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Revista Teias

versão impressa ISSN 1518-5370versão On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.20 no.57 Rio de Janeiro abr./jun 2019  Epub 18-Dez-2019

https://doi.org/10.12957/teias.2019.42967 

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AS OCUPAÇÕES ESCOLARES DE 2015 E 2016 PELA LEITURA DA ÉTICA DA LIBERTAÇÃO

THE SCHOOL OCCUPATIONS OF 2015 AND 2016 FOR THE READING OF THE ETHICS OF LIBERATION

LAS OCUPACIONES ESCOLARES DE 2015 Y 2016 POR LA LECTURA DE LA ÉTICA DE LA LIBERACIÓN

Márcia Maria Rodrigues Uchôa(*) 

Jerry Adriano Villanova Chacon(**) 

Mariana Vilella(***) 

(*)Doutora em Educação: Currículo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Mestra em Ciências da Linguagem pela Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Especialista em Psicopedagogia e Gestão Escolar pelo ICE. Licenciada em Pedagogia pela UNIR. Atua como Editora na Revista e-Curriculum da PUC-SP.

(**)Doutorando em Educação: Currículo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Mestre em Educação: Currículo pela PUC-SP. Especialista em Ensino Religioso, Psicopedagogia e Direito Educacional. Licenciado em Filosofia pela UNIFAI, em Pedagogia pela UNINOVE e em Letras pela UNIJALES. Atua como Professor de História, Filosofia e Sociologia.

(***)Doutoranda em Educação: Currículo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) com bolsa CNPq. Mestra em Educação: Currículo pela PUC-SP. Graduada em Direito na USP.


RESUMO

O trabalho propõe uma análise do movimento de ocupações escolares nos anos de 2015 e 2016 no estado de São Paulo, sob a ótica da ética da libertação. Trata-se de uma abordagem qualitativa, decorrente de pesquisa exploratória e bibliográfica, com o intento de descrever as características do movimento e fazer uma leitura analítica com o aporte bibliográfico em Enrique Dussel (2002) e a sua ética da libertação e as contribuições de Theodor Adorno (2003) e Paulo Freire (2011), com os seus respectivos conceitos de emancipação e autonomia. As ocupações escolares surgem como um movimento insurgente dos estudantes secundaristas contra o governo do estado, que deliberou sobre a política de reorganização das escolas, uma ação arbitrária e antidemocrática diante da comunidade de vítimas afetadas. A estratégia de ocupações de escolas reflete o anúncio da autonomia dos estudantes.

Palavras-chave: Ocupações escolares; Ética da libertação; Estudantes secundaristas

ABSTRACT

The paper proposes an analysis of the movement of school occupations in the years of 2015 and 2016 in the state of São Paulo, under the Ethic of Liberation. This is a qualitative approach, derived from exploratory and bibliographical research, with the aim of describing the characteristics of the movement and analytic reading with the bibliographical contribution of Enrique Dussel (2002) and his ethics of liberation and contributions of Theodor Adorno (2003) and Paulo Freire (2011), with their respective concepts of emancipation and autonomy. School occupations emerge as an insurgent movement of secondary students against the state government, which deliberated on the policy of reorganizing schools, an arbitrary and undemocratic action for the community of affected victims. The strategy of school occupations achieved a favorable result to the demand of the students.

Keywords: School occupations; Ethics of liberation; Secondary students

RESUMEN

El trabajo propone un análisis del movimiento de ocupaciones escolares en los años de 2015 y 2016 en el estado de São Paulo, bajo la óptica de la ética de la liberación. Se trata de un abordaje cualitativo, derivado de la investigación exploratoria y bibliográfica, con el propósito de describir las características del movimiento y hacer una lectura analítica con el aporte bibliográfico en Enrique Dussel (2002) y su ética de la liberación y las contribuciones de Theodor Adorno (2003) y Paulo Freire (2011), con sus respectivos conceptos de emancipación y autonomía. Las ocupaciones escolares surgen como un movimiento insurgente de los estudiantes secundarios contra el gobierno del estado, que deliberó sobre la política de reorganización de las escuelas, una acción arbitraria y antidemocrática ante la comunidad de víctimas afectadas. La estrategia de ocupaciones de escuelas obtuvo un resultado favorable a la demanda de los estudiantes.

Palabras clave: Ocupaciones escolares; Ética de la liberación; Estudiantes secundarios

INTRODUÇÃO

O presente artigo reflete sobre as ocupações de escolas públicas por estudantes secundaristas, que ocorreram em diversos estados do Brasil, principalmente nos anos de 2015 e 2016, no estado de São Paulo.

O movimento será aqui observado à luz da ética da libertação, desenvolvida pelo filósofo Enrique Dussel (2002), e seu olhar para os excluídos e para as vítimas, dialogando com os conceitos de emancipação e autonomia, em Adorno (2003) e Freire (2011).

Preliminarmente, resgatamos o contexto em que o movimento sucedeu e os principais acontecimentos que lhe caracterizam. Em seguida, trazemos as bases conceituais para a análise das ocupações, as quais reverberam o anúncio da autonomia dos estudantes diante de um sistema opressor que não dialogou com a comunidade escolar vitimada.

Além disso, o contexto paulista nos interessa pela força que foi dada a esse argumento da participação e da voz ativa dos sujeitos, no caso os estudantes, que se afirmaram como parte de um sistema que, paradoxalmente criado para atender seu direito à educação, não lhes considerava parte das decisões.

ESTUDANTES SECUNDARISTAS E AS OCUPAÇÕES ESCOLARES EM 2015 E 2016

São as vítimas, quando irrompem na história, que criam o novo.

(DUSSEL, 2002, p. 501).

No dia 23 de setembro de 2015, uma reportagem do jornal Folha de São Paulo1 anunciou um plano do Governo do estado de São Paulo, então comandado por Geraldo Alckmin, de implementar uma política de reorganização das escolas estaduais. A medida implicaria, dentre outras mudanças, no fechamento de 94 escolas e na mudança estrutural de outras 754 unidades, que passariam a ter um ciclo único. Nos dias que se seguiram ao anúncio, houve pronunciamento de sindicatos de professores e da Secretaria de Educação do Estado, algumas notas oficiais com tentativas de esclarecimento e um cenário que explicitou, antes de qualquer julgamento sobre o conteúdo da reforma, grave lacuna na capacidade de comunicação e diálogo do governo com a escola, em especial com os estudantes.

Segundo números divulgados pela imprensa2, e confirmados pela Secretaria de Educação, cerca de 311 mil alunos e 74 mil professores seriam diretamente afetados com as mudanças. Inconformados com as propostas e como a ausência de diálogo em sua formulação e implementação, um grupo de estudantes secundaristas de SP iniciou uma série de manifestações, que foram crescendo em número e impacto.

Inicialmente, os estudantes foram às ruas. Relata-se cerca de duzentos atos de protestos entre o fim de setembro e início de novembro de 2015, na capital e no interior.

A mobilização envolveu diferentes modalidades de protestos de rua: atos em frente a unidades escolares, desde protestos que simplesmente paralisavam as aulas ou até mesmo um ato fúnebre no Dia de Finados para velar a escola que seria fechada; passeatas, às vezes percorrendo vários quilômetros; trancamentos de ruas, avenidas e até rodovias; e atos-debate. Havia, em geral, cartazes, faixas, panfletos e, eventualmente, bexigas, rostos pintados, narizes de palhaço, apitos, barricadas, carros de som e abaixo-assinados (CAMPOS, MEDEIROS, RIBEIRO, 2016, p. 41).

Os atos, contudo, não surtiram efeito em mobilizar a mídia, a população em geral e, tampouco, o Governo do Estado. Sem acesso a um canal de diálogo efetivo com o governo, depois de algumas semanas, a estratégia dos atos foi perdendo força.

A frustração com a intransigência do governo e a falta de atenção da mídia aos protestos desgasta os estudantes, e as manifestações centralizadas são reduzidas cada vez mais a entidades e grupos políticos (partidários ou estudantis) já consolidados do campo de esquerda (governistas ou não). Porém, não foram apenas os atos centralizados na capital paulista que foram diminuindo de tamanho; o desgaste também atingiu as manifestações no interior, no litoral e na Grande São Paulo, que caíram abruptamente conforme o mês de outubro chegava ao fim, havendo ainda alguns protestos em diferentes regiões da capital. Estes protestos localizados também se deparam com um governo sem disposição para um verdadeiro diálogo. Estudantes da EE Salvador Allende, por exemplo, localizada na Zona Leste de São Paulo, realizaram um ato de rua em direção à sua Diretoria de Ensino. A supervisora “se negou por quase duas horas a descer de sua sala para conversar com os estudantes” (CAMPOS, MEDEIROS, RIBEIRO, 2016, p. 52).

Esse relato contribui para mostrar que as ocupações não foram a escolha inicial dos estudantes. O movimento teve de ir se reorganizando e adequando as estratégias até que a voz dos estudantes fosse ouvida, o que não vinha acontecendo, mesmo com as centenas de atos pelo Estado. Ainda sobre esse ponto, Campos, Medeiros e Ribeiro (2016, p. 55), trazem relatos de estudantes dizendo que, de início, as ocupações pareciam uma loucura mesmo para os estudantes mais engajados, mas, organizados e apoiados no exemplo de estudantes argentinos e chilenos, relatados em uma cartilha adaptada para o Brasil, a tática foi se apresentando como o próximo passo:

O manual „Como ocupar um colégio?‟ foi traduzido e adaptado pelo coletivo O Mal Educado a partir de documento elaborado pela seção argentina da “Frente de Estudantes Libertários” sobre sua experiência de luta, inspirada, por sua vez, na luta dos secundaristas chilenos.

A primeira escola ocupada, em 9 de dezembro de 2015, foi a EE Diadema, na Grande São Paulo. No dia seguinte, a EE Fernão Dias Paes, em região nobre da Capital, também foi ocupada, o que motivou grande repercussão na mídia e nas redes sociais.

Na primeira reação do Governo às ocupações, em uma audiência de negociação com os estudantes, foi proposta uma suspensão de 10 dias, para diálogos sobre a reforma. Os estudantes não aceitaram e o movimento se expandiu, atingindo um número de mais de 200 escolas ocupadas, em dezembro daquele ano.

As ocupações foram acompanhadas de manifestações e atos na rua, muitos deles reprimidos com truculência pela Polícia Militar. Uma das consequências mais destacadas na imprensa é que o SARESP, principal avaliação externa estadual, deixou de ser aplicado em diversas unidades3.

Ainda no início de dezembro, a repercussão do movimento já era muito ruim para a popularidade do Governador. Importante destacar que os estudantes produziam seus próprios canais e conteúdos de comunicação, o que incluía mídias próprias, além de músicas, aulas abertas e atos performáticos. Esse conteúdo foi ganhando em disseminação.

Com o movimento em franca expansão e grande cobertura da mídia tradicional e alternativa, em 4 de dezembro de 2015, o governador anunciou a suspensão da reorganização, prometendo que o ano de 2016 seria para debater efetivamente as reformas. O então secretário de educação, Herman Voorwald, renunciou ao cargo.

Na sequência, confirmadas as ações de suspensão e revogação dos atos da reorganização, as escolas foram sendo paulatinamente desocupadas, até o final do ano.

Não obstante, é válido lembrar que, nos meses que se seguiram ao acontecimento em São Paulo, outros estados e municípios tiveram escolas públicas ocupadas por diferentes motivos. Segundo levantamento da imprensa4, em 2016, mais de 1100 escolas foram ocupadas em 22 estados brasileiros e Distrito Federal. O maior foco de ocupações foi o Paraná, onde 850 instituições foram ocupadas por grupos de estudantes. Nesse Estado, ganhou destaque o discurso de Ana Júlia Ribeiro5, estudante secundarista, feito na Assembleia Legislativa do Paraná, defendendo as ocupações e as pautas que as mobilizavam.

A ÉTICA DA LIBERTAÇÃO E SEUS CONCEITOS CENTRAIS

Em Ética da Libertação: na idade da globalização e da exclusão, o filósofo latino- americano Enrique Dussel (2002) faz uma longa inserção histórica para nos mostrar que a ética é parte das disputas políticas do mundo que, em última instância, são disputas econômicas. A ética hegemônica historicamente foi aquela que validou a história dos vencedores. Onde estava a economia e a riqueza estava a ética. Dussel vai inverter essas referências e dizer que a ética deve estar onde está a pobreza, a marginalização, a negação da vida. A ética da libertação, assim, não é uma ética dos vencedores, mas uma ética das vítimas. É para as vítimas das injustiças do mundo que o filósofo vai olhar quando propõe um movimento ético, jurídico, político e filosófico de superação das injustiças pela tomada de consciência.

O movimento da ética da libertação tem um primeiro passo, partindo do princípio ético- material, no qual se funda a materialidade e a concretude da vida, com pretensão de verdade prática, pela exigência da reprodução e desenvolvimento da vida humana.

O segundo passo é a moral-formal, da validade moral intersubjetiva e comunitária, que se cumpre a partir da razão formal discursiva, pela participação dos sujeitos afetados no discurso, com pretensão de validade universal.

O movimento completa-se com o princípio ético-processual, que é a realização do componente da factibilidade, que determina aquilo que se deve fazer, enquanto obrigação ética, que desemboca nas ações práticas, portanto boas, já que a bondade do ato está na ação.

O princípio ético-crítico de Dussel assenta-se: 1. No reconhecimento da vítima enquanto ser que tem dignidade própria; 2. Na corresponsabilidade pela vida da vítima, pelo dever ético de tomar sua vida como encargo; 3. Na crítica ao sistema que vitima o sujeito, para que não produza novas vítimas. A crítica ao sistema deve ser uma prática constante, em vista da justiça e da solidariedade, de modo que a impossibilidade da vida das vítimas se comute em capacidade de viver, e viver melhor (DUSSEL, 2002).

Há presente nesse princípio uma ambivalência da vida humana, que é explicitada pela sua negatividade e positividade. A negatividade ética existe pelo corpo que é vitimado, com a fome, a dor e o sofrimento. Essa negatividade é inevitável, considerando as imperfeições dos sistemas, como também, as pulsões humanas que revelam a incompletude inerente à condição de todos. Todavia, há uma positividade intrínseca a esse movimento, pela aquisição de uma nova consciência do sujeito, que o conduzirá para a crítica e o aperfeiçoamento do sistema. Assim, a consciência é a atualização das pulsões humanas.

A partir da exterioridade das vítimas, a totalidade (sistema hegemônico econômico, político, cultural etc.) é subsumida (negada e assumida), podendo ser transformada.

Enquanto o método dialético avança de modo circular na totalidade sistêmica ou de totalidade em totalidade (hegemônica), o método dusseliano analético, por seu turno, compreende toda a exterioridade do Outro, permite-nos o deslocamento fora da totalidade do sistema, (analético - além de...) o que nos possibilita a interpretação e compreensão dos processos históricos, econômicos e sociais que envolvem o sujeito.

[...] A passagem da Totalidade ontológica ao Outro como outro é ana-lética, discurso negativo a partir da Totalidade, porque se pensa a impossibilidade de pensar o Outro positivamente a partir da mesma Totalidade; discurso positivo da Totalidade, quando pensa a possibilidade de interpretar a revelação do Outro a partir do Outro[...]” (DUSSEL apudCASALI, 1979, p. 33).

Ao romper com a totalidade hegemônica, o movimento analético irrompe a exterioridade do Outro e o remete à afirmação da sua vida. A manifestação da dignidade e da vida é o caminho da ética da libertação.

O princípio ético-crítico completa-se pelo movimento analético, que proporciona a libertação pela conscientização, porque revela o Outro e considera seu discurso, é o fundamento da filosofia latino-americana, pela construção de uma ética totalizante do ser, abrangendo suas múltiplas dimensões.

Ao ser uma ética libertadora, possui uma ação pedagógica implícita e inerente a ela. Nesse ponto, uma das grandes referências de Dussel é Paulo Freire e sua pedagogia comprometida com a conscientização dos sujeitos, para construção da autonomia.

Autonomia é, em Freire (2011), uma condição indispensável para o educando em um processo educacional crítico, manifestada pela liberdade para criar, pronunciar sua palavra, afirmar sua dignidade e emancipar-se:

[...] uma das tarefas mais importantes da prática educativo-crítica é propiciar as condições em que os educandos em relação uns com os outros e todos com o professor ou a professora ensaiam a experiência profunda de assumir-se. Assumir-se como ser social e histórico, como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar. Assumir-se como sujeito porque capaz de reconhecer-se como objeto. A assunção de nós mesmos não significa a exclusão dos outros. É a “outredade” do “não eu”, ou do tu, que me faz assumir a radicalidade de meu eu (FREIRE, 2011, p. 42, grifo do autor).

Uma Pedagogia para a Autonomia seria nesse sentido, uma pedagogia fundada na ética, no respeito à dignidade e à própria subjetividade do educando.

[...] O respeito à autonomia e à dignidade de cada um é um imperativo ético e não um favor que podemos ou não conceder uns aos outros. Precisamente porque éticos podemos desrespeitar a rigorosidade da ética e resvalar para a sua negação, por isso é imprescindível deixar claro que a possibilidade do desvio ético não pode receber outra designação senão a de transgressão (FREIRE, 2011, p. 58, grifo do autor).

Na ótica de Freire, cumpre ao educador estar atento à passagem da heteronomia para a autonomia dos educandos, pela consciência de que tanto pode se constituir como uma referência positiva ou negativa, estimulante ou desestimulante na vida dos educandos, o importante nesse processo é respeitar as suas escolhas.

[...] Em nome do respeito que devo aos alunos não tenho por que me omitir, por que ocultar a minha opção política assumindo uma neutralidade que não existe. Esta, a omissão do professor em nome do respeito ao aluno, talvez seja a melhor maneira de desrespeitá-lo. O meu papel, ao contrário, é o de quem testemunha o direito de comparar, de escolher, de romper, de decidir e estimular a assunção deste direito por parte dos educandos (FREIRE, 2011, p. 69).

Em similitude, Adorno (2003) ressalta a educação para a contradição e resistência como condição sine qua non para a efetivação do processo de emancipação, nos espaços escolares.

[...] Mesmo correndo o risco de ser taxado de filósofo, o que, afinal, sou, diria que a figura em que a emancipação se concretiza hoje em dia, e que não pode ser pressuposta sem mais nem menos, uma vez que ainda precisa ser elaborada em todos, mas realmente em todos os planos de nossa vida, e que, portanto, a única concretização efetiva da emancipação consiste em que aquelas poucas pessoas interessadas nesta direção orientem toda a sua energia para que a educação seja uma educação para a contradição e para a resistência. Por exemplo, imaginaria que nos níveis mais adiantados do colégio, mas provavelmente também nas escolas em geral, houvesse visitas conjuntas a filmes comerciais, mostrando-se simplesmente aos alunos as falsidades aí presentes; e que se proceda de maneira semelhante para imuniza-los contra determinados programas matinais ainda existentes nas rádios, em que nos domingos de manhã são tocadas músicas alegres como se vivêssemos num "mundo feliz", embora ele seja um verdadeiro horror; ou então que se leia junto com os alunos uma revista ilustrada, mostrando-lhes como são iludidas, aproveitando-se suas próprias necessidades impulsivas; ou então que um professor de música, não oriundo da música jovem, proceda a análises dos sucessos musicais, mostrando-lhes por que um hit da parada de sucessos e tão incomparavelmente pior do que um quarteto de Mozart ou de Beethoven ou uma peça verdadeiramente autêntica da nova música. Assim, tenta-se simplesmente começar despertando a consciência quanto a que os homens são enganados de modo permanente, pois hoje em dia o mecanismo da ausência de emancipação e o mundus vult decipi em âmbito planetário, de que o mundo quer ser enganado. A consciência de todos em relação a essas questões poderia resultar dos termos de uma crítica imanente, já que nenhuma democracia normal poderia se, dar ao luxo de se opor de maneira explícita a um tal esclarecimento. [...] (ADORNO, 2003, p. 181-2, destaques nossos).

No tocante a isso, Uchôa (2019) ressalta que sem a existência de práticas democráticas e sem uma educação crítica, que questione e que seja resistente ao poder hegemônico, a emancipação ficará num plano abstrato.

Somente pela autonomia que os estudantes terão a possibilidade de direcionar o rumo de suas próprias vidas, assumindo um caráter crítico e um protagonismo necessário para sua emancipação. A autonomia é uma condição histórica para um grupo que busca sua libertação, sendo esse processo comunitário e coletivo, já que na perspectiva da ética da libertação, a autonomia não é uma ação solipsista, mas decorrência de uma vida comunitária.

A educação quando não visa à promoção da autonomia se apresenta como repressora, antidemocrática e pretensamente neutra. Parece-nos que é frente a um processo educacional não pautado na autonomia que desponta toda a movimentação dos estudantes que, de maneira comunitária e coletiva, ocuparam escolas para gritar: “Eu me chamo, eu sou!” Esses nomes expressam um projeto de mudança grupal, de retorno crítico, ou de analética de libertação.

Nesse caso, as vítimas são os estudantes que, cansados do sistema de negação a eles imposto, se insurgem enquanto comunidade ou coletivo de libertação, por isso o ato das ocupações não significa apenas uma ação contra o sistema escolar ou contra o governo em geral, mas é, também, um grito contra todo um sistema-mundo negador da exterioridade, logo do Outro, do distinto enquanto ser humano dotado de dignidade, autonomia, direitos e deveres. São essas relações que exploramos nos tópicos a seguir.

UMA NOVA COMUNIDADE DISCURSIVA SURGE DIANTE DO SISTEMA

Fonte: Imagem do acervo pessoal de Mariana Vilella.

Imagem 1 EE Fernão Dias Paes, São Paulo, 2015 

A escolha ética sempre existe e é incontornável. Ela está no operar de um currículo ou projeto escolar. Qual a ética de um projeto de escola? Trata-se de um currículo que realiza direitos? O funcionamento de uma escola é a substância da ética que ali vige.

Com a lógica de consumo que permeia a educação, e isso também no ensino público, é muito comum que a ética do projeto da escola se volte para os “vencedores”. Um projeto que corre atrás e que trabalha para os vencedores. Aos excluídos, às vítimas para as quais esse sistema não funciona, resta um lugar de deslocamento ou de evasão. Assim tem sido a escola nas últimas décadas. A repetição ano após ano de um sistema que produz alguns vencedores e milhares de vítimas.

A voz dos secundaristas rompe com o movimento automático, inercial, desse sistema, que, mesmo diante de décadas de denúncias por diferentes movimentos acadêmicos e sociais, parecia impenetrável, imodificável. Quando o movimento secundarista irrompe na história para dizer “esse sistema não está garantindo meus direitos” trata-se das próprias vítimas fazendo a denúncia. Como destacamos no histórico, inicialmente, tiveram seu discurso ignorado ou deslegitimado. E é nesse contexto que, para que suas vozes fossem ouvidas, ocuparam suas escolas, de onde passaram a falar com apropriação (do espaço e da causa), para reivindicar direitos e a possibilidade de participação.

Assim, os secundaristas que ocuparam escolas surgiram e se organizaram como verdadeira comunidade intersubjetiva de vítimas que se põe diante do sistema e que quer falar e ser ouvido. Uma nova comunidade discursiva, portanto, que passa a questionar o sistema porque este lhe é insuficiente (ineficiência do sistema que produz vítimas) e porque os acordos que lhe atingem são tomados sem sua participação (estão fora do discurso hegemônico sobre qualidade na educação).

Conforme apontado por Dussel (2002), o movimento de crítica ao sistema vigente passa por um processo de consolidação formativa das bases, ou seja, é preciso um processo de conscientização da condição de vítima e da negação de seus direitos. Nesse sentido, não há como não apontar a escola como lócus fundamental para lograr esse processo, por isso, o fazer desses estudantes se coloca como dinâmica formativa dos sujeitos para um olhar mais crítico sobre o mundo. Essa afirmação não desconsidera que o movimento pedagógico libertador extrapola a escola, mas identifica o enorme potencial desse espaço.

O movimento das ocupações promovidas pelos estudantes suscita o ponto em que a filosofia da libertação se coloca contra a ontologia que se postula como clássica, pois tem seu núcleo no eixo europeu. É uma proposta de ontologia “desde el no-ser, la nada, lo opaco, el outro, la exterioridade, el excluído, el mistério del sinsentido, desde el grito del pobre parte nuestro pensar” (DUSSEL, 2011, p. 42). A radicalidade do filósofo pode até ser alvo de críticas ou até mesmo vista como uma pregação caritativa em defesa do excluído. Contudo, esse tipo de visão esconde um erro epistemológico, pois não é uma filosofia assistencialista, tendo em vista que ela não tem por objetivo um fazer por, ou seja, pescar para o vitimado. Pelo contrário, é uma filosofia que, a partir do grito do excluído, escuta a sua voz e o faz sujeito de sua libertação. A materialização desse fazer filosófico, então, é expressado, em grande parte, nas ocupações.

Em um mundo em que cada vez mais se nega a exterioridade, em que a alteridade é deixada em segundo plano, as ocupações trouxeram um dado ético muito forte, isto é, a negação da negação do sistema univocista posto. Trata-se da negação, da indiferença. A voz dos estudantes significa a exterioridade se manifestando de maneira organizada, comunitária. Eis a grande ética da libertação que se coloca.

A alteridade ou a exterioridade, então, são categorias importantes para a filosofia da libertação por trazerem outra lógica para a compreensão das relações. Nesse sentido, há uma crítica, como destaca Dussel (2011), à lógica da totalidade que aliena a exterioridade do Outro quando se dá a coisificação da alteridade do homem. A lógica, por sua vez, da exterioridade ou da alteridade estabelece o discurso a partir da liberdade do Outro, sendo uma lógica dotada dos princípios histórico e analético. A alteridade é a marca de um sujeito que nasce distinto. Os estudantes, em suma, são grandes provocadores, através de palavras e ações. Esse é o grande momento de manifestação oral da tomada de consciência da vítima frente à negação.

A QUEM PERTENCE A ESCOLA?

O grito que reverbera em várias esferas: “a quem pertence a escola?” pode ser ilustrado pelo ontológico discurso proferido por Ana Júlia Ribeiro, estudante da rede pública do estado do Paraná, na Câmara Legislativa daquele estado. Dá-se a irrupção do rosto do Outro que, por dentro do sistema, o questiona, o acusa, o condena como totalizador. A fala de Ana Júlia corrobora a afirmação de Dussel sobre a pedagogia de Paulo Freire de que é “impossível a educação sem que o educando se eduque a si mesmo no próprio processo de sua libertação” (DUSSEL, 2002, p. 435).

Eu sou Ana Julia, estudante secundarista do colégio Estadual Senador Manoel Alencar de Guimarães, tenho 16 anos e tô aqui pra conversar com vocês pra falar sobre as ocupações. A minha pergunta inicial é: de quem é a escola? a quem a escola pertence? Eu acredito que todos aqui já sabem essa resposta [...]6.

Ana Júlia traz na abertura do seu discurso a grande questão de todo processo de educação libertadora, crítica e democrática, isto é, reconhecer os sujeitos protagonistas da escola. A resposta não é difícil, pois está presente em muitos discursos, mas nem sempre o que está no papel atinge o real. Por isso as ocupações marcam a retomada da escola por aqueles que são os legítimos protagonistas do processo educativo, os estudantes. Encontra-se no discurso deles o grito das vítimas que buscam efetivar seus direitos.

A argumentação seguinte de Ana Júlia é carregada de concretude, de materialidade histórica, pois ela passa a se posicionar buscando evidenciar a legitimidade das ocupações. Ela desafia os deputados e toda sociedade a que busquem conhecer as escolas ocupadas e, assim, fundamentarem suas opiniões. Como a própria estudante adverte em sua fala, a construção do pensamento crítico não é fácil, pois requer seleção, cuidado com as opiniões.

Seu discurso sinaliza que as ocupações podem ser vistas como uma experiência de prática de autonomia e busca de uma gestão democrática da escola, ressignificando a pertença à comunidade.

É justamente no processo comunitário que a autonomia passa a ter o seu sentido crítico e libertador. A autonomia, nesse sentido, ganha força de responsabilidade ética. Não é a autonomia libertadora um fazer individualista. Por isso as ocupações não se dão pela causa individual, mas pela causa da educação que é coletiva e é para todos, que é para essa e para as próximas gerações. Muitos estudantes relatam como as ocupações lhes trouxeram um novo significado para a escola, de pertencimento a um coletivo (CAMPOS, MEDEIROS, RIBEIRO, 2016). Ao cuidarem uns dos outros e ao cuidarem da escola, viveram intensamente uma experiência comunitária fundada na autonomia e na cooperação. Aprenderam, na prática, que autonomia não é independência, pelo contrário, é integração, pois quanto mais unidos estavam, quanto mais forte o sentimento e a ação coletiva, mais autonomia o grupo ganhava: para gerir a escola, para decidir e expor suas demandas etc.

Nesse sentido, vale lembrar que parte dos estudantes que ocuparam escolas de São Paulo em 2015 contra o fechamento de 93 escolas estavam no terceiro ano do ensino médio, ou seja, sequer viriam a sofrer diretamente as consequências da reorganização. Mesmo assim participaram ativamente da luta junto a outros estudantes, demonstrando uma causa coletiva maior do que a individualidade de cada um.

Não obstante, ao mesmo tempo em que se reconhecem como um coletivo, com interesses comuns, há nos estudantes que ocuparam suas escolas profundo reconhecimento e valorização da individualidade e da diversidade. Temas como gênero, raça e orientação sexual apareceram com vigor junto ao discurso pelo direito à educação nas escolas ocupadas. Nota-se, inclusive, significativa presença de meninas nos grupos e uma forte afirmação do feminismo nos discursos que proferem. Relacionando esse cenário com a Ética da Libertação, pode-se dizer que os secundaristas afirmam uma ética da diversidade, contrapondo-se a um projeto totalizador de escola e de sociedade, e propondo uma nova totalidade, que não tem um centro hegemônico, mas uma reunião de diversidades: uma verdadeira unidade diversa7.

Sobre o sentido de coletividade e individualidade nas comunidades de vítimas, pode-se fazer uma breve e ilustrativa relação entre a fala da secundarista Ana Júlia, destacada acima, com a de Rigoberta Menchú, destacada por Burgos (1993), e a da personagem Severino, da literatura de João Cabral de Melo Neto (2007). Nos três exemplos, as vítimas se reconhecem como vítimas à medida que se dão conta de compor uma comunidade, sendo o espaço que potencializa a felicidade de se reconhecer.

Ana Júlia:

Eu sou Ana Julia, estudante secundarista do colégio Estadual Senador Manoel Alencar de Guimarães, tenho 16 anos e tô aqui pra conversar com vocês pra falar sobre as ocupações. A minha pergunta inicial é: de quem é a escola? a quem a escola pertence? Eu acredito que todos aqui já sabem essa resposta [...]8.

Rigoberta Menchú:

Meu nome é Rigoberta Menchú. Tenho vinte e três anos. Gostaria de dar este testemunho vivo que não aprendi num livro, nem aprendi sozinha, já que tudo isso aprendi com meu povo e isso é uma coisa que gostaria de deixar claro (BURGOS, 1993, p. 32).

Severino:

O meu nome é Severino, não tenho outro de pia [...]. Somos muitos Severinos iguais em tudo na vida: na mesma cabeça grande que a custo é que se equilibra, no mesmo ventre crescido sobre as mesmas pernas finas [...]. E se somos Severinos iguais em tudo na vida, morremos de morte igual, mesma morte severina [...] (MELO NETO, 2007, p. 91).

O que há de comum nas três falas? Todas as falas das vítimas se sustentam num “nós”, pois falam de uma comunidade de excluídos. Essas falas representam circunstâncias bem distintas, mas que têm em comum a necessidade da defesa da vida, nesse ponto a vida material. Daí deriva aquilo que Dussel (2002, p. 93) destaca sobre o “princípio da obrigação de produzir, reproduzir e desenvolver a vida humana concreta de cada sujeito ético em comunidade”. Eles assumem a vida com autoconsciência e autorresponsabilidade, ou seja, de maneira autônoma. Em geral, a libertação é comunitária e é constitutiva do processo de construção de uma sociedade mais justa. A justiça deve seguir a pulsão comunitária como propulsão de novos direitos.

ESTUDANTES E O ANÚNCIO DO NOVO

Retomando o contexto das ocupações, grande parte das escolas públicas são expressões do que Dussel denomina “racionalização simplificadora” (DUSSEL, 2002, p. 61). São fruto, ao mesmo tempo em que promovem, uma racionalização do mundo, da vida e seus subsistemas, num processo de fragmentação e burocratização que visa tornar a diversidade manejável. Nesse processo, embora haja garantia legal e constitucional dos princípios da autonomia e gestão democrática, estes são sufocados no cotidiano das escolas e das políticas públicas. Na ponta desse sufocamento, que passa também por gestores e professores, estão os estudantes, cujas vozes em quase nada são ouvidas. A participação é deixada de lado e até evitada, para que não perturbe a ordem racional e burocratizada do sistema escolar. Por mais ineficiente que ele se apresente, por mais vítimas que produza, não há interesse concreto em efetivar mecanismos de gestão democrática que possam incluir os estudantes nos acordos que lhe afetam.

Sobre isso, muito se dizia que faltava interesse dos estudantes, que passam pela escola sem apego ou envolvimento. O que as ocupações nos mostraram, contudo, foi o contrário. Estudantes querem e podem participar, mas de tanto terem sua voz negada e presença ignorada, tanto nos processos de elaboração das políticas públicas quanto na gestão das próprias escolas, precisaram ocupar esse espaço para mostrar que existem, e que têm voz. Chama atenção que foi necessário tirar os demais atores das escolas para que sua identidade enquanto estudantes fosse reconhecida. Com isso, ressaltaram a existência de um movimento próprio na educação, e que hoje é conhecido por todos, o movimento secundarista.

Mas se a escola não é um local apenas de estudantes, se há toda uma comunidade escolar composta por gestores, famílias, funcionários, professores, é necessário pensar o que esse movimento pode trazer para essa escola pós-ocupação: o que anunciam de novo, afinal?

O movimento secundarista fez e faz um anúncio fundamental e que retoma e ressignifica os conceitos de autonomia e gestão democrática, tão repisados no discurso, quanto esquecidos na prática. Um anúncio que retoma o ideal de Paulo Freire para a gestão democrática. Os secundaristas anunciam a utopia possível de uma educação onde todas e todos têm voz.

Com Paulo Freire, aprendemos que só a escola autônoma e democrática permite a superação dos processos de opressão, inclusive aqueles perpetrados pelo currículo. De nada adianta um currículo que fale de diversidade e de democracia se não há espaço para participação e alteridade na escola. O currículo libertador é aquele em que a consciência crítica é despertada pelo educador, mas surge de dentro, a partir do descobrimento, pelos educandos, de suas próprias condições de opressão (DUSSEL, 2002). Tudo isso pressupõe que os estudantes possam falar, que tenham voz para falar do mundo e de si.

Por mais que se afirme isso o tempo todo, que a participação dos estudantes é importante, só quando os próprios estudantes secundaristas que, depois de muito tempo excluídos do discurso, despertaram em si essa consciência - de que podem e devem falar - que realmente o tema ganhou feição material, prática, e de alguma forma balançou o discurso hegemônico. O que os estudantes fizeram ao final de 2015 e novamente em 2016 foi anunciar que não mais ficarão excluídos dos discursos sobre suas escolas e sobre a educação brasileira. Nem sempre tiveram ou terão vitórias, mas sem dúvida conquistaram um novo espaço dentre os movimentos críticos na educação, capazes de questionar acordos e denunciar opressões a partir de suas próprias experiências.

Com isso, dão a gestores uma grande oportunidade de, a partir do movimento e da experiência desses estudantes, construir uma nova escola, onde haja autonomia e gestão democrática na prática, onde o discurso se torne ação e a comunidade escolar se volte para construção de um projeto inclusivo e transformador. Esse é o inédito viável de Freire (2011) anunciado pelos estudantes que ocuparam suas escolas: o que se viveu nas ocupações - a apropriação da escola, a vivência de comunidade e de autogestão, a afirmação das diversidades - pode ser realidade na escola pós ocupação também, pode ser realidade em toda escola.

O anúncio do novo feito pelos estudantes de maneira coletiva se coloca de forma crítica a uma educação hegemônica. Cabe trazer uma citação de Dussel (2002) que dialoga com esse fenômeno que apresentamos como novo:

Se Rousseau mostrou no Emilio o protótipo de educação burguesa revolucionária - solipsista, de um órfão sem família nem comunidade, metodicamente sem tradição cultural medieval ou da nobreza monárquica, dentro do paradigma da consciência e sob a orientação solipsista de um preceptor -, um Paulo Freire, o anti-rousseau do século XX, nos mostra, ao contrário, uma comunidade intersubjetiva , das vítimas dos Emílios no poder, que alcança validade crítica dialogicamente, anti-hegemônica, organizando a emergência dos sujeitos históricos (“movimentos sociais” dos mais diversos tipos), que lutam pelo reconhecimento de seus novos direitos e pela realização re-sponsável de novas estruturas institucionais [...] [As vítimas] iniciam elas mesmas o exercício da razão crítico-discursiva; e, positivamente, irão discernindo a partir da imaginação criadora (libertadora) alternativas utópico-factíveis (possíveis) de transformação...” (DUSSEL, 2002, p. 415).

Nas ocupações, o novo consiste na emergência dos sujeitos históricos mediatizados pela realidade social e política que demanda a luta por reconhecimento do direito ao acesso à educação. Trata-se de uma imaginação criadora de alternativas utópico-factíveis que positivam a transformação social como afirmação de uma ética de libertação em um currículo significativo e promotor do ser-mais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A educação é um direito humano inalienável. Na sociedade do conhecimento a escola é condição de dignidade, pois não é possível o pleno desenvolvimento da vida sem a mediação da educação escolar. Dito isso, a garantia do direito à educação, reconhecido em nossa Constituição (Art. 225), só se faz plena se a educação é de qualidade e promove a integral formação do sujeito, visando a preparação para o trabalho e também para o exercício da cidadania. Uma educação, portanto, capaz de formar um sujeito autônomo, consciente de seus direitos e deveres no mundo.

Não se forma um sujeito autônomo se não for no próprio exercício da autonomia. Não se forma para a autonomia sem participação, criticidade e responsabilidade, sem que, desde a escola, esse sujeito possa fazer escolhas, possa sentir-se parte de uma comunidade onde tem voz e pela qual também é responsável.

As ocupações se mostraram como uma oportunidade de os estudantes se apropriaram desse espaço escolar, entendendo-o como deles. Ao tomarem consciência de que a escola lhes pertencia, a pulsão por novos direitos se fez presente, passaram a reivindicar não apenas mais participação, mas também mais qualidade na educação, na estrutura da escola, na merenda, nas políticas públicas curriculares.

A consciência radical de novos direitos (muitas vezes direitos que sempre estiveram ali, mas dos quais não se tinha ainda essa consciência - havia, ao contrário, alienação -), é o que move mudanças nas estruturas. Esse movimento, contudo, não deveria, e não precisa, se restringir ao tempo e espaço das ocupações, que são atos naturalmente provisórios, além de recentes e difíceis de se analisar com o distanciamento necessário. A autonomia pode e deve estar presente no dia a dia da escola, como base e como norte do projeto político pedagógico e, portanto, do currículo escolar.

A utopia possível que anunciaram os estudantes, e que anunciou Paulo Freire, é a escola autônoma. Uma escola dotada de “procedimentalidade democrática” (DUSSEL, 2002, p. 471), que detenha um programa empírico voltado para a autonomia dos educandos e calcado em um currículo libertador. Mas como definir essa qualidade de um Projeto Político-Pedagógico ou de um currículo? Como dizer se ele é libertador?

Nos termos da Ética da Libertação, é preciso perguntar, em primeiro lugar, se esse projeto educacional promove a vida daquela comunidade. Trata-se de criar, manter e desenvolver a vida dos sujeitos dessa escola? Em seguida é preciso saber quais sujeitos foram considerados no acordo que determinou esse projeto e esse currículo. Quem participa? Como? E, por fim, questionar se ele está aberto a reinventar-se ao se deparar com as vítimas que fatalmente produziu. Em resumo, essa escola vê, julga, e age para garantir que seu projeto promova uma inclusão cada vez maior de seus sujeitos? Há um olhar para os excluídos?

Paulo Freire é a construção teórica-conceitual mais explícita desse processo de formação de acordos por sujeitos concretos e autônomos. Por isso Dussel atribui a Freire a expressão prática e integral de seu pensamento. Na educação freireana a autonomia dos sujeitos se define na medida em que eles têm voz e espaço para construir e participar dos acordos, inclusive daqueles que definem o currículo. Se formam, assim, como sujeitos críticos, conscientes de sua condição e potencial no mundo. É nesse processo, de práxis de libertação, que os sujeitos, em comunidade transformadora da realidade, denunciam opressões e anunciam direitos (DUSSEL, 2002).

As ocupações escolares, constituídas como comunidade de vítimas, denunciaram opressões e anunciaram a escola que desejam. Protagonizadas pelos estudantes, a pressão das mais de 200 escolas ocupadas mostrou que a escola pública deve ser respeitada e que os estudantes podem estabelecer lutas como protagonistas. Independentemente das vitórias e derrotas do movimento, sem dúvida houve ali uma atualização das demandas dos estudantes e do que entendem por direito. Ainda que no cenário nacional a realidade prática seja de redução e ameaça de direitos, é muito importante considerar que a demanda nasceu, e ela, como ideia de direito, como pulsão que motiva as lutas, não se desfaz.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 24 de Maio de 2019; Aceito: 15 de Junho de 2019

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