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Revista Teias

versão impressa ISSN 1518-5370versão On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.20 no.56 Rio de Janeiro jan./mar 2019  Epub 19-Dez-2019

https://doi.org/10.12957/teias.2019.39633 

Universidade e Democracia

A POTÊNCIA DA UNIVERSIDADE COMO ESPAÇO DE CONSTRUÇÃO DE SI E DE UM AGIR SOBRE O MUNDO

THE POWER OF THE UNIVERSITY AS A SPACE OF SELF-CONSTRUCTION AND OF ACTING ON THE WORLD

LA POTENCIA DE LA UNIVERSIDAD COMO ESPACIO DE CONSTRUCCIÓN DE SÍ Y DE UN ACTUAR SOBRE EL MUNDO

Manuela Vieira Blanc(*) 

Barbara Vitor de Aquino e Souza(**) 

(*)Doutora em Sociologia Política, Professora Titular de Sociologia no Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da Universidade Vila Velha.

(**)Graduada em Psicologia pela Universidade Vila Velha, Espírito Santo, Brasil. E-mail: bvtraquino@gmail.com.


RESUMO

Este trabalho busca, a partir de uma problematização acerca dos atravessamentos neoliberais nas Instituições de Ensino Superior (IES) e da análise de dados obtidos em duas pesquisas, realizadas individualmente por suas autoras, refletir sobre a potência da universidade como espaço de construção de si, contexto de subjetivação e de atuação política. O destaque que a educação superior tem nesse cenário neoliberal é pontuado por atravessamentos de crises, conflitos e contradições. Deste modo, a Universidade acaba não dando conta de exercer o seu papel na formação de cidadãos. Ao mesmo tempo, os dados aqui analisados apontam que no cotidiano de convívio entre os estudantes e com as suas IESs o potencial de ampliação da experiência universitária se consolida, potencializa e extravasa.

Palavras-chave: Política de permanência; Coletivo estudantil; Neoliberalismo

ABSTRACT

This paper seeks to reflect on the power of the university as a space of construction, based on a problematization about the neoliberal crossings in the undergraduatin schooland the analysis of the data obtained in two researches carried out individually by both authors, of itself, thinking it as a context of subjectivation and political action. The prominence that higher education has in this neoliberal scenario is punctuated by crises, conflicts and contradictions, thus, the University ends up not realizing its role in the formation of citizens. At the same time, the data analyzed here show that in the day-to-day life of the students and in the different instances of institutions in which they are enrolled, the potential for expanding university experience is consolidated, increased and subverted.

Keywords: Permanence policy; Student group; Neoliberalism

RESUMEN

Este trabajo busca, a partir de una problematización acerca de los atravesamientos neoliberales en las InstituiciónsUniversitárias y del análisis de datos obtenidos en dos investigaciones, realizadas individualmente por ambas autoras, reflexionar sobre la potencia de la universidad como espacio de construcción de sí, pensando en ella como contexto de subjetivación y de actuación política. El destaque que la educación superior tiene en ese escenario neoliberal es puntuado por atravesamientos de crisis, conflictos y contradicciones, de este modo, la Universidad acaba no dando cuenta de ejercer su papel en la formación de ciudadanos. Al mismo tiempo, los datos aquí analizados apuntan que en el cotidiano de convivencia entre los estudiantes y en las diferentes instancias de las Instituicións en las que están matriculados que el potencial de ampliación de la experiencia universitaria se consolida, potencializa y extravasa.

Palabras clave: Política de permanencia; Colectivo estudiantil; Neoliberalismo

INTRODUÇÃO: A UNIVERSIDADE, O MERCADO E AS POTENCIALIDADES

No contexto atual, atravessado pelas tecnologias e seus efeitos, e no qual o tempo é capturado pelos modos de produção, as transformações são rápidas e profundas. Sejam elas na economia, na política, na cultura ou nas relações de trabalho e consumo. A economia neoliberal acaba determinando modelos de gestão educacional, bem como interferindo no papel das Instituições de Ensino Superior. Neste processo, segundo Sobrinho (2014), a educação superior acaba se reformulando, agindo cada vez menos em função da produção de sujeitos críticos e produtores de conhecimento para focar na formação de indivíduos produtivos, dotados de competências técnicas e objetivas. Assim, o ensino superior tende a servir exclusivamente para fortalecer o sistema produtivo e potencializar os lucros.

O destaque que a educação superior tem nesse cenário neoliberal é pontuado por atravessamentos de crises, conflitos e contradições; deste modo, a Universidade acaba não dando conta de exercer o seu papel na formação de cidadãos. Destacamos que a Universidade é um espaço potente e essencial ao desenvolvimento das sociedades, fomentando o pensamento crítico e engajado. Desde o seu nascimento, a instituição tem como compromisso social e princípio essencial a produção e disseminação de conhecimento. Porém, em um contexto neoliberalista, o seu papel é reformulado, restringindo o seu potencial reflexivo em função de uma formação tecnicista. Sobrinho (2014) ainda pontua que, nesse contexto, as universidades não conseguem acompanhar as mudanças nos novos modos de produção e distribuição de conhecimento e muito menos resolver os conflitos político-ideológicos existentes nas sociedades. O autor destaca que, assim, acaba conformando-se um cenário assimétrico, de exclusões sociais e aumento de massas de miséria, com um contraponto de ilhas de prosperidade nas quais se fazem presentes avanços científicos e tecnológicos que trazem importantes benefícios, porém apenas para uma parcela, bem pequena, da população mundial.

Boaventura de Souza Santos (2006) critica esse modelo de ciência que só acumula saber, mas não produz mudanças. A economia do conhecimento “valoriza predominantemente os conhecimentos que apresentam critérios de utilidade e aplicabilidade às organizações mercantis” (SOBRINHO, 2014, p. 648). O que prevalece é o interesse privado e particular, buscando resolver problemas estritamente concretos. A universidade coloca-se, portanto, a parte, reproduzindo um conhecimento descontextualizado.

Mancebo (2017, p. 888) defende que as Instituições de Ensino Superior se tornem “relevantes tanto em termos sociais quanto em termos científicos, e para tal urge uma reconciliação dos seus intelectuais com o conhecimento crítico, reflexivo e, por isso mesmo, insubmisso aos interesses mercantis e antidemocráticos”.

É necessário refletir sobre os papéis exercidos pelas Universidades frente às demandas do contexto neoliberal e nos propomos a realizar essa árdua tarefa a partir de uma análise de experiências acadêmicas compreendidas em termos da formação de subjetividades juvenis, como potenciais para os processos de individualização desses atores/interlocutores e de potencialização das suas competências em agir. Aqui se busca reafirmar a potência da universidade como espaço de formação de sujeitos políticos e socialmente responsáveis, pensada enquanto contexto de sociabilidade, formação e intervenção social.

Deste modo, os dados aqui articulados pretendem, finalmente, demonstrar que, apesar dos pesares, a universidade permanece sendo um contexto de descobertas, de ampliação dos olhares e de autocultivo; bem como de reformulação de um modo de ser no mundo, potencialmente mais crítico e engajado. Nesse sentido, as políticas de bolsas institucionais em muito podem contribuir para a potencialização desta experiência, garantindo as condições para que esses estudantes possam se dedicar exclusivamente ao seu processo de formação, sem que necessariamente se mantenham dependentes economicamente dos seus familiares ou precisem se inserir no mercado de trabalho. Ao mesmo tempo, destacamos a centralidade dos espaços de representação estudantil para a conformação de um ambiente estimulante à participação e ao engajamento em atividades que se proponham a promover debates que atravessam essas experiências acadêmicas, com potencial de ultrapassar os muros da própria universidade.

Este artigo materializa os efeitos de uma experiência acadêmica marcada pela cooperação e compartilhamento de conhecimento. Articula dados obtidos individualmente por ambas as autoras em duas frentes de pesquisa, se concretizando como produto de uma parceria entre professora e aluna e que documenta um processo de amadurecimento intelectual e de construção de uma trajetória acadêmico estudantil. Analisaremos em longo prazo, por um lado, os efeitos de uma experiência universitária particular para os processos de individualização de jovens cujas trajetórias acadêmicas foram marcadas pelo afastamento geográfico dos seus núcleos familiares e o estabelecimento de uma complexa relação com a universidade e seu entorno 1. Por outro lado, serão destacados dados obtidos a partir de trajetórias acadêmicas ainda em construção, marcadas pela atuação em coletivos, centros acadêmicos e projetos de extensão 2. Objetiva-se refletir sobre a potência da universidade como espaço de construção de si, pensando-a como contexto de subjetivação e de atuação.

A UNIVERSIDADE POTÊNCIA

Didriksson (apudSOBRINHO, 2014) realiza uma distinção entre o que denomina sociedade do conhecimento e economia do conhecimento. Enquanto a primeira seria marcada por uma atuação da academia como espaço de fomento do pensamento crítico da própria sociedade, potencialmente transformador, a segunda trata-se de uma realidade na qual o conhecimento é compreendido enquanto bem mercadológico, isto é, as universidades agindo em função das exigências empresariais. Se a primeira é uma universidade dos sonhos, que se mantém utópica, na segunda, o modelo vigente de universidade, se organiza em função dos interesses do mercado.

Destacamos que a Universidade é um espaço potente e essencial ao desenvolvimento das sociedades, instituição cujo compromisso e princípio essenciais deveriam ser a produção e disseminação de conhecimento, atuando sobre a sociedade de forma crítica. Deverá ela, portanto, fomentar o desenvolvimento dos seus estudantes enquanto pensadores e reformadores sociais.

Partiremos de dados de pesquisa obtidos entre estudantes universitários moradores de repúblicas estudantis na cidade de Campos dos Goytacazes - RJ e de grupos de jovens universitários atuantes em Coletivos estudantis na cidade de Vila Velha −ES.

Visou-se compreender, nos estudos desenvolvidos no Noroeste Fluminense, as estratégias de “sobrevivência” acionadas por universitários que compunham moradias coletivas, apresentando potenciais variáveis de adaptação ao novo contexto e experiência estudantil. Neste processo, a entrada na universidade é pensada como um ritual de passagem (VAN GENNEP, 1977) não apenas para um novo estágio de formação educacional, mas também para um direcionamento mais individualizado da ação. O afastamento do núcleo familiar representou, nesses casos, um afrouxamento de laços valorativos e a formação de moradias coletivas implicou responsabilidades quanto a sua manutenção, além de ampliar as possibilidades de negociação por autonomia perante aos pares. A maior parte dos estudantes analisados permanecia financeiramente dependente dos seus pais ou responsáveis durante a graduação, sendo a renda adquirida como bolsistas insuficiente como meio de subsistência. Por outro lado, foi observado que a distância, a necessidade de resolver problemas diários que envolvem a manutenção do jovem na universidade, e até mesmo a experiência de trabalho vivida, contribuíram nesses casos para a construção de uma relativa autonomia, legitimada pela reconstrução das relações familiares.

Ao que aqui nos interessa, foi fundamental observar, nesta experiência de pesquisa, como a atividade de bolsista remunerado na IES configura elemento constituinte da experiência universitária da maioria dos jovens analisados. Em fevereiro de 2006, do total de universitários participantes da pesquisa, 72% realizavam algum tipo de atividade fixa remunerada, sendo 92% deste grupo formado por bolsistas da própria universidade 3.

Entre esses interlocutores de pesquisa os impactos dessas bolsas foram claramente observados, como pretendemos demonstrar.Parte desses estudantes foi beneficiada pela política de cotas de acesso à instituição de ensino superior e, uma vez bolsistas, não se observou diferença significativa entre esses e os demais estudantes analisados no que se refere às condições de moradia, sociabilidade, permanência nos cursos de graduação ou mesmo prosseguimento dos estudos, no âmbito da pós-graduação.

Diferente do que ocorre em casos de exercício de atividade remunerada fora da IES, a atividade de bolsista é intercalada com os horários de aula, sendo realizada no espaço de estudo; muitas vezes em laboratórios da instituição e em temáticas da área de interesse dos estudantes. Essa vivência universitária envolve a experiência de “trabalho”, segundo categoria nativa, ambas as atividades estando diretamente ligadas. Os estudantes da UENF percebiam as atividades de bolsa como “trabalho” e meio de efetivação de uma independência, mesmo que relativa, dos seus pais ou responsáveis financeiros.

Menezes (2012) destaca que a assistência estudantil, oferecida em forma de bolsas nas instituições públicas de ensino superior, é fundamentada como um importante instrumento para a efetivação do direito à educação pública, gratuita e de qualidade, qualidade que a democratização do acesso, por si só, não é capaz de propiciar. São, portanto, indispensáveis à permanência de determinado segmento de estudantes na universidade, mesmo se consideradas as suas limitações, como a insuficiência de recursos para que possa atingir a todos que precisam.

Na UENF e no decorrer do levantamento de dados, duas modalidades de bolsas de pesquisa estavam em vigor, uma delas de acesso exclusivo aos alunos cotistas; além da Bolsa de Monitoria, da Bolsa de Extensão e da Bolsa de Apoio Acadêmico- essa direcionada aos estudantes em condições socioeconômicas vulneráveis comprovadas. Esses benefícios variavam em valores, atividades a serem executadas e critérios de acesso, mas essas variações não incidiram, segundo os dados observados, em diferenças significativas no trato dos estudantes entre si, por mais que pudessem envolver diferenças em termos de status (sendo as bolsas de pesquisa mais valorizadas). Meus interlocutores foram beneficiados por modalidades diferentes de bolsas no decorrer de suas trajetórias ainda na graduação. Ao mesmo tempo em que a extensão dos estudos para esses jovens não pode ser vista como uma ampliação da “moratória social juvenil 4 ” (MÜLLER, 2005), dada a complementaridade de renda, observou-se que não havia uma separação de papéis entre estudante e bolsista, e sim sua conjugação, culminando com uma relação com a IES marcada por diferentes níveis de engajamento que, ao mesmo tempo, incidiam de modo amplo sobre as construções de si e dessas experiências juvenis.

Ser estudante da UENF implicava, para os interlocutores entrevistados, em ser também um prestador de serviços para a própria universidade. A autogestão característica da vivência universitária, em que o aluno é visto como responsável direto pelo seu desempenho, ao esquematizar seus horários, podendo conjugar interesses segundo um ritmo próprio, é contrastada com o vínculo criado a partir da atividade de bolsista, quando o estudante passa a estar subordinado aos chefes de laboratório e funcionários de seu departamento, atuando também como colaborador direto dos seus professores nos laboratórios (BLANC, 2006; 2009).

Igualmente, a universidade se apresenta, nesse contexto, como espaço rico para a formação de grupos de sociabilidade, cristalizados pela formação de repúblicas estudantis, vivência que contribui para o amadurecimento pessoal e assimilação de informações técnicas (SETTON, 1995). O desafio de lidar com o afastamento familiar e a consequente necessidade de autogestão da vida íntima, com todas as demandas que a manutenção de uma moradia (mesmo que coletiva) lança, implicou nesses casos a potencialização de processos individuais de autonomização.

Em um primeiro momento, essa experiência se desdobrou em um processo de gestão do controle familiar, dada, em certos casos, a resistência dos pais ou responsáveis em reconhecer essa maior autonomia:

Eles sempre me ligam, sempre... Teve uma época que eles estavam desconfiados, que eles me ligaram e eu tava na casa até de um ex meu lá... e meus pais não sabiam e eu não sabia nem o que falar. [...] Aí, depois disso ela [mãe] me ligava em horários alternados, pra ver se me pegava. Ela ligava aqui em casa e ligava no meu celular (Marina, 21 anos, então estudante do 4° período do curso de Biologia).

No decorrer do tempo, a experiência passa a ser interpretada enquanto marco de um processo de amadurecimento que é positivado como parte da construção de uma trajetória individualizada:

Aqui em Campos que eu passei a, como é que se diz, sair mesmo e tal, sozinho, e tal, que não sei o que... Em casa eu era moleque ainda, mas, saía e tal, saía com os moleques, mas não era aquela coisa de, sei lá, né? Ser independente aqui. Você segue a sua vida aqui, né? (Flávio, 23 anos, então recém-formado no curso de veterinária).

A conclusão das pesquisas realizadas entre os anos de 2005 e 2008 por Blanc (2006 e 2009) não implicou na interrupção completa do convívio com esses jovens interlocutores de pesquisa e a manutenção dessas relações favoreceu o acompanhamento das suas trajetórias individuais. Parte desses estudantes se manteve em Campos para a continuação dos estudos, na pós-graduação. Outra parte retornou para as suas cidades de origem com o mesmo objetivo e um terceiro grupo de estudantes regressantes se inseriu no mercado de trabalho.

Entre os que compuseram novas moradias coletivas ou individuais, permanecendo em Campos ou retornando às cidades de origem, prolongando seus estudos ou não, foi interessantes observar, ao longo de mais de dez anos, como o afastamento familiar auxiliou os processos de autonomização individual mais do que a continuidade dos estudos ou a inserção no mercado de trabalho. Para isso, mais uma vez, a obtenção de bolsas estudantis demonstrou ser uma importante fonte de renda e garantia de condições para a realização dos seus cursos de mestrado e doutorado, aqui implicando muitas vezes em uma experiência de ascensão social propriamente dita, dado que essas bolsas correspondiam então a ao menos três vezes o valor das bolsas oferecidas aos alunos de graduação.

Ao mesmo tempo em que essas experiências estudantis se desdobraram em trajetórias positivas de autonomização individual, fonte de um sentimento de pertencimento à comunidade acadêmica e apego à IES, o grau de comprometimento exigido desses universitários ao projeto de construção de suas carreiras manteve a maioria dos interlocutores de pesquisa afastada do mercado de trabalho e dependente da renda obtida com as bolsas, senão total, parcialmente. A instituição foi significativamente abalada pelo processo de precarização ao qual as universidades estaduais do Rio de Janeiro vêm sendo submetidas ao longo dos últimos anos (SILVA et al., 2018), afetando diretamente estes agora jovens adultos.

Considerando que o processo de expansão do ensino superior no Brasil apresentou como efeito correlato o fortalecimento do setor privado, é possível cruzar a precarização das condições de financiamento da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, em Campos dos Goytacazes, com a consolidação do Centro Educacional do Espírito Santo, tornado Universidade Vila Velha, no Estado do Espírito Santo.

Silva et al. (2018, p. 90) destacam que

Durante os mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) (1995-2003), um dos elementos de destaque no processo de reformulação da atuação do Estado foi a inclusão da educação superior nas chamadas atividades não-exclusivas, o que possibilitou a abertura ao processo de privatização e precarização no interior das instituições de ensino superior públicas.

As medidas assumidas pelos governos seguintes seguiram a mesma lógica, dando continuidade ao que seria um processo de “empresariamento” da educação, se configurando em “uma nova dimensão da relação entre Estado e iniciativa privada, na execução da política educacional ao longo da nossa história” (NEVES, 2002, p.33). Silva et al. (2018) apontam que, enquanto o aumento do número de matrículas nas IES públicas brasileiras no período de 1995 a 2010 foi de 134,8%, na rede privada de ensino foi de 347,15% (MANCEBO et al., 2015, p. 34). Fundada em 1974 como Sociedade Educacional, a UVV foi credenciada como universidade no ano de 2011. Com a missão de “Transformar conhecimento em inovação”, a instituição é atualmente a maior universidade privada do estado do Espírito Santo.

Na pesquisa desenvolvida entre estudantes da cidade de Vila Velha, foram mapeados coletivos que atuam dentro e fora da universidade, além de centros acadêmicos e atividades do Diretório dos Estudantes. Através de entrevistas semiestruturadas buscou-se identificar na fala dos alunos que compõem esses grupos como se deu a relação entre a atividade desenvolvida e os processos de ensino-aprendizagem experimentados. Partindo da hipótese de que essas experiências refletem não somente um processo de aprimoramento técnico, mas também de aprendizado pessoal e de despertar de um sentido de coletividade, a ideia foi compreendê-las no interior de processos de subjetivação, como parte de trajetórias de construção de si.

Situada em uma região da cidade marcada por altos índices de desigualdade, a Universidade, privada, assume a missão, em suas redes de divulgação, de “transformar conhecimento em inovação”, em clara identificação com um projeto de educação voltado ao mercado. “Promover a inovação e o empreendedorismo em todas as áreas de atuação” é um dos quatro valores destacados pela própria universidade em seu texto de apresentação (UVV, 2018) e a instituição vem promovendo, desde o ano de 2017, e em consonância com esse posicionamento, um evento institucional que visa fomentar nos alunos a interdisciplinaridade em prol de projetos inovadores e de caráter mercadológico.

Neste contexto, a pesquisa realizada por SOUZA (2018) centrou-se em iniciativas, coordenadas por estudantes de graduação de forma relativamente autônoma, que assumissem para si a responsabilidade social como mote para estratégias de ação intra e extramuros da universidade, linhas de fuga capazes de abrir espaço para debates e promover práticas outras no contexto acadêmico. Deste modo, a autora entrevistou membros de coletivos universitários, bem como teve a oportunidade de, como participante observadora, acompanhar suas atividades no decorrer dos anos de 2017 e 2018.

Com vias a aprofundar algumas questões, a realização de entrevistas semiestruturadas buscou remontar, através das falas de estudantes do curso de Psicologia atuantes em coletivos universitários, suas trajetórias acadêmicas singulares, os atravessamentos e as concepções que elas refletem. O compromisso social reafirmado por esses alunos aciona um debate em torno da função da própria universidade de

[...] produzir um pensamento social, mostrar a responsabilidade que a gente tem na sociedade, através de questões interdisciplinares, produzir cidadãos melhores, além de produzir profissionais. Uma relação direta, é importante a universidade estar apoiando a sociedade (Maria, Estudante membro do Movimento Unidos pelo CAPS e do Coletivo feminista Elas que São Elas 5).

As falas da mesma estudante demonstram como as ações da sua IES são percebidas como insuficientes, dadas sob uma lógica a ser superada e, em certo sentido, subvertida:

acredito que a universidade deveria exercer esse papel, de promover um debate que elenque não só as grades curriculares, mas que perpassem as instâncias sociais e políticas que automaticamente estão implicadas, porque somos nós universitários que estamos construindo esse espaço (Maria).

Essas experiências são marcadas, ao mesmo tempo, por um exercício de autocrítica que assume para si a responsabilidade de se apropriar dos conhecimentos em construção e utilizá-lo em prol de bens comuns, para além da obtenção dos diplomas de graduação: “Eu acho que a maioria das pessoas meio que estão de passagem, vão para aula e vão embora. E é mais que isso” 6 . Seguindo na mesma linha argumentativa de Bianca, Maria - já citada - diz que “A gente não pode adormecer, deixar latente, ficar na lamentação. É valorizar esse corpo político que está inserido nesse espaço. E que se houver necessidade e vontade, que haja sempre a manifestação dessa existência tal como ela é aqui dentro”.

Os efeitos da atuação em movimentos sociais, centros acadêmicos e diretórios estudantis incidem, segundo os dados obtidos entre os estudantes de Vila Velha, não apenas nos modos como esses estudantes compreendem suas trajetórias acadêmicas, como também sua formação política, interpretada como um exercício de cidadania. Assim, suas vivências estudantis e experiências pessoais se conjugam em modos de atuação acadêmica que tem por pretensão romper com a lógica instituída e intervir sobre a realidade: “Eu quero ir pras ruas pedir um CAPS”, relata Maria, sobre a ocasião em que se deparou com a realidade dos Centros de Atenção Psicossociais no município de Vila Velha ainda em sala de aula, experiência que motivou a formação do Movimento Unidos pelo CAPs entre estudantes da IES. Assim também, Bianca destaca a importância de “trazer a questão racial para dentro da universidade, porque às vezes não se tem esse espaço ou abertura para falar dentro da sala de aula.”, em referência à importância do Coletivo Congos e Quilombos, do qual faz parte.

Do mesmo modo, a atuação política é percebida pelas estudantes como parte do seu processo de formação, fortalecendo o sentimento de pertencimento ao curso e de identificação com a futura profissão. Ao mesmo tempo, a estudante valoriza o caráter interventivo das ações desenvolvidas pelos movimentos dos quais faz parte como fundamento do exercício profissional para o qual se prepara:

A psicologia ela me impele a estar dentro desses movimentos [Unidos pelo CAPS e Elas que são Elas], mas esses movimentos também me empelem a estar na psicologia. Eu estar participando desses dois movimentos, estar em contato, estar lutando por uma condição digna de autonomia e de cuidado com a loucura, isso me dá a certeza que meu lugar é na psicologia. Porque é isso, é você saber que meu lugar aqui me dá um certo privilegio de poder me pautar em cima de diversos infinitos saberes psicológicos que auxiliam na produção de saúde e dignidade de vida (Maria).

Observa-se, na assunção de tarefas de “responsabilidade social” como um compromisso do estudante em seu processo de formação, como, apesar de politicamente ativos no interior da IES e atuantes em ações de extensão realizadas para além dos muros da universidade, esses estudantes foram cooptados pelo discurso neoliberal que caracteriza o contexto em que estão inseridos. Mobilizar-se é um empreendimento a ser cobrado dos demais colegas estudantes, é tarefa a ser assumida na construção da própria carreira, é experiência transformadora a ser utilizada em suas práticas profissionais. Pouco é dito sobre o que se deseja mudar no mundo, a mobilização, senão fim em si mesma, sendo percebida em termos de ganhos pessoais, mesmo que relatada enquanto exercício de responsabilidade social.

Em ambos os casos, as experiências acadêmicas aqui remontadas apontam para um processo de formação que ultrapassa o aprimoramento de conhecimentos técnicos, ao mesmo tempo em que retorna a eles ao demonstrar suas limitações. Se os dados obtidos por BLANC (2006 e 2009) conferem destaque para processos de subjetivação marcados pela progressiva autonomização dos estudantes em suas trajetórias de passagem para a vida adulta, os dados levantados por Souza (2018) são conclusivos quanto ao potencial da experiência acadêmica para a construção de si enquanto sujeito ativo e atuante no mundo, dotado de “responsabilidade social”, como destacam suas interlocutoras. A partir das suas especificidades contextuais, esses estudantes se aproximam quando pensamos a universidade enquanto um espaço potente, de transformação e cultivo de si, marcante nas trajetórias individuais e coletivas traçadas pelos seus alunos. Senão como missão assumida em seus projetos institucionais, essas instituições de ensino superior têm servido como espaço a ser apropriado por esses estudantes, seja em função da realização de seus projetos individuais ou na coordenação de modos coletivos de atuação.

Apenas uma das interlocutoras de pesquisa de SOUZA (2018) era bolsista de Iniciação Científica no início de suas participações em coletividades. A sua participação no movimento estudantil, ao mesmo tempo, era possível graças a sua dedicação exclusiva ao curso de graduação em uma instituição de ensino superior privada. A universidade conta com projeto de bolsa institucional, oferecendo oportunidades em monitoria, extensão e pesquisa, além de políticas de desconto e consórcio com iniciativas públicas e privadas de crédito estudantil. Recentemente todas as estudantes se tornaram bolsistas:Maria, do programa de Bolsas de IC institucional, e Larissa é bolsista de extensão pelo próprio DCE.

Enquanto o benefício das bolsas estudantis fora observado por BLANC (2009) como um elemento central para a construção da relação dos seus interlocutores de pesquisa com a IES, a participação no movimento estudantil se apresenta como o elemento potencializador das vivências acadêmicas dos interlocutores de pesquisa de SOUZA (2018). Isso lhes confere um discurso político bem marcado, bem como uma perspectiva crítica com relação à IES muito mais sensível. A experiência é percebida por eles como um divisor de águas na sua trajetória, neste sentido:

Quando você participa de um movimento como esse você passa a ter a possibilidade de justamente abrir os olhos de quando você se depara com você fazendo isso, e você leva isso para o seu trabalho, pra sua formação, pra sua clínica, para o posto de saúde, pra sua casa, pra sua família. E você começa a corromper e a ter essas rupturas porque você passa a ter um novo olhar, um novo olhar questionador, de amor e cidade, e autonomia. De promover a possibilidade de existir mesmo com a sua singularidade né e a sua particularidade (Maria, Estudante membro do Movimento Unidos pelo CAPS e do Coletivo feminista Elas que São Elas).

De um modo ou de outro todos esses estudantes se relacionam com suas instituições de ensino de formas múltiplas, em experiências que ultrapassam em muito o processo de ensino-aprendizado intraclasse. Cabe refletir, na ponderação da especificidade dos processos de coleta de dados, como proporcionalmente o conjunto de estudantes que corresponde ao universo analisado por Blanc (2007 e 2009) é significativamente superior ao conjunto de estudantes que corresponde ao universo analisado por Souza (2018), que se restringe aos estudantes que compõem os coletivos, centros acadêmicos ou ao Diretório Estudantil. Caberia considerar as experiências de pesquisa, de participação nas Atléticas ou nos diferentes Núcleos de Atendimento à comunidade em atividade na instituição capixaba, igualmente relevantes para a promoção de modalidades de sociabilidade estudantil e engajamento em ações extensivas à universidade. Ainda assim, observou-se no contexto analisado por Souza (2018) como essas modalidades de envolvimento apresentam um apelo muito maior ao engajamento estudantil com a instituição do que a realização de atividades como bolsistas, pouco significativa para a construção de seus pertencimentos institucionais ou imagens de si.

Por outro lado, ao mesmo tempo em que a política de bolsas, tão central no primeiro caso, favorece o desenvolvimento de carreiras acadêmicas, no contexto de crise de financiamento das IES públicas estaduais no Rio de Janeiro, o efeito dos atrasos de pagamento e de cortes orçamentários denunciam a fragilidade do sistema em contribuir para a autonomização profissional desses agora pós-graduandos. Um futuro sem bolsas e sem concursos é um futuro incerto, em que a própria condição de construção da carreira acadêmica é colocada em jogo, a expensas de tudo o que já foi construído.

Assim também, apesar de uma prática de resistência, o engajamento político em um contexto marcado por uma lógica de mercado é ele também contaminado por um discurso que percebe a formação acadêmica como o colecionar de atributos passíveis de comercialização. Montar e manter os coletivos é importante, do ponto de vista dos estudantes interlocutores de pesquisa capixabas, para garantir o exercício daquela que seria a mais potente função da universidade: a responsabilidade social. Ao mesmo tempo, a experiência de atuação durante a graduação é valorizada em suas trajetórias individuais como atributo diferencial no exercício futuro das suas profissões. Um diferencial de mercado, não se pode negar:

Tá sendo muito mais importante na aprendizagem entendendo o meu papel como cidadã, profissional da psicologia, entender um pouco mais nas questões sociais, estar inserida nisso [o DCE], porque a gente também promove projetos sociais, e pra mim o mais importante é você estar sempre em contato com a sociedade, com a comunidade que precisa, e se a gente consegue colocar o que a gente tá aprendendo em sala de aula pra fora, é um crescimento profissional (Larissa, Estudante membro da Equipe Acadêmica do Diretório Central Estudantil, responsável pelos Centros Acadêmicos e Movimentos Estudantis que se inserem na instituição).

Nosso objetivo com o cruzamento desses dados não alimentou pretensões comparativas, mas sim refletir sobre a experiência acadêmica como potencializadora de processos de subjetivação, passível de ser apropriada, pelos próprios estudantes, em suas trajetórias singulares e para além da coleção de atributos técnicos. Neste sentido, a especificidade dos contextos analisados apresentam limitações relevantes, mas que não desqualificam o exercício proposto. Trabalhamos com a hipótese de que, no interior desses processos de subjetivação, essas experiências estudantis poderiam de algum modo subverter a lógica de mercado que atravessa, de modos particulares ou mesmo sutis, suas IESs de origem.

Evidentemente, uma universidade que faz mais do que meramente preparar para o mercado é mais do que um espaço aberto a práticas estudantis para além da sala de aula, é mais do que uma instituição que oferece bolsas ou na qual ocorrem disputas esportivas. Consideradas as devidas limitações em cada caso analisado, destacamos que a experiência acadêmica dos interlocutores de pesquisa aqui acionados demonstrou ter sido (ou estar sendo) um divisor de águas em suas trajetórias individuais. Previstas em projetos institucionais ou construídas através de práticas de sociabilidade estudantis, essas experiências em muito ultrapassam a mera coleção de atributos técnicos, mas cabe refletir sobre os fatores limitadores a um projeto de transformação do mundo que pressupõe a autonomização dos procedimentos de produção de conhecimento de uma lógica de mercado.

TRAJETÓRIAS INDIVIDUAIS E SEUS ATRAVESSAMENTOS: PISTAS PARA SE PENSAR OS LIMITES DA EXPERIÊNCIA ACADÊMICA EM SUA POTÊNCIA TRANSFORMADORA

Mancebo et al. (2015) destacam que, a partir de 1995, marco de um processo de reforma do Estado brasileiro, a expansão do ensino superior é intensificada, mas ao mesmo tempo caracterizada por um duplo movimento: de ampliação das vagas e de ampliação do processo de privatização, observável no comparativo entre a expansão das vagas no Ensino Superior público, em comparação com o privado.

O discurso de ineficiência do Estado, alimentado pela percepção de que havia se tornado pouco eficiente dado ser “responsável pela organização de um razoável complexo público de ensino e pesquisa, [...] passou a ser apontado como o principal responsável pela queda de taxas de crescimento econômico, do aumento do desemprego e da taxa de inflação” (SPATTI, SERAFIM E DIAS, 2016apud BRESSER-PEREIRA, 1997).

A progressiva queda de investimento em IESs públicas, em comparação com o incremento no setor privado, culminou em processos de reajustamento interno. De acordo com Búrigo (2002) a sociedade neoliberal acaba exigindo mais agilidade da universidade e reduz o financiamento público de suas atividades e essas acabam por encontrar no setor privado importante fonte de investimentos para suas atividades. A promessa do liberalismo, o Mercado salvador, faz com que a universidade torne-se uma organização com comportamentos adaptativos aos ditames do mercado - competitiva e produtiva.

De acordo com Dias e Serafim (2015), uma questão que aparece nas universidades, é o foco no “inovacionismo”. O discurso que pontua a importância da inovação para o desenvolvimento econômico, e destaque no mercado de trabalho, faz desta inovação a “quarta missão” da universidade, e foco principal, deixando aspectos como a formação cidadã de lado. A utilidade dos conhecimentos produzidos nas IES passam a ser submetidos aos interesses do mercado. De acordo com Búrigo (2002), a mercantilização do trabalho acadêmico é uma das formas de a universidade pública, em seu atual estado, se legitimar na sociedade neoliberal na qual se insere.O “produtivismo acadêmico” é um dos fatores que atravessam as universidades públicas a partir desse processo que, através de ênfase desproporcional na produtividade, instrumentalizada por meios de avaliação quantitativos, privilegiam quantidade de publicações em vez de relevância social ou qualidade das atividades produzidas (DIAS; SERAFIM, 2015). Búrigo (2015) ainda afirma que essas avaliações vêm disfarçadas de prorrogativas de melhora, que se caracterizam por diminuir custos e aumentar da produtividade.

Assim, a pesquisa se sobrepõe ao ensino e à extensão, o que acaba por produzir o distanciamento dessas atividades. Esses procedimentos são individualizados e, por fim, o ensino perde sua essência de construção e reconstrução de conhecimento, quando não associado à pesquisa como possibilidade de questionamento e investigação e a extensão como campo fértil de socialização do saber e revitalização desse ensino e dessa pesquisa (BÚRIGO, 2002).

Observando como esses atravessamentos acabam por mudar o foco e a missão das universidades, podemos concluir que esse contexto incide nas universidades públicas sob a forma de privatização. Spatti, Serafim e Dias (2016apud BRESSER-PEREIRA, 1997) esclarecem, nesse sentido, que privatizar não significa somente transferir para agentes privados a autoridade e gestão de entes públicos, isso pode se dar por meio de desvio das funções que as universidades acabam por exercer. Assim, a Universidade pública perde seu sentido de instituição social e passa a operar como uma organização que deixa de cumprir seu papel de refletir e formar o coletivo.

Silva et al. (2018), demonstram que as universidades estaduais do Rio de Janeiro estão sofrendo fortemente os efeitos de fórmulas neoliberais em seus processos de financiamento e gestão. No caso da UENF, o processo de asfixia financeira que foi iniciado pela interrupção do envio de recursos financeiros ao longo dos últimos anos e que viabilizavam o seu custeio, pelo governo Pezão, foi agravado pelo congelamento dos recursos da FAPERJ e também pelos atrasos crônicos nos pagamentos de bolsas e no salário dos servidores.

Santos (2010) situa a informação como dado essencial e imprescindível para o processo produtivo e para acelerar o giro do capital e, a partir disso, pontua o interesse crescente de investimento em instituições de ensino por iniciativas privadas e em canais de comunicação e publicidade, que acaba colocando na mão de grupos hegemônicos o controle do conhecimento que é repassado, caracterizado pelo mínimo suficiente para a formação de mão de obra, o que acaba por impedir o acesso ao conhecimento emancipador e libertário. Assim, a educação e todo o seu potencial acabam sendo utilizados como mais um instrumento de captura do sujeito.Como o Estado peca com sua responsabilidade de fornecer qualidade nos serviços de educação, saúde e previdência, o mercado se aproveita disso e encontra nessas lacunas suas fontes de lucro.

Se, por um lado, a mercantilização do trabalho acadêmico é uma das formas de a universidade pública, em seu atual estado, se legitimar na sociedade neoliberal, dado que a utilidade dos conhecimentos produzidos nas IES passa a ser legitimada de forma direcionada ao mercado, o seu forte potencial para pesquisas científicas acaba sendo capturado e privatizado, sobre o pretexto de ser esta a sua função social (BÚRIGO, 2002).

Finalmente, é importante destacar que até 2016, foram registradas 2.407 IES no Brasil, entre elas, 2.111 são privadas e 296 são públicas. Destas, 108 são Universidades Públicas, enquanto 86 das IES privadas são certificadas como Universidades. Porém a rede de Ensino Privado dispara no que diz respeito às faculdades, são 1.866, ao lado de um número de 138 faculdades públicas. Este relatório ainda aponta que o número de matrículas em graduações a distancia já crescia e segue crescendo, atingindo um percentual significativo de 18,6% da população de ensino superior em 2016. Pode-se observar também que o volume de ingressos aumentou em 2016 na modalidade a distância, enquanto na modalidade presencial apresenta uma queda (INEP, 2016).

Os dados aqui apresentados apontam que é no cotidiano de convívio entre os estudantes, com a comunidade acadêmica mais ampla e nas diferentes instâncias das IESs nas quais estão matriculados que o potencial de ampliação da experiência universitária se consolida, conformando processos de autonomização individual, experiências de mobilização coletiva e modalidades de vivência universitária que subvertem a lógica tecnicista e produtivista que vem se intensificando no contexto atual. A política de bolsas estudantis, deste modo, demonstra ser muito mais do que políticas de permanência e de estímulo à pesquisa. Bem como os diretórios e coletivos universitários muito mais do que instâncias de participação nos assuntos da comunidade.

Diante do aqui foi exposto e do projeto de expansão do Ensino a Distancia no Brasil que agora se consolida, nos cabe ponderar sobre os efeitos que já são passíveis de previsão no interior de um processo de reformulação das Instituições de Ensino Superior brasileiras. Serão os fóruns de discussão mediados por computador capazes de propiciar as condições necessárias para a construção de um sentimento de pertencimento dos estudantes com suas IESs, satisfatórios na promoção de reflexões que ultrapassem o domínio técnico de conteúdos ou profícuos ao desenvolvimento de modalidades de sociabilidade potencialmente engajadas em um projeto de bem comum e de atuação extramuros (ou telas) da universidade?

1 Trabalhos intitulados Ampliando Horizontes: jovens universitários e a (re) construção de valores a partir da vivência em moradias coletivas (BLANC, 2006)e O desafio de vir a ser: jovens universitários, moradias coletivas e identidades (BLANC, 2009), monografia e dissertação de mestrado em Ciências Sociais desenvolvidos na Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro, sob a orientação de Wania Amélia Belchior Mesquita e na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPCIS) sob a orientação de Claudia Barcellos Rezende, respectivamente. Ambas as pesquisas foram desenvolvidas com o apoio da FAPERJ, através de uma Bolsa de Iniciação Científica, inicialmente, e com uma Bolsa de Mestrado Nota 10, posteriormente.

2 Trabalho de conclusão de curso em Psicologia desenvolvido na Universidade Vila Velha sob a orientação de Jairo Tadeu Guerra, Mestre em Psicologia pela UFMG.

3 Dados coletados a partir de um recenseamento em um condomínio situado em frente a IES, então selecionado como espaço de coleta de dados. No início do ano de 2006, a aplicação de questionários nas 304 unidades habitacionais do Condomínio Verdes Campos permitiu mapear a composição das suas unidades habitacionais, diferenciando núcleos familiares e moradias coletivas. Encontrou-se mais de 50% das unidades ocupadas por moradores estudantes, representando 23% do total de alunos ativos matriculados na universidade no referido período de tempo. Entre as moradias, 32% delas constituídas exclusivamente por alunos de graduação em regime de coabitação.

4 Tratada pelo conjunto de autores analisados por Müller como período de prolongamento da tutela parental e suspensão de responsabilidades características da fase adulta da vida.

5 Criado em 2016, o coletivo estava desativado no momento de realização da coleta de dados.

6 Bianca, Estudante membro do coletivo Congos e Quilombos.

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