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Revista Teias

versão impressa ISSN 1518-5370versão On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.20 no.57 Rio de Janeiro abr./jun 2019  Epub 18-Dez-2019

https://doi.org/10.12957/teias.2019.39687 

Resenhas

O CÃO E O CURUMIM: O ENCONTRO COMO PROCESSO EDUCATIVO

Maria Edith Romano Siems-Marcondes(*) 

(*)Pedagoga, mestre em Educação, Doutora em Educação Especial. Professora do Centro de Educação da Universidade Federal de Roraima.

WAPICHANA, Cristino. O Cão e o Curumim. Ilustrações de Taísa Borges, São Paulo: Editora Melhoramentos, 2018.


“Certas canções que ouço, cabem tão dentro de mim, que perguntar carece, como não fui eu quem fiz”.

Ao concluir a leitura do texto de O Cão e o Curumim de Cristino Wapichana, fui assolada pela incrível sensação do “como não fui eu quem fiz”1. Um primeiro olhar ao teor deste texto literário que se propõe a narrar uma história de amizade e lealdade entre um menino indígena e seu cão; que se desenvolve no cenário de uma tribo indígena, poderia fazer supor que a resposta poderia estar a priori dada: como não-indígena, caucasiana, terceira geração de migrantes europeus, portanto, herdeira dos que aqui chegaram como invasores para ocupar as terras indígenas, jamais poderia ser considerada “informada”, ou apta a tratar da temática. Mas não é isso o que se estabelece na relação com o texto, cujo impacto é tão intenso que parece ter saído “do interior do meu interior”2.

A aparente leveza do texto literário, que em perspectiva aligeirada poderia ser entendido como destinado ao público infanto-juvenil, seja pela temática, seja pelo cuidado na adoção de uma linguagem clara, em sequência linear e temporal e com uma dinâmica ágil e recheada de pequenas aventuras, traduz com a profundidade que a simplicidade verdadeira engendra, a densidade das reflexões que envolvem esta geração de escritores indígenas que vem se apresentando na literatura brasileira.

Trata-se de uma obra extremamente relevante para o momento atual, demarcado pelo recrudescimento e tentativa de retirada dos parcos direitos já conquistados pelos povos indígenas. Não bastasse essa pertinência ao tempo histórico, a obra ainda nos confronta com as reflexões sobre as relações sociais, familiares e culturais destes povos que, a mais de cinco séculos, resistem e lutam pela preservação de suas identidades, culturas e formas peculiares de vida marcadas pela relação simbiótica com as outras formas de vida.

O autor, na apresentação do livro, nos encaminha a duas indicações aparentemente soltas. O texto é aberto com as frases: “Histórias que moram em mim” e “O sentido da existência está na cor do encontro”. E é esta a tônica que nos direciona ao imergir no texto.

Cristino Wapichana é nascido em uma comunidade indígena da etnia Wapichana, que tem sua maior concentração no extremo norte brasileiro, no estado de Roraima. Seguindo a trilha que vem sendo aberta na produção de uma literatura indígena brasileira, Cristino vem se destacando mundialmente com sua obra, tendo recebido alguns dos maiores prêmios literários, como o brasileiro Jabuti, na categoria literatura infantil (2017), o Sueco, Peter Pan (2018) e o Selo White Revens da Biblioteca de Munique (2017), além de selos e prêmios da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil que destacam obras suas como Altamente Recomendáveis (2015 e 2017).

A narrativa se desenvolve em torno de Curumim e seu cotidiano na vida da aldeia, nas relações entre a família próxima: pai, mãe, avós e irmãos e os demais “parentes”, modo tradicional como são percebidas as relações de partilha da existência com a comunidade ampliada.

Esse cotidiano, pautado pelas relações com os elementos da natureza e com os artefatos culturais que a comunidade produz para sua organização e subsistência, é narrado pela voz de Curumim que entremeia a leveza de banhos de rio e dos prazeres calorosos da vida na maloca com os perigos da vida na floresta: os bichos grandes, “os animais menores que são venenosos e mais difíceis de serem vistos e os lugares encantados que deixam os caçadores desorientados, fazendo-os andarem em círculos” (p. 31).

No centro da ação, a chegada de Minhayda'y ou Amigo, o cãozinho trazido pelo pai no retorno de uma caçada e seu processo de incorporação na vida da aldeia, também como “caçador”.

A primeira ideia que parece conduzir a produção de Cristino Wapichana, é dar materialidade ao que ele traduz como “Histórias que moram em mim” e que são permeadas pelas marcas de sua ancestralidade. E é, no mergulho nessa ancestralidade que vemos uma possível explicação para o sentimento do “como não fui eu que fiz” que nos assola ao final da leitura.

A obra é uma clara expressão da clássica afirmação de Leon Tolstoi: “Se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”. Na profundidade da narrativa dos pensamentos de Curumim, nos vemos lançados em reflexões contundentes que remetem a questões universais ao humano.

Esse mergulho é tão intenso na experiência humana que envolve o cotidiano de uma aldeia, nas peculiaridades da relação de parentesco amplo como entendida pelos povos indígenas, na dinâmica das relações homem-natureza que marca a trajetória de assegurar a sobrevivência e a riqueza da vida espiritual e cultural das comunidades, que acabamos, por tomar contato com o universal dos sentimentos que nos envolve a todos como humanidade.

O segundo mote de condução da obra declarado pelo autor é “O sentido da existência está na cor do encontro”. E este se explicita na narrativa de pensamentos que brotam no brincar de Curumim com um raio de sol:

Acho que o sentido da existência está na essência dos encontros. São os encontros que nos permitem viver momentos especiais, inesquecíveis, que nos fazem sentir parte do outro e do mundo. (p. 43).

E é esse encontro com o diverso, com suas mitologias, seus sentimentos e suas formas culturais de relação com a natureza e com o outro - animal, vegetal ou do universo espiritual, que a obra se apresenta como essencial para se pensar a educação.

Em um longo trecho que aqui destacamos, Curumim, referindo-se ao avô contador de histórias, vai destacar elementos significativos dos sentidos do educar na educação indígena:

Havia outros velhos que contavam histórias e nos incentivavam a ler tudo ao nosso redor. A leitura pertence a todos, e todos são responsáveis por ensinar a ler e a escrever. Pais, tios, primos ensinam leituras diferentes para que todos sejam capazes de ler o mundo, de ser observadores e coletores de novas informações, de saber usar o conhecimento diariamente em atividades cotidianas como caçar, pescar, plantar e nadar, além de conhecer bem a mata e as águas dos rios. A leitura nos livra de perigos e acidentes. (p. 37-38).

Impossível não observar nesse relato a presença do pensamento de Freire3 (1989) que ao discutir a importância do ato de ler, destaca a precedência da leitura do mundo sobre a leitura da palavra. E não é difícil supor que o músico, escritor e contador de histórias Cristino Wapichana tenha tido acesso a este referencial teórico e contato com a obra de nosso mundialmente mais aclamado educador4. É entretanto, a indianidade que marca em profundidade sua obra e as reflexões que remetem à educação indígena.

Essa educação, que se dá na constância das relações sociais, nas práticas laborais do cotidiano, que é partilhada por todos os membros da aldeia; educação em contexto social, sem ser reduzida ao universo da escolarização, é demarcada pela perspectiva de uma formação integral, que privilegia a tradição oral e a ação intencional e coletiva dos adultos da comunidade junto a todas as crianças e jovens.

No desenvolvimento da ação, uma travessura infantil leva à queima total da casa que guardava as sementes e suprimentos da família. E no relato do como as crianças agem e como os parentes reagem, vemos um outro aspecto da educação indígena que nos aparece no registro de estudos antropológicos que se dedicam a demarcar como se dão os processos de educação indígena: a ausência de práticas de punição de crianças. Assim nos conta Curumim, que após o incêndio:

Vovô e vovó estavam lá. Não havia tristeza, desespero ou decepção neles. Sabiam que curumins são arteiros. Que o medo e o susto que meu irmão e eu havíamos passado eram mais fortes que qualquer punição. As lembranças que iríamos carregar não nos deixariam mais brincar com fogo perto de cobertura de palhas. (p. 55).

E na sequência da narrativa, as crianças são envolvidas no processo de construção de um novo telhado de palha, partilhando das várias etapas, sob condução dos mais experientes, aprendendo desde o aguardar a condição correta da lua para colheita, até os demais cuidados necessários para que esta colheita, feita também coletivamente, ocorra com a segurança e qualidade adequada, respeitada a medida de força e capacidade de cada um.

Não bastasse o mérito que a narrativa tem de nos apresentar com profundidade e clareza a processos tradicionais de educação indígena, a obra ainda se destaca pelo seu potencial de dinamizador de discussões em relação à cultura, ao respeito à ancestralidade e às práticas culturais de uma outra infância, em que uma outra educação é possível.

E não se trata aqui de um olhar estrangeiro, mas do relato de um menino indígena que se fez homem e se faz grande, como escritor e em diferentes linguagens artísticas praticadas na comunidade envolvente.

Um excelente exercício a representar o “Nada sobre nós, sem nós”5 também no contexto das diferentes representações étnicas que nos caracterizam enquanto país e enquanto sociedade e que precisam ser conhecidas, no princípio de que não é possível respeitar e valorizar aquilo que não se conhece.

1Trecho da música de Milton Nascimento “Certas Canções” constante no álbum Anima, de 1982.

2Trecho da Música de Vander Lee “Aonde Deus possa me ouvir”, constante no álbum Vander Lee de 2003.

3FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 23. ed. São Paulo: Autores Associados; Cortez, 1989.

4Segundo dados da London School of Economics , em levantamento realizado no ano de 2016, Freire é citado 72.359 vezes, atrás somente do filósofo americano Thomas Kuhn (81.311) e do sociólogo, também americano, Everett Rogers (72.780).

5Compreendemos que este lema tem sua origem nos movimentos sociais das pessoas com deficiência, mas estendemos aqui sua aplicação à questões étnicas por entender que aqui também é pertinente a protagonização que se expande, de diferentes grupos étnicos tratando diretamente de suas demandas e realidades.

Recebido: 12 de Fevereiro de 2019; Aceito: 15 de Março de 2019

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