Alegre: Mediação, 2018.

18Meus agradecimentos a Maria Teresa Esteban, colega e amiga, pelo convite para realizar essa entrevista para a Revista Teias. Escrever me levou a revisitar uma série de passagens (belas e nem tão belas) pelos caminhos da avaliação mediadora.

1Jussara Hoffmann é uma das maiores especialistas em avaliação da aprendizagem do país. Iniciou seus estudos e pesquisas nessa área em 1979, na UFRJ, tendo se tornado a segunda Mestra em Educação do país na Linha de Pesquisa Avaliação Educacional em 1981. Desde lá, destacou-se no país pela sua contribuição inovadoras a área, desenvolvendo a teoria de Avaliação Mediadora. Atuou como docente em curso de especialização na PUCRS e, a partir de 1986, como professora adjunta na Faculdade de Educação da UFRGS, instituição na qual se dedicou aos estudos e pesquisas sobre Avaliação Mediadora e Educação Infantil.

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