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Revista Teias

versão impressa ISSN 1518-5370versão On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.19 no.54 Rio de Janeiro jul./set 2018  Epub 05-Set-2021

https://doi.org/10.12957/teias.2018.33841 

Artigos de Demanda Contínua

PRESERVAÇÃO DO PATRIMÔNIO EDUCATIVO NO MUSEU DE ANTROPOLOGIA DO VALE DO PARAÍBA

CONSERVATION OF EDUCATIONAL HERITAGE IN THE MUSEUM OF ANTHROPOLOGY IN VALE DO PARAIBA

PRESERVACIÓN DEL PATRIMONIO EDUCATIVO EM EL MUSEO DE ANTROPOLOGÍA DEL VALE DO PARAÍBA

Patrícia Cristina da Cruz Sá* 

Maria Angela Borges Salvadori2 

*Graduada em Museologia pelo ICH/UFPEL. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de São Paulo. E-mail: patricia_cruz@usp.br

2Docente do Departamento de Filosofia da Educação e Ciências da Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Atua também no programa de Pós-Graduação em Educação da mesma instituição na linha de pesquisa História da Educação e Historiografia junto à área de concentração Cultura, Filosofia e História da Educação. E-mail: mabsalvadori@usp.br


RESUMO

Este artigo está inserido em projeto de pesquisa que estuda o Museu de Antropologia do Vale do Paraíba (MAV) enquanto instituição educativa. Aqui a investigação se volta para as relações entre moradores de Jacareí, SP, um museu localizado neste município e uma escola pública que, durante décadas, ocupou o espaço que hoje sedia a instituição museológica. Bem antes disso, na segunda metade dos Oitocentos, a edificação fora originalmente construída para ser residência de um cafeicultor da região. Considerando suas transformações ao longo do tempo, pensamos o MAV como um lugar de memória, especialmente de memória escolar, uma vez que, por quase um século, de 1886 a 1980, o prédio abrigou a Escola Coronel Carlos Porto. Caminhamos na direção de analisar a dimensão imaterial da cultura material escolar a partir dos objetos preservados e das memórias de antigos alunos, professores e funcionários da escola, produzidas no contato com esse espaço e seus artefatos. Nessa análise, entendemos que o MAV tem sido apropriado pelos moradores da cidade a partir de suas próprias lembranças escolares, a despeito de uma tradição que o ligava à grandeza do café e de seus barões.

Palavras-chave: Memória; Museu; Lugares da Memória; Cultura material escolar

ABSTRACT

This article is part of a research project that studies the Museum of Anthropology in Vale do Paraíba (MAV) as an educational institution. Here the investigation looks at the relationships between the residents of the city of Jacareí, SP, a museum located in this city and a public school which, for decades, has occupied the space that today houses the museum. Long before that, in the second half of the 19th century, the building had been originally built to be the home of a coffee grower in the area. Considering its changes over time, we see MAV as a place of memory, especially of school memory, since for almost a century, from 1886 through 1980, the building housed the School Colonel Carlos Porto. The direction we took was to analyze the immaterial dimension of school material culture beginning with the objects that have been preserved and the memories of former students, teachers and employees of the school, produced in the contact with this space and its artifacts. In our analysis, we understand that MAV has been seized by the city residents as a result of their own school remembrances, in spite of a tradition that linked the museum to the grandeur of the coffee cultivation and its barons.

Keywords: Memory; Museum; Places of Memory; School material culture

RESUMEN

Este artículo está relaccionado a un proyecto de investigación que estudia el Museo de Antropología del Vale do Paraíba (MAV) como institución educativa. Aquí la investigación se vuelve a las relaciones entre vecinos de Jacareí, SP, un museo ubicado en este municipio y una escuela pública que durante décadas ocupó el espacio que hoy alberga la institución museológica. Bien antes de eso, en la segunda mitad de los Ochocientos, la edificación fue originalmente construida para ser residencia de un caficultor de esta región. Tomando en cuenta sus transformaciones a lo largo del tiempo, pensamos el MAV como un hogar de memoria, especialmente de memoria escolar, ya que, por casi un siglo, de 1886 a 1980, el edificio abrigó la Escuela Coronel Carlos Porto. Caminamos en la dirección de analizar la dimensión inmaterial de la cultura material escolar desde de los objetos preservados y de las memorias de antiguos alumnos, profesores y funcionarios de la escuela, producidas en el contacto con ese espacio y sus artefactos. En este análisis, entendemos que el MAV ha sido apropiado por los habitantes de la ciudad desde sus propios recuerdos escolares, aunque haya una tradición que lo ligaba a la grandeza del café y de sus barones.

Palavras chave: Memoria; Museo; Lugares de la memoria; Cultura material escolar

Porque, se é verdade que a razão fundamental de ser de um lugar de memória é parar o tempo, é bloquear o trabalho do esquecimento, fixar um estado de coisas, imortalizar a morte, materializar o imaterial para - o ouro é a única memória do dinheiro – prender o máximo de sentido num mínimo de sinais, é claro, e é isso que os torna apaixonantes: que os lugares de memória só vivem de sua aptidão para a metamorfose, no incessante ressaltar de seus significados e no silvado imprevisível de suas ramificações (NORA, 1983, p. 22).

Este artigo investiga as relações entre moradores de Jacareí, SP, um museu histórico localizado neste município e uma escola pública que, durante décadas, ocupou o espaço que hoje sedia a instituição museológica. Bem antes disso, na segunda metade dos Oitocentos, o prédio foi originalmente construído para ser residência de um cafeicultor da região. Considerando suas transformações ao longo do tempo, pensamos o Museu de Antropologia do Vale do Paraíba (MAV) como um lugar de memória, especialmente de memória escolar uma vez que, por quase um século, de 1886 a 1980, a edificação abrigou a Escola Coronel Carlos Porto. Caminhamos na direção de analisar a dimensão imaterial da cultura escolar a partir dos objetos preservados e das lembranças de antigos alunos, professores e funcionários da escola, produzidas no contato com esse espaço e seus objetos.

Em trabalho publicado em 2010, Cláudia Alves ressalta que a compreensão dos suportes materiais da memória escolar está ligada às relações entre as pessoas e essa materialidade. A partir do exemplo das tradicionais fotos escolares, e por meio de entrevistas com mulheres que foram alunas de escolas públicas nos anos 1950 e 1960, mostra que o objeto fotográfico encontra seus significados nas memórias do sujeito. Assim, para a maioria das mulheres pesquisadas, a foto representava uma espécie de troféu, um registro do sucesso escolar. Para uma antiga aluna, todavia, guardava outro significado: menina negra, havia saído de casa arrumada para a foto mas brincou antes de tirar o retrato e desarrumou-se; a professora reclamou de seu cabelo e ela foi excluída do registro (ALVES, 2010, p. 107). Assim, sua memória registra frustração, racismo e exclusão.

O trabalho de Cláudia Alves é citado aqui porque o MAV pode ser analisado também por esses dois vieses: de um lado, possui um acervo de cultura material escolar contando inclusive com um espaço que procura reproduzir uma antiga sala de aula; por outro, porque parte significativa dos visitantes percorre o espaço do museu recordando o tempo escolar, na condição de alunos, professores e funcionários. Assim, unem-se a cultura material escolar, a memória e os processos de construção de identidade individual e social que nela se apoiam, triangulação na qual se assenta este texto. Considera-se, ainda, a importância da preservação do Museu e de seu acervo a partir da ideia do direito ao passado como direito de cidadania na medida em que o MAV, seu acervo e práticas cotidianas representam mais que um legado material do passado ao tempo presente. A dimensão do direito ao passado envolve fundamentalmente a possibilidade de produção de memórias sociais, um aspecto dinâmico e identitário cuja importância reside mais no sujeito que no próprio objeto museológico (PAOLI, 1992).

DE CASA A ESCOLA; DE ESCOLA A MUSEU

O MAV, objeto deste artigo, está localizado no centro do município de Jacareí, interior do Estado de São Paulo. Esta instituição museológica ocupa, desde 1980, o espaço que por oitenta e cinco anos sediou a Escola Coronel Carlos Porto. Mesmo não estando inserido na tipologia museu escolar, a história do MAV está atrelada à memória da escola – que atualmente funciona em prédio ao lado – e à história da educação na cidade.

Ao longo do século XX, na maior parte das vezes, museus locais estiveram mais preocupados com a coleta e preservação de acervos, não raro organizando exposições para sua exibição num movimento que colocava o visitante, via de regra, na limitada condição de espectador. Tal tradição de prática museológica priorizava o objeto e sua conservação/exposição, conferindo-lhes um caráter sacralizado. Frequentemente, tratava-se de apresentar um passado glorioso e seu legado para o presente, reforçando um caráter pedagógico e cívico que se consolidava na escolha dos objetos a serem expostos e na narrativa simbólica que orientava essa exposição. Em particular no caso brasileiro, esta orientação se fez presente desde as políticas públicas voltadas para a preservação do patrimônio histórico e artístico instituídas nos anos 1930 até décadas mais recentes. O Decreto-lei 25, de 30 de dezembro de 1937, no contexto do Estado Novo, definia como patrimônio bens móveis e imóveis que fossem de interesse público “quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história do Brasil, quer por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico” (BRASIL, 1937). Assim, a valoração do objeto estava em seus aspectos intrínsecos e, particularmente, naquilo que poderia ensinar sobre a grandeza de um passado, como um mito de origem, destacando grandes personagens e seus feitos.

Foi apenas a partir da década de 1970 que a interpretação da instituição museológica enquanto aparato social e educativo foi consolidada, como é possível perceber percorrendo as diretrizes emanadas durante importante evento ocorrido em Santiago, Chile, em 1972, ainda sob o governo de Salvador Allende. Naquela ocasião, o Conselho Internacional de Museus (ICOM) organizou uma mesa redonda que, ao seu final, estabeleceu princípios, orientações e medidas a serem tomadas na direção de uma nova museologia pautada pela visão de que o museu deve servir à sociedade, contribuindo para a compreensão da historicidade de sua experiência e para a promoção de mudanças sociais (NASCIMENTO Jr., TRAMPE, SANTOS, 2012). Nas palavras de Letícia Julião, esse encontro foi um marco na renovação da museologia:

Novas práticas e teorias sinalizam a função social do museu, se contrapondo a museologia tradicional que elege o acervo como um valor em si mesmo e administra o patrimônio na perspectiva de uma conservação que se processa independente do seu uso social. Tratava-se de redefinir o papel do museu tendo como objetivo maior o público usuário, imprimindo-lhe uma função crítica e transformadora na sociedade (JULIÃO, 2006, p. 25).

Foi exatamente neste período de mudança que o MAV foi pensado. O objetivo era a constituição de um museu de antropologia que não olhasse para o passado de forma saudosista e que fosse capaz de dialogar com a realidade presente da sociedade em que estava inserido. Osmar de Almeida, então gerente do Setor de Pesquisa e Documentação (SEPEDOC), responsável pela criação do museu, conta em entrevista concedida em 2008 a Cesira Papera1, sobre o papel de Waldisia Camargo Guarnieri Russio na criação do MAV e afirma que

[...] conversando com a Waldisa ela me disse: Bom, o que vocês querem é fazer um Museu de Antropologia do Vale do Paraíba. Ela começou a dar diretrizes do que seria esse museu. Ela sugeriu que nós deveríamos criar um setor de pesquisa e documentação, o SEPEDOC, para que desse origem a esse museu. Isso foi muito importante porque o SEPEDOC foi a origem desse museu. A Waldisa estava implantando na época o Museu da Indústria de São Paulo e ela se encantou com a história industrial de Jacareí e do Vale do Paraíba. No dia 25 de agosto de 77 [1977] fizemos uma reunião e apresentamos o projeto ao Diretor de Cultura na época que era o irmão do prefeito, o Frederico Lencioni, ele se entusiasmou demais, achou interessante a ideia. E foi nesse mesmo ano de 77 que nós apresentamos a proposta ao prefeito. Esse grupo se reunia toda semana no Salão Nobre da Prefeitura para discutir como seria o Museu de Antropologia do Vale do Paraíba e a Waldisa orientando o projeto […] (ALMEIDA, 2008).

Com base na fala de Osmar é possível perceber que a museóloga Waldisia Russio teve um papel importante na criação do museu, principalmente auxiliando na definição dos objetivos do projeto, como ele próprio segue contando:

[…] eu continuei no SEPEDOC e a Waldisa orientando. Por exemplo, ela disse: o Museu tem que ter um departamento de arqueologia. Então era um dos objetivos do museu a pesquisa. Que deveria trabalhar com a questão da antropologia cultural. Não seria um museu saudosista […] a Waldisa sugeriu que alguém fizesse o curso de museologia e o grupo designou a Maria Lúcia Sant’Ana para fazer o curso […] (ALMEIDA, 2008).

É importante ressaltar a importância da contribuição profissional de Waldisia Russio para o desenvolvimento da sociomuseologia no Brasil. De acordo com Cândido (2010, p.146), Russio compreendia a museologia com um campo de estudo da sociedade e não dos objetos e das instituições. Essa visão sobre a área pode ser observada, ainda, quando Osmar destaca em sua fala uma preocupação da nova instituição em contar a história do homem valeparaibano, não importando sua classe social, “quer dizer, desde o simples homem que vivia no campo até o poderoso” (ALMEIDA, 2005).

A adoção de uma perspectiva que considerava as gentes comuns com a mesma importância em relação aos nomes da tradição até então construída, a busca de uma orientação mais profissional e o esforço de democratização do espaço foram escolhas vistas com estranhamento e receio já que, pela possibilidade de garantir voz, passado e história às pessoas ordinárias, seguiam na contramão das tradições de parte considerável dos museus municipais.

Partindo destas considerações é possível atrelar a criação do MAV aos movimentos iniciais do que viria a ser a sociomuseologia, campo de conhecimento que entende o museu como:

[…] uma instituição a serviço da sociedade da qual é parte integrante e que possui nele mesmo os elementos que lhe permitem participar na formação da cidadania das comunidades as quais ele serve; que ele pode contribuir para o engajamento destas comunidades na ação, situando suas atividades em um quadro histórico que permita melhor compreender sua configuração atual, isto é, ligando o passado ao presente, engajando-se nas mudanças sociais em curso e colaborando com outras mudanças no interior de suas respectivas realidades nacionais (NASCIMENTO Jr., TRAMPE, SANTOS, 2012, p. 116).

O MAV apresenta-se como um espaço de exposição e guarda de objetos que, em seu conjunto, traduzem a trajetória do povo valeparaibano e suas formas de expressão. Os primeiros movimentos em direção ao museu que ocuparia o antigo prédio da escola surgem nos finais dos anos 1970, com a demolição do prédio situado à frente, onde funcionava o Colégio Antônio Afonso. A eminência de rápidas e bruscas mudanças urbanas e a ameaça que representavam para o prédio centenário despertaram uma preocupação com a preservação do patrimônio arquitetônico municipal.

Seu acervo está organizado a partir das seguintes categorias: Arte Sacra; Arte Popular; Pinacoteca; Armaria e Numismática; Etnografia. Em meio a essa diversidade de objetos, destaca-se a coleção escolar. Os primeiros materiais escolares doados para compor o acervo do museu provém do decreto nº17.487 de 05 de agosto de 1981, do governo do Estado de São Paulo. Eram objetos pertencentes a Escola Cel. Carlos Porto e haviam sido deixados no prédio antigo em decorrência da mudança. Esta doação foi solicitada inicialmente pela divisão de patrimônio, vinculada à Secretaria de Educação e Cultura que, por meio do ofício emitido pela prefeitura, nº 5.268/80, utilizou o seguinte argumento: “Trata-se de moveis antigos, relacionados à história da própria escola e consequentemente da cidade” (JACAREÍ, 1980).

Antecedido pelo acervo de Arte Sacra, o acervo escolar é o segundo maior do museu. Atualmente, são cerca de 300 objetos provenientes direta ou indiretamente da Escola Cel. Carlos Porto, muitos originários de doações feitas ao longo dos últimos vinte e cinco anos, principalmente por ex-professores e alunos. Há também um conjunto de documentos de caráter administrativo e correspondências entre o primeiro diretor do Grupo Escolar, ainda em 1895, com o inspetor regional, provenientes da pesquisa feita pela equipe do museu para a exposição comemorativa do centenário da escola.

Visando a produção e a salvaguarda dessa memória escolar, o museu já organizou três grandes exposições sobre a escola: a primeira, em 1992, quando de sua inauguração; depois, em 1995, uma segunda exposição marcou o centenário da escola e a última, em 2015, contou com roda de conversa entre ex-professores, alunos e funcionários. Tendo sediado ao longo de tantas décadas uma importante escola pública de Jacareí, parte significativa das lembranças dos moradores se refere a esse uso, ainda que este não tenha sido o objetivo primeiro quando de sua criação. Assim, uma peculiaridade do MAV é o de ser reconhecido socialmente por algo distinto daquilo que originalmente intencionava registrar. O sentido atribuído ao museu pela população está atrelado ao seu uso escolar e é assim que ele tem majoritariamente contribuído para a recuperação de fragmentos da história da educação em Jacareí e para a produção de identidades, aproximando-se, deste modo, das tendências museológicas mais atuais.

É importante abordar aqui o que faz a Escola Cel. Carlos Porto ser tão relevante a ponto de ter seu patrimônio salvaguardado no museu com uma coleção de objetos que se relacionam a práticas e formas de ensino e que, assim, se colocam como suportes de memória social da escola, dos sentimentos e das vivências daqueles que a frequentaram como alunos, professores e funcionários. É deste modo que nos aproximamos das reflexões de Cláudia Alves (2010) citadas no início deste artigo e de seu foco na dimensão imaterial desses objetos de cultura material escolar, entrecruzando essas duas perspectivas – a material e a imaterial – na tentativa de conhecer os sentidos que os sujeitos lhes conferem e o que constroem como memória e identidade a partir deles. Vários pesquisadores têm discutido a relação entre cultura material, memória e identidade. No final dos anos 1970 – e daí em diante – a obra clássica de Eclea Bosi, “Memória e Sociedade, Lembranças de Velhos” (1979) demonstrava, a partir da análise de memórias de idosos por ela entrevistados, como objetos e espaços físicos promoviam a lembrança de experiências sociais compartilhadas. Tratando especificamente de objetos familiares e usando, a partir de Violette Morin, a expressão “objetos biográficos” 2, defendia que a existência dessa cultura material preservada permite a nós um passado, um enraizamento, fundamentais para a constituição de nossas identidades (Bosi, 1979, p. 362). É certo que a autora se referia mais aos objetos de natureza pessoal ou familiar. Todavia, acreditamos ser possível estender essa análise ao espaço e objetos escolares já que a experiência da escola constitui aspecto central da infância e da juventude.

No caso do MAV, o acervo de objetos e documentos escolares – já que, em certo sentido, também o documento escrito é um objeto – constitui suporte importante da memória social dos moradores de Jacareí. Não se trata de um patrimônio com valor imanente, a ser preservado somente ter sobrevivido ao tempo; tampouco constituir um acervo como um patrimônio implica reconhecer seu valor apenas em termos de remanescência. Como afirmam Ramos e Cerqueira, a transformação de um objeto – ou de uma coleção de objetos – em patrimônio implica reconhecer “o sentido que lhe é inserido de fora para dentro” (2016, p. 26), aquele que lhe socialmente atribuído, fruto da reminiscência. Daí que, embora a discussão sobre cultura material pareça ter um caráter mais técnico, ela é política, implica escolhas sobre o quê preservar, por que preservar e para quem preservar. Na história do MAV, a associação entre acervo e experiência escolar tem sido a mais destacada por seus visitantes.

MEMÓRIAS REBELDES

A Escola Coronel Carlos Porto formou centenas de munícipes e está presente nas memórias de gerações de jacareienses. Foi a primeira escola estadual da cidade, que iniciou suas atividades em 1895, em edifício provisório e, em 1896, mudou-se para o Solar Gomes Leitão, onde permaneceu até 1980, quando foi transferida para o atual prédio, localizado na Rua Leitão, ao lado do Solar. Gomes Leitão, segundo a tradição local, foi fazendeiro de café e a edificação, construída em taipa de pilão, é também um marco arquitetônico local. Tal como ocorre em outros municípios paulistas, o Solar representa um fragmento das mudanças urbanas e sociais pelas quais passaram as cidades envolvidas na produção e comercialização do café, com suas paredes internas decoradas, uso frequente de palmeiras imperiais como símbolos de riqueza e estilo neoclássico. No processo de tombamento3, no levantamento histórico realizado pela então diretora da escola Anna Maria Cabral Lage, a edificação é descrita da seguinte forma:

O velho edifício, com seus caracteres, com sua coleção de relógios de parede, com vários moveis antigos e artísticos, merece melhor atenção. Ele conta uma história. Fala do passado. Do fausto do café. Dos senhores rurais. Da cultura do tempo do império. De uma sociedade e de uma fase de nossa vida brasileira, é uma linda construção, uma joia arquitetônica, das poucas que a cidade ainda possui e merece, tanto ser conservado, como adequadamente aproveitado (Processo de Tombamento CONDEPHAAT 20.546/1978, fl. 10).

Enquanto a “história oficial” contada acerca do edifício está atrelada à vida de João da Costa Gomes Leitão e sua família, a memória social guarda mais os cento e vinte e um anos em que o prédio abrigou instituições de educação de caráter escolar e museológico. O fato é que, não poucas vezes, os visitantes percorrem corredores e salas, observam objetos – tais como carteiras escolares, tinteiros, pontas de penas, relógios de parede, armários, entre outros –, emocionados com suas lembranças. E contam vivências partilhadas naquele lugar que se colocam na contramão desta “história oficial”; são memórias, neste sentido, rebeldes porque lidam com o espaço como modo de inteligibilidade da própria experiência. As memórias individuais são, também e sempre, sociais (BOSI, 1979, p. 370).

Ao buscar as memórias de ex-alunos da escola sediada no Solar Gomes Leitão é possível perceber esses marcos de repetição das atividades escolares, geradores de emoções, boas ou ruins. De acordo com Eliana Ferreira dos Santos4, aluna da Escola Cel. Carlos Porto entre 1969 a 1976 e, desde 1997, funcionária do MAV, a primeira lembrança que vem à mente ao rememorar aquele período é a da “hora do recreio onde era servido aos alunos um leite reconstituído muito gostoso”. A permanência, a frequência e o sentimento são alguns marcos da memória e, não poucas vezes, são também fatores que definem o que é patrimônio. Choay (2006) observa que “trazendo à memória afetiva a dimensão sagrada das obras humanas, o monumento histórico adquire uma universalidade sem precedentes” (p.141). Candau (2014) teoriza sobre a identidade nas narrativas constituídas:

[...] O narrador parece colocar em ordem e tornar coerente os acontecimentos de sua vida que julga significativos no momento mesmo da narrativa: restituições, ajustes, invenções, modificações, simplificações, “sublimações”, esquematizações, esquecimentos, censuras, resistências, não ditos, recusas, vida sonhada, ancoragens, interpretações e reinterpretações constituem a trama desse ato de memória que é sempre uma excelente ilustração de estratégias identitárias que operam em toda narrativa (CANDAU, 2014, p. 71).

Conforme o autor, no momento da rememoração, os narradores fazem escolhas sobre o que evocar e a identidade faz parte deste processo, donde a necessidade de manter locais nos quais os trabalhos do rememorar possam vir a ser. Ao pensar no MAV como guardião das memórias escolares é impossível não o implicar como responsável pela preservação do próprio espaço, da arquitetura que representou a escola durante tantos anos. Por isso, caminhar pelo museu é também caminhar pelas salas que um dia abrigaram a instituição escolar, ainda que seu uso atual se distancie disso. Espaço, memória e identidade se relacionam aqui tal como Pollack (1992) expressou:

Se podemos dizer que, em todos os níveis, a memória é um fenômeno construído social e individualmente, quando se trata da memória herdada, podemos também dizer que há uma ligação fenomenológica muito estreita entre a memória e o sentimento de identidade. Aqui o sentimento de identidade está sendo tomado no seu sentido mais superficial, mas que nos basta no momento, que é o sentido da imagem de si, para si e para os outros. Isto é, a imagem que uma pessoa adquire ao longo da vida referente a ela própria, a imagem que ela constrói e apresenta aos outros e a si própria, para acreditar na sua própria representação, mas também para ser percebida da maneira como quer ser percebida pelos outros (POLLACK, 1992, p. 5).

No Solar, as mudanças advindas da transformação da escola em museu, durante os doze anos de restauro do prédio, alteraram bastante o espaço interno, com a criação de banheiros, cozinha, alcovas e novas salas. De acordo com a fala do primeiro diretor do museu, Aldemir Morato de Lima5, foi solicitado que no processo de restauro fossem mantidos os vestígios da escola, considerando que durante a prospecção foram identificadas treze camadas de tinta sobre desenhos que seriam da época em que o prédio era residência. Nas escadas, os adornos da residência e da escola convivem em um harmônico contraste. A homenagem feita em 1898 ao inspetor escolar Olympio Catão está fixada no mesmo local há 121 anos. Os relógios que foram deixados pela escola no Solar, que marcavam o ritmo das atividades escolares, agora controlam os funcionários e visitantes do museu. Para Lima (2008), a identidade do Solar Gomes Leitão não é de um casarão dos Oitocentos e sim de uma escola:

Para a cidade aquilo [o prédio] é uma memória afetiva, é ali que eu estudei, é ali que eu comecei minha história de vida. [...] a primeira coisa que as pessoas querem quando entram aqui é saber onde elas estudaram (LIMA, 2008).

Mesmo com as mudanças espaciais que ocorreram no prédio, a identidade dele como antiga escola ainda é mantida. Nos três meses em que a exposição “160 anos do Solar Gomes Leitão6” ficou aberta ao público, dezenas de ex-alunos visitaram o museu, apontando onde ficava a sala de aula, a sala do diretor e outros espaços; quando se deparavam com os objetos escolares, não hesitavam em contar suas lembranças aos monitores; não raras vezes, quando esse público passava pelo arco principal, um olhar nostálgico percorria o hall de entrada. Foi comum, no interstício da exposição, que um ex-aluno retornasse ao museu acompanhado de um familiar mais jovem e fizesse ele a visita guiada, relatando suas memórias da infância partilhada no Solar. Para Halbwachs, a permanência, na sociedade, da memória e consequentemente do esquecimento causa “uma ilusão de não ter mudado através do tempo” (1990, p. 167), ou seja, um sentimento de permanência para a identidade coletiva.

O historiador Michel de Certeau também se dedicou ao estudo das relações entre os sujeitos e os espaços procurando um caminho que vai do “objeto” aos seus usos. Falando sobre os espaços urbanos, mostrou como são planejados enquanto ferramentas de controle social, mas, em direção oposta, valorizou o caminhar pelas cidades, as práticas cotidianas dos pedestres, suas astúcias (CERTEAU, 1994). E, ainda, apresentou o caráter estético, o ético e o polêmico como características fundamentais dessas práticas. O primeiro se refere a um estilo, a uma arte do fazer, um modo específico de uso; o segundo, o ético, se constitui como uma “vontade histórica de existir” (CERTEAU, 1995, p. 8), contrapondo ao planejado e inerte um uso distinto daquele que lhe fora pensado originalmente, um ato de resistência; o terceiro, o polêmico, se deve ao fato de que as práticas cotidianas se inserem num campo de forças, “uma maneira de lutar contra o mais forte para contorná-lo, para utilizá-lo” (CERTEAU, 1995, p. 8).

A ideia das práticas ordinárias como artes do fazer parece bem apropriada para pensar os usos do MAV por parte da população da cidade. Embora seu acervo envolva mais que a cultura material escolar e seu prédio seja oficialmente lembrado como Solar de um rico cafeicultor e de um tempo glorioso da história paulista, os visitantes do museu insistem em tratar de seu uso como escola e pensar em suas experiências escolares. Deste modo, invertem o próprio espaço, conferindo a este patrimônio um sentido outro, distinto daquele que lhe foi originalmente outorgado.

A documentação escolar guardada no MAV – documentos escritos e objetos do cotidiano da escola – permite uma conjugação entre o espaço e a memória, possibilidade para a criação e apropriação de diferentes sentidos do passado, construídos em múltiplas temporalidades, permeados de afetos e identidades. Retomando a fala da aluna Eliana, apesar da suntuosidade do edifício e a despeito daquilo que lhe é imanente, como a origem e a arquitetura do casario, é do recreio escolar – e do leite – que ela se recorda, valorizando o espaço a partir de sua experiência.

A consagrada expressão “lugares de memória”, cunhada pelo historiador Pierre Nora, também ajuda a compreender este tipo de espaço, “onde a memória trabalha” (NORA, 1983, p. 20), ou seja, lugares que transcendem sua materialidade, que surgem pela construção humana, aqueles que a imaginação “investe de uma aura simbólica [...]" (p. 21). Os lugares de memória são espaços criados pelo indivíduo contemporâneo diante de um tempo acelerado e de rápidas e profundas transformações, lugares que religam presente e passado, nos quais se reconhecem como sujeitos.

A fala do ex-aluno Roberto Leite Machado, estudante da escola entre 1952 e 1961, reforça essa compreensão dos lugares de memória como lugares de pertencimento e identidade:

É uma emoção entrar aqui, porque parece que até o cheiro é o mesmo, eu volto nos meus sete, oito anos. Eu tenho orgulho de ter estudado no Carlos Porto, porque não era qualquer um que tinha essa oportunidade, e hoje eu vejo o prédio aberto como um museu e penso ‘eu faço parte deste museu’ e acho isso excelente (MACHADO, 2017)

Roberto Leite Machado mostra que o casarão pode ter sido construído no tempo da economia cafeeira no Vale do Paraíba, mas foi a implantação e permanência da escola que se fixaram de modo mais intenso no imaginário individual e coletivo dos jacareienses. E mesmo sua arquitetura, inicialmente representante dos modos de morar dos ricos cafeicultores, com as técnicas construtivas e os adornos que caracterizavam aqueles Solares, é percorrida na pertença ao espaço à escola. Quando o antigo aluno diz “eu faço parte deste museu”, simultaneamente, opera no campo da produção de identidades sociais e no da conquista política de um passado a ser registrado. O mesmo foi possível perceber na fala de Eliana Ferreira dos Santos ao finalizar a entrevista com a seguinte afirmação: “eu me sinto acolhida aqui, gosto muito desse lugar, faz parte de mim”.

Pensar o MAV e seu acervo implica também reconhecer seu lugar físico na cidade. O Solar, depois escola, localiza-se no centro de Jacareí, a poucos metros da Praça dos Três Poderes onde se situam a Prefeitura, a Câmara Municipal e o Fórum. Por ele passam todos aqueles que se dirigem ao comércio da área central e, especialmente, seu entorno é diariamente ocupado por alunos e professores nos horários de entrada e saída da escola vizinha. Em meio às bruscas transformações arquitetônicas, ele se ergue como uma resistência da memória.

Fonte: Arquivo Histórico Municipal de Jacareí.

Figura 1 Solar Gomes Leitão, centro de Jacareí/SP. 2012. Fotógrafo Alex Brito. 

A história dos Grupos Escolares paulistas e o lugar de destaque que ocuparam no início da República têm sido estudados por vários pesquisadores. Entre eles, o trabalho clássico de Rosa Fátima de Souza, “Templos da civilização: a implantação da escola primária graduada no Estado de São Paulo (1998)”, investigou atentamente, entre outros aspectos, as dificuldades enfrentadas para a implantação e efetivação dos grupos, a questão de sua disposição no espaço urbano e a dimensão simbólica dessa arquitetura (SOUZA, 1998, p. 123). Embora trabalhe especificamente com espaços planejados para serem escolas, o que não é o caso do Solar Gomes Leitão, ressalta também o movimento que a implantação dessas instituições educativas promovia no cenário das cidades:

Nas cidades do interior, o grupo escolar encontrava-se localizado, geralmente, no centro do núcleo urbano ou em suas imediações, ocupando na trama urbanística um lugar de destaque ao lado de outras instituições públicas: a igreja, a coletoria, o correio, a Câmara Municipal, o que denota o grau de importância desses estabelecimentos de ensino. Elemento de convergência, o grupo reunia crianças de todos os cantos da cidade, inclusive alguns da zona rural. Dessa forma, o ir e vir da escola correspondia a uma apropriação do espaço urbano, um itinerário de reconhecimento da cidade por meninas e meninos, a coabitação das ruas, praças, calçadas por diferentes grupos sociais (SOUZA, 1998, p.126).

No processo de tombamento do Solar Gomes Leitão, nas justificativas para que a edificação fosse tombada, é evidente o ensejo de preservar a memória arquitetônica e histórica, tanto da escola quanto da residência de João da Costa Gomes Leitão. Essa valorização aparece, por exemplo, no parecer de um dos conselheiros do Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico (CONDEPHAT) Aziz Ab’Saber:

No instante em que representantes esclarecidos da comunidade urbana de Jacareí pretendem utilizar o edifício para um museu, julgo que o CONDEPHAAT, somando forças, deva tombar e prestigiar a iniciativa de utilização cultural. (Processo de Tombamento CONDEPHAAT, nº 20546/1978, fl. 28).

Estava sob responsabilidade do SEPEDOC, setor oficialmente formado em fevereiro de 1978, pela portaria nº 366, dar andamento ao processo de tombamento do Solar. A justificativa de tombamento foi redigida e assinada pela diretora da escola, Ana Maria Cabral Lago, em maio de 1977. O envio da primeira solicitação ao CONDEPHAAT deu-se em 13 de abril de 1978, mesma data em que a portaria de criação do SEPEDOC foi publicada. Ao longo do processo de tombamento, a criação do Museu de Jacareí é por diversas vezes, mencionada como uma ação de duplo valor:

[...] um bom alvitro, não apenas para a cidade, que passaria a contar com um centro cultural, mas também para a escola, que ganharia acomodações atualizadas, e dado a utilização do prédio para outro fim educativo que não a escola” (Processo de Tombamento CONDEPHAAT, nº 20546/1978, fl. 10).

De fato, naquele momento, o Solar não comportava mais as necessidades da escola e parte do terreno ao lado já havia sido ocupada com algumas salas de aula, cantina e banheiro para alunos. Simultaneamente, o governo do Estado procurava um local para a construção de um novo prédio escolar adequado às normas arquitetônicas vigentes. De acordo com o jornal “Agora”, de 31 de agosto de 1977, o Estado pretendia adquirir o terreno do recém demolido Colégio Antônio Afonso, pertencente à iniciativa privada que, todavia, também planejava ocupá-lo com uma nova escola particular. Diante desta conjuntura, a prefeitura do município decidiu construir uma nova edificação nos fundos do pátio do Solar Gomes Leitão, onde já existiam as salas de aulas externas e os banheiros, contando que esta ampliação garantisse seu uso escolar e, ainda, a possibilidade de ser permutada com o terreno particular ao lado.

No início do processo não existe nenhuma referência sobre o município construir um edifício para a escola a fim de trocá-lo pelo Solar. A primeira menção à construção se dá treze dias após a publicação no Diário Oficial referente ao tombamento do Solar Gomes Leitão, quando a prefeitura solicita ao CONDEPHAT o destombamento do prédio, com justificativa que um novo prédio para escola estava sendo construído no terreno aos fundos do museu. Tal construção não tinha autorização do CONDEPHAAT considerando que, em um raio de 300 metros de prédios tombados, qualquer construção necessita de autorização prévia.

O projeto de construção do novo espaço para a escola contemplou uma ligação entre os dois prédios, tendo como justificativa que o museu deveria ser uma extensão da escola e a escola uma extensão do museu. A escada que liga os dois prédios ainda está lá, embora tenha sido fechada com grades em 2003, com a alegação de que era usada como rota de fuga pelos alunos. Por 23 anos a escada foi uma ligação entre o passado e o presente.

OS OBJETOS

Além da escada, antigos objetos da escola sob guarda do MAV ligam os dois prédios e suas histórias. O modo de organização e disposição desses objetos, como sabemos, constitui uma narrativa. Assim, tais objetos não são o todo do passado, mas permitem a construção de um discurso sobre ele. De acordo com Fonseca, “esse processo implica atribuir aos objetos um valor simbólico que originalmente não lhes pertencia”(1997, p. 36); ao operar a seleção dos objetos para integrar o acervo do museu, o que está sendo feito é a retirada de seu uso original para lhe atribuir outra funcionalidade, a de evocar o passado e articular um discurso para esse fim, tal como ocorre com a coleção escolar do MAV. Objetos foram retirados de seu cotidiano, inicialmente por já estarem obsoletos, e ressignificados para serem suporte de uma memória, representação de uma época. Talvez possamos utilizar aqui, a partir de Pomian (1984), a noção de objetos semióforos que, de acordo com o autor, são aqueles que não se prestam mais a uma função utilitária original mas permanecem carregados de um sentido simbólico e de uma acepção especial: “quanto mais significado se atribui a um objeto, menos interesse tem a sua utilidade” (p. 73). A atribuição de significado fica por conta da memória, é o valor invisível. As carteiras escolares e os armários já não são mais objetos utilizados para o ensino, para a disposição dos alunos e das coisas; são semióforos, ligam o momento presente do visitante ao seu passado.

Para Burcaw (1997), as coleções museológicas devem ser formadas por objetos que tenham valor de exemplaridade, de referência ou com alguma importância educativa ou estética. No caso da coleção escolar do MAV, existe um valor de referência pois, para os alunos que estudam no prédio atual da escola Cel. Carlos Porto, esta coleção é sinônimo de pertencimento e conexão com a escola e, não menos importante, garante uma identidade à instituição escolar; dito de outro modo, confere à escola uma tradição.

É interessante pensar como os documentos e materiais da escola chegaram até o MAV e refletir sobre os motivos que levaram diferentes indivíduos a guardarem seus cadernos, livros e tinteiros. O mesmo ocorre em relação aos documentos oficiais que, criados com uma finalidade prática, geralmente têm seu destino estabelecido pela direção da escola e suas instâncias superiores. Todavia, alguns desses documentos estão no MAV, tal como o livro de visitas, que data de 1896 com registros até 1934, guardado na escola até ser deixado para o museu, em 1980. Outro exemplo são as provas que foram doadas por ex-professores em 1995, docentes que conservaram avaliações de seus alunos da década de 1940, de uma determinada turma. Ou seja, houve uma escolha em preservar, um sentimento, uma memória de manter algumas avaliações em detrimento de outras. Para além dos trâmites burocráticos que marcam esses processos de doações entre instituições, o acervo escolar do MAV conta com uma documentação selecionada e preservada por diferentes sujeitos da educação da cidade, o que mais uma vez reforça o protagonismo desses agentes na produção do passado.

No já mencionado Decreto 17.487/80 consta a doação de onze relógios, quatro armários, oito cadeiras, seis mesas e um porta chapéus, além de nove carteiras escolares. Todavia, uma listagem encontrada no arquivo do museu, datada de 1990, diverge da doação descrita no decreto. A listagem, intitulada “Material adquirido por doação/destinado ao Museu de Antropologia do Vale do Paraíba”, está dividida em três colunas - descrição do material, doador e localização - e nela constam quinze relógios provenientes da escola, um quadro com moldura de Hermínia Mesquita (diretora da sessão feminina do Grupo Escolar em 1896), um quadro com moldura do Cel. Carlos Porto e um quadro com moldura de Rodrigues Alves, além de dois porta chapéus, seis armários e dois conjuntos de sofás.

Desses objetos, atualmente, encontram-se catalogados e localizados na reserva técnica do museu apenas três relógios de parede, dois armários, um sofá, as nove carteiras escolares, o quadro do Cel. Carlos Porto, três mesas e as oito cadeiras. Não se sabe ao certo como os demais objetos se perderam ao longo dos últimos trinta anos, mas seu sumiço demonstra uma falta de cuidado com estes artefatos.

Atualmente é possível identificar um cuidado maior com o acervo da Escola Cel. Carlos Porto. Todo o material considerado de porte pequeno está higienizado e armazenado em armários. Grande parte desse acervo ainda está em processo de inventariamento, atividade iniciada em 2016 a partir da divisão do conjunto em: mobiliário, diplomas e boletins, cadernos, livros didáticos e material diverso. Esse tipo de classificação faz referência aos usos que tais objetos e documentos tinham quando foram criados. Alguns, entretanto, ganham maior destaque como é o caso de um diploma de 1902 cuja relevância reside tanto no que testemunha sobre a história da educação quanto pela sobrevivência da materialidade, do papel, da tinta. O mesmo ocorre com as carteiras solicitadas por Olympio Catão em 1896, indicando que fossem compradas em estilo americano, a fim de serem utilizadas pela sessão masculina do Grupo Escolar que acabava de chegar ao Solar Gomes Leitão. São objetos que possuem hoje um significado distinto de quando foram criados; as pontas de pena não são submersas nos tinteiros, os alunos não se assentam mais nas antigas carteiras. Mas, em seu processo de ressignificação, tais objetos aparecem como um monumento à experiência escolar que, para parte significativa dos frequentadores do museu, se sobrepõe àquela ligada à família Leitão que construiu o Solar.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nossa hipótese é a de que conhecer a história do casarão que virou escola que virou museu, e reconhecer a centralidade da experiência escolar que lhe é conferida, é também enveredar, simultaneamente, por questões afetivas, mais pessoais, e políticas, mais gerais. No primeiro caso porque, como diz Bobbio, “na rememoração encontramos a nós mesmos e a nossa identidade” (1997, p. 30-31); no segundo caso, porque na valoração do museu como lugar de produção de memórias dissidentes – na contramão da tradição paulista que associa bandeirantes, cafeicultores e industriais na epopeia do estado de São Paulo, e que encontra nos antigos casarões marcos arquitetônicos desse glorioso passado –, ligadas a pessoas comuns e a eventos cotidianos, encontramos uma resistência a essa tradição que transforma cada memória individual na experiência coletiva de fazer-se sujeito histórico.

Ao pensar o patrimônio educativo estamos indo além dos objetos representativos, refletindo sobre os temas da identidade social e individual. Os museus possuem um importante papel na manutenção da memória, são responsáveis pela guarda do que a sociedade toma como valioso. No caso do MAV, podemos ver que, mesmo sendo um museu de antropologia, sua missão maior parece ser a de salvaguardar o patrimônio escolar de Jacareí.

1Entrevista realizada por Cesira Papera em 26 de outubro de 2008. Disponível em https://www.youtube. com/watch?v=Jx2U0qalsSw. Acesso em: 11 de dezembro de 2017.

2A socióloga francesa Violette Morin, ao tratar dos objetos, afirmava poderem ser divididos em duas categorias: os “biográficos”, que conferem ao sujeito identidade, pertencimento no tempo e no espaço, como guardiões da memória, e os “protocolares” que, distantes da experiência dos sujeitos, podem ser abandonados ou substituídos (MORIN, 1969).

3O Solar foi tombado como monumento de interesse histórico e documental, publicado no Diário Oficial de 07 de dezembro de 1978, p. 71.

4Entrevista realizada em 31 de agosto de 2017.

5Entrevista realizada por Cesira Papera em 01 de novembro de 2008. Disponível em: <https://www.youtube. com/watch?v=Os6ZCxt-Icw>. Acesso em: 11 de dezembro de 2017.

6Esta exposição teve como tema contar as identidades que o prédio teve nos últimos 160 anos. Uma sala ficou dedicada a contar a história da família Leitão, outra reproduziu uma sala de aula do grupo escolar com carteiras, diplomas, boletins e outros objetos escolares; e às outras três salas coube contar a história do MAV. Esta exposição ficou aberta ao público de 24 de novembro de 2017 a 31 de janeiro de 2018.

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