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Revista Teias

Print version ISSN 1518-5370On-line version ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.19 no.54 Rio de Janeiro July/Sept 2018  Epub Sep 05, 2021

https://doi.org/10.12957/teias.2018.33594 

Artigos de Demanda Contínua

– “NINGUÉM TINHA ME PERGUNTADO SE EU SABIA” – UM ESTUDO SOBRE AS CULTURAS INFANTIS

"NOBODY HAD ASKED ME IF I KNEW" – A STUDY ON THE CHILDREN'S CULTURES

"NADIE ME PREGUNTÓ SI SABÍA" – UN ESTUDIO SOBRE LAS CULTURAS DE LOS NIÑOS

Susana Angelin Furlan* 

José Milton de Lima2 

Márcia Regina Canhoto de Lima3 

*Licenciada em Educação Física e mestra em Educação pelo Programa de Pós-graduação em Educação da Faculdade de Ciências e Tecnologia, UNESP, Campus de Presidente Prudente. E-mail: susanaangelin20@gmail.com

2Livre-docente em Educação Física Infantil do Departamento de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Ciências e Tecnologia, UNESP, Campus de Presidente Prudente (2018). Pós-doutor pela Universidade de Salamanca, na Espanha (2013). E-mail: milton.lima@unesp.br

3Livre-Docente em Educação Física no Ensino Médio do Departamento de Educação Física e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Faculdade de Ciências e Tecnologia, UNESP, Campus de Presidente Prudente. Pós-doutorado em Educação pela Universidade de Salamanca, na Espanha (2013). E-mail: marcia.rc.lima@unesp.br


RESUMO

Este presente artigo tem como propósito refletir sobre como as vozes e opiniões das crianças estão sendo consideradas dentro do contexto escolar. Fruto de uma pesquisa etnográfica que visava estudar as crianças e suas culturas, teve como um dos principais resultados saberes que levam a acreditar que as crianças possuem culturas que são diferentes do adulto, desta forma, elas falam, se expressam, mas em sua grande maioria são desconsideradas. Desta forma salientamos que é necessária uma empatia nas relações crianças e adultos a fim de entender os pequenos, suas necessidades, assim como a melhor forma que aprendem os conteúdos e os principais saberes historicamente construídos.

Palavras-chave: Crianças; Educação Infantil; Culturas infantis

ABSTRACT

This article aims to reflect on how the voices and opinions of children are being considered within the school context. Fruit of an ethnographic research aimed at studying children and their cultures, was one of the main results that lead to believe that children have cultures that are different from the adult in this way, they say, if expression, but in your vast majority are disregarded. In this way we would like to point out that it is necessary an empathy in relationships, children and adults in order to understand the small, their needs, as well as the best way to learn the content and the main knowledge historically built.

Keywords: Children; Early Childhood Education; Children's cultures

RESUMEN

Este artículo pretende reflexionar sobre cómo las voces y opiniones de los niños se consideran en el contexto de la escuela. Fruto de una investigación etnográfica dirigida a estudiar los niños y sus culturas, fue uno de los principales resultados que conducen a creer que los niños tienen culturas que difieren de los adultos de esta manera, dicen, si la expresión, pero en su gran mayoría son ignorados. De esta manera, nos gustaría señalar que es necesario una empatía en las relaciones, los niños y adultos para comprender los pequeños, sus necesidades, así como la mejor manera de aprender el contenido y el conocimiento principal históricamente construido.

Palavras chave: Niños; La educación temprana; Culturas de los niños

INTRODUÇÃO E METODOLOGIA

Este presente artigo é fruto de uma pesquisa ocorrida durante o ano letivo de 2017, que investigou a relação das crianças e suas culturas dentro da escola. Foi realizada em uma escola de Educação Infantil em um município do interior paulista, contando com a participação de duas professoras e aproximadamente 49 crianças, de 3 a 4 anos, matriculadas na Educação Infantil.

A pesquisa cumpriu todos os requisitos necessários do Comitê de Ética e Pesquisa (CEP), sendo, portanto, que todos os nomes aqui representados são fictícios a fim de garantir a integridade dos participantes. Ela obteve financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), porém destacamos que as opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material foram de responsabilidade dos autores e não refletiram necessariamente a visão da Fapesp.

As crianças e as professoras foram, para nós, participantes ativas das pesquisas, tendo voz e vez. Importante destacar que não era nosso objetivo interpretar ações e falas, mas sim ouvir o que elas achavam e a partir daí buscarmos entender suas ações e falas. Para tanto, utilizamos a metodologia etnográfica e fizemos a observação participante, estando presente na escola e nas salas na maior parte do tempo para entender o que acontecia naquele cenário. Utilizamos como instrumentos metodológicos as fotografias, as filmagens e as entrevistas realizadas com as professoras e as crianças

O estudo etnográfico, conforme Vianna (2007), tem como objetivo descrever uma determinada cultura, no nosso caso as relações das professoras e das crianças pesquisadas com o tempo. Velho (2003) destaca que a etnografia não é só feita como no seu surgimento, no qual, em uma terra estranha, conseguia-se, por meio deste método, aproximar-se do desconhecido. Nos dias de hoje, o pesquisador brasileiro, mesmo em sua cidade, consegue valer-se de sua rede de relações pré-existentes para sua investigação.

Muitas vezes, usamos a lógica adulta, ou porque não falar de lentes de adultês, fazendo com que as lógicas infantis pareçam como despropósitos para nós. Destacamos, a priori, um trecho do diário de campo que retrata sobre uma situação que aconteceu com Andrei:

A Professora reclama de Andrei para mim e para as outras professoras, porque ele não sabe pegar no lápis. Ele coloca o lápis entre os dedos indicador e médio. Então eu percebi que ele trocava de posição quando a professora olhava para ele, ao pintar. Cheguei perto dele e perguntei:

  • – Você troca de posição com o lápis para pintar. Você não sabe pegar no lápis assim?-Mostrei o jeito convencional de se pegar um lápis para pintar. Andrei me responde passivamente e com o olhar no desenho.

  • – Eu sei pegar desse jeito, é o jeito que a professora manda, mas pego desse (mostra o seu jeito) porque aí eu não sujo a parte de baixo da minha mão com as cores.

  • – Ah, então você sabe! A prô achava que você não sabia pegar no lápis do jeito “certo” – eu disse.

  • – Eu sei, só acho melhor do meu. Ninguém tinha me perguntado se eu sabia. (DIÁRIO DE CAMPO, 2017).

Esse diálogo revela que o ouvir a criança e os seus possíveis “despropósitos” são um dos aspectos importantes na corrente teórica que abordaremos nesse artigo, a Sociologia da Infância.

A SOCIOLOGIA DA INFÂNCIA

Sarmento (2003) ressalta que as nossas concepções foram construções históricas sobre a infância, baseadas sempre em uma perspectiva adultocêntrica, ocultando a realidade cultural das crianças. Diante disso, fizeram-se necessárias outras áreas para dar suporte, rompendo com esse modelo epistemológico sobre a infância constituída até aquele momento.

Pelo papel marginalizado que ocupava na sociedade, a criança não tinha espaço nos estudos e pesquisas da época. Porém, o surgimento desse sentimento sobre a infância provocou o aparecimento de diversas áreas preocupadas com o seu desenvolvimento, como a pediatria, a psicologia e a pedagogia, sempre preocupadas com o “vir a ser” adultos, com o que a criança se tornaria.

Depois dessas áreas, houve uma vertente sociológica que voltou o seu olhar para a criança de forma diferenciada, não a concebendo mais como de forma prospectiva, ou seja, olhando o adulto que ela se tornaria, mas sim o ser social que ela era.

Gomes (2008) destaca o nascimento de pesquisas sobre a infância em suas dimensões natural e social, que vai além da necessidade de proteção, educação e cuidado. A instabilidade e a ideia de fase incompleta apresentadas pelas crianças criam as possiblidades de cursar os mais diversos caminhos, adaptando-se às novas dinâmicas sociais da vida cotidiana, produzindo, reproduzindo, elaborando e transformando as suas rotinas, bem como transformando a estrutura social, quer direta quer indiretamente.

Todos os indivíduos independentemente de idade, etnia, sexo ou raça – têm fundamental importância para que o particular e o genérico possam configurar a vida cotidiana. Portanto, todas as gerações envolvidas nos processos cultural, histórico e social têm imenso valor. Ademais, cada fase da vida tem suas especificidades, suas características e sua atuação. E é nesse sentido que a infância é uma das categorias essenciais que compõem o cotidiano e as gerações. A infância transforma a história, pois ela é nascimento, é brincadeira, é jogo e é transitoriedade. Sem a infância a vida cotidiana estagnar-se-ia apenas diante do rito, da sincronia e do visível. (GOMES, 2008, p.179).

A Sociologia tem por interesse os grupos subordinados, o que chamou a atenção para a infância, haja vista que era uma área marginalizada, sem muitos estudos. Essa preocupação deu início a uma nova vertente, a Sociologia da Infância, campo que ainda se encontra em ascensão.

Muller e Nascimento (2014), em seu Dossiê sobre os estudos da infância, destacam que a Sociologia da Infância emerge com trabalhos na década de 1980, contrariando os paradigmas que a associam a apenas um período de imaturidade biológica.

Embora, muito recente, em termos de produção e de constituição enquanto área de estudos e pesquisas, destacam-se, na França e na Inglaterra, os estudos de Sirota (2001) e Montandon (2001), respectivamente. Para a primeira autora, a Sociologia da Infância

deriva de um movimento geral da sociologia, seja ela de língua inglesa ou francesa, de resto largamente descrito, que se volta para o ator, e de um novo interesse pelos processos de socialização. A redescoberta da sociologia interacionista, a dependência da fenomenologia, as abordagens construcionistas vão fornecer os paradigmas teóricos dessa nova construção do objeto. Essa releitura crítica do conceito de socialização e de suas definições funcionalistas leva a reconsiderar a criança como ator (SIROTA, 2001, p. 09).

Montandon (2001) parte da perspectiva da infância como uma construção social específica, com uma cultura própria e que, portanto, merece ser considerada nos seus traços específicos. A autora apresenta, em seus estudos, uma ruptura com as abordagens clássicas da socialização infantil e adota a concepção das crianças como atores sociais.

A referida pesquisadora deteve-se com afinco na verificação das instituições (escolas e instituições sociais em geral) e o papel social de cada uma, buscando conhecer a influência delas sobre as crianças. Parte da premissa de que é preciso uma tomada de consciência pelo interesse por uma Sociologia da Infância, através de pesquisas que deem vozes às crianças.

A Sociologia da Infância assume, de acordo com Sarmento (2013, p. 20), um papel determinante nos novos estudos da infância, pois “sinaliza o(s) lugar(es) social(is) da criança e enuncia uma orientação epistemológica distinta face ao conhecimento pericial hegemônico durante décadas”.

Sarmento, em uma entrevista dada a Delgado e Muller (2006), reitera que o lugar da infância é de mudança. No entanto, a criança ainda é vista pela sua negatividade: ela não trabalha, não vota, não possui renda, não pode ser eleita, não é punida pelos seus crimes, o que fez com que esse grupo social não tivesse um olhar direcionado nas pesquisas. Porém, elas são também as mais afetadas em alguns casos, como por exemplo, por algumas doenças como a AIDS, pela insegurança, pela violência e pelas mudanças climáticas.

É dito ainda, referenciado em Delgado e Muller (2006), que a criança tem lugar na intersecção entre o acesso às culturas adultas, a elas próprias e às culturas infantis reafirmadas pela socialização horizontal das próprias crianças, com seus combinados, sua linguagem, códigos e propósitos. É um entre-lugar à medida que é uma infância contaminada pela introdução precoce à vida e à cultura adulta.

A Sociologia da Infância surgiu com o intuito de entender que não há apenas uma infância, mas várias, porque a criança é caracterizada e reconhecida em sua singularidade, tendo várias formas de ser criança. As infâncias são diferentes conforme a religião, a etnia, a sociedade em que este sujeito se insere, suas condições econômicas, dentre outros fatores, mostrando que ele tem diferentes modos de viver esse período.

Muda-se também o olhar para a criança dentro da pesquisa, uma vez que, na Sociologia da Infância, há uma indicação para que não se realizam mais pesquisas sobre crianças, mas com crianças, nas quais elas se portem como sujeitos do estudo, com voz ativa, contribuindo de forma efetiva, devidamente valorizados em suas falas, ações e gestos.

Achamos importante explicar com uma linguagem simples o que se trataria a pesquisa, e o porquê de estar lá com elas. Assim, não só os responsáveis assinaram o consentimento, mas as crianças também, à medida que entendiam nossos objetivos e davam resposta afirmativa a nossa presença entre elas. (DIÁRIO DE CAMPO, 2017).

Assim, cabe destacar que utilizamos a valorização das vozes das crianças para vencermos práticas adultocêntricas que vem imperando na prática dialógica e reflexiva, entendendo-as como sujeitos, bem como tentando dar-lhes visibilidade perante a comunidade científica e à sociedade como um todo e mostrando que há aspectos singulares a elas, sendo capazes de nos mostrarem quais sejam eles.

Gallo (2010) lembra-nos da etimologia da palavra infância, que vem da palavra francesa infans, aquele que não tem voz, que não possui palavra. Afirma que muitas teorias das quais já tivemos contato não ouvem de fato as crianças, mas ouvem os adultos que falam por elas.

A relação entre adultos e crianças também é analisada e problematizada por esta teoria, ao entender que a criança como ator social não desvaloriza ou deixa de legitimar a importância do adulto na relação educativa, apenas evidencia o papel da criança como aquele que ressignifica os saberes, até porque antigamente era negado a ela o lugar e o reconhecimento social.

Esta vertente sociológica defende que a criança é sujeito ativo de uma categoria social heterogênea do tipo geracional. É uma concepção contrária ao conceito de simples reprodução do mundo adulto e considera que as crianças realizam a reprodução interpretativa, apreendendo o mundo social como o encontram e transformando-o aos seus modos (CORSARO, 2011).

O termo reprodução interpretativa é usado por Corsaro (2011, p. 53) para definir que “[...] as crianças não apenas contribuem ativamente para a cultura adulta e de sua própria infância de uma forma direta, mas se apropriam criativamente das informações do mundo adulto para produzir sua própria cultura de pares”. A reprodução interpretativa garante que a criança participe da sociedade e contribua para a transformação e propagação de sua cultura, propiciando-lhe a capacidade de modificar o que estava posto.

As crianças estão brincando de casinha em um momento que a professora Roberta lhes proporcionou no final da aula. Elas então me chamam para brincar junto e uma diz que eu serei a mãe. E em posse dessa função, vou logo dizendo:

  • – Joaquina, vai fazer lição!

Joaquina me olha e diz:

  • – Não, aqui a mãe só faz comidinha, não manda a gente fazer lição, nem nada assim. Por isso faz um bolo e suco pra gente comer. (DIÁRIO DE CAMPO, 2017).

Observamos, por esse trecho do diário de campo, que as crianças não reproduzem o que tem em casa ou algo assim, mas criam outras situações a partir dos significados que querem dar à brincadeira.

Outro conceito importante é o de culturas de pares que, de acordo com Corsaro (2011), é um conjunto de normas e rotinas produzidas e compartilhadas pelas crianças na interação com seus pares. Essas culturas são públicas e construídas coletivamente, estando relacionadas às culturas mais amplas.

Andrade (2010) aponta que a infância é uma construção elaborada para e pelas crianças, determinada socialmente; além de ser contextualizada, considerando tempo, local e cultura diferentes. Por isso, dizemos que não há uma infância universal e um modo natural de ser criança, mas várias infâncias. As crianças são atores sociais participantes da construção de sua vida e da sociedade, contribuindo e construindo conhecimento experimental, com voz própria e sendo ouvidas e consideradas com seriedade para melhor entendermos as diferentes infâncias.

É fundamental também entendermos que o relacionamento entre criança e adulto envolve exercícios de amor e poder, requerendo uma flexibilidade maior, pela resistência das crianças a esse poder exercido pelo adulto.

Nos estudos do Brasil, Muller e Nascimento (2014) ressalta que podemos encontrar alguns pontos-chaves para a consolidação da Sociologia da Infância, a saber: A infância como construção social, visa entender que todos os seres humanos são socialmente incompletos, independente da faixa etária que se encontram. Quando assumimos que somos todos seres em formação, as oposições biológicas e sociais se enfraquecem. Desta maneira, a infância não deveria ser vista como um fenômeno unitário e incompleto, mas como um conjunto de construções e relações.

O outro ponto-chave é o reconhecimento da agência das crianças, sendo elas os atores sociais com desejos, apegos e que fazem parte das relações dentro da família. Mais que isso, nos estudos, elas precisam ser consideradas agentes, como um ator social.

E o último ponto se refere à atenção a suas vozes, , que consiste não só em ouvir as vozes, mas também que, ao observar os gestos e as atitudes, significa, antes de tudo, estar presente no presente, no olhar. Segundo Pinto (1997, p. 25):

O olhar das crianças permite revelar fenômenos sociais que o olhar dos adultos deixa na penumbra ou obscurece totalmente. Assim, interpretar as representações sociais das crianças pode ser não apenas um meio de acesso à infância como categoria social, mas às próprias estruturas e dinâmicas sociais que são desocultadas no discurso das crianças.

Muller (2006) ressalta a emergência de um novo paradigma da infância com três características principais: variedade de infância ao invés de um único fenômeno universal, as relações sociais das crianças e de suas culturas devem ser estudadas em seu próprio direito e as crianças devem ser vistas como ativas nas construções de suas próprias vidas sociais e daqueles que estão ao seu redor.

É interessante destacar que a autora menciona que, enquanto as grandes corporações e a escola veem a infância como homogênea e como uma categoria singular, vivida de uma maneira única pelas crianças, os estudos mais recentes da infância têm focado na criança e nos seus universos, ressaltando seus modos de vida, suas manifestações culturais e seus universos.

Salientamos que esta vertente sociológica se confronta hoje com a análise da subjetivação da criança e da construção de sua autonomia, de acordo com Sarmento (2013). Essas análises se articulam com os efeitos do processo de globalização e do individualismo institucionalizado nesse processo. A subjetivação se refere ao entendimento da criança como ator social e sujeito de sua cultura, e a autonomia se refere à possibilidade de a criança agir efetivamente e ter um poder no quadro das relações sociais. As culturas infantis são interativas, que devem se comunicar para além do que as separam. Assim, estar com o outro e partilhar experiências e saberes são condições de afirmação das crianças como sujeitos.

Em Delgado e Muller (2006), Sarmento reitera que a Sociologia da Infância chama a atenção para a criança que vive em cada aluno, devendo-se analisar os efeitos geracionais das nossas políticas públicas, não anulando as ideias centradas no processo de aprendizagem, de formação de professores, nos processos de ensino, mas anunciando novos sentidos para a ação educativa. Assim, são pontos de investigação da Sociologia da Infância: as formas populares de educação, as relações intergeracionais, a participação das crianças, as culturas infantis, os efeitos geracionais do sistema educativo brasileiro. No entanto, esse processo investigativo só será emancipador se estiver veiculado à ampliação dos direitos das crianças.

Partindo do pensamento central da Sociologia da Infância, Spréa e Garanhani (2014, p. 111) mostram a concepção de criança à deriva da cultura escolar.

Lembra-se de que a forma como as crianças elaboram o conhecimento sobre si, as construções originais que realizam diante do ato de brincar e o sentido que dão às suas brincadeiras demonstram que, por detrás de um ser em formação, reside outro em plena condição de criar e agir. Esse sujeito em formação, foco central e justificativa maior da ação escolar, é necessariamente um sujeito idealizado, aquele que um dia chegará a ser alguém, uma imagem formativa que a educação projeta no futuro. Muito antes de esse dia chegar, outro ser se impõe como um sujeito real, que brinca e descobre na brincadeira uma ferramenta de ação sobre o mundo. Esse sujeito não aguarda o dia em que será alguém, pois ele já o é.

Nesse sentido, a Sociologia da Infância foi conduzindo o olhar de inúmeras produções que começaram a ver a criança de uma forma diferente em relação à visão que se tinha dela antigamente. Destacamos então um dos estudos pioneiros nas produções sobre as culturas infantis, iniciado em 1944, por Florestan Fernandes, que cria o conceito de “cultura infantil”, ao analisar as trocinhas do bom retiro, abrindo o campo da Sociologia da Infância no Brasil.

AS CULTURAS DA INFÂNCIA

Florestan Fernandes foi um dos mais importantes sociólogos brasileiros. Formado em Ciências Sociais, deixou uma obra ampla e variada, abrigando diversos temas no esforço de entender a sociedade brasileira. Alguns de seus principais escritos são: Fundamentos empíricos da explicação sociológica, Ensaios de Sociologia Geral Aplicada, A natureza sociológica. Uma obra que devemos destacar é “Folclore e mudança social na cidade de São Paulo”, na qual apresentou-nos um pouco sobre as culturas das crianças de um bairro paulistano.

Para Fernandes (1961, p. 174), a formação das trocinhas (dos grupos) dependia da localização da vizinhança, que era uma coisa que facilitava, mas não era um motivo principal das reuniões das crianças. O conceito de cultura infantil pode ser entendido como “constituída por elementos aceitos da cultura do adulto e por elementos elaborados pelos próprios imaturos”.

O termo culturas, pluralizado, define da melhor forma as condições nas quais as culturas infantis são produzidas. Sarmento (2002, p. 4) destaca que o conceito “significa que as formas e os conteúdos das culturas infantis são produzidos numa relação de classe, gênero, e de proveniência étnica, que impedem definitivamente a fixação num sistema coerente único dos modos de significação e ação infantil”.

Nessa nova concepção, para Barbosa (2014), as crianças passaram a ser vistas, não apenas como seres determinados pelas culturas adultas e escolares, mas também entendidas como agentes produtores de cultura. Desta forma, elas fundam suas culturas a partir dos modos de participação nos mundos naturais e simbólicos. Para compreender as possibilidades das culturas da infância, devemos considerar a vida cotidiana das crianças e a multiplicidade dos mundos sociais em que vivem.

Sarmento (2003) entende que as culturas da infância são a interpretação da autonomia das crianças, sendo que estas vêm realizando processos de significação e modos de ação no mundo, diferentes dos adultos, que são específicos e genuínos. Corsaro (2011), Muller (2006) e Prout (2000) reforçam que as culturas infantis se radicam e se desenvolvem em modos específicos na comunicação intra e intergeracional.

As culturas da infância exprimem a cultura societal em que se inserem, mas fazem-no de modo distinto das culturas adultas, ao mesmo tempo que veiculam formas especificamente infantis de inteligibilidade, representação e simbolização do mundo. As crianças portuguesas pertencem à cultura (heterogênea e complexa) portuguesa, mas contribuem activamente para a construção permanente das culturas da infância. Nesse sentido há uma “universalidade” das culturas infantis que ultrapassa consideravelmente os limites da inserção cultural local de cada criança. Isso decorre do facto das crianças construírem nas suas interações “ordens sociais instituintes” (Ferreira, 2002), que regem as relações de conflito e cooperação, e que actualizam, de modo próprio, as posições sociais, de gênero, de etnia e de cultura que cada criança integra. (SARMENTO, 2003, p. 12).

Sarmento (2003) reconhece haver traços distintos das culturas infantis, que podem ser vistos por meio de uma “gramática” e que não deve ser reduzida apenas a elementos linguísticos, mas componentes de valores, normas, rituais que se caracterizam nas dimensões da semântica, sintaxe e morfologia.

A Semântica é a construção de significados próprios que, como exemplo, poderíamos usar as construções de seus tempos, nas quais a criança cria e recria seus tempos com facilidade, sendo que uma brincadeira começa num dia e no outro dia recomeça do mesmo ponto, como se não houvesse a quebra do tempo (SARMENTO, 2003).

A Sintaxe, como na gramática da língua portuguesa, refere-se à relação e à disposição lógica das frases em um discurso. Assim, esse traço quer significar que os elementos de representação das crianças não obedecem a uma lógica adulta. Assim, por exemplo, na frase: “Eu sou uma fada”, a imaginação e a realidade se misturam, o sentimento de ser e de não ser estão presentes na articulação dessa frase (SARMENTO, 2003).

A Morfologia, que representa as especificidades das formas dos elementos das culturas infantis, pode ser entendida por um exemplo clássico: uma cadeira que pode não ser só uma cadeira, mas pode ser uma pista do carrinho de um menino (SARMENTO, 2003).

Além desses traços específicos, o autor apresenta quatro eixos estruturadores das culturas da infância: a Reiteração, a Interactividade, a Fantasia do real e a Ludicidade.

Sobre a importância destes eixos para a condução de nosso pensamento e de nossa pesquisa e devido à Reiteração ser o nosso eixo balizador, é imprescindível explicar cada um deles, da maneira que Sarmento (2003) entende-os e como reinterpretamos.

A Reiteração é o tempo da criança, que é recursivo, capaz de ser reiniciado e reinvestido de novas possibilidades. É um tempo habituado à medida das rotinas e das necessidades de interações. É contínuo, no qual é possível encontrar o nexo ao passado da brincadeira, que se repete; e o futuro da descoberta, que se incorpora novamente (SARMENTO, 2003).

A Interactividade é representada pela relação estabelecida pela criança com seus pares, permitindo-a a apropriação, a reinvenção e a reprodução do mundo que a rodeia. Essa relação é necessária para um maior entendimento da realidade e faz parte do seu processo de crescimento e desenvolvimento integral (SARMENTO, 2013).

Visto que as crianças vivem em um mundo heterogêneo, com diferentes realidades, bem como afetadas por diversas instituições socializadoras, como a família, a escola, a igreja, as mídias televisivas, entre outras, a interação entre seus pares é reconhecidamente um dos momentos presentes na escola que mais enriquece suas culturas, com aqueles que compartilham os mesmos anseios, medos e desejos.

Neste eixo, encontra-se também as relações qualificadas com o adulto, como quando esse age como um mediador, tornando as relações com os outros e com os saberes mais significativas.

Fonte: Elaborada pela própria autora(2017).

Figura 2 Conversa. 

Na imagem acima, evidenciamos uma conversa entre três crianças: João, Marilia e Raquel, na qual discutiam sobre o desenho de Marília (a loira). Raquel entra na conversa apenas para interceder pela amiga, que teve o desenho criticado por João. Mesmo apontando o lápis, um para o outro, é apenas um modo de interagir que ocorre muito dentro da sala de aula, quando um diz que o desenho do outro está feio, ou seja, não é a resposta esperada, logo vem a frase: “Então você não é meu amigo”, ou seja, a resposta agradável, o fato de estar sempre pronto e emprestar material, são elementos que pautam a relação de amizade entre as crianças e faz parte das relações que estabelecem nas culturas de pares.

A Fantasia do Real é a linguagem imaginativa da criança, uma forma de inteligibilidade. Sarmento (2003) considera não apropriado usar o termo “faz de conta”, pois, segundo ele, quando a criança está brincando, ela vivencia verdadeiramente o que imagina, ou seja, os sentimentos e emoções são reais. Por esse motivo, o autor adota o termo “Fantasia do real”.

É uma forma de inteligibilidade da criança, que permite uma outra interpretação do mundo, uma compreensão de diferentes fenômenos e das relações sociais que antes não podiam ser entendidos. É uma maneira privilegiada de contato com o mundo e a cultura, pois, quando a criança brinca, ela se apropria de modo ímpar da cultura através da fantasia do real.

Fonte: Elaborada pela própria autora (2017).

Figura 3 Olha o dinossauro 

Quando a professora Roberta colocava os brinquedos de montar no centro, para as crianças era muito proveitoso no quesito da fantasia, pois elas podiam criar tudo o que quisessem com aquelas pecinhas. Na imagem acima, Leandro me diz: “Olha o dinossauro” e logo depois, mesmo o aparelho fotográfico não conseguindo capturar a imagem, o dinossauro veio em minha direção, através de Leandro, e quis me morder.

A Ludicidade é um traço fundamental das Culturas da Infância, e o brincar é visto como atividade primordial para a criança, indispensável para o desenvolvimento, sendo uma atividade própria do homem e vivida com particular intensidade e seriedade na infância.

As crianças, com essas características únicas que percebem o mundo de maneiras distintas dos adultos, apresentam diferentes formas de comunicação e interação entre as pessoas e objetos, expressos por meio do brincar. Redin (2009, p. 123) explica que, por meio da “[...] brincadeira a criança mergulha na vida, criando um espaço que expressa, que atribui sentido e significado aos acontecimentos”. Sarmento (2003, p.15) acrescenta que, diferentemente aos adultos, “[...] entre brincar e fazer coisas sérias não há distinção, sendo o brincar muito do que as crianças fazem de mais sério”.

Porém, a criança não nasce sabendo brincar, pois este tipo de atividade não é algo inerente ao ser humano, mas uma atividade repleta de significação social que necessita ser aprendida assim como tantas outras (BROUGÈRE, 2004).

De acordo com Brougère (2004, p. 257):

A brincadeira é uma atividade que se distingue das outras, no sentido em que não deve ser considerada de modo literal. Nela se faz-de-conta, ou melhor, o que se faz só tem sentido e valor num espaço e em um tempo delimitado. Trata-se de uma atividade de segundo grau, que supõe uma distinção das formas comuns de atividade. Portanto, a brincadeira deve ser diferenciada das atividades comuns (de primeiro grau) e nisso ela se aproxima do teatro, ficção e do humor, de outras atividades de segundo grau que integram tudo o que não se deve levar ao pé da letra.

Portanto, se a brincadeira é uma atividade social, a escola, enquanto importante espaço para socialização, torna-se imprescindível para o desenvolvimento de relações, trocas de experiências e formação de valores e sistemas simbólicos (SARMENTO, 2002). Assim, “a afirmação, frequentemente colhida nos inquéritos às crianças em idade escolar, de que elas gostam de ‘ir à escola’, mesmo quando não gostam de ‘ir às aulas’, testemunha o sentimento de pertença a um grupo de pares, e a uma cultura geracional” (SARMENTO, 2002, p. 276).

Sendo a brincadeira tão importante, Lima (2008) considera que os cursos de formação de professores não têm contemplado adequadamente a temática do jogo e da brincadeira, não se comprometendo com essas atividades essenciais para o desenvolvimento integral do indivíduo. Há que se destacar que o professor exerce o papel de mediador entre a criança e sua cultura, inclusive a cultura lúdica. Nesse sentido, a sua intervenção é essencial para ampliação e diversificação dos conhecimentos dos educandos sobre esses conteúdos.

Lima (2008) ainda destacar ser fundamental que se ofereça condições materiais, espaciais e temporais apropriadas e desafiadoras, possibilitando aos educandos um grande repertório de brincadeiras e aprendizado com diferentes elementos.

Esta carência de apropriação de conhecimentos sobre a brincadeira repercute em práticas equivocadas e distantes das crianças, como nos alerta Moreira (2014), tornando as instituições escolares espaços estranhos e sem significado para elas.

As culturas infantis se dão principalmente no convívio das crianças com os seus pares, sejam eles, colegas de sala, primos, irmãos, amigos, com os quais realizam atividades em comum. Nesses encontros, o que se destaca são as culturas lúdicas que, com repetições, sempre se diferenciam, pois mudam-se os pares, mudam-se os contextos, assim como sempre há criações do mundo imaginário pelo qual as crianças transitam (BARBOSA, 2014).

Para colaborar para a manutenção dessas culturas infantis, é necessário dar tempo e espaço para o desenvolvimento desses encontros, lembrando que “as crianças sempre foram responsáveis pela integração cultural das demais crianças e que crianças foram as companheiras privilegiadas das demais crianças” (BARBOSA, 2014, p. 665). Destacamos também, os pensamentos narrativos construídos pelas crianças em pequenos grupos ou a sós, que fazem parte da experiência infantil, ao imaginar e partilhar significados.

Nesse quesito em fantasiar e partilhar num encontro, em um dia de observação, as crianças foram conduzidas ao ambiente externo da escola para uma atividade de pintura no chão, com o uso de giz. Observamos alguns meninos olhando para fora do alambrado, o que nos provocou a buscar informações sobre o que lhes chamavam a atenção.

  • – Meninos, o que estão fazendo? – Questionei.

  • – Vendo os Zumbis, Pro. – Disse Pedro.

  • – Zumbis?! – Perguntei.

  • – Sim, olha lá! (Apontou mais à frente) Bem ali, e ele pegou o irmão do Miguel ontem.

Miguel confirma a história, e as outras crianças vão contando as suas experiências, ou melhor, histórias pessoais com os zumbis daquela região. (DIÁRIO DE CAMPO, 2017).

Fonte: Elaborada pela própria autora (2017).

Figura 4 Olha os zumbis. 

A escola também faz parte dessas culturas, buscando produzir, muitas vezes, uma cultura globalizada, sendo que há alguns elementos organizadores dessa cultura escolar, dentre os quais os tempos e os espaços escolares, por exemplo. Assim, nesta instituição escolar, alguns traços reforçam como as crianças devem ser e como são enquadradas, sendo eles: a distribuição pela idade e não pela capacidade; a organização do currículo e do horário, organizados pelos mercados e não para as crianças; a relação de disciplina que há entre professor e aluno; as classificações dos alunos.

Desta forma, como Muller (2006) destaca, as vivências dentro da escola se caracterizam como trabalho e a sua não consideração como tal é “[...] homóloga do que acontece com as atividades domésticas, normalmente desempenhadas pelas mulheres” (MULLER, 2006, p. 563).

Por mais que a modernidade tenha afastada as tarefas de trabalho das crianças, elas consideram trabalho o que é realizado de cunho pedagógico dentro da sala de aula, ou seja, o ofício da criança (as atividades que elas fazem) intersecciona com o ofício do aluno (atividades que as crianças fazem dentro da escola).

Muitas vezes, o trabalho dentro da sala é estafante para as crianças, sejam as atividades de cunho pedagógico, sejam as atividades culturais ensaiadas pelos pequenos para apresentação aos pais, por exemplo, mas veem como sem sentido para elas, configurando em um trabalho que devem realizar.

Observamos isso na escola, em diversos momentos, quando perguntamos, por exemplo, para Pedro, que era resistente, ao dizer que não dançaria no dia das mães.

Pedro estava sentado sozinho no canto da sala, enquanto os outros estavam ensaiando para a apresentação do dia das mães. Vou até ele e o questiono:

  • – Porque você não vai dançar, Pedro? Não gosta?

  • – Até gosto, mas leva muito tempo pra ensaiar e aí eu fico cansado, só fica parando, e ensaia, e para e ensaia de novo, tem que ficar ensaiando, ensaiando, ensaiando. (DIÁRIO DE CAMPO, 2017).

As outras atividades realizadas de cunho pedagógico também são consideradas trabalho, afinal as crianças repetiam essa denominação por vezes durante nosso convívio com elas, quando, por exemplo, a professora Roberta só as deixavam brincar depois da atividade realizada. Em alguns momentos diziam que tinham que fazer os seus trabalhos primeiros como condição para o brincar. Isso revelava também quando as crianças nos perguntavam se já tínhamos feito nosso trabalho.

Spréa e Garanhani (2014) destacam que o cotidiano escolar é o lugar de dinamização das culturas da infância. Dentro do cotidiano escolar, as crianças são condicionadas por dois aspectos. O primeiro refere-se às construções das próprias crianças através das relações que se estabelecem entre si, que são relações não autônomas, visto que dependem da relação com o mundo. O segundo refere-se aos determinantes institucionais, das regras e do ambiente moral, instituídos no convívio da escola, o que revela a ação dos adultos na organização das crianças, os seus conteúdos e o que deve ou não fazer na instituição. A organização de sua vida, mesmo nesse processo de escolarização, vai orientar e modelar a constituição das culturas infantis.

Imperativo se faz destacar que Muller (2006) pensa as relações de resistência com esses aspectos das culturas, mostrando até que ponto as crianças conseguem resistir a esse mundo adulto imposto pela escola que as podam e as transformam. Argumenta que, mesmo quando as culturas adultas impõem regras, normas, rotinas e hierarquias, as crianças conseguem rompê-las e criar estilos e interações de resistência. “A resistência em ficar calado/a, sentado/a eternamente obediente mostra que algumas crianças romperam com o pacto inicial: a aceitação ao que lhes era imposto de forma arbitrária” (MULLER, 2006, p. 568).

O que impera na escola é a tentativa da organização, seja ela em qualquer espaço, tanto dentro como fora da sala de aula. Um dos primeiros impactos nesse sentido, foi percebido quando, para ir ao banheiro, que é uma das primeiras atividades que as crianças têm que fazer quando adentram ao ambiente escolar, é sempre avisado para que saiam com a cabeça baixa e as mãos para trás, para que não mexam com o colega da frente. Como a pesquisa é feita de afetações, reiteramos que a sensação de vê-las assim fez-nos lembrar de uma das maiores instituições de resistência, a prisão.

Fonte: Elaborada pela própria autora (2017).

Figura 5 Mãos para trás. 

Consequentemente, aqueles que resistiam a essa organização eram então deixados à margem, ou seja, Anderson, que cutucou o amigo da frente durante a ida ao bebedouro e apostou corrida com o colega, teve de ficar quase um mês sem sair com seus colegas, sendo chamado só depois que todos os outros já tinham voltado.

Essas ideias de resistência apresentadas por Muller (2006) nos remete à brincadeira usada como resistência, fazendo-nos recordar e pensar, em um dia, na semana antes do dia das mães, cuja professora Catarina tinha saído por pouco tempo da sala, deixando as crianças sozinhas, realizando as tarefas de cunho pedagógico, pintando, conforme uma legenda dada a priori. Assim que saiu, as crianças começaram a sair das carteiras, conversarem com as outras, enquanto outras brincavam embaixo das mesas. Mas para se organizarem, de maneira espontânea, Braian, o aluno ajudante do dia, ficou com a porta entreaberta para avisar os colegas quando a professora estivesse retornando. Quando ele a avistou, avisou aos colegas, parecendo que nada havia acontecido de anormal.

Fonte: Elaborada pela própria autora (2017).

Figura 6 Resistência: brincadeira I 

Fonte: Elaborada pela própria autora (2017).

Figura 1 Resistência: brincadeira II 

Era a única adulta ali na sala, mas a professora não tinha pedido para cuidar dos pequenos, e sim tinha deixado a responsabilidade para os mesmos. No entanto, meu instinto pedia para que eu fosse à frente e pedisse para que ficassem nos seus lugares, ou fizessem silêncio, sem dar bronca, ou parecer que era a “adulta chata” que estava cortando a forma de resistência deles, a brincadeira. Então, seguindo esse pensamento, fui à frente e perguntei por que eles não ficavam em silêncio só até a professora chegar, e Augusto me respondeu:

  • – Professora, a gente é criança e gosta de falar, andar e brincar. (DIÁRIO DE CAMPO, 2017).

A resposta de Augusto pareceu tão explicativa que bastou. Afinal, eles tinham se organizado para que não levassem bronca (menino avisaria) e tinham também cuidado da brincadeira, para que nada pudesse impedir aquele modo clandestino de brincar e deixar que a sua cultura infantil aparecesse sem amarras e pudesse se fixar.

Devemos destacar também o brinquedo que aparece com frequência nas brincadeiras infantis. Agamben (2014) ressalta que a essência do brinquedo é que ele pode, de modo singular, ser captado na dimensão de um tempo, como expresso na fala de Ana : “Agora esse arquinho é um gira-gira” (DIÁRIO DE CAMPO, 2017). O brinquedo é aquilo que pertenceu a uma determinada função e em alguns instantes pode romper com a função prático-econômica ou à do sagrado e se transformar em outra. O autor vai além e entende o brinquedo como materialização da historicidade, contida nos objetos que manipulamos de forma particular, singular. O valor e o significado dele é o seu “presentificar e tornar tangível um passado mais ou menos remoto, o brinquedo desmembrando e distorcendo o passado ou miniaturizando o presente (...) presentifica e torna tangível a temporalidade humana em si” (AGAMBEN, 2014, p. 87).

A resistência mais escolhida pelas crianças, de fato, que transformam tempo e espaço é a brincadeira, o brinquedo que foi matéria corriqueira durante as observações, lápis se transformando em aviões, tampinhas se transformando em novos brinquedos, arquinhos que se transformaram em gira-gira, entre outros exemplos.

Fonte: Elaborada pela própria autora (2017).

Figura 2 Tampinha voadora 

Fonte: Elaborada pela própria autora (2017).

Figura 10 Arquinho gira-gira 

Nossos achados em relação à resistência, utilizando o brincar, está em consonância com Spréa e Garanhani (2014, p.123), ao entenderem que “o modo como as crianças brincam é, portanto, uma experiência social construída na interdependência entre crianças e adultos”. Ambos são atores sociais nesse processo, sendo assim, essa resistência é imprescindível para a construção das culturas infantis.

As crianças têm noção de que são determinados tempo e espaço para que realizem atividades próprias da cultura escolar, que são, por vezes, penosas, mas elas conseguem lidar com os momentos de trabalho, de brincadeira, de interação, de fantasia. Quando não conseguem lidar com esses tempo-espaços tão “quadrados” dos adultos, elas resistem. E para os professores, por mais competentes que eles sejam, fica difícil pensar que podem controlar todas essas manifestações infantis.

Nesse sentido, ao professor cabe a tarefa de, com seu olhar de quem está com a criança e também detêm os saberes e conhecimentos, realizar a tarefa educacional e possibilitar encontros. Barbosa e Ritcher (2015) entendem ser imprescindível que constituam tempos e espaços para a experiência das crianças, favorecendo as interações lúdicas.

Um currículo que pense as crianças pequenas é aquele que está inserido na vida das crianças; na cultura de suas famílias; permeado pelas práticas sociais; que caminhe para o sentido da experiência e não na perspectiva apenas de um resultado; que contenha referências para novas experiências em busca de sentido e de significado, considerando a ludicidade, a alegria, a beleza, a dinâmica da sensibilidade do corpo, a imaginação, enfim o cuidado consigo e com o mundo (BARBOSA; RITCHER, 2015).

Ademais, a educação é enfatizada por Gallo (2010, p. 116) como “um processo de emissão de palavras de ordem, a definição de coordenadas segundo as quais cada aluno deverá se localizar”. É a instituição que prepara o plano político sobre o qual a criança aprenderá a viver e, sobretudo, reitera que aprenderá a obedecer para sustentar a manutenção do sistema.

A escola, nos moldes do poder disciplinar no qual está organizada atualmente, promove uma conformação da infância, com normas segundo as quais elas devem se ajustar, como um jogo político que deve ser jogado, percebendo-se que algumas crianças se adaptam e outras não.

A educação que estamos vendo na escola, com esse caráter propedêutico ao mundo adulto, trata as crianças ainda como infans, ou seja, aqueles que não falam, como fora do mundo que conhecemos. Porém, por meio deste processo educativo, ela pode, em um futuro, vir a ser parte de nosso mundo. A escola acaba, sendo assim, “a conformação das crianças a este mundo adulto de consensos. O próprio ato educativo consiste na imposição de consensos fabricados em uma dada sociedade” (GALLO, 2010, p.119).

A partir desta lógica, as crianças estão fadadas a deixar seu mundo para se transformarem no consenso dos adultos, entrando de vez neste mundo, a fim de serem ouvidas, não mais com suas particularidades, mas como parte de uma “comunidade democrática”, de um mundo com lógica e linhas desenhadas pelos adultos.

Nesse sistema educativo imperam as palavras de ordem, reafirmando o mundo adulto a ser possuído pelas crianças. Dessa maneira, não é algo apenas de um ou outro professor, por isso dizemos que é toda a lógica do sistema. Como exemplo, podemos citar Ana Clara, aluna da professora Roberta, que em um dia de observação, em abril de 2017, ainda não conseguia pintar nas retas do desenho dado pela professora de Artes. Ao mostrar o desenho para a respectiva educadora, levou uma bronca, pois as cores haviam atravessadas as linhas do desenho.

No mesmo dia, a professora Roberta também deu um desenho para ser pintado, segundo as cores utilizadas por ela na lousa. Ana Clara falha novamente ao tentar pintar dentro do desenho. As cores atravessam a árvore que havia no desenho.

Vendo aquela série de acontecimentos com Ana Clara, e me sentindo incomodada pelo rosto da menina triste e cabisbaixa, resolvo perguntar o que acontecera e o que estava sentindo, a fim de ouvir pela boca dela o que tinha acontecido.

  • – Ana Clara, o que aconteceu? Está tudo bem?

  • – Não adianta tentar não, como a prô falou, olha esse desenho: tá só rabico, eu só rabico*. (*Rabisco). (DIÁRIO DE CAMPO, 2017).

Não adianta falar que Ana Clara só tem 4 (quatro) anos ou que ela ainda não precisa aprender a pintar dentro das linhas do desenho, porque ela precisa. Nessa lógica, cada vez mais cedo inserida no mundo adulto, assim deve saber pintar dentro dos quadrinhos e jogar o jogo do adulto.

Esse episódio remeteu-nos ao texto “Sobre a gênese da burrice”, de Adorno e Horkheimer (1985), no qual os autores explicam que o símbolo da inteligência é a antena do caracol, que graças à sua visão tacteante, ele é capaz de cheirar. Diante de um obstáculo, a antena se retira para o abrigo de seu corpo, do qual sairá de novo se for muito hesitante. Se o perigo ainda estiver presente, ela desaparecerá e a distância até a próxima tentativa aumentará.

Os autores alertam que, no começo, a vida intelectual é delicada. Enquanto o corpo do caracol fica parado pelo ferimento físico, o espírito fica inerte pelo medo. “A burrice é uma cicatriz. Ela pode se referir a um tipo de desempenho entre outros, ou a todos, práticos e intelectuais. Toda burrice parcial de uma pessoa designa um lugar em que o jogo dos músculos foi, em vez de favorecido, inibido no momento do despertar” (ADORNO E HORKHEIMER, 1985, p. 120). Essa burrice pode ser a da cegueira, da impotência, para que não haja questionamento ou revolta ao que está sendo dado ou à forma como está sendo conduzido todo o processo.

As crianças, inclusive as da nossa pesquisa, estão expostas a esse cenário político, econômico e social, o que não justifica o que presenciamos: uma ausência do lúdico e uma antecipação dos saberes que deveriam constar só nos anos iniciais do Ensino Fundamental, que são aqueles saberes relacionados à leitura, à escrita e à matemática.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Concordamos com Azevedo (2016) no sentido de se ter consciência da importância desse aspecto tão essencial das culturas da infância, optando-se por ouvir as crianças, assim como destacar a presença das brincadeiras independentemente das pressões políticas, econômicas, culturais e de outros fatores que tentam convencer do contrário.

Reafirmando a importância da Sociologia da Infância e das culturas das crianças e também da brincadeira dentro da escola, é preciso fazer com que as crianças deixem de falar com a nossa voz (que é de alguma forma valorizada), exigindo de nós uma escuta atenta sobre aquilo que elas estão querendo nos dizer com suas próprias vozes.

As crianças, nas escolas, estão sofrendo os jogos de poder que jogamos com elas, mas estão também jogando, estão fazendo seus próprios jogos, para não ruir o castelo de cartas de nossas instituições; mas as falas ali estão, ressoando e ressoando... (GALLO, 2010, p. 120).

Ao ouvi-las, veremos que, como em nenhum outro sujeito social, elas conseguem clandestinamente viver suas culturas. Quando não lhes são dadas as oportunidades de brincar, elas conseguem, com a fantasia, a perspicácia e sua arteirice, driblar os olhares adultos que punem e que proíbem, criando novos espaços e novos tempos.

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