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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.20 no.58 Rio de Janeiro jul./sep 2019  Epub 26-Dic-2019

https://doi.org/10.12957/teias.2018.44384 

Hannah Arendt: pensar sem corrimãos

CRISE NA EDUCAÇÃO

LA CRISIS EN LA EDUCACIÓN

Carlos Roberto de Carvalho1 
http://orcid.org/0000-0003-3408-134X

Francisco Moraes2 
http://orcid.org/0000-0002-2166-8048

1Professor Associado Da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e do PPGeduc-UFRRJ. ORCID https://orcid.org/0000-0003-3408-134X. E-mail carlosbeto.carvalho@gmail.com.

2Professor Associado da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, do PPGFIL-UFRRJ e do PPGF-UFRJ. ORCID https://orcid.org/0000-0002-2166-8048. E-mail: fjdmoraes@gmail.com.


RESUMO

Crise na educação, um texto escrito por Hannah Arendt em 1954, é o ponto de partida de nossas reflexões sobre a presente crise na educação. Para Arendt, o mundo, no qual as crianças são introduzidas, é sempre um mundo velho. Mas, nos EUA, país de imigrantes, o extraordinário entusiasmo pelo que é novo encoraja a ilusão de que um novo mundo está sendo construído através da educação das crianças. “O pathos do novo” também é muito forte para nós. No entanto, ele soa completamente diferente agora. A educação progressiva está sob ataque. Tal como Hannah Arendt, queremos aprender com essa crise algo sobre a essência da educação.

Palavras-chave: Educação; crise; mundo

RESUMEN

La crisis en la educación, un texto escrito por Hannah Arendt en 1954, es el punto de partida de nuestras reflexiones sobre la crisis actual en la educación. Para Arendt, el mundo en el que se introducen los niños es siempre un mundo antiguo. Pero en los Estados Unidos, un país de inmigrantes, el entusiasmo extraordinario por lo nuevo alienta la ilusión de que se está construyendo un mundo nuevo a través de la educación de los niños. "El pathos de lo nuevo" también es muy fuerte para nosotros. Sin embargo, ahora suena completamente diferente. La educación progresista está bajo ataque. Al igual que Hannah Arendt, queremos aprender de esta crisis algo sobre la esencia de la educación.

Palabras clave: Educación; crisis; mundo

Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate

(Dante Alighieri, Divina Comédia, Canto III do Inferno, 9º verso)

Abandonai toda esperança, vós que aqui entrais!

Com esse dossiê, convidamos os leitores a visitarem a escuridão infernal destes tempos sombrios de que ao longo de toda sua obra nos fala Hannah Arendt; convidamos a visitar, em cada texto aqui publicado, o pensamento de uma importante pensadora do século XX, pensamento esse que, a nosso ver, pinta e desenha o cenário contemporâneo da divina comédia humana; convidamos todos a pisarem firme no palco de suas palavras, assim como nos aconselharia Drummond, convidamos a penetrar “... surdamente no reino das palavras” e a ouvir como se ouvisse pela primeira vez, como se fora uma criança que nascera deveras.

Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate!- canta a voz de Dante

A voz de Dante é o texto completo. É todo o sentido deste dossiê. Apenas o temor da falta de entendimento é que nos obriga a escrever mais do que já foi escrito. Em nosso entendimento, trata-se de um aviso, afinal: Vivemos “tempos de absoluta depuração”!

Em cada texto que aqui visitarem, ouvirão a voz desassossegada do pensamento, que luta, de peito aberto, com o impronunciável. São textos de homens e mulheres no tempo dos homens sombrios. Por isso, ousamos dizer: o importante é pensar e pensar sem corrimãos. Daí nasce a intenção deste dossiê, fruto do trabalho de muitos pensadores, filósofos, professores, brasileiros e estrangeiros que generosamente ouviram o nosso apelo.

Neste momento, nossa proposta não poderia ser outra: trazer para a cena contemporânea um pensamento que seja capaz de nos fazer refletir sobre nossa atual “condição humana”.

Às bordas deste inferno dantesco das deficiências cognitivas que nos permitiram mistificar a realidade, em que já não distinguimos o bem do mal, o justo do injusto, a verdade da mentira, cabe- nos desconfiar de tudo, inclusive da própria desconfiança.

Diante do caos, cabe-nos pensar, sim, pensar, pensar assim... Pensar sempre, mas sem corrimãos, sem essas muletas cognitivas que são as amarras ideológicas. Para Hannah Arendt, pensamento só é pensamento enquanto gera mais pensamento, ad infinitum, e sempre a seu próprio serviço. Neste sentido, pensamento é “inútil”, não está a serviço de nada, de nenhuma religião ou partido, porque está só e somente só a seu próprio serviço.

***

A educação está em crise. Crise na educação é o título de um texto escrito por Hannah Arendt. Nele, a filósofa se debruça sobre os impasses do modelo educacional americano, logo após o término da Segunda Grande Guerra. País de imigrantes, a América, que é como a autora se refere aos EUA, baseava seu significado enquanto nação na fundação de um novo mundo, Novus Ordo Seclorum, que traria consigo a eliminação da pobreza e da opressão. Na América, o páthos do novo dirigia os esforços educacionais no sentido de favorecer a americanização da própria população, de modo tal que o ato de educar acabava por assumir um papel mais importante, politicamente, do que em outros países. Mas essa situação única, em certo sentido, trouxe também como consequência, na visão da filósofa, uma distorção fundamental e um desconhecimento do significado vital da própria educação. É que sempre o mundo, no qual são introduzidas as crianças, é um mundo velho, edificado pelos vivos e pelos mortos, o qual só é novo para os recém-chegados. Desse modo, ignorava-se que educar, o ato de educar, não pode ter como meta a produção de um cidadão de tipo determinado, a geração de um homem novo, que se veria, finalmente, livre das amarras de todo e qualquer tradicionalismo limitador. Esta foi a ilusão de todas as utopias políticas. Para a autora, ao contrário, “a educação não pode desempenhar nenhum papel na política, pois na política lidamos com aqueles que já estão educados.” (ARENDT, 2007, p. 225) Ao posicionar-se desse modo, Arendt entra em confronto aberto com o ideal, de forte inspiração rousseauniana, que rege até os nossos dias o que se pode chamar de “Educação progressiva”. Trata-se do ideal educacional que enxerga a educação como um instrumento da política, e que acaba reduzindo a própria política a uma forma de educação. Este ideal deu origem a uma série de teorias educacionais que, originalmente gestadas na Europa central, terminaram por derrubar, em pouco tempo, na América, todas as tradições e métodos estabelecidos de ensino e de aprendizagem. Como sociedade de massas, diagnostica a autora, a América seguia muito atrás dos padrões médios alcançados na totalidade dos países da Europa, não por ser um país jovem e ainda acanhado, mas antes exatamente por ter adotado, de maneira servil, o que havia de mais “avançado” e moderno no campo das teorias educacionais. O que a autora se propõe a analisar são os principais fatores que explicariam o que ela mesma chama de “bancarrota da educação progressiva” (ARENDT, 2007, p. 228), as causas da crise da educação vivida pelos EUA na segunda metade do século XX. O presente volume da revista Teias reúne diversas contribuições de filósofos e educadores que procuram pensar a crise na educação sob inspiração da crítica empreendida por Hannah Arendt. O desafio que nos une a todos é o de pensar o destino desse páthos do novo, para além de pessimismos ou otimismos, no contexto atual de ataque à educação. É a linguagem universal do pensamento que, transcendendo qualquer situação dada, nos convida, aqui e agora, ao desafio de liberdade, que desconhece partidarismos ou profissões de fé ideológicas.

Fica claro que a intenção fundamental de Hannah Arendt, ao debruçar-se sobre a crise na educaçã|o norte americana, não era a de retirar da situação de crise vivenciada alguns aprendizados importantes, aprender com os erros, como se diz, e propor medidas alternativas para a reversão do quadro negativo. O que estava em jogo era muito antes, partindo da situação de crise, aprender algo acerca da essência da educação, ou seja, “sobre o papel que a educação desempenha em toda civilização, sobre a obrigação que a existência das crianças impõe a toda sociedade humana.” (ARENDT, 2007, 234) E o diagnóstico da autora nos conduz à constatação de que o páthos do novo estava, de maneiras distintas, na raiz da própria crise. Levado às suas consequências últimas, tal impulso acaba, inevitavelmente, se chocando com o bom senso e neutralizando qualquer avaliação mais profunda fundada na experiência comum e compartilhada, a qual a filósofa procura dar voz em sua reflexão. É o que faz criticando os pressupostos fundamentais que foram assumidos como balizadores pela Pedagogia e pelas escolas de professores, os quais, em linhas gerais, podem ser reconhecidos, com facilidade, como sendo os mesmos pressupostos da Pedagogia entre nós nos dias de hoje. Não deixa de ser algo digno de nota observar essa coincidência em meio aos ataques desferidos contra a educação libertadora, acusada de promover doutrinação e de não preparar adequadamente os jovens para o mundo. Estaria Hannah Arendt de acordo com os formuladores do projeto “Escola sem partido”?

Antes de responder a essa questão, é preciso acompanhar a filósofa na identificação e na crítica aos pressupostos fundamentais da assim chamada “educação progressiva”. Que pressupostos são esses? Em linhas gerias, são três, a saber: 1) O pressuposto de que existe um mundo da criança, o qual, sendo autônomo, deveria também ser governado por elas; 2) O pressuposto de que o professor é um homem que pode, simplesmente, ensinar qualquer coisa, o que o emanciparia da matéria a ser efetivamente ensinada; 3) O pressuposto de que só é possível conhecer e compreender aquilo que nós mesmos fazemos, o que implicaria em substituir, em larga medida, o aprendizado pelo fazer. A esse último pressuposto, liga-se também a defesa do brincar como o modo mais natural (não violento) de aprender. O aprendizado lúdico se descolaria de qualquer relação com o mundo adulto do trabalho, emancipando a criança, graças a seu envolvimento espontâneo com o brincar, da passividade característica, na qual ela presumivelmente se encontrava no modo antigo de aprendizagem.

Não é difícil perceber que todos os pressupostos acima identificados estão em estreita conexão uns com os outros. O que todos eles possuem em comum, na visão da autora, é a tentativa de romper e nivelar diferenças hierárquicas reconhecidas como essenciais pelo modo de pensar comum e não filosófico, isto é, pelo simples bom senso. Assim, no caso do primeiro pressuposto, ao entregar a criança ao seu próprio mundo, na suposição de que ela possua um, ignora-se, contra o bom senso, que a criança é um ser incompleto, que necessita ser preparado para o mundo. São suspensas as relações reais e normais entre crianças e adultos. Na prática, as crianças são “banidas do mundo dos adultos” (ARENDT, 2007, 230) e entregues à autoridade tirânica da maioria, a qual é sempre pior e mais dura do que a autoridade de um indivíduo isolado. O resultado é o conformismo ou a delinquência juvenil, ou mesmo uma mistura desses dois. Desse modo, a não interferência dos adultos, sob o pretexto de que as crianças deveriam governar-se a si mesmas, significa, na prática, ignorar a relação de continuidade e de tensão constitutivas entre o velho e o novo, entre o mundo, sempre já instituído, e a nova geração, que precisa ser integrada a ele, e da qual se espera, no fundo, que o salve da ruina.

Quanto ao segundo pressuposto, a crítica se dirige ao desaparecimento da autoridade não autoritária do professor em relação ao aluno. Em virtude do desconhecimento da matéria ensinada, da falta de dedicação a ela, o professor quase não se distingue dos alunos em termos de conhecimento específico, o qual representa o único meio de reconhecimento de sua autoridade legítima. Desse modo, “o professor não-autoritário, que gostaria de se abster de todos os métodos de compulsão, por ser capaz de confiar apenas em sua própria autoridade, não pode mais existir”. (ARENDT, 2007, p. 231) Aqui, novamente, os alunos são abandonados à própria sorte, o que hoje se confunde com o incentivo à sua autonomia. Como se o aprendizado de uma matéria pudesse ser obra de um senso de pesquisa abstrato, da mera curiosidade indiscriminada sobre tudo, facilitada hoje enormemente pelas ferramentas de “pesquisa” disponíveis na internet, a ser incentivada junto aos alunos como forma de livrá-los do “conhecimento petrificado”. O aluno “sabe tudo”, o aluno formado pelo Google, seria o novo ideal de aluno autônomo e “livre” de ingerências estranhas. Mas quem decide o que e em que fonte deve consultar decide também aquilo em que deve acreditar. E assim, hoje em dia, nos deparamos com alunos “fechados” em suas crenças, que se negam a levar em conta o que lhes é ensinado em sala de aula, e dispostos a filmar e a denunciar “professores doutrinadores”. O terraplanismo e o criacionismo tornaram-se, para tais alunos “recém libertados”, concepções científicas tão legítimas quanto qualquer outra ou mesmo “evidências” inquestionáveis. Pura coincidência? Ou, de fato, trata-se de uma consequência direta do esvaziamento da autoridade não autoritária do professor em sala de aula?

Já o último pressuposto, o pressuposto de que só aprendemos o que nós mesmos fazemos, que tardiamente atingiu a educação a partir da cunhagem elaborada pelo Pragmatismo de uma convicção de fundo da própria filosofia moderna, produziu os frutos mais nefastos, segundo a autora, na educação norte americana, ao inverter aquilo que seria a própria finalidade do aprendizado. As escolas não deveriam, doravante, pretender ensinar conhecimentos, mas antes “inculcar habilidades”. Assim, as próprias instituições de ensino se transformaram, inevitavelmente, em “instituições vocacionais”, nas quais os esforços se dirigiam a formar “lideranças”. A gestão das habilidades assumiu o lugar da disciplina necessária para o aprendizado teórico. O êxito alcançado em executar comandos técnico-práticos, tais como dirigir um automóvel ou usar uma máquina de escrever, assume uma clara preponderância sobre tudo o mais, da mesma forma que a busca de fazer sucesso com outras pessoas e “ser popular”. Ao mesmo tempo em que tiveram êxito nessa direção, as escolas públicas americanas se revelaram “incapazes de fazer com que a criança adquirisse os pré-requisitos normais de um currículo padrão.” (ARENDT, 2007, p. 232) O resultado é que a experimentação incessante e a busca por metodologias inovadoras substituíram matéria e professor pelo procedimento, visto como algo isolado e independente. O professor que se identifica e responde por sua matéria cede lugar a um professor de novo tipo, a um professor incentivador, espécie de animador de auditório capaz de entreter o seu público e afugentá-lo do tédio de ter de aprender alguma coisa. Com isso, os próprios alunos passaram a ser encarados como eternas crianças, encapsuladas em seu próprio universo de interesses, com o qual o “mundo adulto” precisaria interagir incessantemente, sob pena de ser considerado - horror dos horrores! - tedioso. O brincar e o brinquedo como paradigmas de um aprendizado não violento acabam, por seu turno, ocasionando a retenção artificial das crianças na primeira infância. “Aquilo que, por excelência, deveria preparar a criança para o mundo dos adultos, o hábito gradualmente adquirido de trabalhar e de não brincar, é extinto em favor da autonomia do mundo da infância.” (ARENDT, 2007, p. 233) O que a filósofa chama de “retenção artificial na primeira infância”, ou seja, o privilégio conferido ao brincar como forma ideal de aprendizado, torna-se hoje a senha para uma falta total de critérios no que diz respeito à avaliação. Nada pode ser exigido do aluno, nenhum cuidado formal pode ser acentuado, sob pena de o professor ser acusado de estar comprometendo a liberdade de aprender do aluno. E, assim, a retenção na primeira infância acaba se estendendo, inclusive, ao chamado ensino superior, embora a resistência a algo como “aprovação automática” seja aí, felizmente, muito maior.

O texto de Hannah Arendt se encerra apontando para o caráter essencialmente conservador da atividade educacional, o que, novamente, parece corroborar os ataques à educação libertadora promovidos pelo movimento e pelo projeto “Escola sem partido”. No entanto, antes de tratarmos dessa aparente afinidade, é preciso averiguar em que sentido o conservadorismo está sendo compreendido aqui. Para Arendt, o mundo exige ser conservado e isso por já estar sempre à beira da destruição. O mundo não é algo simplesmente dado, já pronto e constituído, o qual deveria ser salvo de toda mudança. A mudança é necessária e bem vinda para “pôr em ordem” novamente o mundo. Mas o sentido da mudança, em se tratando do mundo, não pode ser o de comprometer as bases sobre as quais a própria mudança pode acontecer a cada vez. O mundo necessita de mudança, mas o “pôr em ordem” do mundo é sempre o trabalho, imprevisível, de uma nova geração, que, de algum modo, deve ser preparada para essa tarefa. Há, portanto, uma tarefa comum, de geração em geração, e, ao mesmo tempo, uma tarefa inalienável e exclusiva de cada nova geração. A tarefa comum de preparar as condições favoráveis de crescimento e amadurecimento de uma nova geração é obra da educação. Já a tarefa exclusiva de cada nova geração de “pôr em ordem” o mundo é uma obra política que só pode ser descoberta por ela própria. O mundo deve mudar para seguir sendo o que é, ou seja, um espaço capaz de receber os recém-chegados. O mundo só faz sentido em virtude do fenômeno da natalidade. Daí que o conservadorismo assumido pela filósofa se limite à educação. É fundamental que se pense a educação como instância à parte e separada do âmbito da vida pública e política. A educação, para Arendt, “deve ensinar às crianças como o mundo é, e não instruí-las na arte de viver.” (ARENDT, 2007, p.246) No fundo, isso quer dizer que não se deve separar as crianças dos adultos por uma espécie de muralha. As crianças e os adultos compartilham um mesmo mundo e a linha que os separa deve ser também capaz de reuni-los. “O problema da educação no mundo moderno”, vaticina a autora, “está no fato de, por sua natureza, não poder esta abrir mão nem da autoridade, nem da tradição, e ser obrigada, apesar disso, a caminhar em um mundo que não é estruturado nem pela autoridade nem tampouco mantido coeso pela tradição.” (ARENDT, 2007, p. 245) O páthos do novo, na medida em que atravessa indistintamente todos os níveis da vida, inclusive a educação, corre o risco de comprometer as próprias condições efetivas de mudança e de preservação do mundo. É preciso poder restringi-lo de algum modo, não para evitar a mudança, mas antes para conservá-la enquanto possibilidade.

Não há sinal de semelhante conservadorismo no projeto “Escola sem partido”. Este projeto não é conservador, é reacionário. O que ele pretende evitar é a autonomia intelectual, a liberdade de pensar por si mesmo, e submeter as novas gerações a um padrão pré-estabelecido de comportamento. É o que diz textualmente o artigo 3º do projeto de lei:

São vedadas, em sala de aula, a prática da doutrinação política e ideológica bem como a veiculação de conteúdos ou a realização de atividades que possam estar em conflito com as convicções religiosas ou morais dos pais ou responsáveis pelos estudantes.

É também o que diz o parágrafo 16 do texto de justificação do projeto:

Finalmente, um Estado que se define como laico - e que, portanto, deve ser neutro em relação a todas as religiões - não pode usar o sistema de ensino para promover uma determinada moralidade, já que a moral é em regra inseparável da religião. (grifo nosso)

A proibição da “prática de doutrinação política e ideológica” representa a mais aberta doutrinação ideológica que se tem notícia em favor de uma ordem estabelecida, que se posiciona como avessa a toda e qualquer crítica e questionamento, uma ordem vista como sagrada e inquestionável: a ordem tecnocrática supostamente depurada de toda ideologia, mas que se assume como defensora incondicional dos “bons costumes” e dos “cidadãos de bem”. A naturalização da ordem capitalista atual mediante a busca incondicional do ajuste conformista (na expectativa de ser bem recompensado pelo patrão, pela empresa) equivale à expectativa do fiel de ser recompensado por Deus à medida que cumpra fielmente os mandamentos e escute com fervor, quer dizer, acriticamente, a pregação do pastor. Fora desse horizonte de suor, expiação e expectativa de recompensa, como filhos dóceis e obedientes, não haveria salvação. A ordem se fecha perfeitamente sobre si mesma, com o expurgo da ameaça da desordem. O conhecimento se torna suspeito, subversivo, e deve ser vigiado de perto. O que o projeto “Escola sem partido” pretende é justamente submeter a educação a uma ordem avessa a toda mudança, a uma ordem que, em se tratando do mundo, é pura desordem, à medida que alija a própria política em benefício da perpetuação de um poder econômico ilimitado e autocrático. Ao demonizar a mudança e o páthos do novo, este projeto consegue apenas levar adiante o que havia de mais nefasto da “Pedagogia progressiva”, segundo a ótica de Hannah Arendt: a promoção da menoridade, ou seja, a aniquilação do potencial transformador que cada geração traz consigo. Assim, se a Educação progressiva é criticada por ameaçar destruir o próprio mundo, mediante a exaltação e universalização do páthos do novo, certamente o projeto Escola sem partido seria criticado pela ameaça oposta, a saber, a de arruinar as gerações futuras em nome de uma ordem tida como imutável e inquestionável. A esse respeito, valem as palavras de Kant, que certamente inspiraram a autora:

Uma época não pode se aliar e conjurar para colocar a seguinte em um estado em que se torna impossível para esta ampliar seus conhecimentos (particularmente os mais imediatos), purificar-se dos erros e avançar mais no caminho do esclarecimento. Isto seria um crime contra a natureza humana, cuja determinação original consiste precisamente neste avanço. E a posteridade está portanto plenamente justificada em repelir aquelas decisões, tomadas de modo não autorizado e criminoso.(...) Um homem pode sem dúvida, no que respeita à sua pessoa, e mesmo assim só por algum tempo, na parte que lhe incumbe, adiar o esclarecimento. Mas renunciar a ele, quer para si mesmo quer ainda mais para sua descendência, significa ferir e calcar aos pés os sagrados direitos da humanidade. (KANT, 2011, p. 68-69)

REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. Entre o passado e o futuro. Trad. Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2007. [ Links ]

KANT, Immanuel. Textos seletos. Trad. Floriano de Sousa Fernandes. Petrópolis: Vozes, 2011. Disponível em: <www.programaescolasempartido.org>. [ Links ]

Recebido: 30 de Março de 2019; Aceito: Agosto de 2019

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