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Revista Teias

versão impressa ISSN 1518-5370versão On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.20 no.56 Rio de Janeiro jan./mar 2019  Epub 19-Dez-2019

https://doi.org/10.12957/teias.2019.39611 

Universidade e Democracia

A IMPORTÂNCIA DO PENSAMENTO E DOS FAZIMENTOS DO INTELECTUAL DARCY RIBEIRO

THE IMPORTANCE OF THE THOUGHT AND ACTIONS OF DARCY RIBEIRO

EL PENSAMIENTO Y LAS ACCIONES DEL INTELECTUAL DARCY RIBEIRO

Silvio Claudio Souza(*) 

Carla Zottolo Villanova(**) 

(*)Doutor em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH/UERJ). Mestre em Educação (PROPed/UERJ). Professor de Filosofia - Secretaria de Educação do Estado do Rio de Janeiro.

(**)Doutora em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH/UERJ). Mestre em Educação (PROPed/UERJ). Orientadora Educacional - Secretaria de Educação/Duque de Caxias - RJ.


RESUMO

Este artigo analisa o pensamento-ação de Darcy Ribeiro, ressaltando a importância de seu pensamento e sinalizando como seus fazimentos e sua intensa participação política no campo governamental influenciaram a educação brasileira, destacadamente a universidade. Pretende-se demonstrar como se naturalizam os fatos históricos, relativizando as pretensões teóricas do liberalismo e assinalando as tendências culturais e econômicas predatórias do processo de globalização econômica, estabelecendo um contraponto ao ideário de Darcy, inspirado na diversificação dos povos e no reconhecimento do que chamou de “processo civilizatório”.

Palavras-chave: Darcy Ribeiro; Educação; Emancipação

ABSTRACT

This article analyzes the path made by Darcy Ribeiro and how his thoughts and acts influenced the brazilian education, mostly the university. The study also demonstrates how the ideology gets to naturalize historic facts and strongly criticizes the theory claims of the liberalism and also points to the culturally and economically predatory trends of the present globalization process. This work takes about the importance of the thought and actions of Darcy Ribeiro, by understanding that diversification of people and their recognition, which he called “civilizing process”.

Keywords: Darcy Ribeiro; Education; Emancipation

RESUMEN

Este estudio investiga el sentido de la universidad en el pensamiento de uno de los pensadores más proficuos de Brasil y de América Latina, Darcy Ribeiro. Como su pensamiento contribuió para el proceso de construcción de la educacion brasilena y la universidad. Tambiém, hacemos un análisis de la sociedad liberal en su versión más actual, o sea, entendida como un conjunto de consumidores. El presente trabajo resalta, también, la importancia del pensamiento y de las acciones del intelectual Darcy Ribeiro. Se abordan sus hechos educacionales y la diversificación de los pueblos a lo qué Darcy Ribeiro llamó “proceso civilizatorio”.

Palabras clave: Darcy Ribeiro; Educación; Emancipación

Para iniciar essa reflexão é importante relembrar o discurso de Darcy Ribeiro na ocasião em que recebeu o Título de Doutor Honoris Causa pela Sorbonne (Universidade de Paris) em 1978, no sentido de desvelar sua dimensão intelectual:

Outro fracasso meu, nosso, que me dói especialmente rememorar neste augusto recinto da Sorbonne - mãe da universidade - foi o de Reitor da Universidade de Brasília. Tentamos lá, conjuntamente com o melhor da intelectualidade brasileira, e tentamos em vão, dar à nova capital do Brasil a universidade necessária ao desenvolvimento nacional autônomo. Ousamos ali - e esta foi a maior façanha de minha geração - repensar radicalmente a universidade, como instituição central da civilização, com o objetivo de refazê-la desde as bases. Refazê-la para que, ao invés de ser mais uma universidade-fruto, reflexo do desenvolvimento social e cultural prévio da sociedade que cria e mantém, fosse uma universidade-semente, destinada a cumprir a função inversa, de promover o desenvolvimento. Nosso propósito era plantar na cidade-capital a sede da consciência-crítica brasileira que para lá convocasse todo o saber humano e todo o élan revolucionário, para a única missão que realmente importa ao intelectual dos povos que fracassaram na história: a de expressar suas potencialidades por uma civilização própria (RIBEIRO, 1997, p. 18).

Somente um homem como Darcy poderia agradecer uma honraria relembrando seus fracassos. Polêmico, ousado e provocador, sabia bem como eram repletos de utopias seus projetos e fazimentos1, assim como, o retorno social que os mesmos poderiam alcançar, principalmente, em direção às camadas menos favorecidas. Nesse sentido, entendia seus fracassos como vitórias, pois, como ele mesmo dizia, “prefiro fracassar a estar no lugar daqueles que me venceram” (RIBEIRO, 2009, p. 42).

Podemos tentar compreender Darcy como homem-síntese de sua geração que, em um momento histórico fecundo, tomou como base de suas reflexões, situações concretas para torná-las pensadas/teorizadas. Assim, acreditava que a verdade não estaria dada em nenhum texto, mas no contexto da vida por meio da observação direta e da reconstituição histórica:

Os clássicos - e, com eles, todos os que teorizaram fecundamente com base em pesquisas científicas e históricas - nos provém no máximo orientações, diretrizes, a partir das quais temos é de abrir os olhos para olhar e ver e rever a experiência vivida dos povos, como única fonte de saber referente à sua vida e ao seu destino (RIBEIRO, 2009, p. 78).

Como etnólogo, conviveu com os indígenas por aproximadamente dez anos, buscando como base de suas reflexões sobre a sociedade brasileira, compreender o que é de mais original e genuíno para pensarmos o Brasil, essa “nação-morena”. Como educador analisou a educação brasileira e vislumbrou o que ela poderia vir a ser. Viu além do seu próprio tempo e esteve no palco dos debates mais criativos e acirrados sobre a temática educacional no país e na América Latina.

A partir desta reflexão inicial, podemos perceber o quanto estava engajado nas lutas populares e na construção da identidade nacional de uma nova nação brasileira. Era um pensador polêmico que estava sempre em transformação, como ele mesmo assume em sua obra Confissões:

Sou como as cobras. Não por ser serpentário ou venenoso, mas porque elas mudam de pele. Muitas vezes na vida mudei de pele. A primeira é a do filho da professora primária. Outra pele minha, saudosa, é a do etnólogo, essa minha vida com os índios do pantanal e da Amazônia, aprendendo a ver o mundo com seus olhos. Uma terceira pele que encarnei e encarno ainda é a de educador. Essa tem sido de fato a minha ocupação principal. Pele que ostentei e ostento é a de político. Sempre fui, em toda a minha vida adulta, um cidadão consciente, capaz de emocionar-se pelos problemas humanos. Minha luta como político é contra a desigualdade social em meu país. A verdade é que guardo no fundo do peito a esperança de ter tempo para fazer, no futuro, mais do que fiz no passado (RIBEIRO, 1997, p. 544).

As gerações recentes, muitas vezes, não reconhecem os nomes daqueles que, com ideais utópicos e coletivos pensaram e tentaram empreender ações com vistas à transformação do país. A memória curta é a moeda de aposta da grande mídia, um simulacro do tecido informativo, que de fato estrutura a ação do capital e que, aparentemente em nome do "novo", oculta intencionalmente as lições do nosso passado/presente histórico, impossibilitando processos que visem à construção de um país plural e democrático, como nos indica Pierre Bourdieu:

As notícias de variedades sempre foram o alimento predileto da imprensa: o sangue e o sexo, o drama e o crime sempre fizeram vender e o reino da audiência alçar à primeira página. Elas consistem nessa espécie rudimentar da informação que é muito importante porque interessa a todo mundo sem ter conseqüências e porque ocupa tempo, tempo que poderia ser empregado para dizer outra coisa. Ora, o tempo é algo extremamente raro na televisão. E se minutos tão preciosos são empregados para dizer coisas tão fúteis, é que essas coisas tão fúteis são de fato muito importantes na medida que ocultam coisas preciosas. Ora, preenchendo esse tempo raro com o vazio, com nada ou quase nada, afastam-se as informações pertinentes que deveria possuir o cidadão para exercer seus direitos democráticos (BOURDIEU, 1997, p. 24).

Nesse sentido, o “ocultamento intencional” é exercido de forma exponencial, principalmente, a partir da década de 1990 marcada pelo entretenimento obsessivo, pelo pragmatismo do presente e pelo desprezo aos grandes ideais de transformação. Esse culto à "memória curta" é defendido por alguns setores dominantes da sociedade que preferem apostar no culto às celebridades, nas imagens de violência e de apelo sexual, pois o retorno comercial é mais imediato e lucrativo.

Tudo indica que existe um objetivo ideológico no ocultamento dessas memórias, produzindo o que poderíamos chamar de “silenciamentos de memória”, necessariamente históricos e contingenciais. Darcy Ribeiro é um dos exemplos das muitas personalidades brasileiras esquecidas “intencionalmente” pelos grupos hegemônicos de corte conservador.

A seguir buscaremos compreender como Darcy Ribeiro se forjou ao longo do tempo, construindo tantas facetas (antropólogo, político, educador, professor, ministro, senador etc). Logo após articularemos a sua trajetória com seu ideário de Universidade e Democracia.

A CONTEXTUALIZAÇÃO DO PENSAMENTO-AÇÃO DE DARCY RIBEIRO.

Pertenço à primeira geração de cientistas sociais brasileiros profissionalizados, e com formação universitária específica. Meus mestres foram alguns dos pais fundadores das ciências sociais modernas no Brasil. Darcy Ribeiro (2009, p. 32)

Neste momento, investigaremos o contexto histórico (1930-70) e suas marcas na formação intelectual de Darcy Ribeiro. É importante frisar que entendemos o processo histórico marcado por continuidades/descontinuidades, rupturas/permanências. Assim, feita a ressalva, procederemos à análise de forma “linear” somente para facilitar a compreensão dos contextos em que Darcy Ribeiro estava inserido e nos quais ele foi afetado diretamente.

Para pensarmos o tema proposto em sua processualidade histórica é necessário considerar o conjunto de contingências que o impactaram a fim de evitar o anacronismo em nossas análises. Sendo assim, cabe destacar que Darcy exerceu seu pensamento-ação ousando expressar o melhor da cultura de um povo sem desconhecer suas enormes dificuldades sociais.

Darcy Ribeiro, filho de Reginaldo Ribeiro dos Santos e de Josefina Augusta da Silveira, nasceu em Montes Claros/MG no dia 26 de outubro de 1922, isto é, no ano da Semana de Arte Moderna (ou Semana de 22), um evento extremante contraditório na época, tornando-se um movimento cultural de ruptura. Uma crítica ao servilismo lusitano de expressão e uma incitação ousada à experimentação de formas brasileiras de linguagem fundada nas falas regionais e populares e, principalmente, um esforço deliberado para a recuperação das tradições indígenas e negras visando à construção de uma arte/expressão genuinamente nacional.

O ambiente dos anos 1920/1930 foi extremamente tensionado e marcado pela luta por espaços de expressão em vários campos como nas artes, na literatura e na educação. A causa educacional brasileira, naquele momento, agrega ideários de diferentes ordens. Os intelectuais que estavam à frente das reformas implementadas nas décadas de 1920 e 1930, como Fernando de Azevedo (1894-1974) e Anísio Teixeira (1900-1971) faziam a crítica ao modelo educacional existente, definido por sua seletividade social e pelo privilégio conferido ao enfoque humanista e à formação profissional dissociada do ensino comum.

Esses educadores buscavam elementos, de ordem material e cultural, para redefinir a formação docente, pois se partia do pressuposto de que eram necessários professores preparados intelectualmente e espaços escolares que viabilizassem as novas propostas metodológicas de acordo com os princípios da educação renovada2.

O período da década de 1930 foi importante para a criação e organização das universidades e para o enfraquecimento do bacharelismo, que começa a perder espaço para profissionais de outras áreas, os chamados tecnocratas. Nessa trajetória, a dispersão geográfica das instituições de ensino superior e a tardia e parcial reunião em universidades, dificultou uma associação de outra qualidade em torno da causa da educação superior que objetivasse, dentre outras coisas, a universidade aberta a todos, a diminuição das taxas de exames e de matrícula, o exercício das liberdades de pensamento e de cátedra e o rompimento da dependência da universidade3 diante do Estado.

Durante o primeiro governo Vargas (1930-45) é elaborado um projeto de sistema educacional para o Brasil. O que se observa é que os educadores pioneiros tiveram papel relevante na defesa de um sistema nacional de educação, e o pós-1930 acabou sendo propício às orientações para a redefinição dos objetivos da educação no país. Entretanto, os renovadores começaram a perder força com o autoritarismo do Estado Novo (1937-45).

É neste cenário de embates que Darcy Ribeiro está inserido e inicia a sua vida acadêmica (em 1939) na Faculdade de Medicina (Belo Horizonte-MG). Entretanto, sem vocação para a carreira médica abandona a faculdade em 1943 e se volta a outros interesses intelectuais que forjam a sua efetiva formação intelectual:

Chega a Minas Gerais um cientista, Donald Pierson, norte-americano, que me convida e me dá uma bolsa para estudar na Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Em São Paulo, eu iria descobrir várias coisas; em primeiro lugar, iria descobrir que a erudição mineira é uma enfermidade. E uma enfermidade da inteligência. É a inteligência que se come a si mesma, que se frui. Quer dizer, um mineiro lê os livros todos, sobre todas as coisas. Como os livros todos são inesgotáveis, a bibliografia de qualquer assunto é inesgotável, o mineiro pode continuar lendo a vida inteira. Então, ele sabe muito, mas sabe para nada. Esse saber infecundo, esse saber de fruição é erudição. Então, em São Paulo, eu vim a aprender que não era simular ler a Suma de São Tomás de Aquino, que não era fazer de conta que conhecia Kant, que não era fazer de conta que conhecia Marx, mas que era tentar aprender alguns instrumentos para fazer investigação (RIBEIRO, 1978, p. 41).

Conforme atestam vários estudos4, entre a segunda metade de 1940 e a primeira metade de 1950, mudanças significativas, no plano da organização político-econômica do Brasil e do mundo ocidental, se fazem notar, com rebatimentos importantes em vários campos do saber. Devido a II Grande Guerra Mundial (1939-1945), diversos intelectuais europeus e alguns estadunidenses, começam a se deslocar para outras partes do mundo, e a América Latina passa a ser um “refúgio tranqüilo”.

Em 1946, Darcy gradua-se em Antropologia (com especialização em Etnologia) pela Escola Livre de Sociologia e Política de São Paulo, e se vê numa encruzilhada: qual é o caminho a seguir? Perante várias possibilidades e portas, desde a mais conservadora até a mais inovadora, foi exatamente a opção pelos índios a que mais o atraiu. Assim, dedicou seus primeiros anos de vida profissional aos estudos dos índios brasileiros. Com essa escolha, em 1947, ingressou no Serviço de Proteção ao Índio (SPI), travando contato com o Marechal Cândido Mariano Rondon, então presidente do Conselho Nacional de Proteção ao Índio. Nos anos seguintes, seus estudos etnográficos levaram-no a viver longos períodos entre comunidades indígenas.

Após a eleição de Juscelino Kubitschek, para presidente em 1955, Darcy Ribeiro foi convidado a colaborar na elaboração das diretrizes para o setor educacional do novo governo. Na época deixou a direção da seção de estudos do SPI e passou a integrar o corpo docente da Faculdade Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil.

Paralelamente, à Campanha de Defesa da Escola Pública, desencadeada no final da década de 1950, foi lançado o Manifesto de 1959, que não mirou especificamente questões didático-pedagógicas, pois seu foco central foi à questão geral sobre as políticas educacionais. Assim, conclamou o Estado a assumir seus deveres democráticos de mantenedor do sistema escolar e construtor da identidade nacional.

Um dos grupos em Defesa da Escola Pública girou em torno de Anísio Teixeira, e inspirava-se na filosofia liberal pragmatista de John Dewey. Esse movimento de orientação escolanovista influenciou diretamente Darcy Ribeiro e o transformou em um dos seus herdeiros mais ilustres. Cabe destacar, a afinidade entre Anísio e Darcy pelos ideais renovadores: “Darcy deixa em suas memórias e correspondências as confissões de afinidade com o educador e filósofo Anísio Teixeira, o programa de democratização educativa e os ideais da Escola Nova” (BOMENY, 2001, p. 11).

Darcy e Anísio, nas décadas de 1950-60, tiveram a oportunidade de promover suas ideias por meio de publicações de livros, textos em órgãos de imprensa e cargos públicos, onde fizeram reformas educacionais de grande repercussão. Isto foi possível devido à demanda por participação política e social que abriu espaços para se repensar o sistema de educação nacional. Neste contexto, a participação política via educação parecia ser um caminho promissor.

Em 1959, por decreto presidencial, Darcy foi encarregado de planejar a montagem da Universidade de Brasília (UnB), expressão maior da universidade necessária, pensada para nossa sociedade que se pretendia afirmar sobre bases democráticas:

A questão agora para o Brasil é que nós nos tornemos capazes de um projeto deixando de sermos um povo para os outros para sermos um povo para nós mesmos. Isto importa em renovações muito profundas em toda a estrutura. Isto aplicado na universidade importa em universidade de um novo tipo. Uma universidade com alto sentido de responsabilidade social (RIBEIRO, 2007, p. 45).

Em 1961, foi nomeado seu primeiro reitor. Em agosto de 1962 assumiu o Ministério da Educação e Cultura, deixando a reitoria da UnB, onde foi substituído por Anísio Teixeira. Em janeiro/1963, com o retorno do país ao regime presidencialista, deixou o Ministério para assumir a Chefia do Gabinete Civil do Presidente João Goulart. Ao coordenar as reformas estruturais com uma plataforma de teor socialista, incomodou setores conservadores da sociedade brasileira, que pressentiram uma ameaça à “ordem” nacional. Não podemos esquecer que nesse início dos anos 1960 o Brasil vivencia contradições entre diferentes correntes políticas e o seu modelo econômico.

O Golpe Civil-Militar de 1964 opta pelo aproveitamento do capital estrangeiro e nessa conjuntura, os intelectuais perdem o espaço de participação e crítica, e uma ditadura violenta se instala no Brasil. Diversas medidas de exceção acentuam o caráter autoritário do governo: Lei de Segurança Nacional, Serviço Nacional de Informações, prisões políticas, cassação dos direitos políticos, exílio etc. A partir de 1968 a repressão recrudesce, com torturas e mortes, além de “desaparecimentos” e “suicídios”, tornando arriscada qualquer oposição ao regime.

Diante desse cenário obscuro, só resta para Darcy Ribeiro o exílio. Inicia-se uma verdadeira peregrinação em vários países latino-americanos. Torna-se professor de Antropologia na Universidade Oriental(Uruguai), assessor dos presidentes Salvador Allende (Chile) e Velasco Alvarado (Peru) e produz uma série de livros, dentre eles: O processo civilizatório, As Américas e a civilização, O dilema da América Latina, Os brasileiros − Teoria do Brasil e Os índios e a civilização.

Esse tempo “forçado” proporcionou a Darcy Ribeiro “descobrir-se latino-americano” e transitar pelo continente americano desenvolvendo vários projetos de reformas universitárias. A questão da Universidade assume, sem dúvida, um protagonismo nos fazimentos de Darcy. Diante desse longo percurso e amadurecimento no exílio, volta ao Brasil em 1976, com sua imagem de intelectual militante fortalecida. Ao chegar mostra-se cada vez mais empenhado em modificar a situação política do país e de colocar o conhecimento científico a serviço da transformação social.

Cabe destacar essa vontade e disposição para a transformação, sinalizada pelo intelectual Eric Nepomuceno no prefácio do livro Testemunho (2009, p. 7): “Dizer que foi um homem agitado é fazer pouco da verdade. Sempre que me lembro de Darcy - e lembro sempre - não escapo da pergunta mais óbvia e elementar: como foi possível fazer tanta coisa num tempo só, o tempo que lhe foi dado para viver?”.

O POTENCIAL TRANSFORMADOR DA UNIVERSIDADE NECESSÁRIA.

Em lugar de nos organizarmos, de nos estruturarmos e crescermos como um povo para nós mesmos, fomos estruturados como um povo para o outro. Veja só como o Brasil nasceu - foi com alguma intenção de se criar um país, uma nação, uma sociedade? A intenção foi de produzir açúcar, ou arrancar ouro, e surgiu como subproduto o Brasil. O primeiro projeto não foi um povo para si, era de gente, índios, brancos, negros gastados como carvão humano, e surgiu uma sociedade. Um dia esta sociedade se tornou autônoma, assumiu o comando do seu próprio destino, assumiu a independência. Mas independência para quê? Para sair do domínio de Portugal e cair no domínio da Inglaterra, e, mais tarde, sob a dominação norte-americana (RIBEIRO, 2007, p. 45).

A epígrafe acima se revela significativa no que tange ao pensamento-ação de Darcy Ribeiro sobre a realidade brasileira, destacadamente no que se refere à edificação do país sobre os pilares da “dependência consentida” pelas elites dirigentes. Uma relação que ocasiona o atraso para muitos e a “modernização” para poucos. Como alternativa a esse processo de subordinação, que vem se perpetuando ao longo de séculos, ele propõe mudanças profundas na estrutura social brasileira. Um dos caminhos possíveis para uma transformação em bases autônomas seria a renovação da Universidade como um lócus vital na produção de conhecimentos/saberes e, também, como um pólo irradiador de cultura nacional.

Por meio de seu questionamento a respeito das condições que a Universidade possui para converter-se em um instrumento de mudança intencional de nossas sociedades e da constatação de que as classes dominantes farão todo o possível para impedi-la no sentido de manutenção do status quo, sempre que assim lhes convier. Darcy avalia que as estruturas de poder não são nunca tão homogêneas e coerentes que consigam impor a vontade das classes dirigentes, a menos que a própria Universidade se faça cúmplice delas:

Nos dois casos, da Universidade voltada à renovação necessária e no da Universidade a reboque, a situação será sempre conflitante. No primeiro caso, dados os tumultos provocados pelos interessados em manter o status quo, verão na Universidade seu principal inimigo. No segundo caso, a universidade será convulsionada pela juventude rebelada contra uma instituição que atraiçoa seus ideais. A opção como se vê não é entre a tranquilidade e o tumulto, mas entre duas ordens de tensão. Cabe ressaltar, entretanto, que os conflitos ativos da primeira ordem de tensões permitem à Universidade exercer, ao menos, o papel de última instituição oficial onde o povo e a nação podem propor-se um projeto próprio de desenvolvimento autônomo e autossustentado (RIBEIRO, 1991, p. 22).

Sabemos que tradicionalmente uma das funções principais dos sistemas educacionais modernos, destacadamente do ensino superior, é a formação das elites condutoras do país e a conseqüente ocupação de cargos político-administrativos e funções dirigentes. No pensamento-ação de Darcy Ribeiro o que se propõe é sinalizar as mudanças possíveis rumo a um novo ordenamento social.

Darcy Ribeiro foi um dos intelectuais que participou da operacionalização, do pensar-fazer a Universidade Pública Brasileira em sua radicalidade:

O que temos de fazer, como intelectuais e universitários é primeiramente explorar até o limite extremo, a consciência tornada possível, para o diagnóstico da sociedade e da universidade e para a formulação de uma estratégia de luta nacional contra todos os fatores conducentes à atualização. Em segundo lugar, dedicarmo-nos a um tipo de militância que permita por em prática a referida estratégia, encarando a luta na universidade não como uma trincheira isolada, mas como nosso setor de combate, no qual devemos prever todas as transformações estruturais viáveis e que contribuam para a renovação da sociedade global. Nossa meta, como universitários, é fazer da ação docente e estudantil um aríete a arremeter tanto contra a universidade obsoleta e os que a querem assim, quanto contra nossas sociedades atrasadas e os que estão de acordo com seu atraso (RIBEIRO, 1991, p. 32).

A Universidade, assim entendida, pressupõe aspectos associados às bases do desenvolvimento democrático de uma nação soberana. É exponenciada, como idéia-força da Educação, a edificação do autoconhecimento nacional, tarefa em que os sistemas educacionais públicos e suas instituições assumiriam papel de destaque. Toda sua análise demonstra uma preocupação central na reorganização do Estado brasileiro, buscando um comprometimento nacionalista dos cidadãos e, principalmente, denunciando o sistema de dominação existente em nosso país.

Seu foco era uma universidade que possibilitasse o rompimento do círculo vicioso em que um dos principais produtos da universidade - o profissional - atenderia, primordialmente, aos interesses das elites dominantes. Melhor exemplificando, busca-se romper com as relações de subserviência nas quais agrônomos e veterinários servem aos interesses dos latifundiários; médicos diplomados dedicam-se esmeradamente à saúde dos mais favorecidos; administradores, economistas e contadores defendem os interesses privados (ocupando postos de comando na estrutura de poder oligárquico); educadores formam os filhos das camadas médias e altas (e são enfraquecidos no atendimento às classes populares) e, por fim, engenheiros qualificados que operam tecnologias importadas a serviço do enriquecimento de um patronato empresarial indiferente aos problemas nacionais.

Neste sentido, Darcy Ribeiro (1991, p. 39) afirmava: “Aqui, o máximo que se alcança é uma democracia restrita à igualdade dos pares, pois as classes dominantes latino-americanas são, de fato, muito mais parecidas com o patriciado escravista romano do que com qualquer burguesia clássica”. Como estratégia de combate à “democracia restrita à igualdade dos pares”, é vital que a sua proposta de Universidade Pública se configure como um projeto coletivo, que necessita ser politizado (em seu sentido profundo de deliberação coletiva) para que possamos concretamente avançarmos na construção da democracia participativa visando um processo civilizatório.

Nessa direção, Darcy Ribeiro entende que o único modo de influir no futuro, consistiria na previsão das formas que ele (futuro) poderia assumir. Portanto, torna-se necessário agir baseado numa antevisão, que especificamente no caso da Universidade, fosse capaz de torná-la exitosa na sua capacidade de propor “utopias concretas” relativamente ao que deveria ser a sociedade e a existência humana na próxima civilização:

É preciso que essa antevisão tenha a máxima profundidade e amplitude possíveis. E isto porque, por um lado a cultura sobre a qual a Universidade opera é um símile conceitual do mundo, em sua totalidade no qual se refletem todas as alterações substanciais da vida social; e, por outro lado, porque a Universidade não atua como um multiplicador passivo de uma cultura exógena, mas tem certa capacidade de nela imprimir a sua marca e de propor-se projetos de transformação racional da totalidade social de que a universidade participa. Qual é esta totalidade? A nação? O continente? O mundo inteiro? É tudo isto e mais ainda, porque a totalidade, no referente à Universidade é, de fato, a civilização. Tanto a que está fenecendo a olhos vistos, e à qual a universidade de hoje corresponde, como a civilização que emerge e cujas formas mal podemos adivinhar (RIBEIRO, 1991, p. 14).

Especificamente com relação à estrutura de Universidade Necessária, Darcy Ribeiro, propõe uma integração entre os sujeitos que compõe o espaço universitário na luta contra os projetos de colonização cultural e, de perpetuação do subdesenvolvimento e da dependência externa ao modo de produção capitalista.

Atualizando esse debate, o que podemos observar nas últimas décadas é que no interior do processo capitalista de produção, a ascensão das teorias econômicas neoliberais alterou as formas de relacionamento entre Estado e sociedade. A globalização das relações comerciais e o desenvolvimento das tecnologias de comunicação/informação, também veicularam uma nova visão de educação diretamente relacionada à esfera do Mercado. Essa adoção da concepção de corte conservador levou ao reforço de medidas que imprimiram a Educação caráter instrumental, utilizando como estratégia de convencimento a idéia de crise em todo o sistema educacional.

Realizando uma análise crítica dos aspectos levantados, podemos identificar o teor dessas influências nos novos rumos que a universidade no Brasil vem tomando. Esses caminhos em grande parte direcionados pelos “reformadores”, que orientam suas propostas sobre a reforma do Estado e da Educação Superior, partem dos seguintes pressupostos, conforme alerta Francisco de Oliveira (apudSILVA; SGUISSARD, 1999, p. 13):

Na pior tradição de pensar o Estado e o público como simples epifenômenos da economia - crítica que Fernando Henrique Cardoso como cientista social não se cansou de fazer - pensa-se uma crise do Estado e do público sem que nenhuma crise da economia do capitalismo explique ainda que parcialmente as primeiras. Globalização não é vista como crise: apenas o Estado e o público, não se adaptando, funcionalísticamente por certo, à mesma globalização, é que entram em crise, e, por isso, suas reformas estariam na ordem do dia. O conjunto dos pressupostos teórico-metodológicos presentes no diagnóstico e na formulação de propostas sobre a reforma do estado e da educação superior, na verdade formam uma fantástica colcha de retalhos, cujos pedaços se contradizem a cada momento.

Considerando as transformações e os dilemas vivenciados pela universidade pública nos dias atuais, tal reflexão pode ser compreendida com base no ideário da Universidade Necessária desenvolvido por Darcy Ribeiro. Em um tempo no qual se coloca para grande parte da comunidade acadêmica, o desafio de elaborar um teorizar-fazer que aponte para um outro caminho que não esteja centrado em processos estritamente mercantis e que seja capaz de promover um deslocamento das práticas que promovem uma Educação por capitalização para uma Educação que promova a partilha do conhecimento produzido e do saber veiculado em suas instituições (e fora delas) como uma riqueza coletiva.

Não pretendemos aqui defender que questões como produtividade, eficácia e eficiência não sejam necessárias à (re)organização da Educação Superior no Brasil, porém, devemos reconhecer que esses elementos, não podem estar desvinculados da efetiva noção de educação (seja ele básica ou superior), como um direito social do cidadão e dever do Estado, para a promoção efetiva de processos democráticos que possibilitem um desenvolvimento civilizatório, subvertendo a lógica do Mercado que instaura novos padrões de existência (novas subjetividades) onde se desloca a cidadania para o campo individualizado do consumo, isto é, a ênfase nos consumidores ao invés de cidadãos.

Assim, é possível afirmar que, principalmente, nas últimas décadas o Estado brasileiro foi capturado por interesses privados em praticamente todas as esferas, em particular, a educacional. Logo, entendemos ser preciso redemocratizar o Estado, aprofundando sua concepção e fundamento, para torná-lo uma concretude na vida de todos, pois são os viventes que constroem o espaço social, necessariamente de formas diferenciadas. Cabe ao Estado moderno democrático, edificar uma civilização que possibilite a coexistência humana com dignidade, considerando todos os conflitos e contradições sócio-históricas.

Conforme nos alerta Darcy Ribeiro (1991, p. 17): “O certo é que as manifestações de descontentamento contra a universidade e as sociedades, tal como são agora, por seu caráter universal, parecem anunciar o advento de novas formas de uma e outras”. Dialeticamente, ele aponta que as reformas universitárias e mudanças sociais com todas as suas contradições caminham lado a lado.

Trata-se de uma tarefa complexa, formular propostas e elaborar estratégias de atuação, objetivando como o espaço universitário pode contribuir para a viabilização das transformações sociais capazes de atender às demandas de grande parte da população, excluída e silenciada, rompendo com o modelo estrutural de privilégios para as classes hegemônicas. Para isso cumpre reconhecer (e fortalecer) o protagonismo destacado que assume a universidade, como espaço de formação humana, de circulação de ideias, de produção e veiculação de conhecimentos e saberes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quisera a glória de ficar depois de mim, por muito tempo, cavalgando na memória dos netos do filho que nunca tive.

Permanecer? Mas como? Não sei.

Darcy Ribeiro (1991, p.43)

Ao finalizarmos este artigo, é possível afirmar que a trajetória de um homem público - ainda que na adesão a valores universais - não descarta sua vinculação a siglas partidárias. Darcy Ribeiro foi um homem de partido que vivenciou a clandestinidade, o governo e a oposição (do PCB ao PDT), entretanto, jamais se filiou acriticamente a nenhuma das correntes existentes, dentro ou fora, do partido ou da academia. Assim, sua vida foi sendo construída pela busca da independência política e intelectual, que irritou a muitos e agradou a muitos outros. Sem dúvida sua personalidade marcante e carismática envolveu e afetou lados extremos. Nesta direção, procuramos destacar que foi seu pensamento-ação que tinha como pressuposto a crença na força de instituições sociais voltadas para o bem comum que o motivaram até o seu falecimento em dezessete de fevereiro de 1997.

Ressaltamos a importância da sua produção intelectual e os seus fazimentos, sempre atrelados a um projeto nacional de construção crítica contemplando, também, à emancipação dos povos latinos e, mais especificamente, do povo brasileiro (principalmente, os índios, as crianças e os jovens) que tanto o sensibilizaram: “De todas as coisas desse mundo tão variado, a única que me exalta, me afeta, me mobiliza, é o gênero humano. São as gentes feitas pela mistura de raças e pela fusão de culturas”.5 Essa emancipação dos povos foi uma das suas maiores lutas, pois tinha o claro entendimento sobre a história latino-americana de saques, desigualdades e miséria a que fomos (e somos) submetidos desde a colonização.

Como vimos, Darcy Ribeiro foi um intelectual marcado pelos contextos de época, e por meio de seu pensamento-ação buscava expressar o melhor da cultura do povo, sem desconhecer as enormes dificuldades sociais, econômicas e políticas. Entretanto, nunca se apresentou como vítima da história, mas como um ético participante dos grandes embates de seu tempo, visando à transformação de uma realidade cruel e injusta que foi imposta (ou que deixamos impor) aos nossos povos, como aponta Eric Nepomuceno: “Darcy Ribeiro foi um homem de seu tempo e um intelectual de permanência. Havia nele, acima de tudo, o compromisso ético de mudar a sociedade, tornar realidade o outro mundo que sabia possível” (RIBEIRO, 2009, p. 10).

Na direção da mudança Darcy Ribeiro em seu discurso “A educação é um instrumento de revolução”, propõe como idéia-força da Educação, a edificação do autoconhecimento nacional, tarefa em que os sistemas educacionais públicos e suas instituições assumiriam papel de destaque. Toda sua análise demonstra uma preocupação central na reorganização do Estado brasileiro, buscando um comprometimento nacionalista dos cidadãos e, principalmente, denunciando o sistema de dominação existente em nosso país.

Desta maneira, a distância entre o que deveria ser feito e o que efetivamente se faz, sem dúvida, atormenta aqueles mais comprometidos com a causa nacional. Para ele, especificamente, o papel da Universidade é de contribuir com o saber necessário à construção de uma nação democrática, forjando arcabouços teóricos e práticos que possibilitassem gerar alternativas e opções para a renovação de seus órgãos, atuando como referência para o diagnóstico e a crítica das estruturas vigentes. Seu objetivo seria a transição entre a universidade real e a universidade necessária, com a formulação de um projeto específico de transição progressiva de uma a outra.

Esse texto aponta para a importância de recuperarmos o ideário da Universidade Necessária de Darcy Ribeiro, no sentido de repensarmos na atualidade, essa universidade-instrumento, como uma das bases para o diagnóstico das causas dos grandes problemas nacionais como a miséria, a fome, a concentração de renda, as políticas públicas sem contrapartida para a população, as transferências questionáveis de recursos públicos para o setor privado, entre tantas outras questões. A Universidade Necessária desejada por ele deveria ter como princípio soluções concretas para essas demandas, visando à consolidação de um Estado nacional onde tivesse lugar todos os brasileiros, enfim um espaço de construção democrática.

Para finalizar, consideramos que a reapropriação de intelectuais dessa envergadura nos auxilia na avaliação dos (des)caminhos da nação. Trata-se de uma reflexão sobre a complexidade da sociedade brasileira. Para tanto, é vital compreender os processos históricos, como funcionam as estratégias das forças hegemônicas. E, principalmente, ter muita ousadia como nos desafia Celso Furtado em sua reflexão, pertinente e sempre atual, em tempos tão conservadores centrados em uma sociedade unidimensional tecnocrática, administrada para o consumo, para as redes sociais e o espetáculo:

Não nos esqueçamos de que nada é definitivo nem linear na história de um povo. O avanço de uma geração pode ser anulado em poucos anos de desgoverno e perda de rumo. E recuperar o tempo perdido custa elevado preço, pois a decadência também tem sua lógica e exigências. Como dediquei grande parte de minha vida a demonstrar que o Brasil é um país viável, permito-me fazer esta advertência, que também é uma convocação para a ação: responderemos todos, perante as gerações futuras, pelo rumo que tome nosso país em sua travessia. E não nos esqueçamos de que na história de um povo, como na vida de cada homem, há momentos em que tudo se pode dispensar, menos a coragem (FURTADO, 1984, p. 37).

Tecer a síntese entre tradição e contemporaneidade não é tarefa fácil e enseja sabedoria política com comprometimento ético. Entendemos que as contribuições de Darcy Ribeiro tanto no campo teórico quanto na concretude da realidade social permanecem extremamente valiosas e atuais. Podemos afirmar que seu pensamento-ação traduzido em seus fazimentos, aponta para a possibilidade de construirmos um projeto genuinamente nacional, no que há de mais radical que ele pode conter: a emancipação de seus cidadãos.

Como palavras finais, recordamos o depoimento de Eric Nepomuceno após uma das muitas falas inquietantes de Darcy, já ao final de sua vida:

Ele me disse em setembro de 1990: “As coisas importantes da minha vida estão por vir, são as que hei de fazer, me ajudem”. Estaremos ajudando? Estaremos sendo dignos dessa certeza no futuro, desse pedido de ajuda de quem não fez mais do que tentar, a cada segundo de cada minuto, transformar a realidade? (NEPOMUCENO, Eric. In: RIBEIRO, 2009, p. 11).

Acreditamos ser, humanamente, possível e necessário o comprometimento com seus fazimentos. Nesses “novos tempos” de corte extremamente conservador e acrítico, as utopias de Darcy Ribeiro se tornam ainda mais necessárias para o desenvolvimento de uma universidade brasileira realmente democrática, pois é vital compreendermos que a luta pelas utopias trata-se, no fundo, de um movimento de emancipação humana, como nos relembra Eduardo Galeano (2007, p.310) em sua obra Janela sobre a Utopia: “Ela está no horizonte. Me aproximo dois passos, ela se afasta dois passos. Caminho dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que eu caminhe, jamais a alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para isso: para caminhar”.

1Fazimento é um termo criado e utilizado por Darcy Ribeiro para caracterizar a concretude do pensamento, isto é, o movimento do pensamento (teoria) com a sua ação concreta (prática). Designa a reação do homem às suas condições reais de existência na busca incessante da transformação social. Esse termo nos remete a palavra grega práxis (ação-reflexão-ação), que é um conceito utilizado para afirmar a relação dialética entre o homem e a natureza, na qual o homem, ao transformar a natureza com o seu trabalho, transforma a si mesmo.

2A Escola Nova, inspirada em grande medida nos avanços do movimento educacional estadunidense e de outros países europeus, teve grande repercussão no Brasil. As idéias foram inspiradas na concepção de aprendizado do aluno por si mesmo, por sua capacidade de observação, de experimentação, tudo isso orientado e estimulado por profissionais da educação que deveriam ser treinados especialmente para esse fim (BOMENY, 2001, p. 43).

3No início do período Vargas, em 1930, o Brasil contava com três universidades propriamente ditas: a Universidade do Rio de Janeiro (criada em 1920), a de Minas Gerais (1928) e a Escola de Engenharia (1896), esta última sem o nome de universidade, mas progressivamente diferenciada por suas atividades acadêmicas.

4Cf. GOMES (1988), CARDOSO (1978), CHAUI (1999), entre outros.

5Trecho do discurso realizado na Universidade de Copenhagen pelo título de Doutor Honoris Causa, em 21/11/1991. (www.fundar.br, acesso em 20.04.2017).

REFERÊNCIAS

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BOMENY, Helena. Os Intelectuais da educação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. [ Links ]

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CARDOSO, Miriam Limoeiro. Ideologia do Desenvolvimento: Brasil: JK-JQ. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. [ Links ]

CHAUÍ, Marilena. A Universidade Operacional. Campinas: ADUNICAMP, 1999. [ Links ]

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