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Revista Teias

versão impressa ISSN 1518-5370versão On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.20 no.56 Rio de Janeiro jan./mar 2019  Epub 19-Dez-2019

https://doi.org/10.12957/teias.2019.40243 

Entrevista

“NOSSA TAREFA AGORA É RECUPERAR A ‘UNIVERSIDADE NECESSÁRIA’, A UNIVERSIDADE QUE TENHA O CONHECIMENTO COMO DIREITO UNIVERSAL”1

Adélia Miglievich Ribeiro

Leonardo Nolasco-Silva


ENTREVISTA COM GAUDÊNCIO FRIGOTTO.

Bacharel e licenciado Filosofia e graduado em Pedagogia. É mestre em Administração de sistemas educacionais pela Fundação Getúlio Vargas (FGV-RIO) e doutor em Educação: história, política, sociedade pela PUC-SP. Professor titular, aposentado da Universidade Federal Fluminense (UFF). Atualmente, é professor concursado na Faculdade de Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), bolsista de Produtividade em pesquisa do CNPq - Nível A. Autor e co-autor profícuo de livros e artigos em Revistas nacionais e internacionais.

O dossiê “Universidade e Democracia” é uma resposta possível num momento político de retrocesso de conquistas sociais e democráticas, que coloca em xeque muitos avanços ainda não plenamente consolidados. O processo de feitura deste trabalho teve início em 2018, quando decidimos entrevistar um dos nomes mais expressivos e aguerridos do campo da Educação no Brasil, Gaudêncio Frigotto. Fomos muito bem acolhidos por ele e o papo foi “deliciosamente demorado”. Aqui, entretanto, não sem dificuldade, precisamos “editar” a conversa que, em sua totalidade, foi uma verdadeira lição de vida e de profissão.

Adelia Miglievich - Boa tarde, professor Gaudêncio. É uma honra poder tê-lo conosco no dossiê que eu e Leonardo Nolasco-Silva organizamos para a TEIAS, Revista do Programa de Pós-Graduação em Educação (ProPEd) da UERJ. Chamamos o dossiê de “Universidade e Democracia”, um tema que nos inquieta a todos, sobretudo, talvez, em tempos como os que temos vivido mais recentemente no Brasil. Cremos que está justificada em parte nossa insistência nesta entrevista: precisamos muito poder escutá-lo, dentre outros temas, sobre a conjuntura atual,um dia depois do primeiro turno das eleições presidenciais de 2018. Você gostaria de fazer já algum comentário?

Gaudêncio Frigotto - Em primeiro lugar, é uma alegra poder colaborar com a TEIAS - uma revista que eu acompanho há muito tempo, da nossa faculdade e da UERJ - e, obviamente, é um dia pra gente - pra universidade, pra democracia, para quem quer vislumbrar o futuro sem grandes traumas - que nos leva a pensar muito em relação ao que fazer com os riscos que a universidade corre nesse contexto. Porque não se trata apenas da votação no plano federal, mas também no plano estadual que, talvez, seja ainda mais dramática, ou tão dramática, porque, de repente, um capitão que saiu do exército, juiz,que estava em último lugar, aponta com a possibilidade de ser o governador do Rio de Janeiro 2 . Isso, a meu ver, para as instituições universitárias do Rio, será um drama. Então, eu acho que a gente tem que analisar a conjuntura vinculando-a ao que a produz. Esse resultado [do primeiro turno da eleição presidencial que terminou com Jair Bolsonaro em primeiro lugar e Fernando Haddad em segundo] 3 é fruto de uma insanidade. Insanidade, podemos dizer, das forças políticas tradicionais,de dois grandes partidos - o PSDB e o PMDB - que são os artífices, os construtores da interrupção da ordem democrática por um golpe de Estado que começou em 2014 e que foi, nesse tempo todo, gestando um “ovo de serpente”. Nas avaliações de ontem [7 de outubro de 2018], por centro, por exemplo, não pude entender como Alckmin fez 9% dos votos em São Paulo, onde ele é governador. Então, a gente pode dizer o seguinte: já está posto aí o efeito secundário desta insanidade ou deste processo. Está no DNA da classe dominante brasileira, como diz o Veríssimo, fazer golpe com as armas e, se for preciso, sem elas, toda vez que esse núcleo oligárquico se sente prejudicado nos seus interesses. E, neste momento, esse núcleo construiu o antipetismo que, na verdade, é mais que antipetismo: é anti-esquerda. Por outro lado, produziu uma extrema direita que mistura a força do capital - com muito recurso - e a mercantilização de Deus, da religião, de Deus em si. É uma conjuntura muito anti-universidade, anti-conhecimento, é um contexto obscurantista que se guia na perspectiva da força bruta e do fanatismo. Há traços, obviamente, de fascismo. Eu reuni vários textos sobre fascismo e estou lendo, hoje mesmo, apresentando para os meus alunos. Um livro do Leandro Konder, que é Introdução ao fascismo; As origens do fascismo, de José Carlos Mariátegui, organizado por Luiz Bernardo Pericás 4 . E eu sempre cito também dois outros textos: um é do Mark Bray, pedagogo, historiador americano, um intelectual ligado aos direitos humanos. Ele tem um texto muito interessante que se chama: “Cinco lições para antifascistas” [do livro Antifa: The Anti-Fascist Hand book, lançado em agosto de 2017 nos Estados Unidos]. Neste livro, ele chama a atenção, no início, para que vejamos o fascismo naqueles elementos menos visíveis. Ele diz que não precisa de muitos fascistas para instaurar um regime fascista. A instauração pode acontecer por um vácuo na sociedade.E tem também um texto clássico do Antônio Cândido, da época da ditadura: “O caráter da repressão” [texto publicado pela primeira vez em Opinião, em janeiro de 1972). Isso nos dá o contexto do que produz a conjuntura, uma conjuntura que não fortalece as instituições democráticas, uma conjuntura que não apoia o direito ao conhecimento, os direitos até mais elementares. Está montada em cima da visão de que o problema da sociedade é a corrupção e a violência, mas querendo corrigir a violência com violência. Então, é uma conjuntura preocupante. E nós, das universidades, teremos que criar mais forças ainda para a nossa proteção e contra todas as formas de violência que virão e que serão pesadas.

Leonardo Nolasco - Qual é a função dos intelectuais neste cenário?

Gaudêncio Frigotto - Essas forças brutas enxergam a universidade como um antro de formar comunistas, um antro de formar ativistas. Enxergam na Universidade o que chamam de “mimimi”. Não só a Universidade, aliás, mas também na escola pública democrática. Tanto é assim que querem coibir a oportunidade de conversar, né? Existe um movimento neste sentido, uma organização que é o “Escola‘sem’Partido”. Na verdade, o que eles defendem é a escola com um partido, não no sentido parlamentar, mas no sentido ideológico. Isso vem se desenvolvendo desde 2005 e agora tem dado as caras agressivamente, dentro deste contexto de golpe. Então, é sem dúvida um momento anti-universidade, anti-conhecimento histórico. E qual é o nosso papel? Acho que a própria Universidade tem que se repensar no seguinte sentido: ela tem o papel de produzir conhecimento e socializar o conhecimento. E nós, como intelectuais, temos que estar vinculados às lutas, aos movimentos, às organizações, às instituições que alargam a democracia, alargam os direitos, alargam os direitos à vida, à cultura etc. E eu sempre sintetizo isso com uma citação livre do Florestan Fernandes,falando sobre a geração dele - que ele chama de “a geração perdida”. Ele pergunta: “O que queríamos? Onde erramos? Por que erramos? Como aprender com o erro? Não erramos por ter defendido a nação autônoma, soberana. Também não erramos por ter lutado pela democracia. Nosso erro foi fazer esse caminho com uma minoria prepotente, junto a uma maioria desvalida”. E o papel do intelectual é outro: Não é lutar para o povo, mas estar com o povo, para que ele adquira, o quanto antes, os instrumentos de fazer a revolução necessária. E, portanto, esse movimento anti-universidade, anti-conhecimento, anti aquilo que Paulo Freire dizia muito bem - um conhecimento que permita a leitura crítica do mundo - este movimento existe exatamente para barrar o papel central da Universidade que é, no dissenso, buscar novos consensos que nos livrem de sermos vistos e tratados como umconglomerado de consumidores, mas como sujeitos, pessoas de direitos. Então, a Universidade tem que, nesse momento, pensar qual é o seu papel nessa nova conjuntura, porque vão vir medidas muito duras se esse movimento prosperar e se instaurar como um poder anti-intelectual, anti-conhecimento e anti-universidade.

Adelia Miglievich - Gaudêncio, e o que nós podemos fazer para que esse conhecimento alcance a sociedade ou a sociedade alcance a Universidade?

Gaudêncio Frigotto - Uma das questões que a gente precisa tomar consciência é que o próprio conhecimento, a produção de conhecimento, a produção de teses, a produção de artigos, caiu na lógica da mercadoria. Nós, de certa forma, na pós-graduação,assumimos essa lógica. E essa autocrítica nós temos que fazer. Nós perdemos muito da capacidade de colegas que têm reflexão, têm análise, trabalham no “chão da escola”, dão aula -porque extensão não vale nada no ponto de vista da Capes, do CNPq. Então, é uma autocrítica que nos faz questionar a forma como nós estamos produzindo conhecimento dentro daquilo que nós, teoricamente, queremos criticar. Com isso, como essa lógica do conhecimento como mercadoria, se foi o tempo de pensar mais lento, de análise mais profunda. A Universidade não pode dizer que eu tenho que produzir cinco artigos por ano. Eu tenho que produzir algo que tenha qualidade e que faça avançar o conhecimento.Nós precisamos alterar a nossa forma de produção de conhecimentos, questionar essa lógica do presentismo, do produtivismo, da meritocracia.Isso diminui a qualidade do nosso conhecimento. Temos que perguntar também: a serviço do quê ou de quem está esse conhecimento?Outra questão muito séria que merece reflexão, especialmente em instituições como a UERJ, é o perfil do público universitário atual. A UERJ é uma universidade que incorpora dentro do ensino universitário grupos sociais historicamente excluídos, não só de um ensino médio ou fundamental de qualidade, mas que também foram alijados de condições um pouco mais alargadas, mais sólidas, condições da própria vida, do morar, do transporte, de poder comprar livros etc.As cotas têm um elemento muito positivo que é trazer esse público para a Universidade, desmistificando a idéia de meritocracia. Porque não há mérito se não se parte dos mesmos espaços. Temos que dar a esses grupos recém-chegados o tempo que lhes foi sonegado e roubado. Eu acho que universidade já faz muitas coisas muito boas, mas nós temos que repensar a nossa forma de produção de conhecimento, os nossos métodos de trabalhar com sujeitos de grupos e frações de classes diferentes que, positivamente, estão dentro da Universidade. Precisamos ter um vínculo maior com a realidade, a realidade social, cultural, política e não nos fecharmos num nicho, nas quatro paredes da Universidade.

Leonardo Nolasco - Quais seriam os efeitos do produtivismo para o acadêmico, para o intelectual, em termos de produção da própria vida? Como isso interfere em sua formação enquanto trabalhador?

Gaudêncio Frigotto - Primeiro, o produtivismo está adoecendo pessoas. Segundo, gera uma competição interna que também é doentia. Eu acompanho isso há muito tempo. Você credencia e descredencia pessoas [em programas de pós-graduação] negando a história do profissional. Às vezes, a pessoa fica trinta anos produzindo, produzindo e, num momento, não faz mais nada, mas como o que ele produziu é mercadoria e aquela mercadoria “já passou”, então, você zera a carreira do colega e você mata o mérito. E isso tem uma conseqüência na sua vida pessoal, existencial. Além disso, o conhecimento que se produz hoje é um conhecimento pouco potente, porque ele é muito repetitivo.Ninguém produz um avanço significativo em qualquer área produzindo dez textos, oito textos.Há um artigo que é sobre a produção do conhecimento na universidade, de 2001, publicado na revista da ANPED, que diz exatamente isso: “cuidado que hoje o metro da mercadoria chegou no conhecimento”. E isto tem um efeito de pressão sobre o trabalhador e tem um reflexo em cima do jovem, do doutorando, do mestrando, do graduando que nós vamos formar. Não podemos esquecer, também, que a ciência está cada vez mais sendo apropriada privadamente.

Leonardo Nolasco - A abertura da Universidade aos novos públicos implica a formação de um corpo docente diferente daquele que, historicamente, habitou as universidades?

Gaudêncio Frigotto - A Universidade e seu caráter seletivo têm o seu corpo docente constituído, principalmente, por setores da classe média e classe média alta, sobretudo em áreas mais “duras” e, também, no Direito, na Economia. Muitos desses professores têm uma visão de que esses estudantes que estão chegando, estão “roubando” o lugar deles e, portanto, são professores que não querem mudar seus modos de dar aula, de avaliar. Pensar sobre isso é uma questão Política, com “p maiúsculo”. É a política entendida como perceber que é direito desses jovens,das classes populares, terem na agenda deles o direito à Universidade. Agora que temos a consciência de que esse sujeito tem um direito, o passo seguinte é aceitar que eu tenho que mudar minha forma de trabalhar no dia-a-dia, pensar no tempo desse jovem que, no início, será um tempo bem mais lento. Vou dar um exemplo de ordem pessoal: Eu cheguei ao Rio de Janeiro em 1974, junto com um colega chamado José Fagundes, para freqüentar o mestrado da FGV. Mas, quem vem de uma cidade de 70 mil habitantes e chega ao Rio de Janeiro e entra em uma instituição que era a única instituição(além da USP), que o exterior aceitava diretamente alunos do mestrado pra lá, então, você chegava ali e ficava em silêncio. Nos primeiros seis meses, nós ficávamos calados. E os colegas, que eram de centros maiores,participavam mais. Com o tempo nos adaptamos, fomos construindo as nossas bases. Se esses professores tivessem nos “barrado” nos primeiros três meses, iam jogar fora professores, pesquisadores. Sem dúvida,as instituições federais estão enfrentando essa questão hoje. Há os novos sujeitos das cotas. E isto tem que ser discutido como matéria do Projeto Político Pedagógico da nossa faculdade, das faculdades de Letras, das faculdades de Filosofia. Deveria ser um tema central: Como atuar no plano do conhecimento, no plano da cultura, no plano dos valores, inclusive, com esses novos sujeitos, para que eles tenham direito a acender ao conhecimento mais complexo dentro de um processo, que é o processo de formação deles aqui dentro?E nós temos uma particularidade ainda mais dramática. Nós somos uma sociedade de estigma escravocrata e colonizador.

Adelia Miglievich - Fala-se muito na crise da Universidade. Como podemos fazer um diagnóstico dessa crise, mas sem cair no discurso de que a Universidade Pública de qualidade acabou de vez?

Gaudêncio Frigotto - A crise da Universidade pública, talvez, tenha a ver com o seu distanciamento da sociedade. Não acho que a Universidade pública deva ocupar o papel do sindicato, do partido político ou do movimento social. Mas, se olharmos na perspectiva histórica, lá nos anos 1940, pós-Vargas, a universidade discutia um projeto de nação, um projeto de sociedade, um projeto de desenvolvimento. Era a universidade dos nossos grandes mestres: Florestan Fernandes, Caio Prado Junior, Darcy Ribeiro, Demerval Saviani, Sérgio Buarque de Holanda, Milton Santos, Celso Furtado. Eles nos ajudaram como pesquisadores, como professores, como intelectuais produtores de livros, nos ajudaram a pensar a nossa especificidade e eles foram intelectuais que se engajaram em um projeto de nação. Eu acho que a crise da universidade tem a ver com a adesão a uma lógica não da sociedade, mas do mercado. Ela foi sendo encurralada pelo mercado. Mas ela ainda produz conhecimento que esclarece à sociedade, ainda tem pesquisa interessante em todos os campos e, por isso, apesar dos movimentos estranhos de aproximação do mercado, a universidade ainda representa um perigo para as oligarquias que dominam o país. Por isso, como diz Darcy Ribeiro em relação à escola pública, o sucateamento das universidades não é uma distração, é um projeto da burguesia brasileira. Nos anos 1990, o então Ministro da Educação Paulo Renato disse na Revista Exame: “Nós não precisamos de muita gente na Universidade. É mais econômico mandar nossas cabeças fazer um curso fora e comprar o conhecimento”. Essa é a expressão de uma oligarquia associada ao grande capital, que vende o país e ganha muito com isso. Então, pra essas mentes, nós não precisamos produzir nossa ciência original. Nós devemos ficar aqui com as tarefas de exportação de minério, de matéria bruta, formando a mão de obra simples, com pequenos nichos para o mercado interno. Nos anos 1990, não foi criada nenhuma universidade pública federal. A gente deve, então, um reconhecimento ao governo Lula. Por mais críticas que possamos ter em outros campos, foram criadas, nos governos Lula, dezesseis universidades públicas. Elas chegaram ao interior, à fronteira sul. Aqui eu tenho uma tese feita por um rapaz que é de um assentamento sem teto, em Laranjeiras do Sul. O irmão desse cara está também fazendo uma tese, orientada por Floriano José Godinho de Oliveira e por mim, sobre o problema da água. Então, estamos produzindo conhecimento para a sociedade, mas ainda está aquém do que a gente precisa produzir. A crise da universidade só é uma crise porque ela foi computada a partir de critérios caros ao mercado. Nós nos desligamos de um projeto para a sociedade, e isso acontece em todas as áreas. Nossa tarefa agora é recuperar essa universidade, a “universidade necessária”, a universidade que tenha o conhecimento como direito universal. Temos que parar de gerar o conhecimento priorizando o mercado. Nós temos que produzir o conhecimento para a sociedade.

Leonardo Nolasco - Já mencionamos aqui o “Escola‘sem’ Partido”... Tem crescido na sociedade um movimento de criminalização do ensino livre, colocando a universidade, as escolas e os professores como inimigos de uma suposta moralidade pública. Como você analisa esse cenário?

Gaudêncio Frigotto - Eu vejo essa questão do “Escola‘sem’ partido”, como a materialização de um processo gradativo, como dizia. Nos anos 1980, no bojo do movimento da Constituinte, começou a surgir um movimento que nós chamamos de “Escola S.A.”. Dizia-se que a escola pública ia mal e que tinha que ter uma outra forma de gerir a educação. A ideia era formar cooperativas onde o professor deixaria de ser funcionário público para se tornar um cooperativado. Ele seria remunerado de acordo com a quantidade de alunos. Começou lá no Paraná, mas não deu em nada porque existia uma força de resistência na sociedade. Mais tarde, nos anos 1990, voltamos a observar esse discurso que atribui os males da escola pública a um problema de gestão. A solução, então, seria utilizar critérios do mercado para salvar a escola pública. Outro passo era dizer que a universidade ensinava teoria demais. Ela tinha que formar o professor para “as regras do bem ensinar”, citando um livro americano Quarenta técnicas para formar campeões. Isso veio até o fim de década de 1990, quando o governo Lula assumiu o poder. Nós temos que analisar historicamente. Esse processo aparentemente foi estancado, mas o núcleo duro da classe dominante brasileira percebeu que, com Lula, uma base social mais popular ganhava forças. E eram forças de mudanças mais profundas do que se poderia querer do ponto de vista dos interesses dessa oligarquia. E começaram dois movimentos a partir disso: “O Escola ‘sem’ Partido”, em 2004, e o “Todos pela Educação”, em 2005. O “Todos pela Educação”passou a ser membro do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE). São catorze grupos maiores, como bancos, com dezoito institutos privados que querem vender educação. Eles foram tomando a gestão, tomando o método, a teoria, o conteúdo e, agora, eles querem tomar o direito de interpretar. Eles alegam que o professor trabalhava mal porque era mal gerido. Trabalhava mal porque tinha teoria demais. Agora o professor tem que ser gerido no critério mercantil. A reforma do Ensino Médio é isso. O Instituto Ayrton Senna está lá gerindo escola, modelinho americano. Tem que administrar pelo critério do mercado. O conteúdo é o que serve ao mercado e a interpretação é aquela que também serve ao mercado. Esse é um ponto que tem elementos menos visíveis de posturas fascistas. E o que isso causa no professor? O medo, de um lado, e a violência, do outro. Porque quando a “pedagogia do medo” não basta, o cara entra na escola e tira as coisas, tira os cartazes, ameaça. Nós já vimos isso acontecer aqui dentro. O resultado da eleição de ontem é reflexo, também, do medo. Porque as pessoas te agridem quando você pensa diferente delas. Mataram lá na Bahia o mestre de capoeira. Aí você pergunta: quais são as saídas? O grande desafio, talvez, seja recuperarmos o sentido de coletivo, de associação científica, de associação cultural, do sindicado, do partido político. Porque, isoladamente, a gente tem mais medo. O Antônio Cândido conclui um texto com a citação de um filósofo [Le GaiSavoir, filósofo alemão],que diz mais ou menos assim: “Não tenha medo da pobreza, não tenha medo da prisão, não tenha medo do exílio.Sequer tenha medo da morte, mas tenha medo do medo”. Os jornais da noite, pode ver, é medo, medo, medo, violência, violência, violência. Esses são os dois elementos de conservadorismo político mais brutal que foram nos impondo - a nós, professores. Eu tenho dito que, com os meus setenta anos, se me prenderem eu vou ter uns dez, quinze anos pra escrever o que não escrevi. Eu tenho dado conferências nas escolas e tenho visto que as pessoas têm medo, muito medo. E nós precisamos vencer isso. Se esse cara ganha [Jair Bolsonaro venceu a eleição presidencial no segundo turno], essa vai ser a agenda do dia a dia: ampliar o medo. E tem também a questão jurídica e a questão da polícia. A polícia te investiga e ponto. Cria-se a estratégia de condenar antes para depois julgar. Antônio Cândido, em “O caráter da repressão” fala como se constrói o medo. É pela acusação. Ele mostra, pela literatura, a origem e o papel da polícia. Ele diz o seguinte: “a polícia é um poder bastardo para arrancar a verdade a quem a encomenda.” A síntese do texto que faço é essa. E o que é a “delação premiada”? O cara tem vinte e quatro anos de prisão e tem uma versão dos fatos. Se ele muda a versão, ele tem quatro anos de prisão.

Adelia Miglievich - Ainda sobre o medo que os professores sentem, como vencê-lo? Como continuar sendo professor apesar disso tudo?

Gaudêncio Frigotto - Sempre quando discuto isso, pergunto: o que é ser professor? Professor é alguém que passa anos se preparando para um campo de conhecimento, para tecer uma relação entre sujeito professor e sujeito aluno. Aprendemos isso com Paulo Freire, com Piaget. Então, a função é tomar um conhecimento produzido no campo da física, da química, da matemática e trabalhar não com o sujeito abstrato, mas com um sujeito de conhecimento. O MST, nesse ponto, até avançou muito na teoria pedagógica. Os intelectuais do MST defendem que a pedagogia do movimento não começa na escola, começa na sociedade. Tem na escola um papel fundamental, mas volta sempre à sociedade. A nossa função, eu entendo, é organizar o conhecimento na relação com os sujeitos, que são sujeitos de conhecimento. Porém, esse professor hoje começa a ser pautado no conteúdo que ele tem que ensinar. E ele também não pode interpretar com a visão dele, mas com a do livro. Porém, nosso papel é mostrar que o livro não é necessariamente a realidade, mas uma interpretação que tem que ser confrontada com a realidade. O que eles estão tentando fazer é liquidar com a função docente. Esse docente já é mal remunerado, o tempo dele é massacrado porque ele tem que trabalhar em dois, três lugares e, agora, se “arranca”, se captura a subjetividade dele, faz-se um sequestro dele como sujeito. Isto é, aquilo que ele aprendeu, aquele pensamento crítico, ele não é mais autorizado a praticar, ele é proibido de usar. É por isso que os sindicatos hoje são fundamentais, pra dar um suporte jurídico, inclusive. Várias universidades têm professores que foram processados e isso vai gerando o medo de perder o emprego. Esse medo tem o poder de congelar a luta política.

Leonardo Nolasco - Como você vê a relação dos professores com os sindicatos hoje?

Gaudêncio Frigotto - Olha, eu acho que não “caiu a ficha” ainda. Sindicato não é partido político. Ele tem que trabalhar num campo mais largo. Se nós conseguíssemos trabalhar o campo democrático, amplo, que vai nos mais diferentes níveis, o direito da defesa corporativa, a defesa da saúde do trabalhador, a defesa do tempo do professor, a defesa da liberdade de expressão do professor, isso são valores e essa já é uma agenda que os sindicatos já têm que trabalhar, mas sem dúvida nenhuma, eu diria que não “caiu a ficha”, até porque agora, o próprio sistema, a reforma trabalhista, atingiu na medula o sindicato. A gente tem que democratizar por dentro o sindicato, porque os sindicatos também viraram oligarquias. Há sindicatos públicos que as diretorias se reproduzem há vinte e cinco anos.Temos inúmeras tarefas, mas há aquelas que são urgentes. Uma urgência, por exemplo, é defender a frágil democracia que nós temos. E, pra isso, temos que nos organizar para a defesa desses valores - um deles, sem dúvida, é o direito de a gente interpretar. Se eu entro na sala de aula com medo, imaginando que o aluno vai ser um “dedo duro”, qual é a minha disposição? Eu me bloqueio. E é isso que está acontecendo com a pessoa que se sente fragilizada e isolada. Eu sinto o medo nas pessoas, é um medo de falar, fazer um debate, provocar. Eu fui fazer uma fala, no interior do Paraná e em São Paulo, e em algum instante puxei a questão do “Escola‘Sem’ Partido”. E uma professora disse que o professor não tem que falar de sexo mesmo, porque isso é uma questão de família. Professor não tem que falar de religião, isso é uma questão de família. E eu disse, como não? O que é sexo? E eu tive [professor] “padreco”, estudei pra padre e tive a felicidade de ter um professor de biologia que falou de sexo o tempo todo. Não o sexo como juízo moral, mas como a reprodução da vida, como a beleza da reprodução da vida. Ele narrava como a natureza reproduz, falava do cuidado com a reprodução da vida e dos cuidados que se devia ter para não se produzir um filho quando não se tinha condição de produzir. Isso faz parte da saúde da sociedade. E outra coisa, claro que não se deve impor religião. Mas uma disciplina que, pra mim, foi vital foi a Antropologia das Religiões. O que era então? Debates urgentes que não podem ser silenciados. Essa professora permaneceu no debate e foi ótimo ela ter ficado, porque os professores estão sendo proibidos de falar sobre assuntos polêmicos. Por isso, nosso papel também é incentivar a coletividade, a organização, a falar sobre os procedimentos legais porque esses são elementos constitutivos da democracia. O “Escola‘sem’ Partido”, já tem um feito, como diz o Fernando de Araújo Penna, mesmo antes de ser legalizado. Eles sabem disso. Nós temos um movimento de “guerra de posição”, como diria Gramsci. Ou seja, nós não podemos abrir mão daquilo que fazíamos: formar o professor para a leitura crítica do mundo. E o que é a leitura crítica? É mostrar o que está subjacente. Não é doutrinar. É ajudar a ler a realidade não pelo aparente, mas por aquilo que a produz. Agora, nós temos que discutir e entender o que aconteceu neste tempo e que pegou a nós todos de surpresa. Temos que pesquisar de onde brotou essa força, não podemos abrir mão disso. E não podemos abrir mão coletivamente. Porque prender um professor é uma coisa. Prender uma universidade ou um colegiado é outra. A gente tem que se proteger. São os homens e as mulheres que lutam os responsáveis por abrir ou fechar o ciclo da história. A ditadura durou vinte e um anos e houve, nesse tempo, produção de conhecimento, teve luta, teve resistência. Então, nós também vamos resistir. Vamos fazer o papel que nos compete, que é reconhecer a heterogeneidade desses sujeitos que passamos a receber na universidade. Reconhecendo-os em suas especificidades, vamos produzir um conhecimento que ajude esse jovem a ler o mundo e a ter a sua autonomia. Nós temos que olhar o tempo desses sujeitos, os valores desses sujeitos. E só a partir disso, construir essa realidade. Eu sempre digo o seguinte: Conhecimento e teorias são formas de entender como se produzem realidades que podem dialogar. Algo como: “Olha, dentro da minha visão, dentro do meu campo, digamos, epistemológico, teórico, eu vou tentar levar até as últimas consequências a base do meu ponto de vista. Mas isso não quer dizer que você precisa levar o seu raciocínio para junto do meu. Eu quero que você tenha um ponto de vista, um ponto de partida diferente. Que ele me interpele, mas eu também quero te interpelar. E ambos podemos incorporar elementos sem negar aquela visão de conhecimento que temos”. Um foucaultiano pode dialogar com um marxista, com um freudiano, com um deleuziano. Enfim, não temos os mesmos pontos de partida, mas eles não são excludentes. Não existe isso, porque isso seria de um autoritarismo brutal. Eu acho que esse é o papel do sindicato: fortificar o debate e a universidade. Não podemos abrir mão de fazermos debates mais amplos. A universidade tem que discutir, nada pode ser proibido de discussão dentro da universidade. Nós temos que discutir o fascismo. Nós temos que discutir a questão da doença no

trabalho. Aqui se busca discutir os temas que interessam à humanidade. Não podemos abrir mão disso.

LeonardoNolasco - Gaudêncio, entre esses desafios que envolvem uma visão de mundo mais ampla e mais dialogada, como você tem visto a reforma do Ensino Médio?

Gaudêncio Frigotto - Ela sintetiza e -s retrocessos que nós tivemos. O cara não vai fazer cinco itinerários. Ele será conduzido para um campo e ficará “neutro”. É um retrocesso até em relação à reforma da ditadura. É uma contra-reforma direcionada aos filhos e filhas da classe trabalhadora que frequentam a escola pública. Os colégios privados, que formam a burguesia, a alta burguesia - nem Santo Inácio, nem Santo Agostinho - nenhum desses colégios vai abrir mão de debater o mundo porque senão vai perder os alunos. A interdição ao pensamento mais complexo e aos instrumentos que preparam para o trabalho complexo é uma crueldade. O aluno vai ter uma preparação rasa, mesmo em matérias que interessam ao desenvolvimento capitalista, como Física, Química, Biologia. O que vai ser obrigatório? Língua Portuguesa, Matemática e Inglês. O termo que encontro para explicar isso é interdição mesmo. Eles querem interditar as universidades. É o fim das licenciaturas também. Quem vai querer fazer Geografia, História, Química, Biologia para depois se dividir entre várias escolas pra dar aula? As contra-reformas são cínicas porque elas têm uma lógica interna: é “ferrar” a esfera pública, o trabalhador, o filho e a filha da classe trabalhadora.

Adelia Miglievich - Como você avalia a UERJ - e sua especificidade como universidade popular que atende a um grande público trabalhador - no âmbito dessa crise das universidades?

Gaudêncio Frigotto - Ela fica no “olho do furacão”. Quando me aposentei na UFF, me aposentei novo, muito novo, com cinquenta e seis anos. E um lugar que sempre quis trabalhar foi a UERJ. Porque era a universidade que mais tinha raízes na classe popular. Ainda que a classe popular não esteja dentro dela, de fato. Aliás, em um debate de história, no processo do golpe, da crise da UERJ, houve um debate e fui participar. Aí, um jovem negro da Baixada disse o seguinte: “sem dúvida, a UERJ é uma universidade que defende o popular, mas ainda não é uma universidade popular.” Ele tem razão. Então, porque ela está no “olho do furacão”? Do ponto de vista do obscurantismo, do fanatismo das seitas que vendem Deus como quem vende uma mercadoria, não há interesse que esses jovens - que poderiam ser suas “massas de manobras” - venham para a universidade. Se o governo for mesmo este que está anunciado, temos que nos preparar ainda mais, temos que fazer um contorno de defesa muito pesado. O que eles querem não é apenas privatizar. Eles querem acabar com as ciências e com as pesquisas. Estamos no “olho do furacão” nacional e localmente.

Leonardo Nolasco - Gaudêncio, dentro do “olho do furacão”, eu queria que você falasse um pouco da sua atuação direta em duas frentes aqui na UERJ, que é o Programa de Pós-graduação em Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH) e o Laboratório de Políticas Públicas (LPP). Qual a importância dessas duas frentes de trabalho para todo esse cenário que você acaba de desenhar pra gente

Gaudêncio Frigotto - O PPFH é um programa leve, porque são poucos professores. Tivemos a sorte de ter professores que já tinham uma história e fomos incorporando gente nova. Nós não colocamos nenhuma meta de sermos um programa “top”. Nós não queremos submeter o programa à radicalidade. Preferimos não ter bolsa, se for o caso. Preferimos ter um convívio saudável. Temos um grupo, que não é tão grande, que vai mais pro marxismo e outro que vai pra Foucault, Deleuze. Mas temos uma boa convivência, um diálogo. Outra coisa positiva no programa é que trabalhamos com muitos alunos vinculados à vida prática, à classe trabalhadora, aos movimentos sociais, às escolas. É um público mais maduro, então “dá um samba” interessante. É um programa que acredita em uma universidade que não abre mão do conhecimento rigoroso, mas desde que vinculado à vida, aos projetos de sociedade. É um programa em que aprendemos muito com o aluno. Tem um menino que produziu sobre cotas e ele é um menino de cotas, fez um trabalho muito crítico. Tem alunos dos movimentos Povo sem Medo e do MST. Como é um programa interdisciplinar, vem gente da História, da Psicologia, da Educação. Já o LPP é um laboratório de atividades. O André Lázaro tem ali um trabalho interessante no campo da extensão. E temos hoje o papel de estimular debate, né? Criou-se uma mini editora. E já são cinco, seis livros que produzimos, que se autofinanciam. Começamos com o dinheiro da pesquisa da gente, o livro sobre o Escola ‘sem’ Partido vendeu, ele está em PDF, mas vendeu muito e com ele nós produzimos o Escola Democrática. São textos curtinhos e que tentam chegar lá no “chão da escola”, no “chão do movimento”.

Leonardo Nolasco - Para encerrar, nós gostaríamos de pedir que você deixasse uma mensagem para os seus colegas, seus alunos nessa conjuntura tão difícil.

Gaudêncio Frigotto - Vou repetir uma citação já feita nessa conversa: “Não tenha medo da pobreza, não tenha medo do exílio, não tenha medo da prisão, não tenha medo sequer da morte, mas tenha medo do medo”. Saibamos que nenhum tempo é eterno. Nossa tarefa,como professores e estudantes, é não declinar daqueles valores que são fundamentais. Qualquer pessoa é única no mundo e ela vale pelo mundo.

1Entrevista realizada no dia 8 de Outubro de 2018, por Adélia Miglievich Ribeiro e Leonardo Nolasco-Silva, na Faculdade de Educação da UERJ.

2 As pesquisas apontavam que, para o segundo turno da eleição para o governo do Estado do Rio de Janeiro, iriam Eduardo Paes (DEM) e Romário (PODEMOS). O candidato Wilson Witzel, pelo partido PSC, aparecia até à véspera do primeiro turno, como 4º colocado. Contudo, seguiram para o segundo turno Eduardo Paes, do DEM, e Witzel, do PSC. No segundo turno, Paes é derrotado por Witzel com um percentual de 59,87% dos votos válidos.

3 Os colchetes serão sempre dos entrevistadores a fim de situar a fala, quando necessário, no contexto em que ela se dava, isto é, do dia 8 de outubro de 2018. Ou, para complementar informações possivelmente relevantes ao leitor.

4 O entrevistado vai passando a nós, entrevistadores, os livros citados e que estão sobre sua mesa.

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