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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.19 no.55 Rio de Janeiro oct./dic 2018  Epub 17-Feb-2020

https://doi.org/10.12957/teias.2018.24795 

Artigos de Demanda Contínua

CADERNETA ESCOLAR: “ARTES DE FAZER” NO MOVIMENTO DE APROPRIAÇÃO PELAS NORMALISTAS DA ESCOLA NORMAL MADRE TERESA MICHEL - CRICIÚMA, SC (DÉCADA DE 1960)

Graziela Pavei Peruch Rosso(*) 

Gladys Mary Ghizoni Teive(**) 

(*)Doutoranda em Educação pela Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). Bolsista Capes-DS.

(**)Doutora pela UFPR - Universidade Federal do Paraná e Professora titular da UDESC - Universidade do Estado de Santa Catarina.


RESUMO

O texto discute a apropriação da materialidade “caderneta escolar” pelas normalistas na Escola Normal Madre Teresa Michel (Criciúma, SC) em 1960. A caderneta circulou no interior do educandário como estratégia da direção para manutenção da disciplina e efetivação de determinada pedagogia. Buscou-se entender como esse dispositivo foi recebido e significado pelas educandas durante suas práticas escolares. Avaliaram-se duas cadernetas utilizadas em 1964 e 1965, as “memórias” de normalistas que lá estudaram na época e outros documentos que puderam contar a história desse artefato como uma prescrição a ser seguida. Tal análise possibilitou identificar que, apesar das ‘artes de fazer’ engendradas num movimento astucioso de engano e resistência das alunas diante das forças articuladas por esse objeto multifacetado, enquanto estratégia de controle do tempo, espaço e comportamento, a caderneta escolar concretizou sua finalidade.

Palavras-chave: Cultura Material Escolar; Caderneta Escolar; Escola Normal

ABSTRACT

The text discusses the appropriation from the "educational booklet” by the students in the Normal School Madre Teresa Michel (Criciúma, SC) in 1960. The booklet took part in daily activities as a director's strategy in order to maintain discipline and to apply certain pedagogy. So, we tried to comprehend how this dispositive was received and understood by the students during their educational practices. Two booklets (from 1964 and 1965) were analyzed with the “memories” from the students beside another documents that could tell the history of booklets as a prescription to be followed. This analyzes allowed us to identify that, despite of the ‘arts of action’ engaged in a complex movement of students mistakes and resistances there are articulated forces. As a time, space and behavior control strategy, this booklet achieved its finality.

Keywords: Educational Material Culture; Educational Booklet; Normal School

“A problemática do ‘mundo como representação’, moldado através de séries de discursos que o apreendem e o estruturam, conduz obrigatoriamente a uma reflexão sobre o modo como uma figuração desse tipo pode ser apropriada pelos leitores dos textos (ou das imagens) que dão a ver e a pensar o real”. (CHARTIER, 2002, p. 23-24).

Ao abordar acerca do mundo e de sua compreensão, Chartier (2002) afirma que a realidade nada mais é que uma criação social “intencional”1, estruturada e representada por meio de ‘formas simbólicas’2, apropriadas por homens e mulheres que nela circulam. Nesse sentido, textos, imagens e objetos se (des)figuram numa enorme teia que, totalizadas por um imaginário, uma a uma, atribuem significados ao presente que aí se põe. Tratando-se da escola e de suas representações, essas são constituídas por meio de sua materialidade, dadas por sua arquitetura, mobiliário, documentos, regras e normas, bem como pelos materiais didáticos (entre outros) que por ela transitam. Denominados “objetos pegadas”3, quando problematizados, tanto do ponto de vista de material, quanto dos agentes que deles fizeram usos, esses elementos contribuem para o entendimento de como a realidade escolar foi construída em determinado momento e lugar.

Todavia, as representações do mundo social, incluindo-se as da instituição escolar, enquanto discursos dotados de sentido, propõem estratégias e práticas “que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projeto reformador, ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e condutas” (CHARTIER, 2002, p. 17), ou seja, um mundo que, mais que representado, exerce diretamente influência (e poder) no pensar e agir daqueles que nele transitam. Nessa esteira, entende-se a caderneta escolar como um objeto que circulou no interior dos educandários, representando uma determinada estratégia de controle diante do comportamento de alunos e alunas. O presente ensaio tem, portanto, o objetivo de investigar como essa materialidade foi apropriada pelas normalistas na Escola Normal Madre Teresa Michel (Criciúma, SC), na década de 1960. Assim, enquanto artefato integrante da cultura material, a caderneta escolar foi tomada como fonte de investigação e análise, no sentido não apenas de desvendar pistas que pudessem aproximar o passado da cultura escolar da Escola Normal Madre Teresa Michel, mas também como forma de compreender seus (des)usos no dia a dia escolar das normalistas.

Entende-se que compreender o movimento de apropriação das cadernetas escolares pelas normalistas na Escola Normal Madre Teresa Michel (E.N.M.T.M) significa apreender como esse dispositivo escolar, enquanto estratégia utilizada pela direção do educandário para manutenção da disciplinar e efetivação de uma determinada pedagogia, foi manuseado pelas educandas durante as práticas escolares. Manuseio este permeado por táticas ou “artes de fazer”, assumidas pela criatividade como forma de driblar as redes de “vigilância” às quais se encontram engendradas (CERTEAU, 1998).

Para tal, foram selecionadas como fontes materiais de pesquisa duas cadernetas utilizadas nos anos de 1964 e 1965, período em que a normalista Vanda Milioli frequentou o primeiro e segundo ano do curso normal. As cadernetas foram encontradas na ‘caixinha de memórias’ da professora durante as entrevistas realizadas pela pesquisadora com normalistas e professoras, no ano de 2011, quando do percurso de investigação dos saberes e práticas da formação de Normalistas da Escola Normal MTM4. Para cruzamento da materialidade investigada, também estiveram presentes no corpus de análise os regimentos internos do educandário, os relatórios de verificação e funcionamento e outros documentos que poderiam contar a história da caderneta escolar como uma prescrição a ser seguida pelas discentes, além das “memórias” de normalistas que estudaram no educandário na década em questão. Em relação a fontes orais, tomou-se como documento a memória das seguintes normalistas: Nair Milioli (in memorian), formada em 1960; Aleida Maria Ghisi Ortigossa (1961); Zurene Póvoas Carneiro (1962); Vanda Milioli (1966); Vera Maria Silvestri (1967) e Ignez Tramontim (1971).

Salienta-se que, apesar de a caderneta ser uma norma para todos os alunos e alunas da Escola Normal Madre Teresa Michel, tomou-se como foco de estudo apenas seu movimento no interior do Curso Normal e primou-se, essencialmente, pelas memórias das normalistas no movimento de uso e apropriação desse dispositivo escolar. Do mesmo modo, devido à prevalência de normalistas mulheres5 em todo o percurso de existência desse curso, considerar-se-á o uso do gênero feminino durante toda a escrita deste texto.

Quanto à exposição da caderneta escolar como fonte de pesquisa, observa-se no contexto brasileiro a presença de parcos estudos6 que se utilizam desse elemento para compreensão da realidade escolar. Todavia, as cadernetas referenciadas nos trabalhos encontrados dizem respeito ao documento atualmente denominado “diário de classe”, ferramenta de uso rotineiro do professor. Em poucas produções foi possível encontrar a “caderneta escolar” como documento de constituição para uso próprio do aluno e como estratégia “regulação” de comportamentos (entre outros usos) por parte da escola. Esse indicador corrobora com a importância de se estudar esse objeto (e suas apropriações), inserindo-o no hall de fontes que auxiliam na compreensão da escola em tempo e lugar determinados.

A discussão proposta será fundamentada a partir dos conceitos de “estratégia” e “tática” de Michel de Certeau (1998), além das considerações de “representação” e “apropriação” problematizadas por Roger Chartier (2002). Como forma de apresentação, o estudo se encontra sumarizado em duas etapas. A primeira, denominada “Nas ‘Lupas’ da Pesquisadora, a Caderneta Escolar...”, na qual será explorada a caderneta escolar, tanto em sua materialidade, quanto como estratégia para controlar/moldar o comportamento das normalistas. A seguir, no título “Rememorando o passado das Cadernetas na oralidade das normalistas...”, apresentar-se-á as apropriações das normalistas acerca do objeto, bem como as táticas utilizadas como forma de burlar suas prescrições. Por fim, serão tecidas as considerações finais.

NAS “LUPAS” DA PESQUISADORA, A CADERNETA ESCOLAR...

Objeto de múltiplos usos e formatos, a caderneta, enquanto instrumento representante de uma cultura escolar7 utilizada para controlar o tempo, corpo e espaço de alunos (e mestres) no ambiente educativo, aparece pela primeira vez nas prescrições educativas brasileiras no Decreto nº. 3.890, de 1 de janeiro de 1901, também denominado Reforma Epitácio Pessoa. A respectiva Lei, em seu Capítulo XXIV, denominado “Das Licenças e das Faltas”, expõe em seu artigo 337 que, “[a] presença dos membros do corpo docente será verificada pela sua assignatura nas cadernetas das aulas e nas actas da congregação”.

No artigo seguinte, 338, complementa:

[o] secretario, á vista das notas das cadernetas, das que haja tomado sobre quaesqueractos escolares, e do livre do ponto, organisará no fim de cada mez a lista completa das faltas e a apresentará ao director, que, attendendo aos motivos, poderá considerar justificadas até tres para os lentes, substitutos ou professores que derem menos de cinco lições por semana e até o dobro para os demais e o pessoal administrativo (BRASIL, 1901, p. 1).

Observa-se nesses ditames, a presença de uma caderneta escolar a ser utilizada pelo professor. Um objeto de manuseio diário, com a finalidade de registro das aulas, comportamento e frequência dos alunos, controle das lições e conteúdos dados, entre outros que, mais que apontar o desempenho dos alunos, servira também para identificar faltas cometidas pelos docentes no exercício de suas atribuições frente às regras tanto administrativas, quanto pedagógicas presentes no currículo escolar.

Em 1911, novamente é identificada a presença da caderneta na legislação brasileira de ensino. A denominada Lei ou Reforma Rivadávia Corrêa - Lei Orgânica do Ensino Superior e Fundamental - remete a caderneta a três tipos de uso: cadernetas de ponto, caderneta das aulas e caderneta de uso dos alunos. Sobre a última, afirma em seu artigo 70: “No fim de cada periodo lectivo os alumnos apresentarão aos professores e livres docentes, a cujos cursos assistiram, suas cadernetas, para que nelas attestem a frequência” (BRASIL, 1911, p.1). Pela simples descrição, torna-se difícil identificar como e qual seria o formato de caderneta discente. Todavia, pelo quesito “atestado de frequência”, avalia-se a função de controle exercida por elas sobre a permanência e desempenho do aluno em sala de aula.

Por conseguinte, será a Lei Orgânica do Ensino Secundário (Lei 4.244/ 1942) que apontará um capítulo exclusivo para a Caderneta Escolar a ser utilizada pelo aluno, quando em seu Capítulo IX, artigo 38, explicita: “Cada aluno de estabelecimento de ensino secundário possuirá uma caderneta, em que se lançará o histórico de sua vida escolar, desde o ingresso, com os exames de admissão, até a conclusão, com a expedição do devido certificado” (BRASIL, 1942, p. 1).

Nota-se nessa prescrição, uma caderneta de uso diário do aluno, semelhante ao “caderno escolar” presente nos Liceus Portugueses nos últimos quartéis do século XIX e início do século XX, tal como descreve Ramos do Ó (2003, p. 310-311) sobre o Decreto de 29/08/1905:

O caderno escolar apresentava-se como uma peça fundamental para dinamizar as novas medidas tendentes a conferir mais “estímulos ao trabalho dos alunos” e a “conjugar esforços” entre o liceu e a família. Parecia ainda, [...] que traria uma “enorme vantagem para a educação moral da mocidade”. Daí sua obrigatoriedade e formato universal. Este documento individual, em que iriam “sendo referidos os incidentes da vida académica” do aluno, seria rubricado pelo reitor página a página. Explicitava-se igualmente que, “além do pai, do tutor e do médico do aluno” apenas podiam lançar notas no caderno “as autoridades adadémicas e os médicos escolares”. Dele constaria, sempre, a data de nascimento do aluno, a classificação obtida no exame de instrução primária, a classificação obtida nas várias disciplinas de cada classe, a assiduidade e aproveitamento nos exercícios de educação física, as penas disciplinares aplicadas, os prémios conferidos e, enfim, outro tipo de indicações que o reitor, o diretor de classe, os professores e o secretário do liceu entendessem “convenientes para promover a educação dos alunos”.

Uma caderneta escolar destinada a inventariar (e contar) todo o percurso discente no interior da instituição escolar e, para além disso, servir de elemento de comunicação entre a família e a escola. É nesses moldes que a caderneta escolar faz sua primeira inserção na Escola Normal Madre Tereza Michel em meados da década de 50 e, é sobre ela, enquanto estratégia para o ensino das normalistas, que tratarão as laudas a seguir.

O INGRESSO DAS CADERNETAS NA ESCOLA NORMAL MADRE TERESA MICHEL

A Escola Normal Madre Teresa Michel8, primeira Escola Normal de Criciúma, iniciou suas atividades no ano de 1958, abarcando as atividades inerentes ao Ginásio Madre Teresa Michel, que entrou em funcionamento no ano de 1956. Sua direção era mantida pela Congregação das Pequenas Irmãs da Divina Providência (P.I.D.P.) que, por meio do intermédio da comunidade e do poder executivo municipal, aceitaram guiar tal feito.

Conforme a Lei Orgânica do Ensino Normal (Decreto-lei 8.530/ 1946) a Escola Normal seria o “estabelecimento destinado a dar o curso de segundo ciclo desse ensino, e ciclo ginasial do ensino secundário”. Nessa esteira, buscou-se encontrar no Acervo do Ginásio e da Escola Normal Madre Teresa Michel, indícios da inserção das cadernetas escolares na rotina do educandário, bem como seu tempo de permanência e finalidades (BRASIL, 1946, p. 1).

Dos documentos encontrados: Relatórios de Inspeção e Funcionamento (1955), Regimento Interno (1955), Relatório de Verificação para Transferência de Sede (1961), Livro de Atas de eventos sociais (1955-1989), Livro de Registro de Diplomas (1960-1973), entre outros, não foi possível localizar a presença, nem as prescrições destinadas a caderneta escolar. Ressalta-se também que nenhuma das fontes encontradas demonstra as mudanças ocorridas na rotina do educandário após a criação do Curso Normal anexo ao Ginásio.

Sobre os regimentos internos, considera-se que, além do elaborado em 1955, nenhum outro foi localizado. Inclusive, o regimento que deveria constar anexo ao Relatório de Verificação para Transferência de Sede (1961) e que poderia oferecer mais detalhes sobre seu funcionamento foi extraviado no decorrer dos anos. Ainda a respeito do Regimento Interno, pondera-se que o único registro de modificação e aprovação do RI frente à Secretaria do Estado da Educação consta do ano de 1976, subentendendo-se que, até a data em questão, permaneceram vigentes as prescrições estabelecidas no inicial.

Contudo, as memórias de Zurene Póvoas Carneiro9, aluna do Ginásio Madre Teresa Michel à época de sua fundação, oferece pistas para a presença da caderneta escolar desde o primeiro ano de funcionamento do educandário. Suas lembranças remetem a uma caderneta utilizada, principalmente, para controle da frequência nas missas aos domingos, tendo em vista o caráter confessional do colégio. Esse compromisso era de obrigatoriedade de todos os ginasianos e ginasianas, exceto àqueles de outros credos, tal como cita:

Eu tenho uma lembrança muito boa do ginásio. As freiras eram muito cordiais, mas autoritárias. O uniforme de gala e o diário tinham que seguir a risca. O uniforme de gala era usado todo domingo para ir à missa e quando tinha festa. Na missa, cada um tinha que levar a sua caderneta, pois tinha que ser carimbada pelo padre comprovando a presença. Os alunos entravam um atrás do outro. Se a caderneta não estivesse carimbada, era chamado no gabinete da irmã diretora, ou também se o uniforme não estivesse certo. (Zurene P. Carneiro. Entrevista, 20 mar. 2011)

Igualmente, percebe-se que o uso da caderneta foi mantido com a abertura do Curso Normal por meio da fala de dona Nair, normalista da primeira turma formada pela instituição, quando realiza a descrição desse objeto: “Era uma caderneta de anotações e observações, fininha. Era tipo um boletim, mas era durinha. E eu tinha que ir todo domingo a missa, de uniforme de gala e no final da missa passar lá para o padre assinar a caderneta” (Nair Milioli (in memoriam). Entrevista, 22 mar. 2011).

Observa-se que o dispositivo escolar em questão foi empregado pelas alunas do Curso Normal Madre Teresa Michel durante toda a década de 1960, transcendendo a esta, sendo sua presença ainda confirmada na década de 7010, tal como expõem dona Ignez Tramontim, normalista formada em 1970:

Quando fala em caderneta, eu lembro em frequência. Lembro que entregávamos na porta de entrada para confirmar a presença. Controle de notas e frequência. Das demais funções, pouco recordo. Talvez porque eu já fosse professora, e, como era bastante responsável, nunca recebi nenhum outro tipo de anotação. A caderneta era um protocolo, uma norma da escola. (Ignez Tramontim. Entrevista, 16 fev. 2015).

Destarte, apesar de não ter sido possível localizar o uso das cadernetas como uma prescrição nos documentos investigados, as memórias das alunas (re)afirmam sua existência, deixando pistas de sua obrigatoriedade e trazendo à tona algumas de suas funções. Nessa esteira, questiona-se: Como eram essas cadernetas escolares? Qual(is) sua(s) atribuição(ões)? Que marcas é possível identificar dos (des)usos desse objeto na trajetória das normalistas na E.N.M.T.M?

De posse das cadernetas escolares dos anos de 1964 e 1965 manuseadas pela professoranda Vanda Milioli, buscar-se-á responder essas questões no item que sucede.

COMO E O QUE CONTAM AS CADERNETAS ESCOLARES?

A caderneta escolar “era um documento, uma preciosidade. Ai de quem estragasse, amassasse, rasgasse. Até posso imaginar o tamanho da bronca se isso acontecesse!” (Aleida G. Ortigossa. Entrevista, 12 fev. 2015).. Assim se expressa dona Aleida, quando relembra dos tempos em que precisou fazer uso desse instrumento enquanto normalista. A “preciosidade” citada pela ex-normalista pode ser observada logo no suporte em que essa ferramenta é apresentada: capa dura, colorida, medindo nove centímetros de largura por vinte e três de altura: tamanho ideal de um documento que pode ser carregado no bolso. Ainda na capa é possível visualizar grafados os nomes da escola, cidade e localização, além da identificação “CADERNETA ESCOLAR” ao centro.

Oferecendo uma maior graciosidade ao documento, além de favorecer sua personalização, um retângulo transparente que permitia visualizar a página seguinte - donde seriam descritos o nome da aluna, curso, série, classe e número - se faz presente (Figura 1). Como fornecedor, pode-se localizar na contracapa, ao final da caderneta, endereço e telefone da Indústria Gráfica Cruzeiro do Sul S.A de São Paulo, demonstrando que as mesmas percorriam em média 900 quilômetros entre sua produção e o destino onde seriam instrumentalizadas.

Fonte: Acervo particular da autora.

Figura 1 Caderneta Escolar (1964) - Capa. 

Na segunda página, a advertência “É de suma importância que os pais e responsáveis examinem CADA DIA a caderneta escolar” deixa clara a função da caderneta como ferramenta disciplinar, ou seja, como “estratégia” de controle e garantia de sustentação dos valores e comportamentos a serem incorporados pelas normalistas.

Chamo de ‘estratégia’ o cálculo (ou a manipulação) das relações de forças que se torna possível a partir do momento em que um sujeito de querer e poder (uma empresa, um exército, uma cidade, uma instituição científica) pode ser isolado. A estratégia postula um lugar suscetível de ser circunscrito como algo próprio e ser a base de onde se podem gerir as relações (CERTEAU, 1998, p. 101).

Considerando que é o lugar que ocupa o sujeito social que o determina, a estratégia pode ser entendida como uma “arma” do forte, uma ação (ou um conjunto delas) que, “graças ao postulado de um lugar de poder”, organiza “lugares teóricos (sistemas e discursos totalizantes), capazes de articular um conjunto de lugares físicos onde as forças se distribuem” (CERTEAU, 1998, p. 102). Desse modo, enquanto estratégia, as cadernetas deveriam ser representadas para as alunas como uma ferramenta necessária à sua boa formação. Um documento que, além de afirmar o ‘poder’ da escola diante das atitudes e comportamentos das educandas, seria igualmente capaz de legitimar que as prescrições estabelecidas pelo educandário vinham sendo religiosamente cumpridas.

Para tal, após identificar as alunas com foto, nome, filiação, naturalidade e residência, na terceira página, o objeto apresenta a “Disciplina Escolar” (Figura 2), trazendo em voga os deveres das alunas e as faltas consideradas graves. Como primeiro dever, as normalistas deveriam “aplicar a máxima diligência no aproveitamento do ensino ministrado, frequentando com pontualidade as aulas e todos os atos escolares e executando os trabalhos e exercícios que lhe forem prescritos”.

Fonte: Acervo particular da autora.

Figura 2 Caderneta Escolar (1964) - Descrição dos deveres e faltas graves. 

Depois da disciplina, a relevância é dada à anotação diária de frequência, cuja página de apresentação fazia constar os ditames da Lei 4024 de 196111, artigo 38, qual seja, “a frequência é obrigatória, só podendo prestar exame final, em primeira época, o aluno que houver comparecido no mínimo a 75% das aulas dadas”. Seguindo a normativa, a caderneta dispõem de oito páginas, representativas dos meses de março a novembro. Nessas páginas, cada dia de aula deveria ser identificado com um carimbo de ‘compareceu’, incluindo a presença na missa aos domingos. O registro da frequência na caderneta pode ser identificado na Figura 3, a seguir.

Fonte: Acervo particular da autora.

Figura 3 Caderneta Escolar (1965) - registro de frequência. 

Na décima quinta página, o documento descreve o ‘Regime de Notas’, enumerando toda a normativa para o processo de avaliação, notas e aprovação discente. Conforme proposto, as alunas deveriam receber, no período de abril a outubro, uma nota mensal de aproveitamento para cada disciplina. No que tange a aprovação, a caderneta de 1964 estabelece que “a média final em uma disciplina será a média final da soma das seis notas mensais e da nota da prova final, adotando-se respectivamente os pessoa 1 e 4”. Em contraponto, a caderneta de 1965, um pouco mais detalhada nesse quesito, estabelece que seria considerada aprovada a aluna que obtivesse média igual ou superior a 5 em cada disciplina. O regime de notas de ambas as cadernetas é ilustrado na Figura 4, abaixo.

Fonte: Acervo particular da autora.

Figura 4 Descrição do Regime de Notas - cadernetas 1964 e 1965, respectivamente. 

A ferramenta oferecia também um espaço para que, mensalmente, fosse afixado o rendimento escolar de cada normalista. Junto às notas, era acrescido, igualmente, o total de faltas obtidas no respectivo tempo, além de uma página reservada exclusivamente para o cômputo das médias, tal como mostra a Figura 5.

Fonte: Acervo particular da autora.

Figura 5 Caderneta Escolar (1965) - Registro de Notas, Faltas Mensais e Cômputo das Médias. 

Observam-se dois espaços distintos reservados às comunicações. O primeiro, destinado às comunicações do estabelecimento para com os pais e a comunidade. Nesses espaços, ficavam anotações como advertências e suspensões, atestados de frequência, entre outros assuntos relevantes aos pais. Nas laudas de comunicação, destaca-se o poder exercido pela escola no interior da própria família das normalistas, pois ao mesmo que coloca os pais e responsáveis a par das situações ocorridas, afirma a força que a instituição possui sobre o comportamento de suas filhas. Mostrando-lhes, a partir das anotações, se estavam por cumprir sua responsabilidade: oferecer valores morais coerentes aos estabelecidos pelo educandário. Assim, a função panóptica da caderneta sobre a família ganha espaço, tendo em vista que, “a estratégia postula um lugar suscetível de ser circunscrito como algo próprio e ser a base de onde se podem gerir as relações com uma exterioridade de alvos ou ameaças” (CERTEAU, 1998, p.99). Lugar esse, muito bem coordenado pelas P.I.D.P.

Por fim, a caderneta incluía um quadro de horários a ser preenchido pelas normalistas para controle das disciplinas e tempo das aulas, bem como um quadro mensal de anotações e rubricas, que apesar de não estar assinado em ambos os documentos, sugere-se que seu uso estaria reservado à assinatura dos pais, após a inspeção das notas repassadas mensalmente pela secretaria às alunas. O quadro de horários e o espaço reservado para anotações se encontra exposto na Figura 6.

Fonte: Acervo particular da autora.

Figura 6 Caderneta Escolar (1964) - quadro de horários e o espaço reservado para anotações. 

Vale frisar que as cadernetas eram utilizadas apenas durante o ano letivo, sendo substituídas no início de cada uma das três séries integrantes do Curso Normal.

REMEMORANDO O PASSADO DAS CADERNETAS NA ORALIDADE DAS NORMALISTAS...

Rememorar o passado das cadernetas na oralidade das normalistas nada mais significa que reconstruir o sentido dos (des)usos outrora efetuados pelas normalistas em sua trajetória no Curso Normal Madre Teresa Michel. Local este, onde a materialidade da caderneta fora representada como uma estratégia inundada de propósitos e, hoje, podem ser sentidas, revividas e reelaboradas por meio de um conjunto de memórias lançadas diante desse objeto e de sua utilização. A memória, fonte que possibilita a construção da história, ainda que desprezada por muitos e, sobretudo, pelo paradigma da modernidade, não é um amontoado de fragmentos arruinados. Mais que isso, é o conjunto das descobertas e das diversas possibilidades e limites enfrentados que dão razão ao futuro e significado ao presente (CHIZZOTTI, 2005).

Assim, depositadas em uma mesa no saguão da Escola Normal Madre Teresa Michel, as cadernetas se encontravam dispostas para entrega já no primeiro dia do ano letivo, divididas por turma. A irmã as entregava logo que as alunas adentravam o educandário, tendo seu uso iniciado logo que ultrapassavam o acesso para as salas de aulas, já que, ali, encontrava-se outra religiosa responsável por verificar o uniforme e carimbar presença. Desse modo, iniciava-se o ano letivo, rememora dona Vanda Miliolli (Vanda Milioli. Entrevista, 11 fev. 2015).

Todavia, que a caderneta era uma prescrição - uma estratégia dedicada à manutenção da ordem e legitimação dos preceitos estabelecidos pela Congregação das Pequenas Irmãs da Divina Providência na educação das normalistas da Escola Normal Madre Teresa Michel - já se pode observar nas laudas anteriores. Por conseguinte: Como a caderneta escolar foi significada pelas normalistas que dela tomaram posse? O que recordam as normalistas sobre esse dispositivo? Como as cadernetas eram manuseadas pelas discentes? O que faziam as normalistas para driblar as normas estabelecidas no dispositivo? Conseguiram as P.I.D.P atingir o objetivo atribuído ao uso das mesmas?

Certeau, ao abordar sobre os significados de uma representação, afirma que “a presença e a circulação de uma representação não indicam, de modo algum, o que ela é para seus usuários. É ainda necessário analisar a sua manipulação pelos praticantes que não a fabricaram” (1994, p. 40). Nessa perspectiva, para responder as questões acima propostas, torna-se necessário compreender como as cadernetas escolares foram apropriadas pelas normalistas - tal seja, compreender como as normalistas tomaram posse desse recurso e o utilizaram - e, no interior desse movimento, observar igualmente as táticas ou ‘artes de fazer’ elaboradas pelas alunas como forma de driblar as prescrições estabelecidas.

As táticas, manobras de criatividade determinadas por aqueles que não estão no poder, de modo a driblar as conjecturas estabelecidas, necessitam constantemente “jogar com os acontecimentos para transformá-los em ocasiões”. Elas não se traduzem em discursos, “mas na própria decisão, ato e maneira de aproveitar a “ocasião” (CERTEAU, 1998, p. 47). Nessa esteira, o tópico seguinte buscará identificar os usos e as táticas das normalistas diante desse dispositivo escolar, primando pelas lembranças das situações vividas no Curso Normal.

CADERNETA ESCOLAR: DE FERRAMENTA DE CONTROLE E PENALIDADES A INSTRUMENTO DE EXALTAÇÃO E BOAS RECORDAÇÕES

Conforme dona Vanda (Vanda Milioli. Entrevista, 11 fev. 2015), no ato de matrícula, as alunas recebiam orientações sobre o uniforme, o horário, os cursos para catequistas, entre outras regras que a escola queria que as alunas seguissem. Assim, a caderneta se materializa como um modelo concreto de como notas, sistema de avaliação, uso do uniforme e a disciplina escolar eram informados, diariamente inspecionados e registrados pela instituição.

Além de cumprir com a função de controle, a caderneta também servia como um documento, tanto de registro da vida diária/mensal das alunas, quanto de identificação e comprovação de matrícula e frequência das mesmas no educandário, tal como atesta a Figura 7, a seguir:

Fonte: Acervo particular da autora.

Figura 7 Caderneta Escolar (1964) - Comunicação da Direção atestando frequência da aluna Vanda Milioli no educandário. 

Quanto ao usuário, dona Aleida observa que era um dispositivo “do aluno para com a escola. Em nenhum momento enquanto professora, recordo-me de utilizar a caderneta dos alunos”12. Ou seja, cabia às alunas administrá-la com zelo, apresentando-a ao pai ou responsável, sempre que necessário. Nessa direção, a fala de dona Vanda complementa: “qualquer promoção que a escola fazia tinha que levar a caderneta. Era um documento. Até na festa junina tinha que apresentar” (Vanda Milioli. Entrevista. 11 fev. 2015). Assim, as normalistas, enquanto ‘consumidoras’ de um produto confeccionado para vigiar seus comportamentos, adquiriam também o “direito de efetuar operações sobre este fundo, sem serem suas proprietárias” (Adaptação feita pela autora). (CERTEAU, 1998, p. 96). De tal modo, competia às mesmas encontrar saídas para contornar as diversas situações enfrentadas durante seu manuseio.

Apesar de dona Aleida não recordar o uso da caderneta em seu exercício como docente no Curso Normal, pode-se identificar por meio das memórias da normalista Nair Milioli que, ao menos nos primeiros anos de funcionamento do Curso, a caderneta era observada pelas professoras, essencialmente, quando de comunicações sobre as faltas realizadas pelas alunas no decorrer da disciplina.

Elas exigiam em tudo. Quando agente tirava uma nota baixa, elas pediam com educação para melhorar. Só que eu tive uma expulsão. Foi o seguinte: a Irmã Fernanda era de artes, ela pedia para fazer tricô, desenho, crochê, bordado nos lençol, mosaico com pedaços de azulejos. Ai a BelizeldaGuglielmi, a Nice Napoleão e eu, fugimos na última aula, porque eu tinha que colocar as lições da parte da noite em dia e no outro dia eu tinha que dar aula. Eu almoçava no Rio Maina e ia direto pra escola. [...] Nós fugimos para fazer o plano de aula. [...]No outro dia foi a carteirinha pro pai assinar, mas o meu pai nunca se importou se eu estava ou não, ele só pagava a mensalidade e o que precisava. Chegou na aula de canto tinha que entregar a carteirinha e ela (Irmã Avelina) viu que eu não tinha assinado. Ela perguntou pra Nice: o que teu pai falo? A que eu era arteira. E você Belizelda? A para eu criar juízo. Quando chegou minha vez, ela perguntou por que meu pai não tinha assinado. Eu disse que nem tinha mostrado, porque eu uma moça de 24 anos, professora, ter que pedir pro pai assinar um bilhete porque eu sai uma aula antes para fazer um trabalho da outra professora que não tinha tempo, era feio né. [...] respondi que infelizmente quando eu cheguei meu pai já havia saído, houve um desencontro e eu tive pouco interesse. Ela respondeu: ‘Nair, estas 15 dias suspensa da minha aula’. Como ela dava duas aulas de anatomia e uma de canto por semana, eu perdia quatro aulas de anatomia e duas de canto. (Nair Milioli (in memoriam). Entrevista. 22 mar. 2011).

Nas lembranças de dona Nair, a tentativa de driblar o estabelecido pela instituição negligenciando a assinatura do pai era o uso da criatividade, a ‘arte de fazer’ com a caderneta, na busca de sua afirmação enquanto mulher e aluna independente. Ensaio este que findou por reafirmar o ‘poder’ das normas diante dos comportamentos, resultando em 15 dias de suspensão, novamente, registrados na caderneta.

Enquanto comprovante de frequência, dona Vera exemplifica que as mesmas eram dadas logo no início das aulas, na porta de entrada, sendo seu controle efetuado juntamente com o uniforme. Em suas lembranças, a inventividade se encontra presente no momento em que procura burlar os bons costumes fixados para o uso do uniforme.

Havia uma caderneta que era carimbada por uma irmã que nos aguardava na entrada. Ela já aproveitava e olhava também o uniforme. Quando ela achava que a saia estava muito curta, mandava encostar-se à parede e só puxava o alinhavo para a saia descer. No outro dia, eu costurava de novo (Vera Maria Silvestri. Entrevista. 11 ago. 2011)..

Folheando sua caderneta, dona Vanda observa seu montante de faltas no mês de setembro e recorda:

Eu não gostava do dia sete de setembro. Não gostava de desfilar. Era a mais alta, a primeira da fila. Ao contrário de pequenos ensaios esporádicos, nessa época, as irmãs costumavam reservar alguns dias exclusivamente para ensaiar a marcha. Nesses dias, acabava me escondendo no banheiro para não ensaiar. Algumas vezes, já nem ia para a escola. (Vanda Milioli. Entrevista. 11 fev. 2015).

Nota-se aqui que, apesar de dona Vanda ‘fabricar’ decisões que a fizeram escapar dos ensaios pátrios, as cadernetas e seus registros findam por confirmar que sua ‘arte de fazer’ não fora suficiente para evitar as punições previstas, pois lá estavam as anotações, as faltas. Porém, não apenas nas aulas era cobrada a caderneta: “[a] missa aos domingos. A caderneta e o uniforme de gala. Mas eu não precisava carimbar. Como era de outra comunidade, eu tinha que frequentar a missa lá no meu bairro e trazer um comprovante” (idem). A fala de dona Vanda Milioli explica o porquê suas cadernetas não apresentavam frequência os domingos, apesar dessa obrigatoriedade.

Ressalta-se, que a primeira recordação das normalistas entrevistadas fazia jus ao uso da caderneta como controle de frequência às aulas ou mesmo às missas, afirmando não apenas seu uso diário, mas a importância dedicada pelas P.I.D.P. ao uso desse dispositivo, tendo em vista que, junto com a garantia das alunas na escola, caminhava o cumprimento das rotinas pedagógicas destinadas à formação de uma boa professora. Nesse sentido, o próprio regime de notas presente na caderneta afirma: “A falta de média mensal, por não comparecimento, qualquer seja o motivo, inclusive doença, equivale à nota ZERO”.

Quanto à atualização das notas. Dona Aleida lembra que havia um dia específico para deixar a caderneta na secretaria. “Quem atualizava as notas na minha época era a secretária e profa. de matemática, a Irmã Anastácia” (Aleida Maria GhisiOrtigossa. Entrevista. 12 fev. 2015). No entanto, a normalista não recorda sobre a necessidade de a caderneta ser assinada como forma de comprovar que as notas haviam sido verificadas pelos pais. Com relação ainda a assinatura dos pais é possível inferir que muitas das normalistas deixavam de mostrar, ou mesmo tentavam burlar essa normativa, tendo em vista que grande parte delas, ao chegar ao Curso Normal, já haviam concluído o Curso Normal Regional, constituído família, ou já trabalhavam como educadoras nas escolas isoladas e reunidas da cidade, tais como dona Nair Milioli e dona Aleida.

A caderneta servia também como meio de comunicação entre escola e pais, pois nela eram mantidos os pedidos de dispensa das alunas por parte de seus responsáveis, justificativa de faltas, entre outros recados, além dos registros de advertência e suspensão dedicados como punição às alunas mediante a quebra das regras institucionais. Nesse movimento, observa-se que ela atuava também como uma estratégia de conservação dos valores disseminados pela escola no interior da família, já que toda transgressão ou falta era comunicada aos pais, que deveriam prestar contas à escola sobre as atitudes das filhas.

Das comunicações emitidas pelas irmãs aos pais, os avisos de advertência e suspensão também ganham destaque no rememorar das normalistas. As suspensões de quinze dias de dona Nair, por não assinar a caderneta e de três dias de dona Vanda, por não ter comparecido ao desfile de sete de setembro no ano de 1965, são exemplos da função exercida por esse instrumento. Eram as faltas das normalistas sendo afirmadas pela caderneta por meio de seus registros. Registro esse que permanecia como uma ‘marca’ do negligenciar das condutas intelectuais e morais no ano letivo, de modo a lembrar da necessidade de as normas serem cumpridas tal como orientado.

Abaixo, a Figura 8 demonstra a anotação recebida por dona Vanda por desacatar a convocação da instituição.

Fonte: Acervo particular da autora.

Figura 8 Caderneta Escolar (1965) - Comunicado de suspensão. 

Destarte, não eram somente as faltas e punições das alunas que eram registradas na caderneta. Suas páginas serviam também para elogios e premiações por parte da direção para as alunas que merecessem destaque, tal como ressalta dona Aleida:

Lembro-me de uma anotação no final do terceiro normal, no último mês, onde eram realizadas as provas finais. A anotação constava de elogios da diretora com relação a minha avaliação, pois havia ficado em primeiro lugar da turma e era motivo de orgulho para o colégio. (Aleida Maria G. Ortigossa. Entrevista. 12 fev. 2015).

Ainda sobre a anotação, conforme dona Aleida, esta lhe rendeu a possibilidade de viajar a São Paulo com a turma ao final do ano. Pois, como sua mãe era bastante pobre, ao tomar nota da comunicação e homenagem à filha, foi até o colégio para pedir auxílio à direção para que ela pudesse estar com as colegas, sendo seu pedido atendido (idem). O exemplo descrito pela normalista demonstra que as táticas não eram tomadas apenas diante dos preceitos da escola, mas usadas como ‘arte de fazer’ para com a família, no sentido obter ganhos diante do cumprimento das regras estabelecidas. Não era apenas a estratégia que as normalistas inventavam enganar, mas sua própria efetividade.

Transcendendo às prescrições destinadas ao uso do dispositivo escolar em questão, foi possível localizar, na caderneta do ano de 1965, mensagens e troca de gentilezas que foram efetuadas como legitimação de mais uma etapa concluída de estudos, além da anotação de medidas corporais para a confecção de um vestido, evidenciando, que, para além do determinado, as normalistas encontravam outros jeitos de fazer com esse objeto.

Segundo dona Vanda, as anotações eram realizadas ao final do ano letivo, período em que as irmãs não recolhiam mais a caderneta, tal qual cita: “Minha turma sempre fazia uma festa de encerramento. Nessa semana, se passava a caderneta para assinar, pois as freiras não pegavam mais” (Vanda Milioli. Entrevista. 11 fev. 2015). Nas mensagens deixadas, os acontecimentos e vivências do ano letivo ganham forma entre poemas, votos de felicidades e até mesmo brincadeiras, tal como uma anotação relembrando o quanto a normalista desgostava dos desfiles do dia sete de setembro.

As mensagens de carinho e assinaturas registradas pelas amigas de dona Vanda na caderneta podem ser observadas na Figura 9.

Fonte: Acervo particular da autora.

Figura 9 Caderneta Escolar (1965) - mensagens deixadas pelas normalistas 

Dessa vez, como o olhar panóptico das P.I.D.P. deixava de exercer poder sobre as cadernetas, as normalistas reinventavam os propósitos do objeto, que, de instrumento de vigilância, passava a atuar como uma ‘caixinha de memórias’ para as experiências vivenciadas na série que se findava. Eram as ‘consumidoras’ alterando os usos de seu instrumento de consumo. Um instrumento que modificavam, sem deixa-lo em sua essência, todavia, organizando-o em um novo registro (CERTEAU, 1998).

Por fim, aprecia-se que as memórias das normalistas demonstram que, apesar das táticas utilizadas, a caderneta enquanto estratégia de manutenção dos “bons costumes” e da “boa educação” estabelecidos pela disciplinar, contribuía efetivamente com o objetivo a ela dedicado. Pouco ou quase nada escapava a seus registros.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Compreender o significado das cadernetas escolares como prescrição e seus (des)usos pelas normalistas da Escola Normal Madre Teresa Michel na década de 1960, traduziu-se, nesse ensaio, em entender como esse dispositivo escolar, enquanto estratégia utilizada pela direção institucional para manutenção da disciplina e efetivação de uma determinada pedagogia foi recebido e significado pelas educandas durante suas práticas escolares. Manuseio este cerceado por táticas ou “artes de fazer”, adotadas pela inventividade das alunas, como forma de manobrar as teias de “vigilância” nas quais se mantinham articuladas.

Semelhantes aos cadernos escolares encontrados nos liceus portugueses do final do século XIX (e início do século XX), as cadernetas escolares adentraram na Escola Normal Madre Teresa Michel como uma estratégia panóptica de autoridade diante dos comportamentos das normalistas. Assim, identificar as alunas, nomear os deveres e faltas graves, controlar a frequência, demonstrar o desempenho, fazer valer o horário das aulas, bem como registrar as falhas cometidas no dia-a-dia escolar evidenciam-se como seus principais propósitos. Tudo isso, não apenas mantido pelas P.I.D.P., mas também supervisionado pelos pais, que, indiretamente, tornavam-se os responsáveis pela manutenção da disciplina na escola.

Enquanto representação, funcionavam para as alunas como um dispositivo de controle, principalmente das faltas e notas. No entanto, também serviam como um documento de afirmação do domínio da cultura escolar, diante da vida acadêmica, social e familiar das alunas.

Para driblar as prescrições estabelecidas, a criatividade estava presente no manuseio e “fazeres com” a caderneta. Para tal, táticas ou “artes de fazer” eram engendradas, num movimento astucioso de engano e resistência diante das forças articuladas por esse dispositivo. Nesse sentido, faltas às aulas, fixar novamente a costura do uniforme, não mostrar a caderneta aos pais - estas eram tentativas utilizadas pelas normalistas para tentar afirmar seu “lugar” frente à estratégia estabelecida. Observa-se, igualmente que, à primeira oportunidade, as educandas modificavam, reorganizavam, ressignificavam a caderneta escolar, organizando-a em novos registros.

No entanto, por mais astuciosas que fossem as decisões tomadas, nada ou muito pouco escapava a seus registros. A caderneta, enquanto estratégia de controle do tempo, espaço e comportamento efetivava seu verdadeiro objetivo: a manutenção dos bons costumes e da boa educação dedicada à suas normalistas. Sendo que, em suas laudas, uma a uma, tecia a história das alunas, demonstrando, em suas notas, a capacidade intelectual e moral das professorandas que se mantinham sob os cuidados e formação da Escola Normal Madre Teresa Michel.

1Para Chartier (2002), as representações do mundo social, embora aspirem à universalidade, são sempre determinadas pelos interesses dos grupos que as forjam, nunca sendo discursos neutros.

2Termo utilizado por Escolano Benito (2012) para denominar os objetos que constituem a materialidade escolar e que, quando tomados como fonte, informam sobre sua cultura.

4Estudo realizado pela autora entre os anos de 2009 a 2001, que resultou na dissertação de mestrado intitulada "FINALMENTE... TEMOS UMA ESCOLA NORMAL! Saberes e Práticas na Formação de Normalistas na Escola Normal Madre Teresa Michel (1958-1973)".

5Por meio da avaliação dos registros de formatura é possível observar a presença de normalistas do sexo masculino a partir da turma de formandos/as de 1964, com a representação de um estudante. Nota-se a participação de normalistas homens também entre os(as) formandos(as) dos anos de 1966 (três), 1972 (dois) e 1973 (um), estimando-se que o número de alunos homens que chegaram a concluir o Curso Normal não tenha ultrapassado sete.

6As bases de dados escolhidas para consulta foram: Biblioteca Digital de Teses e Dissertações - BDTD; Banco de Teses da Capes; Biblioteca Eletrônica SciELo; Base de produções do Programa de Pós-Graduação em Educação da UDESC; Base de produções do Programa de Pós-Graduação em Educação da UNESC e o Banco de Teses e Dissertações da UFSC. Além desses bancos, foram levantadas as publicações em três periódicos: Revista Linhas (UDESC); Revista da Sociedade Brasileira de História da Educação (RBHE) e Revista Perspectivas (UFSC).

7Com relação às fontes de informação tomadas como referência para o entendimento da cultura escolar, Justino Magalhães (2010) afirma que elas respeitam três áreas: a) a materialidade - que pode ser explicitada por meio da arquitetura, dos mobiliários e dos uniformes; b) a organização e a ação pedagógico-didática - traduzidas, grosso modo, em normas e metodologias de ensino; c) vivências e memórias - registradas, principalmente, por meio da história oral temática ou de vida.

8A história do Ginásio e Escola Normal Madre Teresa Michel pode ser lida em sua íntegra nas laudas da Dissertação "FINALMENTE... TEMOS UMA ESCOLA NORMAL!:Saberes e Práticas na Formação de Normalistas na Escola Normal Madre Teresa Michel (1958-1973)".

9Observa-se que dona Zurene Póvoas Carneiro, além de ginasiana da primeira turma regida pelo colégio, ingressou no Curso Normal em 1960, diplomando-se no ano de 1962.

10O Curso Normal Madre Teresa Michel foi extinto com a Lei de Diretrizes de Base da Educação Nacional de nº 5.692/71, tendo formado sua última turma no ano de 1973.

11Lei de Diretrizes de Base da Educação Nacional vigente à época do uso das cadernetas sob as lentes deste estudo. Vale frisar que, apesar da citação da respectiva lei nas cadernetas, a obrigatoriedade das mesmas não é expressa no respectivo documento.

12Observa-se que dona Aleida Maria Ghisi Ortigossa, além de professoranda formada em 1961, lecionou no Curso Normal Madre Teresa Michel no período de 1962-1967.

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