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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.19 no.55 Rio de Janeiro oct./dic 2018  Epub 17-Feb-2020

https://doi.org/10.12957/teias.2018.33794 

Artigos de Demanda Contínua

A “BATALHA DA DI DEUS” COMO PRÁTICA EDUCATIVA: UMA INTERAÇÃO ENTRE VOZES NÃO-IGUAIS

THE “BATALHA DA DI DEUS” AS EDUCATIONAL PRACTICE: AN INTERACTION BETWEEN NON-EQUAL VOICES

LA “BATALHA DA DI DEUS” COMO PRÁCTICA EDUCATIVA: UNA INTERACCIÓN ENTRE VOZES NO-IGUAS

José Carlos Teixeira Júnior(*) 

(*)Doutor em Educação pelo PROPED/UERJ. Mestre em Musicologia pelo PPGM/UFRJ. Bacharelado em Música pela Escola de Música da UFRJ. Licenciado em Música pelo Conservatório Brasileiro de Música.


RESUMO

O presente trabalho tem como objetivo principal discutir algumas questões que tecem o entendimento da Batalha da Di Deus, uma batalha de rima realizada na Cidade de Deus, como uma prática educativa. Este entendimento justifica-se, basicamente, pelos argumentos de que a educação não está limitada aos muros da educação escolar e de que a prática musical apresenta-se como um posicionamento epistêmico fértil na emergência das complexas relações entre conhecimento, política e estética que tecem diferentes tempos-espaços educativos. Assim, sob uma perspectiva bakhtiniana de polifonia, buscaremos mostrar que a Batalha da Di Deus consiste em um movimento de interação entre vozes não-iguais, um movimento realizado no contraponto de importantes processos que tecem a cidade do Rio de Janeiro.

Palavras-chave: Educação; Música; Batalha de rima

ABSTRACT

The present work has as main objective to discuss some questions that understand the Batalha da Di Deus, a battle of rhyme held in Cidade de Deus, as an educational practice. This understanding is justified by the fact that education is not limited to the walls of school education and that musical practice presents itself as a fertile epistemic positioning in the emergence of the narrow and complex relations between knowledge, politics and aesthetics that weave different times-educational spaces. Thus, from a Bakhtinian perspective of polyphony, we will try to show that the Batalha da Di Deus consists of a movement of interaction between non-equal voices, a movement carried out at the crossroads of important processes that weave the city of Rio de Janeiro.

Keywords: Education; Music; Battle of rhyme

RESUMEN

El presente trabajo tiene como objetivo principal discutir algunas cuestiones que tejen el entendimiento de la Batalha da Di Deus, una batalla de rima realizada en la Cidade de Deus, como una práctica educativa. Este entendimiento se justifica a partir del hecho de que la educación no está limitada a los muros de la educación escolar y de que la práctica musical se presenta como un posicionamiento epistémico fértil en la emergencia de las estrechas y complejas relaciones entre conocimiento, política y estética que tejen diferentes los tiempos-espacios educativos. Así, bajo una perspectiva bakhtiniana de polifonía, procuraremos mostrar que la Batalha da Di Deus consiste en un movimiento de interacción entre voces no iguales, un movimiento realizado en la encrucijada de importantes procesos que tejen la ciudad de Río de Janeiro.

Palabras-clave: Educación; Música; Batalla de rima

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo principal discutir algumas questões que tecem o entendimento da Batalha da Di Deus, uma batalha de rima realizada na Cidade de Deus, como uma prática educativa. Para tanto, partimos do princípio que a batalha de rima consiste em uma prática eminentemente musical em que, sobre uma base instrumental de rap tocada por um DJ, dois MCs duelam entre si “armados até os dentes” com seus discursos improvisados. O duelo consiste, basicamente, em um movimento dialógico em que cada rapper se apropria do discurso do seu oponente de forma a fazê-lo retornar contra o seu próprio adversário. E o público também desempenha um papel ativo e fundamental nesta dinâmica musical. Sua participação apresenta-se não apenas na torcida e na valorização das ressignificações que vão sendo tecidas pelos MCs, contribuindo no acirramento cada vez maior do próprio duelo, mas também - e tão importante quanto isso - na própria decisão final sobre quem ganha e quem perde a batalha (L.A.P.A., 2007; ALVES, 2013).

O entendimento desta batalha de rima como uma prática educativa justifica-se, entretanto, a partir de dois argumentos principais. Em primeiro lugar, pela assunção de uma perspectiva não-objetificada que entende o processo educativo não apenas limitado aos muros da chamada educação escolar, mas também, e tão importante quanto isso, tecido em outros tantos tempos-espaços sociais. No caso específico da Batalha da Di Deus, trata-se de uma prática musical realizada mensalmente em um espaço público localizado sob as sombras das gigantescas e pesadas vigas da Linha Amarela, uma das principais vias expressas da cidade do Rio de Janeiro. Em segundo lugar, e complementando um pouco mais este mesmo primeiro argumento, pelo fato de que a prática musical apresenta-se como um posicionamento epistêmico bastante fértil na emergência das estreitas e complexas relações entre conhecimento, política e estética que tecem estes mais diferentes tempos-espaços educativos.

A realização da discussão aqui proposta vem tornando-se possível em meio a uma perspectiva bakhtiniana de polifonia (BAKHTIN, 2010). Trata-se, aqui, de um contraponto tecido entre Estado, sociedade civil e alguns jovens moradores da Cidade de Deus. Ainda mais especificamente, trata-se de uma articulação realizada entre a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, a Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, a Escola Municipal Compositor Luiz Gonzaga e um grupo de estudantes e ex-estudantes da referida escola municipal carioca. Uma articulação que possibilitou - e ainda tem possibilitado - um diálogo bastante fértil com alguns praticantes da Batalha da Di Deus, de uma forma específica, e das batalhas de rima, de uma forma mais ampla.

No decorrer deste dialogismo, buscaremos mostrar que, enquanto uma prática eminentemente musical, a Batalha da Di Deus consiste em uma prática educativa: um movimento de interação entre vozes não-iguais. Uma prática que surge na polifonia de importantes processos que tecem a cidade do Rio de Janeiro como a especulação imobiliária (VAINER, 2016), a militarização do espaço urbano (BATISTA, 2012; BRITO e OLIVEIRA, 2013), a reestruturação da lógica criminal (ALVES, 2010; BARREIRA, 2013) e a capilarização das batalhas de rima (L.A.P.A., 2007; ALVES, 2013). Uma batalha, enfim, que ao enunciar diferentes e desiguais posicionamentos epistemológicos, políticos e estéticos enuncia, também, o conflito como elemento estruturante de suas relações e não como crise, exceção ou exterioridade de um pré-determinado padrão de sociabilidade.

MÚSICA E EDUCAÇÃO: UMA PERSPECTIVA BAKHTINIANA

A não-objetificação da educação, conforme já vem sendo enunciado em diversos trabalhos deste campo, consiste em um posicionamento epistêmico importante a qualquer prática educacional que assuma o compromisso ético de não apenas se encerrar nos limites de suas dicotomias e de suas hierarquias implícitas - como sujeito X objeto, teoria X prática, professor X aluno, escola X sociedade, por exemplo -, mas também tornar emergente as estreitas e complexas relações entre conhecimento, política e estética que tecem os mais diferentes tempos-espaços educativos. Historicamente, diversos e importantes trabalhos vêm destacando as estreitas relações entre conhecimento e política no campo da educação. Entretanto, ao secundarizar a dimensão estética que tecem estas mesmas relações, estes trabalhos tendem a naturalizar determinadas práticas educacionais em detrimento de outras tantas possíveis e necessárias (cf. ALVES; OLIVEIRA, 2008; PASSOS; PEREIRA, 2011).

Acreditamos que a música, enquanto um posicionamento epistêmico no debate com a educação, pode oferecer algumas possibilidades bastante férteis para esta mesma não-objetificação. E isso se justifica, em linhas bem gerais, por dois argumentos principais. Em primeiro lugar, por sua ubiquidade, ou seja, pelo fato da música apresentar-se viva no cotidiano da educação: com, sem ou apesar do seu ensino. Em segundo lugar - e complexificando um pouco mais este mesmo primeiro argumento -, por sua ambivalência, ou seja, pelo fato da música apresentar-se justamente, enquanto um elemento vivo no cotidiano da educação, como uma arena de sentidos em permanente dialogia.

Assim, neste posicionamento epistêmico musical aqui proposto, a educação emerge não como um campo preexistente e logicamente anterior em que a música se integraria como um componente curricular ao lado de outros tantos componentes curriculares como, por exemplo, matemática, geografia, história, literatura, ciências dentre outros. Um pouco mais complexo do que isso, a educação apresenta-se, aqui, tecida justamente no desenrolar da própria prática musical. A performance - e, consequentemente, o posicionamento fronteiriço entre música e não-música - apresenta-se, neste sentido, capaz de recriar muitos dos aspectos da educação e da vida social. Em outros termos, a música apresenta-se como um elemento estruturante do campo educacional1.

O pensamento de Bakhtin nos oferece alguns recursos teórico-metodológicos importantes para este desafio de assumir a música como um posicionamento epistêmico no debate com a educação. Mikhail Mikhailovich Bakhtin foi um filósofo russo que nasceu na cidade de Oriol, em 1895, e morreu na cidade de Moscou, em 1975. Considerado um dos principais pensadores europeus do século XX, Bakhtin debruçou-se sobre a questão da linguagem dialogando com importantes vertentes teóricas de sua época como o marxismo, a semiótica e o estruturalismo, por exemplo. D de sua vasta obra, podemos destacar importantes livros como, por exemplo, Marxismo e Filosofia da Linguagem, Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento, Para uma Filosofia do Ato Responsável, dentre outros.

A noção bakhtiniana de polifonia encontra-se, mais especificamente, no livro Problemas da Poética de Dostoiévski (BAKHTIN, 2010). Neste livro, publicado originalmente em 1929, Bakhtin se apropria desta importante referência do campo da música para problematizar aquilo que, segundo este mesmo autor, a obra do escritor russo Fiodor Mikhailovitch Dostoiévski apresenta de mais poético: o romance polifônico2.

Em linhas gerais, poderíamos dizer que o romance polifônico consiste em um romance não-objetificado, um romance construído não a partir de limites pré-estabelecidos, mas sim tecido no movimento sempre conflituoso, contraditório (muitas vezes até mesmo violento) e, portanto, vivo de interação entre vozes não iguais. Conforme nos esclarece as palavras do próprio Bakhtin, “afirmar o ‘eu’ do outro não como objeto, mas como outro sujeito, eis o princípio da cosmovisão de Dostoiévski” (BAKHTIN, 2010, p. 9).

Este movimento de interação entre vozes não-iguais em que consiste a polifonia bakhtiniana, entretanto, não se encerra de forma alguma em seus limites lógico-semânticos, apesar de não existir sem eles. Um pouco mais amplo e complexo que isto, esta interação entre vozes não-iguais deve ser compreendida justamente no âmbito daquilo que este mesmo autor chama de uma metalinguagem, ou seja, enquanto uma enunciação de diferentes e, muitas vezes, desiguais posicionamentos sociais situados na complexa rede de conhecimento, política e estética em que consiste a própria linguagem.

Apesar desta relação imediata com os romances de Dostoiévski, esta noção bakhtiniana de polifonia não deixa de dialogar, em momento algum, com outras noções importantes deste mesmo filósofo em sua ampla problematização da linguagem. Podemos citar, por exemplo, as noções de “plurivalência” (1981), de “carnavalização” (1987), de “responsividade” (1993) e de “dialogismo” (2010), dentre muitas outras. Noções estas, inclusive, que já vêm sendo largamente exploradas por diferentes autores do próprio campo da educação nas abordagens teórico-metodológicas de suas mais diferentes especificidades (SILVA; ALVES, 2013).

E justamente sob esta pespectiva bakhtiniana mais ampla, podemos observar também que este caráter enunciativo da linguagem tem sido significativamente explorado por autores dos mais diferentes campos do conhecimento - como história, psicologia e antropologia, por exemplo - na problematização de outras tantas questões sociais como da questão racial, da questão de gênero e do próprio trabalho de campo, dentre outras. Questões, estas (vale ressaltar mais uma vez), que também estabelecem diálogos fundamentais com o campo da educação.

Diante do brevemente exposto, acredito ser possível concluir que se Bakhtin apropriou-se da noção de polifonia para abordar a possibilidade de uma não-objetificação do romance, de uma forma específica, e da própria linguagem, de uma forma mais ampla, esta mesma noção musical - e, consequentemente, as importantes contribuições deste pensador - também se apresenta capaz de oferecer algumas possibilidades bastante relevantes ao desafio de abordar a educação de uma forma não objetificada. Sob esta perspectiva bakhtiniana, portanto, poderíamos arriscar a afirmativa de que a educação pode ser entendida como um movimento musical de interação entre vozes não-iguais. Uma não igualdade que ao enunciar diferentes e desiguais posicionamentos epistemológicos, políticos e estéticos enuncia o conflito, a contradição e, muitas vezes, até mesmo a violência como elemento estruturante de suas relações e não como crise, exceção ou exterioridade de (pré)determinado padrão de sociabilidade, forma como estas mesmas relações tendem a ser reguladas.

UMA POLIFONIA ENTRE ESTADO, SOCIEDADE CIVIL E JUVENTUDE CARIOCA

A discussão sobre o entendimento da Batalha da Di Deus como prática educativa tem sido realizada, no presente trabalho, em meio a uma performance musical chamada Gonzagão Digital. A Gonzagão Digital é uma rádio escolar que surgiu de uma articulação entre Estado, sociedade civil e população periférica da cidade do Rio de Janeiro realizada no cotidiano de uma escola municipal carioca. Financiada pela Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro, mais especificamente através do edital Apoio à Melhoria do Ensino em Escolas da Rede Pública Sediadas no Estado do Rio de Janeiro3, assim como também inspirada na experiência participativa do Musicultura (ARAÚJO et al, 2006)4, a Gonzagão Digital surgiu no processo dialógico realizado entre a Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, a Escola Municipal Compositor Luiz Gonzaga e um grupo de jovens moradores da Cidade de Deus - formado, basicamente, por alunos e ex-alunos desta mesma escola municipal - com o objetivo principal de conhecer o movimento de apropriação de arquivos musicais como uma performance em educação.

Localizada em Jacarepaguá, Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro, a Cidade de Deus (CDD) surgiu na década de 1960 como um conjunto habitacional que recebeu, inicialmente, os desabrigados de uma das piores enchentes do então Estado da Guanabara e, logo em seguida, famílias removidas de diversas favelas da cidade, sobretudo da Zona Sul (ZALUAR, 2000; BRUM, 2012). Trata-se, como nos sugere Paulo Lins (2006), de uma “neofavela de cimento” (2002, p. 16). Uma localidade, conforme também nos sugere Burgos (2006), que apesar de guardar suas especificidades em relação às outras favelas - principalmente no que diz respeito à infraestrutura urbana e aos títulos de propriedade -, apresenta, contudo, uma significativa proximidade com estas, sobretudo no que diz respeito à reiteração daquilo que este mesmo autor chama de uma cultura política de exclusão.

A Escola Municipal Compositor Luiz Gonzaga - cotidianamente, e porque não, musicalmente chamada por seus estudantes, responsáveis, professores e funcionários de “a Compositor” - foi criada e assim nomeada pelo Decreto municipal nº 9.994 de 19 de fevereiro de 1991, tendo iniciado suas atividades escolares, contudo, em março de 1990, ano seguinte ao falecimento de seu patrono, o chamado Rei do Baião. Também localizada em Jacarepaguá, esta escola municipal oferece turmas dos dois segmentos do Ensino Fundamental - turmas do primeiro ao nono ano - aos moradores da Cidade de Deus e de algumas outras localidades também próximas da escola como, por exemplo, Gardênia Azul. Localidades, estas, historicamente assoladas tanto pela criminalização da pobreza, uma produção discursiva que reduz a complexidade da pobreza a um problema de segurança pública, como também pelo estereótipo de violência, outra produção discursiva que complementa a primeira e que, no caso da cidade do Rio de Janeiro, localiza na favela e em sua juventude negra o foco central desta mesma criminalização.

O nome Gonzagão Digital foi criado pelos próprios estudantes da Compositor. O termo “Gonzagão”, até aquele momento, era uma referência bastante comum ao campeonato de futebol realizado anualmente nesta escola municipal. Já o termo “Digital” era uma referência também bastante comum às equipes de som da Cidade de Deus e de outras favelas da cidade do Rio de Janeiro. Podemos citar, por exemplo, a chamada “Bloco Velho Digital”. Criada pelos DJs Paulo e Fabrício, o nome desta equipe de som faz referência direta a um dos blocos de apartamentos mais conhecidos de uma microlocalidade da CDD chamado de AP5. A fama local da Bloco Velho Digital, inclusive, justificava-se basicamente por dois motivos principais: a) foi um dos primeiros blocos construídos quando do surgimento da Cidade de Deus como conjunto habitacional na década de 1960; b) foi o local em que foi assassinado Zé Pequeno, um dos traficantes da CDD eternizados pelo premiado filme de Fernando Meirelles e Kátia Lund, “Cidade de Deus”.

O movimento de apropriação de arquivos musicais como uma performance educacional já se apresentava como uma prática cotidianamente realizada na referida escola municipal, mais especificamente pelo professor de música e pelos estudantes do segundo segmento do Ensino Fundamental. Desde o ano de 2011, com um Virtual DJ Free6 instalado em um netbook conectado, por um lado, a uma caixa amplificada via cabo P2-RCA e, por outro lado, a um aparelho celular via cabo USB, estes mesmos jovens tocavam seus repertórios semanalmente no pátio interno da escola durante seus vinte minutos de recreio. O caráter polifônico desta performance musical e o uso constante da sala de aula como um importante tempo-espaço de debates e proposições possibilitava a emergência de diferentes questões que tecem o currículo da educação escolar, sobretudo no que diz respeito às leis 10.639/20037 e 11.769/20088. Podemos destacar, por exemplo, questões como repertório, reprodutibilidade técnica, violência, estereótipo, sexualidade, gênero, racismo, consumo, territorialidade e relações de pertencimento, dentre outras.

Com a Gonzagão Digital foi possível não apenas fortalecer esta performance educacional já realizada semanalmente pelos então estudantes-DJs, principalmente, com a aquisição de equipamentos melhores, mais diversificados e potentes, como também ampliar esta mesma performance educacional tanto com a participação mais direta de outros professores da referida escola, como também de outros moradores das localidades atendidas pela mesma. E foi justamente mergulhado neste movimento de fortalecimento e ampliação da apropriação de arquivos musicais que teve início mais outro processo, qual seja: o de registro audiovisual de práticas culturais realizadas na Cidade de Deus.

No decorrer dos encontros, semanalmente, realizados entre professores e estudantes da Faculdade de Educação, da referida escola municipal e jovens moradores da Cidade de Deus no processo de criação e gestão dialógica da Gonzagão Digital não foi difícil perceber a existência de importantes agentes culturais que tecem a complexidade do circuito comunicativo das localidades atendidas pela Compositor. Podemos citar, por exemplo, Carla Siccos, criadora e editora da CDD Acontece (SICCOS, 2015) e Jonathan Híbrido (HÍBRIDO, 2015), rapper e organizador da Batalha da Di Deus. E foi justamente no decorrer destes debates que emergiu o movimento de organização de um acervo virtual com os registros audiovisuais das experiências realizadas por estes agentes culturais a partir das entrevistas organizadas e produzidas pelos próprios jovens participantes da referida rádio escolar.

A BATALHA DA DI DEUS - NO CONTRAPONTO DE PROCESSOS QUE TECEM A CIDADE DO RIO DE JANEIRO

Sob a sombra das gigantescas e pesadas vigas da Linha Amarela e de processos como especulação imobiliária, militarização do espaço urbano e reestruturação da lógica criminal da cidade do Rio de Janeiro, surgiu um espaço público (cinzento, ocioso e até mesmo perigoso) na Cidade de Deus. Foi justamente como uma possibilidade de ressignificar este espaço, mais especificamente, com a realização de uma batalha de rima9, e, neste mesmo movimento, de dar uma resposta às demandas dos jovens desta localidade, então pouco assistidos por espaços de lazer e políticas culturais, que teve início a Batalha da Di Deus. Conforme nos detalha Jonathan Híbrido - morador, rapper, produtor cultural da Cidade de Deus e um dos organizadores desta Batalha -, em entrevista à Gonzagão Digital,:

Então, a Batalha da Cidade de Deus surgiu em junho [2014]... A primeira edição foi em junho... Como eu disse, desde novembro nós estamos trabalhando na revitalização de um espaço... Eu também sou produtor cultural... Então, a gente começou a propor para o espaço alguns eventos de rap... E aí, em junho, nós vimos o boom que é as batalhas, as rodas de rima no Rio de Janeiro e que na Cidade de Deus existe uma carência desta cena... Estou falando mais diretamente da batalha e não necessariamente o hip-hop... Mas existe uma carência desta cena e a gente vê muito potencial nos MCs da Cidade de Deus e da região também. Então, em junho nós decidimos começar a batalha com o objetivo de dar voz mesmo à juventude, dar voz mesmo aos adolescentes da Cidade de Deus que na maior parte do tempo são vítimas, não têm espaço para poder discutir os seus próprios problemas... E aí, nós fizemos a batalha com esta proposta, com esta finalidade de trazer para o contexto da batalha os assuntos pertinentes ao nosso dia-a-dia, seja enquanto Cidade de Deus, seja enquanto Rio de Janeiro, seja enquanto Brasil... Trazer estes assuntos para dentro da batalha para que os jovens possam ter voz a respeito destes assuntos e que outros ouçam estas questões. Porque são dois problemas hoje. Hoje a gente não tem voz, não tem oportunidade para falar, e infelizmente, na favela, tem poucas pessoas interessadas em ouvir e refletir a respeito destes assuntos. Então, a gente entendeu que a batalha seria uma oportunidade interessante para colocar a juventude da Cidade de Deus nesse papel de questionar e discutir problemas, seja ele o tiroteio que houve na Cidade de Deus, seja ele os jovens negros que são impedidos de chegar à praia, seja ele o mensalão, seja ele a guerra na Síria e os refugiados que estão vindo para cá... Então, a gente traz todos estes contextos, insere na batalha e a molecada discute a respeito destes temas (HÍBRIDO, 2015).

A Linha Amarela é uma das principais vias expressas da cidade do Rio de Janeiro. Construída entre os anos de 1994 e 1997, este projeto saiu do papel juntamente com o discurso de tentar desafogar o trânsito cada vez mais engarrafado da cidade ligando, mais especificamente, a Ilha do Fundão, região muito próxima ao Aeroporto Internacional Tom Jobim e por onde passa outra importante linha expressa da cidade (Linha Vermelha), à Barra da Tijuca, um dos principais bairros da zona oeste da cidade, marcado não apenas por sua bela paisagem litorânea, mas também por uma histórica concentração fundiária. Se antes da construção desta via expressa a Cidade de Deus já se apresentava como uma das passagens importantes para quem se dirigia à Barra da Tijuca, com a sua construção ela consolidou-se como uma de suas principais portas de entrada: localizada bem ao lado deste bairro de classe alta e média alta, a CDD está situada justamente no trecho final da Linha Amarela.

Enquanto uma das principais características não apenas da cidade do Rio de Janeiro, mas do próprio país, a concentração fundiária encontra-se no centro de dois momentos importantes dos cerca de cinquenta anos de história da Cidade de Deus. Se, por um lado, ela esteve presente nos movimentos de remoção das favelas cariocas da década de 1960 que deram origem aos principais conjuntos habitacionais da cidade (ZALUAR, 2000; BURGOS, 2006; BRUM, 2015), dentre os quais a própria CDD, por outro lado ela também impulsionou o processo de militarização do espaço urbano carioca com a instalação das chamadas Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) (BATISTA, 2012; BRITO; OLIVEIRA, 2013), carro-chefe da então Secretaria de Estado de Segurança, nas principais favelas cariocas.

Com realização dos megaeventos na cidade, como Copa do Mundo (2014) e Olimpíadas (2016), observa-se a emergência de um intenso processo de especulação imobiliária, o qual teve um papel fundamental na instalação das UPPs. A região da Barra da Tijuca aparece, inclusive, como um dos principais palcos deste processo não apenas por sediar boa parte das delegações esportivas e dos jogos olímpicos, mas também por apresentar-se como principal espaço para a expansão imobiliária (BRITO; OLIVEIRA, 2013; VAINER, 2016). Não foi a toa que a UPP da Cidade de Deus, instalada em fevereiro de 2009, foi a segunda a ser inaugurada na cidade. Ela ficou atrás apenas da UPP do Morro Dona Marta, instalada em dezembro de 2008. Localizada em Botafogo, zona sul do Rio de Janeiro, a favela Dona Marta ocupa uma das regiões fundiárias com o metro quadrado mais caro, não apenas da cidade do Rio, mas do próprio país.

Assim, sob o discurso de pacificar as favelas cariocas consideradas mais violentas da cidade, mais especificamente, no que dizem respeito ao chamado tráfico de drogas, as UPPs terminaram por criar não apenas um terreno fértil e bastante rentável para este processo especulativo com a diminuição dos conflitos abertos nestas localidades - modificando as formas de operação do mercado varejista de drogas sem, contudo, acabar com ele -, mas também por elevar os processos de criminalização da pobreza e de estereotipação da violência, que, historicamente, já assolavam estas mesmas localidades, a um novo patamar com a militarização do espaço urbano, principalmente das favelas.

Para alguns autores, esta militarização do espaço urbano realizada pelas UPPs também contribuiu, significativamente, no processo de reestruturação da lógica criminal da cidade do Rio de Janeiro (ALVES, 2010; BARREIRA, 2013). Sob este mesmo discurso de encarar uma “guerra contra as drogas”, a implementação desta política de segurança pública terminou por colaborar tanto na migração do tráfico para regiões ainda mais periféricas (e, portanto, menos visibilizadas pelas mídias corporativas) da cidade e de municípios vizinhos, sobretudo da Baixada Fluminense, como também para a ampliação dos domínios territoriais das milícias10. Segundo Barreira, por exemplo, “se a concepção de visibilidade da segurança trazida pelas UPPs transfere e modifica as formas de operação do tráfico, ela tem na atividade das milícias um tipo de ocupação ‘complementar’ do território” (BARREIRA, 2013, p. 153). Trata-se de uma ocupação territorial, inclusive, que tem tensionado de forma não menos expressiva a própria posição geopolítica que a Cidade de Deus ocupa neste mesmo mercado varejista uma vez que, enquanto um dos principais redutos do Comando Vermelho, a CDD ainda apresenta-se como uma das poucas favelas (se não a única) da zona oeste (principal região de atuação das milícias na cidade do Rio de Janeiro) ainda não submetida ao poder dos paramilitares11.

Conforme sinalizado, anteriormente, pelas palavras de Jonathan Híbrido (2015), a possibilidade de apropriação deste espaço público pela Batalha da Di Deus não aconteceu por acaso. Ela surgiu justamente na esteira de outro processo importante, ao menos para parte significativa da juventude carioca, qual seja: o de capilarização das batalhas de rima pelos bairros da cidade do Rio de Janeiro.

No final da década de 1990 e no início da de 2000, o rap já apresentava uma cena consolidada na cidade do Rio de Janeiro. O bairro da Lapa, região central da cidade, apresentava-se como um dos palcos principais desta cena não apenas pelos eventos que ali se realizavam (como a Festa Zoeira, a Batalha do Real e outros tantos realizados no Centro Interativo do Circo, por exemplo), mas também pela ampla rede de transporte público que a região apresentava, fato que facilitava seu acesso. Assim, semanalmente, rappers dos mais diversos cantos da cidade e até mesmo de municípios vizinhos (como Niterói, São Gonçalo e muitos da Baixada Fluminense) se reuniam nesta região para cantar, tocar, batalhar, se divertir e trocar ideias (L.A.P.A., 2007; ALVES, 2013).

No decorrer da década de 2000, entretanto, observa-se um movimento de capilarização das batalhas de rima e das rodas culturais não apenas pela cidade, mas pelo próprio Estado do Rio de Janeiro, capaz de articular um significativo circuito comunicativo da juventude fluminense. A formação do chamado Circuito Carioca de Ritmo e Poesia (CCRP)12, inclusive, teve um papel fundamental neste movimento de capilarização, chegando a ser reconhecido pela própria Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro, em 2012, como parte da programação cultural da cidade13. Segundo Alves, por exemplo, em 2013 já existiam cerca de 40 rodas culturais espalhadas por todo o Estado e este número, até então, não parava de aumentar (ALVES, 2013, p. 44).

Foi justamente no contraponto entre estes diferentes processos que tecem a cidade do Rio de Janeiro que teve início a Batalha da Di Deus. Trata-se de uma batalha do conhecimento14 que assumiu, e ainda hoje assume o desafio de apropriar-se de um importante espaço público da Cidade de Deus transformando-o em uma verdadeira arena de ritmo e poesia. Uma arena em que não apenas o conhecimento, mas também o autoconhecimento encontra-se em permanente emergência: um tempo-espaço em que jovens problematizam e compartilham não apenas as diferentes questões que tecem seus cotidianos (como estes mesmos processos discutidos anteriormente, dentre outras questões), mas também (e tão importante quanto isso) as tensas e desconfortáveis posições que eles próprios ocupam nestas mesmas questões. Posições,vale ressaltar também, muitas vezes silenciadas em outros tempos-espaços já institucionalizados, como a escola, por exemplo. Um tempo-espaço, enfim, de problematização da juventude e da cidade. Conforme explicou Híbrido anteriormente, trata-se de “trazer para o contexto da batalha os assuntos pertinentes ao nosso dia-a-dia, seja enquanto Cidade de Deus, seja enquanto Rio de Janeiro, seja enquanto Brasil”, “trazer estes assuntos para dentro da batalha para que os jovens possam ter voz a respeito destes assuntos e que outros ouçam estas questões”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme tentamos discutir no decorrer das páginas anteriores, enquanto uma prática eminentemente musical, a Batalha da Di Deus consiste em uma prática educativa: um movimento de interação entre vozes não-iguais. Uma prática que surge na polifonia de importantes processos que tecem a cidade do Rio de Janeiro como a especulação imobiliária, a militarização do espaço urbano, a reestruturação da lógica criminal e a capilarização das batalhas de rima. Assim como os MC’s em duelo nas mais diversas batalhas de rima da cidade, a Batalha da Di Deus consiste em um movimento dialógico em que a juventude da Cidade de Deus se apropria desses processos não-iguais, ressignificando-os a seu próprio favor. Uma prática que ao enunciar diferentes e desiguais posicionamentos epistemológicos, políticos e estéticos enuncia, neste mesmo movimento, o conflito como elemento estruturante de suas relações e não como crise, exceção ou exterioridade de um pré-determinado padrão de sociabilidade. Uma prática de resistência, como nos diz Híbrido: “uma oportunidade (...) para colocar a juventude da Cidade de Deus nesse papel de questionar e discutir problemas. (...) A gente traz todos estes contextos, insere na batalha e a molecada discute a respeito destes temas”.

A articulação realizada entre Estado, sociedade civil e juventude da Cidade de Deus, discutida, anteriormente, e através da qual este trabalho vem tornando-se possível, também apresenta sua importância. Principalmente, no que diz respeito à necessidade de discutirmos políticas públicas que estabeleçam diálogos com os mais diferentes tempos-espaços educativos que tecem não apenas a cidade do Rio de Janeiro, mas o próprio país. Trata-se de uma necessidade cada dia mais urgente diante do evidente avanço de concepções de ensino que tentam monologizar, conforme certamente nos diria Bakhtin, a complexidade em que consiste a educação. Concepções estas que, ao buscar objetificar a educação, tentam a qualquer custo esterilizar a vida e silenciar os conflitos, as contradições e até mesmo as violências que existem dentro e fora da escola.

1Esta relação entre música e educação aqui proposta não deixa de dialogar com a relação entre música e cultura já bastante discutida no campo da Antropologia. Ao abordar o que chama de “antropologia musical”, por exemplo, Anthony Seeger escreve que “uma antropologia musical trata da maneira como as performances musicais criam muito dos aspectos da cultura e da vida social. Em vez de estudar a música na cultura (conforme propôs Alan Merriam em 1960), a antropologia musical estuda a vida social como performance. Em vez de pressupor uma matriz social e cultural preexistente e logicamente antecedente, dentro da qual a música acontece, examina a maneira como a música faz parte da própria construção e interpretação das relações e dos processos sociais e conceituais. Ao enfatizar a performance, a atualização dos processos sociais, e não as leis sociais, essa antropologia musical enfatiza o processo e a performatividade” (SEEGER, 2015, p.14-15).

2Conforme suas próprias palavras, “a multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis e a autêntica polifonia de vozes plenivalentes constituem, de fato, a peculiaridade fundamental dos romances de Dosteiévski. Não é a multiplicidade de caracteres e destinos que, em um mundo objetivo uno, à luz da consciência una do autor, se desenvolve nos romances: é precisamente a multiplicidade de consciências equipolentes e seus mundos que aqui se combinam numa unidade de acontecimento, mantendo sua imiscibilidade. Dentro do plano artístico de Dostoiévski, suas personagens principais são, em realidade, não apenas objetos do discurso do autor, mas os próprios sujeitos desse discurso diretamente significante” (BAKHTIN, 2010, p. 4).

3O referido edital apresenta o seguinte objetivo principal: “apoiar iniciativas para a melhoria do ensino, por meio de projetos que abordem temas relevantes ao processo de ensino-aprendizagem e que permitam o aprimoramento da infraestrutura das escolas da rede pública (municipais, estaduais e federais) do Estado do Rio de Janeiro (níveis fundamental e médio), com a finalidade de contribuir para: o estabelecimento da excelência nas escolas da rede pública do Estado; a formação, a capacitação e a atualização de professores das escolas da rede pública do Estado; a melhoria da infraestrutura necessária ao ensino da rede pública do Estado; a promoção do intercâmbio de instituições de ensino superior e pesquisa com escolas da rede pública sediadas no Estado” (FAPÈRJ, 2013).

4O Musicultura consiste em uma referência importante para o presente trabalho de pesquisa. Trata-se de uma experiência dialógica que justamente assume a música como um posicionamento epistêmico no debate com diferentes tempos-espaços culturais (ARAÚJO et al., 2006, p. 1).

5Assim como outras favelas da cidade do Rio de Janeiro, a Cidade de Deus não pode ser entendida como uma totalidade, mas sim tecida por diferentes microlocalidades como, por exemplo, AP, Karatê, Bariri, Rocinha, Pantanal, 13, 15, dentre outras. Em sua pesquisa realizada em outra importante favela carioca, na Favela de Acari, Alvito nos orienta que “se tomássemos qualquer uma das mais de 600 favelas existentes no município do Rio de Janeiro, encontraríamos em cada uma delas um arranjo original e único desses níveis diferenciados e imbricados. Somente a multiplicação de estudos monográficos que levem em consideração a interrelação de todos esses fatores, incluindo os supralocais e microlocais, poderá aprofundar o nosso conhecimento da favela ou daquilo que um morador de Acari definiu como ‘um bicho-de-sete-cabeças’” (ALVITO, 2001, p.74). Assim, apesar da hegemonia de um discurso monológico que tenta associar estas microlocalidades da CDD diretamente ao domínio do tráfico de drogas, não podemos deixar de complexificá-las um pouco mais com a emergência de outras inter-relações que elas estabelecem com a própria história da Cidade de Deus como, por exemplo, com o seu próprio processo de povoamento que não foi nem linear nem homogêneo (TEIXEIRA JR., 2016).

6Software gratuito que simula, virtualmente, o equipamento típico de um DJ: dois toca-discos e um mixer.

7Lei federal que determina a obrigatoriedade da cultura negra e africana no currículo da Educação Básica brasileira.

8Lei federal que determina a obrigatoriedade da música no currículo no âmbito da Educação Básica brasileira.

9Ao abordar as ressignificações de espaços públicos realizadas pelas batalhas de rima e rodas culturais, Alves explica que "as rodas culturais acontecem nas praças públicas. Algumas dessas praças (...) encontravam-se abandonadas ou frequentadas, tão somente, pela população de rua. Com a realização constante das rodas culturais, alguns organizadores declaram que passou a haver uma nova movimentação nesses espaços: pessoas que não tinham o hábito de fazer uso deles começaram a verificar outras possibilidades oferecidas além do abrigo às crianças que moram na rua. Dessa forma, há, evidentemente, uma ressignificação destes lugares que se tornam, assim, espaços culturais, com registros nas paredes (devidamente grafitadas e pichadas) e na memória afetiva de seus frequentadores" (ALVES, 2013, p. 100). No caso do referido espaço público debaixo da Linha Amarela, não podemos deixar de destacar que também existem outros movimentos de ressignificação além da realizada pela Batalha da Di Deus. Podemos citar, por exemplo, o Charme da Di Deus, um baile charme organizado mensalmente por moradores da CDD.

10Segundo Barreira (2013), “as milícias são constituídas, em sua maioria, de policiais, agentes penitenciários e outros funcionários do Estado que lançam mão de sua condição para associar-se em ‘bandos’ e obter renda de modo delituoso. Eles agem nas brechas do poder público, obrigando os governos a negociar suas formas de operação com as lideranças dos batalhões e delegacias policiais. Com a relativa autonomização que obtêm por meio desse tipo de negociação, as redes mafiosas tendem a transformar a ‘segurança’ em um negócio privado a serviço de esquemas locais de poder” (p. 154).

11Ao detalhar o que está em jogo neste processo de reestruturação da lógica criminal da cidade do Rio de Janeiro, José Cláudio Alves explica que “o Comando Vermelho foi se transformando num segmento que está perdendo sua hegemonia sobre a organização do crime no Rio de Janeiro. Quem está avançando, ao longo do tempo, são as milícias em articulação com o Terceiro Comando” (ALVES, 2010, p. 1).

12Segundo Alves, “O Circuito Carioca de Ritmo e Poesia, conhecido como CCRP, é um projeto do coletivo Comando Selva, criado pelo ambulante cultural Marcus Vinícius de Aquino Santana, o MV Hemp, e pelo rapper Pedro Leib Rozemberg, conhecido como Dropê Comando Selva. O objetivo maior do circuito é a ocupação das ruas, por meio da promoção do encontro de artistas sem reconhecimento pela mídia e outras instâncias tradicionais de legitimação” (ALVES, 2013, p. 37). Em documento enviado à prefeitura, o CCRP se apresenta como “uma rede independente de produção, pesquisa e inovação cultural que estruturou um conjunto de encontros semanais - denominados, antes, rodas de rima, e agora rodas culturais - em praças e espaços públicos de diversos bairros do Rio de Janeiro” (idem, p. 38).

13Em 6 de setembro de 2012, o então prefeito Eduardo Paes assinou o Decreto nº 36201 que considera as rodas culturais do CCRP um programa cultural da cidade do Rio de Janeiro.

14Segundo Alves, a chamada batalha do conhecimento surgiu como uma proposta do MC Marechal, uma alternativa à chamada batalha de sangue. Enquanto esta última tem como objetivo principal o ataque ao oponente, um verdadeiro “vale tudo” da rima, a primeira busca explorar mais o debate sobre determinados temas. Em entrevista dada à Alves, Marechal explica: “eu pensava na forma de manter uma batalha, que é um evento de entretenimento, e ao mesmo tempo em que contivesse algo que despertasse as pessoas, que as fizesse evoluir. Eu faço aquilo em que acredito. A Batalha do Conhecimento exibe um filme, faz o debate e a batalha se desenvolve com os temas relacionados ao filme. O projeto da Batalha do Conhecimento deseja formar um núcleo, com workshop, música, literatura, cultura. Ou seja, um Núcleo do Conhecimento, uma escola, sendo a batalha um entretenimento” (ALVES, 2013, p. 23). Vale ressaltar, contudo, que o entendimento destas batalhas não deve estar limitado a uma relação dicotômica, porque na prática, dependendo da organização da batalha, da agilidade dos participantes e do interesse do público, elas se misturam facilmente podendo valorizar, assim, tanto o clima de duelo, de ressignificação, como o desenvolvimento de questões importantes (como violência, gênero, racismo, etc.).

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