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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.20 no.58 Rio de Janeiro jul./sep 2019  Epub 26-Dic-2019

https://doi.org/10.12957/teias.2018.44383 

Hannah Arendt: pensar sem corrimãos

A CRÍTICA DE NIETZSCHE À EDUCAÇÃO HISTÓRICA

CRÍTICA DE NIETZSCHE EDUCACION HISTORICA

NIETZSCHE CRITICISM HISTORICAL EDUCATION

Robson Costa Cordeiro1 
http://orcid.org/0000-0001-7890-0111

1 Professor do Departamento de Filosofia e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal da Paraíba. E-mail.: robsonccordeiro@bol.com.br, https://orcid.org/0000-0001-7890-0111


RESUMO

O texto procura mostrar a crítica feita por Nietzsche à educação histórica no século XIX, destacando de que modo uma formação que promove uma consideração excessiva do passado é prejudicial para a vida. Para fundamentar a sua crítica, Nietzsche elabora uma precisa e articulada conexão entre diversos conceitos, que aparentemente se opõem e se excluem -, como por exemplo, memória e esquecimento, histórico e a-histórico, interior e exterior, conteúdo e forma - mas que em seu pensamento são mantidos em tensão e reunidos como o que configura o acontecer histórico (Geschichte). Esta articulação e conexão ele pensa profundamente ao analisar os três diferentes tipos de história (Historie) e as respectivas utilidades e desvantagens que cada uma proporciona para a vida. Além disso, o texto também procura mostrar a decisiva articulação entre as forças a-históricas e supra-históricas, pensadas por Nietzsche como antídotos contra a doença histórica.

Palavras-chave: Nietzsche; educação; história; vida

RESUMEN

El texto busca mostrar las críticas hechas por Nietzsche a la educación histórica en el siglo XIX, resaltando cómo una formación que promueve una excessiva consideración del pasado es perjudicial para la vida. Para fundamentar su crítica, Nietzsche elabora una conexión precisa y articulada entre varios conceptos que aparentemente se oponen y excluyen - por ejemplo, memoria y olvido, histórico y a-histórico, interior y exterior, contenido y forma - pero que en su pensamiento semantienen en tensión y se reúnen como el que configura el acontecer histórico (Geschichte). Esta articulación y conexión lo piensa profundamente al analizar los três tipos diferentes de historia (Historie) y las utilidades y desventajas respectivas que cada uno proporciona para la vida. Además, el texto también busca mostrar la articulación decisiva entre las fuerzas ahistóricas y suprahistóricas, pensadas por Nietzsche como antídotos contra la enfermedad histórica.

Palabras clave: Nietzsche; educación; historia; vida

ABSTRACT

The text seeks to show the criticism made by Nietzsche to historical education in the 19th century, highlighting how a formation that promotes an excessive consideration of the past is harmful to life. In order to found his criticism, Nietzsche elaborates a precise and articulated connection between several concepts that seemingly oppose and exclude themselves - for example, memory and oblivion, historical and a-historical, interior and exterior, content and form - but which in their thinking are held in tension and reunited as that which configures the historical event (Geschichte). This articulation and connection he thinks deeply when analyzing the three different types of history (Historie) and the respective utilities and disadvantages that each provides for life. In addition, the text also seeks to show the decisive articulation between the ahistorical and suprahistorical forces, thought by Nietzsche as antidotes against the historical disease.

Keywords: Nietzsche; education; history; life

De resto, me é odioso tudo o que simplesmente me instrui, sem aumentar ou imediatamente vivificar a minha atividade. (Goethe)

São com essas palavras de uma carta de Goethe a Schiller, de 19 de dezembro de 1798, que Nietzsche começa a sua “Segunda Consideração Intempestiva: Da Utilidade e desvantagem da História para a Vida”. De acordo com essa passagem da carta “o que simplesmente se instrui” (was mich bloss belehrt), o assim chamado homem erudito (Gelehrter), é o que não aumenta ou vivifica a sua atividade, conforme será mostrado por Nietzsche ao longo do texto, que será uma espécie de interpretação dessa passagem da carta de Goethe. E a atividade que não é vivificada não é, na verdade, atividade alguma, ou seja, ação em seu sentido próprio e originário, não constituindo uma história (Geschichte), um destino, um acontecer (geschehen) próprio. O saber histórico, a historiografia (Historie), entendida enquanto atividade de mera instrução, pesquisa e informação, exercida através de uma ação excessiva da memória, será compreendida como inconveniente, inútil e danosa para a vida, por não estar em tensão com a necessária força do esquecimento. A mera instrução, desse modo, compreendida como modelo de educação e formação do século XIX, será entendida por Nietzsche como um dos mais agudos sinais do declínio da Europa, do Ocidente. No entanto, se a instrução não é mera (bloss) instrução, pode ser útil e mesmo necessária para a vida, desempenhando um importante papel no seu crescimento e revelando assim a suprema importância da memória.

Falamos de formação, educação histórica, memória, excesso de memória, esquecimento, vida, utilidade e desvantagem dos estudos históricos para a vida, declínio: Ao reunir tudo isso parece, inicialmente, que temos somente um emaranhado de palavras, uma multiplicidade caótica de diferentes coisas que não possuem entre si nenhuma articulação, nenhum nexo. Tentemos, pois, estabelecer algumas conexões, dispor algum ordenamento, pôr alguma ordem nesse galinheiro, tentando ver, assim como viu João Cabral, que...

“um galo sozinho não tece uma manhã:

ele precisará sempre de outros galos...

...e de outros galos

que com muitos outros galos se cruzem

os fios de sol de seus gritos de galo,

para que a manhã, desde uma teia tênue,

se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos,

se erguendo tenda... (MELO NETO, 1973, p. 15).

Vamos, portanto, tentar estabelecer alguma ligação entre essas palavras, entre esses “conceitos-galos”, para vê se desde os seus gritos de galo uma manhã se encorpa, se ergue, iluminando o que queremos aqui dizer com o título “crítica à educação histórica”. Estabelecer entre essas palavras conexões significa tornar visível o sentido de cada uma delas, que vai se construindo e crescendo desde uma ligação e conexão com o sentido das demais, erguendo entre elas uma tenda, um toldo, uma armação, ou como diz João Cabral, uma “luz balão”. Estranhamente, portanto, são as conexões que antecedem e dão fundamento às palavras e não aquilo que resulta do sentido isolado de cada uma delas. Educação histórica como o que precisa ser entendido desde a articulação e conexão entre história e vida, que por sua vez irá se estruturar a partir da ligação e conexão entre esses diversos conceitos, articulação essa, no entanto, que nem sempre obedecerá à justa medida e que, de um modo geral e na maior parte das vezes irá se configurar como hybris, desmedida, como lascívia e concupiscência por instrução, caracterizando a doença e a febre histórica.

No prefácio de sua obra, Nietzsche faz mais uma vez referência a Goethe, mostrando que ele teria dito, com toda razão, “que com nossas virtudes também cultivamos, ao mesmo tempo, nossos erros” (NIETZSCHE, 2003, p. 6), e que, desse modo, podemos entender como uma virtude hipertrofiada, como o sentido histórico de nossa época, pode se tornar o próprio sentido de degeneração de um povo. E conforme o próprio Nietzsche diz, é como filho de sua época, ou seja, como herdeiro de um tempo que glorifica a cultura histórica, que ele pôde chegar a experiências tão intempestivas, ou seja, à experiência de que o cultivo excessivo de nossos erros também pode levar ao cultivo da própria virtude, no sentido de que o erro cultivado excessivamente acaba por provocar o seu próprio esgotamento, levando, assim, à sua superação, que é a superação do excessivo e a retomada do limite próprio da virtude. A partir disso, entende Nietzsche que “não saberia que sentido teria a filologia clássica em nossa época senão o de atuar nela de maneira intempestiva ‒ ou seja, contra o tempo, e com isso, no tempo e, esperemos, em favor de um tempo vindouro” (p. 7).

Com isso ele está querendo dizer: A filologia clássica, se não quiser degenerar como ciência, como estudo meramente erudito do passado e, por isso mesmo, considerado como algo supostamente rigoroso, objetivo, terá que atuar de maneira intempestiva, ou seja, contra o seu tempo, contra o predomínio da concepção histórica, erudita da filologia, atuando assim, propriamente no tempo, em prol de um tempo vindouro, por vir, o que só pode ocorrer desde uma herança da tradição e de um simultâneo combate à mesma no presente. Intempestivo, portanto, não quer dizer simplesmente fora do seu tempo, sem memória, sem consideração à tradição histórica. E aqui mais uma vez podemos, seguindo a poesia de João Cabral, dizer que um galo sozinho não tece uma manhã, ou seja, sozinho, o “galo” esquecimento não tece nada, não pode erguer nada sem o “galo” memória, que na verdade, são muitos “galos”, pois as memórias são de muitos “saberes”, “conhecimentos”, de muitos povos, épocas, tradições, de muitos conceitos e palavras. Tudo isso, de fato, precisa ser lembrado, mas, por outro lado, precisa também perder a sua rigidez, deixando-se lubrificar pelo esquecimento. Esquecimento, desse modo, é memória vindoura, do por vir, do por se criar, que também é múltiplo, diverso, mas que só pode ser desde a diversidade do já criado.

A relação entre memória e esquecimento corresponde, na “Segunda Intempestiva” de Nietzsche, à relação entre história e vida. Mas como? Nesse sentido história (Historie) é somente memória? Vida (Leben) é somente esquecimento? Nietzsche começa o tópico 1 da “Segunda Intempestiva” mostrando como essa relação se apresenta no viver do animal, ao fazer a seguinte consideração sobre o rebanho que passa ao nosso lado pastando:

Ele não sabe o que é ontem e o que é hoje; ele saltita de lá para cá, come, descansa, digere, saltita de novo; e assim de manhã até a noite, dia após dia; ligado de maneira fugaz com seu prazer e desprazer à própria estaca do instante, e, por isto, nem melancólico nem enfadado. ( p. 7)

O que Nietzsche procura determinar, sobretudo, nessa intempestiva, é o âmbito, o domínio, no qual história e vida se relacionam e se determinam reciprocamente, pois a história (Historie) só se constitui desde a vida, desde um acontecer histórico (Geschichte), e o acontecer histórico, por seu lado, só se constitui desde uma memória histórica. Em uma carta escrita a Gersdorf, em 07 de novembro de 1870 (cf. HEIDEGGER, 2003, p. 8), Nietzsche diz: “Eu nasci como planta próximo ao cemitério, como homem em uma casa paroquial.” “Planta próximo ao cemitério” parece indicar que à vida pertence a morte e que, assim compreendida, a vida desenvolve plenamente a si mesma, crescendo espontaneamente. Para o homem, no entanto, a vida não é só crescimento espontâneo, natureza, mas também formação, educação, instrução, cultura. Por isso, Nietzsche diz na carta que como homem nasceu em uma casa paroquial, ou seja, como homem nasceu inserido em uma tradição religiosa, da qual foi herdeiro. Com isso ele está descrevendo a vida como círculo, em seu eterno retorno como história (cultura) e como acontecer histórico (Geschichte), como vida por se fazer que se faz na tensão com a morte.

Mas quando se refere à vida, Nietzsche a compreende sempre como algo ambíguo, pois, se conforme o que dissemos acima, o que é decisivo para ele na “Segunda Intempestiva” é “o âmbito, o domínio, no qual história e vida se relacionam e se determinam reciprocamente”, podemos então, a partir disso perguntar: E o que vem a ser esse âmbito ou domínio? É algo fora da vida? Não é a vida mesma? Mas como? A vida seria então a medida do ajuste de contas do que é útil e do que é prejudicial? Nesse caso o que é útil e prejudicial para a vida se decide a partir da própria vida? Seria a vida a reivindicação, a consumação, e o próprio agente da consumação?

A história e a vida só podem determinar a si mesmas a partir do ajuste de contas de sua relação, e a utilidade e desvantagem da história são avaliadas de acordo com um particular propósito e fim: a vida. A vida seria assim tanto o propósito como também o âmbito do ajuste de contas entre a utilidade e a desvantagem, que só são aquilo que são em função da vida. Mas qual vida? Com a palavra vida Nietzsche está se referindo a quê? À vida humana? À realidade do real no seu todo? Vantagem ou desvantagem em relação à vida e não, decerto, em relação a alguma coisa particular. Seria então em relação à vida como o “vale a pena”? Mas essa pergunta não é feita a partir de uma determinada concepção de vida, de felicidade?

Essas questões decerto que parecem ser importantes, mas antes de examinar propriamente o viver do homem, Nietzsche examina o do animal, que vive amarrado à estaca do instante, sem passado e sem futuro, residindo nisso, supostamente, a sua felicidade, como o viver sem melancolia nem enfado. O animal, então, seria o ente que esquece constantemente. Mas o que isso quer dizer? Seria o sempre pôr-se no presente? Mas como? O presente é para o animal tempo? E de que modo, se ele sempre esquece? E como ele pode esquecer se não lembra? É por estar atado ao instante, absorvido no presente, que o animal seria feliz, vivendo sem melancolia nem enfado. Ver isto, segundo Nietzsche, “desgosta duramente o homem porque ele se vangloria de sua humanidade frente ao animal, embora olhe invejoso para a sua felicidade ‒ pois o homem quer apenas isso, viver como o animal, sem melancolia, sem dor” (2003, p. 7). Por que então a inveja do homem? Por que ele não é simplesmente animal e, desse modo, feliz como o animal? De fato não fundamentalmente por isso e sim porque não cria e não pode criar desde si a felicidade.

Isto porque cada animal, sendo sem passado, é sempre o “primeiro”. O homem, por outro lado, é importunado pelo passado, se encontra e é confrontado com ele. Segundo Heidegger, ele é desse modo o imperfectum (cf. HEIDEGGER, 2003, p. 29), o animal ainda não determinado, conforme diz Nietzsche em Além do Bem e do Mal, § 62. O animal, por outro lado, é o “praesens semper perfectum”, absorvido pelo presente sem conhecê-lo como presente. Desse modo, não é dominado pelo desânimo, pelo fato de que tudo perece, introduzindo assim nas coisas peso, nem se encontra cansado pela monotonia do que sempre vem, não sendo tomado pelo tédio em relação à repetição do mesmo. Mas como o animal é mantido na estreita linha do presente, mesmo sem saber o que é presente? E como ele pode esquecer se nunca está recolhido e mantido em nada? Ele está atado ao presente sem nada saber disso, pois não sabe diferenciar passado e presente. A sua felicidade está no fato de apenas saltar, comer, digerir, em ser vivo apenas como organismo (Körper) e não como o homem, que é originariamente corpo (Leib), que Nietzsche irá descrever no discurso “dos desprezadores do corpo” de “Assim falou Zaratustra” como o Próprio (das Selbst).

Por ser o animal um praesens semper perfectum, Nietzsche irá dizer que ele vive a-historicamente. Já o homem, como animal histórico, é também a-histórico. Nele estão ambos, e por isso ele admira a si mesmo: “Por não poder aprender a esquecer e por sempre se ver novamente preso ao que passou.” (NIETZSCHE, 2003, p. 8) Por isso ele “inveja o animal que imediatamente esquece e vê todo instante morrer imerso em névoa e noite e extinguir-se para sempre.” (p. 8) E então perguntamos novamente: Como pode o animal esquecer e ver todo instante morrer se não sabe o que é presente nem passado? No homem, repetimos, estão ambos, o esquecer e o lembrar, o a-histórico e o histórico. Mas qual a sua relação? Nietzsche não concebe essa relação como um mero estar um ao lado do outro, mas um estar em tensão, em luta, daquilo que tende a se opor, de modo que o homem, distinguido pelo histórico, só venha propriamente a constituir uma história se puder colocar a sua formação histórica a serviço da vida, do a-histórico. A história, desse modo, como o que precisa estar a serviço da vida, mas a vida, por outro lado, como o que precisa estar a serviço da história. Como entender isso? Não é preciso que haja ou esquecimento ou lembrança? Como será possível no esquecer o lembrar e no lembrar o esquecer? Como manter reunido, em tensão, o que tende a se opor?

O homem, que se caracteriza pelo caráter histórico, possui em sua vida o a-histórico como uma prioridade. Ambos mutuamente se pertencem como o aspirar contrário daquilo que em si é diferente. Essa unidade, contudo, não é exterior e posterior; antes possui o caráter de fundamento de ambos, do histórico e do a-histórico, deixando-os resultar desde si. Será que Nietsche também parte nessa “Segunda Intempestiva” da clássica definição do homem como “animal racional”? Se o animal, conforme ele descreve no início, vive puramente amarrado à estaca do instante, é puro esquecimento, e o homem, por seu lado, distingue-se do animal por poder lembrar, seria então a lembrança a diferença específica que caracteriza a sua humanidade? Mas como, se o homem só pode esquecer lembrando e lembrando esquecendo, tendo em vista que nele ambos mutuamente se pertencem?

O racional, portanto, não é no homem mera diferença específica, algo acrescentado ao puramente animal, ao esquecer, mas antes síntese e unidade que sempre já se deu entre o esquecer e o lembrar, o a-histórico e o histórico. Sendo originariamente essa unidade, o homem é em sua essência corpo (Leib), o Próprio, enquanto afeto, força e poder primordial de compactação, reunião, espessamento. O que nele precisa vir a ser e se encorpar, crescendo, se intensificando, é esse poder, como superação daquilo que apenas o instrui, sem aumentar a sua vivacidade, e que aparece na “Segunda Intempestiva” como a mais crassa representação do declínio. E como apenas pode ser a-histórico o que é histórico, o animal, rigorosamente falando, não é a-historico, mas sem história. Quando fala do a-histórico no homem e no animal, Nietzsche sabe que há uma diferença essencial entre ambos, o que vai se impondo na sua reflexão, embora, conforme bem observa Heidegger (2003, p. 30), ele não torne essa diferença evidente.

Quando se refere ao animal, Nietzsche fala do “constante e imediato esquecer”; quando se refere ao homem, no entanto, ele fala “da arte e da força de poder esquecer”. O animal absorve-se no instante, esquece imediatamente e vê o instante de volta descer e “morrer”, o seu não mais ser e desaparecer agora, o seu não mais presente e, assim, seu sempre voltar a impor-se como presença ligada a um novo instante. Mas como é possível para o animal esquecer se não lembra, estar atado ao instante se não sabe o que é agora? Tudo isso permanece indeterminado e ao mesmo tempo se impõe na reflexão de Nietzsche quando ele fala da felicidade do animal ‒ a sua felicidade de toupeira, o ser feliz no não ver e no não saber, no sempre esquecer ‒ e da felicidade do homem, a felicidade no ver, no saber-se vivendo, e por isso o admirar a si mesmo por ser histórico, por poder lembrar. Se o esquecer implica a relação com as coisas passadas, como é possível saber que esquecemos? Como, se ao esquecer não lembramos daquilo que esquecemos e, assim, esquecemos que esquecemos? Acerca disso em Aurora, § 126, Nietzsche diz:

Esquecimento. ˗ Ainda não foi provado que existe o esquecimento: sabemos tão-só que a rememoração não está em nosso poder. Provisoriamente colocamos a palavra ‘esquecimento’ nessa lacuna de nosso poder: como se fosse mais uma faculdade na lista. Mas o que está, afinal, em nosso poder? - Se essa palavra está numa lacuna de nosso poder, as outras palavras não estariam numa lacuna de nosso conhecimento do nosso poder? (p. 95-96).

Esquecimento, desse modo, é a incapacidade de conseguir recuperar, de reerguer o que ruiu, o completo escorregar. Em alemão esquecimento é Vergessen, que vem do antigo alemão gezzen, que tem relação com o inglês to get (encontrar, atingir, segurar), de modo que esquecimento significa não segurar, não encontrar. Para o grego esquecimento significa deixar alguma coisa passar para o oculto, afundar no encobrimento (lanqa/nw). No desencobrimento (a)lh/qeia), vigora uma espécie de luta com o encobrimento e o retraimento e o mais profundo esquecimento se diz através da palavra e)pilanqa/nomai, que significa cair no ocultamento em relação ao esquecimento, ou seja, esquecer que esqueceu. Nietzsche não vai entender o esquecimento como uma simples força passiva; antes o entende como uma força ativa, que perde o visto em favor do que está por tornar-se visível. Desse modo o que esquece vê, não deixa de ver, de saber, de ter de algum modo informação, conhecimento da historia, dos fatos, mas só os utiliza na medida certa, ou seja, na medida em que são úteis para a vida. Mas como? O que decide então é a utilidade? E o que significa dizer que algo é útil à vida? E o que se quer dizer aí com vida?

Antes de tentar dar algum direcionamento a essas questões, vejamos de um modo ainda mais detido como Nietzsche compreende a sua época, entendida por ele como uma época de glorificação da cultura histórica, e também como ele compreende o homem do século XIX, escolhendo, para tanto, algumas passagens de outros escritos posteriores à “Segunda Intempestiva”. No fragmento póstumo 5 [15], de 1875, ele diz: “Raramente uma época foi tão doentia, por padecer dos males de todas as direções ao mesmo tempo” (NIETZSCHE, KSA 8, 5 [15], p. 44). No fragmento póstumo 9 [119], ele apresenta o homem do século XIX como o “homem múltiplo, o caos mais interessante que talvez já tenha existido” (Id., KSA 12, 9 [119], p. 404). Nietzsche faz aqui o diagnóstico do que nunca houve em nenhuma outra época: A febre histórica, a glorificação de culturas, costumes e saberes dos antepassados que faz a sua época padecer dos males de todas as direções ao mesmo tempo, o que paralisa a vida presente. Por isso o homem do século XIX seria o homem múltiplo, pois não é o homem sintético, que dá para si destino e tarefa próprias, sendo ninguém ao procurar ser somente a partir do que as outras épocas já foram. Isso, segundo ele, conduz a um deixar tudo aproximar-se, fazendo com que “o resultado conjunto não seja nenhum Goethe, mas um caos, um suspiro niilista, um-não-saber-desde-onde-nem-para-o-interior-do-que, um instinto de fadiga” (Id., 2000, Inc. Ext, § 50, p. 108).

Como pensar então, a partir dessa perspectiva de educação histórica, o desenvolvimento de um novo ideal, como domar as forças históricas e conduzi-las a um novo alvo? Primeiro é preciso o diagnóstico do problema, da doença: A multiplicidade das estimulações de valor herdadas, a herança como problema. Assim, parece ser necessário voltar a ser pobre e não se envergonhar de sua pobreza, a pobreza de não-ser, a pobreza como grandeza e poder: O poder não-poder, isto é, não dominar, antecipar, calcular, não dispor da vida como dado, como fato, como o que é apenas passado e objeto de estudos historiográficos.

Dentro desse esquema, o passado é separado do presente e do futuro, dissolvido em mero fenômeno do conhecimento, tornando-se assim morto, sem vida. Surge assim a antítese entre o conhecimento e a vida. O passado, desse modo, ao atrair para si todo o presente, vê tudo desaparecer em pontos móveis e perder-se na torrente do vir-a-ser. Na crítica que faz à educação histórica enquanto exagerada consideração do passado, Nietzsche fala que o verdadeiro saber está no acordo entre memória e esquecimento, entre o histórico e a-histórico, que é estabelecido pela vida. É só a partir da vida, portanto, que é possível estabelecer a utilidade ou desvantagem da história. Por outro lado, no entanto, a história aparece como podendo ser útil e danosa para a vida. A utilidade e a desvantagem, portanto, não se dão apenas a partir da vida; são também “algo” para a vida, “algo” que pode fomentar o seu crescimento ou o seu declínio.

A medida do ajuste é também chamada de horizonte, o acordo com a vida desde o qual ela torna-se saudável, forte, fecunda e, tendo isso em vista, o horizonte aparece como o que tem de ser fixado, como verdade, como aparência necessária, como ser. A vida assim vai delimitando-se, estreitando-se, espessando-se, compactando-se em um horizonte possível e necessário. Nietzsche pensa com isso ao mesmo tempo a articulação entre justiça e verdade, pois a justiça é a legislação da vida com respeito à verdade, isto é, no que diz respeito ao seu ganhar contorno, limite, horizonte, e desse modo a justiça acrescenta o “e” na relação de verdade e vida. E como entender a delimitação de horizonte e o esquecimento? São a mesma coisa? Não é preciso uma delimitação de horizonte para poder esquecer? Não seria antes o contrário, ou seja, não seria preciso antes esquecer para que houvesse delimitação de horizonte? E como podemos pensar a relação do horizonte ou do esquecimento com aquilo que Nietzsche irá chamar de força plástica?

Na “Segunda Intempestiva” Nietzsche mostra que saber até que ponto considerar ou não a história é sinal da saúde, robustez, jovialidade, capacidade criadora de um homem, de um povo ou de uma civilização. Este saber, que é um sentir, um poder, uma força, uma afecção, ele denomina de força plástica (plastiche Kraft). Saber, portanto, determinar o grau de nocividade e de utilidade da história para a vida é sinal de que se está bem constituído de força plástica. Esse saber não é resultado de uma reflexão racional sobre os benefícios e riscos da história para a vida, mas é um saber situar-se, um saber esquecer e lembrar. Este saber é um poder sentir no tempo certo a necessidade de abandono do histórico, a fim que a história possa nascer.

Se a história é abandonada no tempo certo, isso significa dizer que ela foi lembrada até onde podia ser lembrada. É a força plástica que mostra o ponto limite desse abandono. Para que ocorra esse abandono, contudo, o homem precisa já estar abandonado ao esquecimento, precisa já encontrar-se no limiar, no tempo certo da coisa. Nesse sentido, portanto, não é ele que possui a força plástica como uma faculdade, seja de sua razão ou de sua sensibilidade. Ao contrário, a força plástica é que o possui e que o conduz ao limiar, ao ponto limite do abandono. Assim compreendida, a força plástica é “pathos”, afeto, poder, é um saber esquecer em sua justa medida, que permite ao homem que ele, estranhamente, paradoxalmente, ao saber esquecer saiba também lembrar, pois o seu esquecimento, diferentemente do esquecimento do animal, acontece como uma “medida”, “pesada” e “calculada” consideração da memória.

A partir dessas considerações, Nietzsche vai apresentar o historicismo como o cultivo excessivo da memória, oriundo do enfraquecimento e debilitação das forças criativas do homem, do seu poder esquecer, o que leva ao definhamento da autêntica cultura, que deve sempre estar alicerçada no poder criador de novas formas e valores. No entanto, ele também mostra as utilidades da história (Historie) para a vida, ao mostrar os contra-venenos do historicismo, ou seja, as forças a-históricas, que se fundamentam no poder esquecer, e as forças supra-históricas, que “desviam o olhar do vir a ser e o dirigem ao que dá à existência o caráter do eterno e do estável em sua significação, para a arte e a religião” (NIETZSCHE, 2003, p. 95). Com isto ele quer mostrar que os estudos históricos, a historiografia, quando considerada devidamente, é útil para a vida, para o acontecer propriamente histórico (Geschichte), ou seja, para a criação de novas possibilidades de vida, pensamento, ação, arte, cultura, etc. Com esse intuito, ele examina detalhadamente os três tipos de historiografia, denominadas respectivamente de história monumental, história antiquária e história crítica, mostrando as suas utilidades e desvantagens, o que vai lhe permitir fundamentar a sua crítica ao historicismo e ao espírito científico e objetivo que caracterizavam os estudos históricos em sua época.

A história monumental parte dos grandes feitos dos grandes homens e pode ser tanto útil como prejudicial à vida. Ela diz respeito, antes de tudo, segundo Nietzsche, ao homem ativo e poderoso, que luta uma grande batalha e que precisa de mestres e modelos que não encontra presentes em sua época. Diferentemente dos meros viajantes curiosos pela história do passado, o homem ativo e poderoso utiliza a história como um meio contra a resignação, sem visar nenhum pagamento a não ser a fama ou o reconhecimento no templo da história. A utilidade dessa forma de história podemos ver destacada, por exemplo, no fragmento póstumo 19 [37], do período 1872-1874, no qual Nietzsche diz: “...O grande só age sobre o grande”. Os grandes como aqueles que “provocaram uma avalanche” (Id., KSA 7, p. 430). O próprio Nietzsche, sem dúvida, é uma dessas avalanches. E se a grandeza só age sobre a grandeza, é preciso ser grande para poder entender a grandeza, a fim de que ela possa atuar. Nesse fragmento a grandeza é mostrada como servindo para perpetuar a grandeza, a grandeza passada como modelo para todo ideal de grandeza no presente e no futuro.

E como é possível que um momento ou pensamento grandioso do passado possa estar vivo no presente se o presente não tem grandeza? A grandeza, como foi dito, não age somente sobre a grandeza? Talvez possamos entender que Nietzsche considera que a sua época, embora não tenha grandes mestres e modelos, tem ainda, todavia, aqueles que podem compreender a grandeza passada. E, segundo ele, “nesta exigência de que o grande deve ser eterno inflama-se a luta mais terrível. Pois todo o resto que vive grita ‘não’!” (NIETZSCHE, 2003, p. 19) Essa luta mais terrível é a luta contra o monumental, travada por todo o resto, ou seja, por tudo o que é baixo e pequeno e que luta para sufocar a grandeza.

É interessante perceber que o monumental precisa ser visto como o que surge e pode surgir e não como o que possui realidade, como o que é, pois o que a solução contrária diz é que o monumental não deve surgir. O monumental, portanto, é o que surge e pode surgir como exemplo de grandeza, como o gigantesco, e também como algo “presente”, do qual o presente quer se assegurar enquanto passado vindouro. O monumental é assim o que fomenta o crescimento da vida, mas que, por outro lado, é a própria representação da vida elevada, da vida no seu crescer e intensificar-se. E o que vem a ser isso? O crescimento da vida parece indicar o seu entrar mais em si mesma e isso, por sua vez, indica o nascimento, a arché, o princípio, o movimento de vida se fazendo vida, como aquilo que é o mais forte e poderoso. O monumental é, portanto, ambíguo: É o mais ambicionado, aquilo que é para o olhar do presente o nunca sido, sobre o que mais tarde se apóia o passado como algo grande, e, ao mesmo tempo, o constantemente apontado como o que se precisa vir a ser no futuro. O olhar monumental, portanto, é o que vê nascimento, a grandeza fazendo-se grandeza, é o que vê a coisa como se fosse pela primeira vez, podendo assim conhecê-la, não sendo, desse modo, um mero informar-se e ter ouvido contar sobre a grandeza, ou seja, uma mera instrução, fruto de uma educação histórica.

Temos, com isso, o encorajamento e a confiança no grande, na humanidade do homem, a lembrança como exortação, incentivo, impulso, enquanto o instalar-se do lembrado como algo pré-visualizado e, assim, vinculante, que permite o transportar-se para a grandeza passada. A história monumental, portanto, apenas possível se garantindo o seu efeito como impulso, enquanto efeito fortalecedor. A sua verdade é então compreendida desde a utilidade que fornece para a vida, para o seu crescimento e fortalecimento, o que só é possível através do correspondente retoque, supressão, invenção, reinscrição, interpretação. Também é assim a relação da filosofia com a sua história e, poderíamos também dizer, de Dom Quixote com a cavalaria andante, como o seu ideal de grandeza. Esse é um dos modos como se constitui o “cálculo” da vida, isto é, o estabelecimento de suas condições de manutenção e crescimento do poder, como dirá o Nietzsche maduro.

Não se trata de interpretar a verdade desde a histórica conexão de causas e efeitos, ao modo de “como tudo foi” para um sujeito que “tudo vê e sabe”. A história monumental como efeito não pode produzir efeitos em si, pois os efeitos são sem causa suficiente: A história é então compreendida como acaso, como o que é sem razão para ser, e por isso há grandeza, beleza, pois há indeterminação e acaso. A história monumental, desse modo, como aquela que precisa ser entendida não como verdadeira, mas como útil, como a que eleva a ação. Mas, se é o que eleva a ação e promove o crescimento da vida, a utilidade não diz respeito à própria verdade? E se a verdade diz respeito à elevação, o declínio diz respeito então a não verdade? Verdade e não verdade, desse modo, são duas coisas opostas e contrárias? Não residiria antes a essência da verdade na tensão de verdade e não verdade, no combate entre o crescimento e o declínio da vida? Nietzsche apresenta o homem histórico como o que odeia o monumental como o que não é ele e como o que, assim, precisa ser suprimido. Temos com isso a luta do monumental e do histórico. Mas o histórico só é histórico desde o monumental, isto é, desde o impulso para a grandeza futura que se tornará um passado monumental.

Ao fazer a crítica da educação histórica, Nietzsche apresenta as vantagens da história para a vida conjuntamente com as desvantagens. Entres as desvantagens da história monumental por ele apresentadas, podemos destacar as seguintes: 1) A sua autocracia: Quando ela considera que encontrou a história tal como foi, quando o seu impulso para a grandeza vale como o único; 2) Nas mãos de grandes vilões, a história monumental possivelmente leva a novos efeitos terríveis; 3) Do mesmo modo, isso também ocorre quando ela se encontra nas mãos dos impotentes e inativos, como, por exemplo, na arte. A partir disso podemos compreender que o monumental também pode surgir como motivo de fuga para um grande modelo, a fim de negar, em referência a ele, todas as coisas que estão vindo a ser e desejando. Temos como consequência a impossibilidade de fazer o grande com o apelo disso que já está aí e a provocação do efeito contrário. “Aqui o sentido da história monumental é invertido: ao invés da obtenção do grande, a inibição de sua criação” (HEIDEGGER, 2003, p. 74). O monumental, portanto, é apresentado por Nietzsche em sua ambigüidade: Como o que pode fomentar ou inibir a criação do grande.

Além da história monumental, Nietzsche também fala da utilidade e desvantagem de outro tipo de história, que ele irá chamar de história antiquaria ou tradicionalista. Ele a caracteriza do seguinte modo:

Assim, a história pertence em segundo lugar ao que preserva e venera, àquele que olha para trás com fidelidade e amor para o lugar de onde veio e onde se criou; por intermédio dessa piedade, ele como que paga pouco a pouco, agradecido por sua existência... busca preservar as condições sob as quais surgiu para aqueles que virão depois dele ‒ e assim ele serve à vida (NIETZSCHE, 2003, p. 25).

Ao apresentar distintas formas de história, Nietzsche não pretende fazer uma mera enumeração ou classificação. Ao invés de apenas descrever distintas formas de existência histórica, ele aponta a partir delas para a essência da história, para o acontecer histórico (Geschichte), ou seja, para o combate de memória e esquecimento que se trava no interior de cada uma delas e que pode tanto inibir como favorecer o surgimento do histórico. Nesse sentido, Nietzsche destaca que a história antiquaria permite o olhar para trás no “de onde” da origem, no sentido de procurar preservar as condições de origem para os descendentes, permitindo ao homem aí largar-se e esconder-se.

Ela permite ao homem encontrar-se novamente no passado como o já dado e completado, e com isso o manter-se em si mesmo. O “sentido histórico” é aí compreendido como uma espécie de ser si mesmo, o ligar-se de volta à origem, o fazer-se aí morador. É também uma forma de justificar condições simples e miseráveis, apresentando-se como mecanismo de lealdade ao passado e “prevenção do abandono ao desenraizado novo e sempre mais novo” (HEIDEGGER, 2003, p. 77). A verdade desse tipo de história não envolve nenhum saber puro, e desse modo ela tem um campo de visão limitado, permitindo ao homem rolar para dentro dos costumes e tradições do seu passado, para dentro de sua paisagem folclórica. A necessidade de sentir-se pertencendo a um lugar, a uma tradição, vinculado a determinados costumes, apresenta-se como essencial para a vida. O próprio Heidegger dá um testemunho essencial sobre essa necessidade no texto “Porque permanecemos na província?”:

O domínio íntimo do próprio trabalho com a Floresta Negra e sua gente vem de um insubstituível enraizamento centenário no solo alemânico-suábio. Quando muito, a chamada estadia no campo deixa o habitante da cidade “inspirado”. O conjunto de meu trabalho, porém, é sustentado e conduzido pelo universo dessas montanhas e seus camponeses. (HEIDEGGER, 2014, p. 278).

O que Heidegger quer mostrar, sobretudo, é que o seu trabalho, a entrega ao seu fazer, é o que abre o primeiro espaço para a paisagem à sua volta, para a realidade das montanhas e o trabalho dos camponeses, de modo que o seu observar não é o mero ver passivo da paisagem à sua volta, mas é o observar que é a concentração de um fazer. Esse fazer, no entanto, como o fazer da filosofia, para ele se intensifica mais quando ele abandona as viagens, conferências e reuniões e volta a sentir em torno de si o enraizamento no solo alemânico-suábio:

Mas assim que subo novamente para lá, já nas primeiras horas de estada na cabana, todo o mundo de questões anteriores se aproxima de mim, inclusive, exatamente como o havia gravado quando o deixei. Eu sou simplesmente deslocado para dentro da própria vibração do trabalho e, na realidade, não tenho nenhum poder sobre suas leis ocultas (p. 278).

Temos, assim, o espaço de visualização do lugar aberto pelo fazer e o fazer como abertura oferecida pelo espaço visualizado, ambos em íntima conexão e tensão que provoca o crescimento da vida.

Entre as desvantagens desse tipo de história, que podem levar à degeneração da vida, Nietzsche destaca que nela o passado é colocado em um sentido destacado no comando. O passado como tal justifica não a grandeza, por exemplo, mas o ser passado. O passado, portanto, é compreendido como algo solidificado, imutável (antigo), como aquilo que tem primado sobre tudo que vem a ser, que é novo; aquele o venerável, este o que não é digno. A história em si não é mais estimulada e inspirada pela vida fresca e vigorosa do “presente”. A sua desvantagem ocorre também devido ao isolamento desta história como a única, como essencial depreciação do que está por vir, sem adivinhar o instinto para as forças criativas.

Nietzsche apresenta ainda uma terceira forma de história, a história crítica. Crítica não significa para ele crítica às fontes históricas, mas ao passado, julgando-o e condenando-o, como forma de se contrapor à preservação e ao agarrar-se ao passado só porque é passado, e por isso, algo digno. Surge como força necessária para a vida a fim de que ela não se paralise. Tem como lema o seguinte: Todo passado é digno de ser condenado e é a própria vida, como poder a-histórico, que promove a condenação. Através da história crítica, Nietzsche se apresenta como crítico de seu tempo e, desse modo, de si mesmo. Isso exige a plena consciência de sua época, junto com a felicidade e a tortura de ter percorrido cada um dos seus cantos.

Nietzsche, desse modo, é o apaixonado pela independência como o que tem a alma mais dependente, por ter se entregado de tal modo à sua época, sendo assim o mais suscetível, o que tem a alma mais dependente e que “torna-se mais atormentado por todos os menores fios do que outros por cadeias” (NIETZSCHE, KSA 9, 7 [91], p. 335). E isso porque Nietzsche, como crítico da tradição metafísica, está de tal modo enraizado na tradição que a traz junto ao querer superá-la. Com isso temos o conflito entre aquilo que herdamos ‒ e que se torna em nós uma espécie de primeira natureza ‒ e aquilo que precisamos criar, que é uma espécie de segunda natureza. Assim acontece uma coisa estranha: a criação de um passado desejado a posteriori, o que parece indicar o primeiro tipo de história que foi apresentado, a história monumental. O ser livre da história crítica, desse modo, seria um estar a serviço da história monumental?

Duas coisas parecem decorrer disso: 1) O saber que a primeira natureza foi uma vez uma segunda natureza; 2) e também que cada segunda natureza vitoriosa vem a ser uma primeira natureza. A história crítica, desse modo, parece ser a mais íntima com relação à história monumental. Temos aqui um monstruoso antagonismo: A história crítica, por um lado, a serviço da história monumental, por precisar criar o grande, e, por outro lado, contra, pois para ser livre precisa combater toda grandeza instituída. No Fragmento póstumo 29 [77], de 1873, Nietzsche expressa bem esse antagonismo mostrando o que uma vez Goethe teria dito: “Tivesse eu sabido tão claramente como agora o quanto de excelente está aí desde séculos, eu não teria escrito nenhuma linha, mas alguma outra coisa teria feito” (NIETZSCHE, KSA 7, p. 663). Portanto, no tempo que Nietzsche irá pensar como o fim da metafísica ocidental, esse tipo de história irá aparecer como o mais perigoso e também como o mais essencial.

Esse antagonismo da primeira com a segunda natureza é o mesmo antagonismo entre o externo e o interno, a forma e o conteúdo. Seria, no entanto, esse antagonismo a expressão da fraqueza, da doença, ou reside nele o gérmen de uma força e saúde futuras, de uma síntese? A doença reside em entender o antagonismo como oposição, como separação de duas coisas distintas; a saúde no poder ver o antagonismo como tensão, como o poder de manter reunido o que tende a se opor. No fragmento póstumo 11 [3], Nietzsche diz que “alguém é artista pelo preço de sentir aquilo que todos os não artistas denominam ‘forma’ como conteúdo, como a ‘coisa mesma’” (KSA 13, p. 9-10). A forma, desse modo, é o próprio conteúdo, a coisa no seu fazer-se coisa, no seu aparecer, na sua delimitação e estreitamento, que só surge desde uma descomunal luta com tudo o que é grande e que, desde essa luta, pode vir a ser uma disposição prévia para uma nova grandeza, para assim “crescer nessa medida em violenta tensão” (Id., KSA 12, 9 [186], p. 450). Mas aquilo que se procura trazer a uma unidade articuladora, insiste em se separar, pois o que tornou-se grande tende a oprimir o surgimento de toda nova grandeza.

É dessa insistência de separação que o reluzente astro da ciência histórica irá tirar a sua potência sobre a vida. Nietzsche apresenta isso como sintoma de uma vida que já declina, sendo o declínio anterior a vontade de objetivação e controle sobre a mesma. Temos com isso a ciência histórica se intrometendo na constelação entre história e vida. Mas o que propriamente aí se intromete? Poderíamos dizer que é a ciência, a compreensão da história como ciência, como ciência do devir universal. Mas o que é isso? Para Nietzsche significa o caos, o não acreditar em mais nada, ao perder-se na torrente do devir. Isso vai constituir a chamada objetividade da ciência histórica, como o ater-se à multiplicidade dos fatos, dos valores, das culturas e dos costumes, o que vai conduzir à apatia, à paralisia.

No § 224 de Além do Bem e do Mal ele mostra que apenas o século XIX conhece o sentido histórico, essa “capacidade de perceber rapidamente a hierarquia de valorações segundo as quais um povo, uma sociedade, um homem viveu... em toda parte nossos instintos correm para trás, nós mesmos somos uma espécie de caos...” (NIETZSCHE, 1997, p. 128-129) O sentido histórico é apresentado como sentido e instinto para tudo, como um caráter não-nobre, como um não saber delimitar nada, pois a medida nos é algo estranho. O caráter nobre, pelo contrário, é o que apresenta indisposição em relação às melhores coisas, o que não pode admitir nada que não possa se tornar a sua presa.

Em Além do Bem e do Mal, § 204, ele apresenta o homem científico como aquele que deseja a independência e emancipação da filosofia, como o que tem a pretensão de desempenhar o papel de senhor. Esse homem é o erudito, como o que se põe instintivamente em guarda contra todas as tarefas e capacidades sintéticas do homem criador, do filósofo. Para o homem dominado pelo instinto histórico o mais difícil de captar é o genuinamente nobre nos homens e obras, o momento de satisfação do homem consigo mesmo, com as coisas que pôde completar. Tais naturezas nobres são aquelas que podem dizer de si mesmas que só hesitantes “sejamos capazes de reproduzir em nós as pequenas, breves, excelsas felicidades e transfigurações da vida humana... aqueles momentos e prodígios em que uma grande força deteve-se voluntariamente ante o ilimitado e desmedido” (§ 224, p. 130), aqueles momentos, em que uma prodigiosa força sente prazer na contenção, detendo-se voluntariamente ante o ilimitado, permanecendo firme sobre a terra que ainda treme. Teria sido isso o que fez Ulisses em Odisseia, ao deixar-se amarrar para poder resistir ao canto das sereias?

Ao falar de crítica à educação histórica buscamos aqui mostrar, a partir das reflexões de Nietzsche, os diferentes modos a partir dos quais a oposição interior x exterior, conteúdo x forma, segunda natureza x primeira natureza podem vir a constituir um sinal de doença e declínio ou, inversamente, de saúde e robustez para um homem ou uma civilização. Ao falar dos três diferentes tipos de história, portanto, procuramos mostrar que Nietzsche não está apenas enumerando tipos, mas fundamentando a essência da história (Historie), da historiografia, dos estudos históricos, no acontecer histórico (Geschichte). Com isso ele mostra de modo essencial que o impulso para construir um caminho de grandeza e estabelecer um destino próprio, uma história, que é o impulso que move a história crítica, envolve uma luta titânica com o que já é grande, monumental, e, por isso mesmo, histórico. Mas não só com o que já é grande e monumental, mas também com o que muitas vezes é pequeno, simples, como aquilo que vem a constituir os costumes e a paisagem do nosso lugar e que nos fornece um sentimento de pertencimento, como o que é próprio da história antiquaria.

Nesse caminho, os três tipos de história apresentados podem tanto contribuir como também constituir obstáculos para a criação do histórico. O combate travado, portanto, é entre as forças históricas e a-históricas, e a partir desse combate podemos ter diferentes configurações de forças. No § 4 da “Segunda Intempestiva”, por exemplo, Nietzsche fala da oposição interior x exterior (conteúdo x forma), mostrando que entender o interior como cultura, como ser “culto”, vem a fazer com que os homens se tornem bárbaros exteriores, ou seja, como aqueles que não possuem interioridade e que, desse modo, não podem vir a constituir nenhuma cultura. Com isso nós não temos o domínio sobre o superabundante que constitui a vida, como aquilo que é sobra, excesso, enquanto jogo de diferenciação e transformação que nunca repousa. E que meios restam à natureza, ele pergunta, “para dominar o que se impõe de maneira superabundante?” (NIETZSCHE, 2003, p. 35) Apenas um único meio, ele responde: “Acolhê-lo tão facilmente quanto possível, para rapidamente afastá-lo e expeli-lo uma vez mais” (Id., Ibid., p. 35). O que decorre disso é a produção de uma fraca impressão, a fuga do poder de síntese, da lenta e poderosa configuração de horizonte e, por conseguinte, o prazer de espraiar-se no estrangeiro.

Temos assim a constituição de uma personalidade fraca, o real e efetivo causando pouca impressão, juntamente com a acomodação com o exterior. Abre-se desse modo um abismo entre conteúdo e forma, pois o conteúdo, sendo a cultura, o “ser culto”, se opõe à forma, isto é, à coisa mesma, que assim, no seu nascer e fazer-se presente, é o próprio conteúdo. A autêntica cultura, por outro lado, Nietzsche a entende como a antítese da barbárie, compreendendo-a como a unidade de estilo artístico em todas as expressões da vida de um povo. A promoção da cultura de um povo, portanto, é por ele compreendida como o que se realiza através da promoção da unidade entre interior e exterior. Mas como se realiza essa unidade? Como redução ao um (interior)? Ao um (exterior)? Ao domínio do um (sujeito), que seria o interior? Ou ao domínio do um (objeto), que seria o exterior? Mas não é justamente essa oposição que Nietzsche precisa abolir?

O trabalho de promoção da autêntica cultura vai levar a cabo a destituição dessa oposição ao promover conjuntamente o trabalho de aniquilamento desse modelo de formação que constitui a barbárie. Mas o que Nietzsche entende por formação? Para ele formação (Bildung, Paidéia) significa o ser atraído pela forma, pelo fazer-se presente do conteúdo, constituindo a unidade de estilo. Unidade entre o que rebenta (a coisa, o conteúdo) e o que vem à presença (forma, reino de Apolo). A coisa como o distante que se aproxima, mas que só se aproxima como um modo de ser coisa, um modo possível de aparecer, e que assim, como coisa mesma, está sempre distante, pois junto dela nunca chegamos, enquanto coisa plenamente acabada, como uma essência imutável (a utopia, por exemplo, mas também qualquer outra coisa que vem à presença: a universidade, a política, a filosofia, a arte, o pescar, o pintar, etc.).

A forma para o homem do século XIX aparece como disfarce, camuflagem, e por isso é odiada e não amada, pois amor é amor ao que nasce, ao que está em gestação, e, sendo assim, esse amor é em sua essência pobreza, pois não domina e controla o nascimento. Não dominar e controlar significa deixar nascer, deixar ser, para não ter apenas uma súbita impressão, mas sim poder provocar o sentimento do que perdura, que para Nietzsche significa o perdurar da tensão (unidade) entre interior e exterior, conteúdo e forma. No entanto, ele entende que a interioridade alemã é fraca para produzir efeito no exterior e que por isso “os seus belos fios não estão amarrados em um forte nó” (NIETZSCHE, 2003, p. 37).

Nietzsche pensa a unidade alemã como aquilo que se almeja através da aniquilação da oposição entre conteúdo e forma. Esse pensamento aparece amadurecido no fragmento póstumo 10 [17], de 1887, no qual ele fala da necessidade de “geração do homem sintético, cumulado, justificado” (Id., KSA 12, p. 463). Isso mostra que o homem sintético só pode ser engendrado porque se encontra disperso, fragmentado na história, isto é, na cultura, na erudição. No § 5 da “Segunda Intempestiva” ele diz que “ninguém mais ousa aparecer como é, mas se mascara como um homem culto, como erudito...” (Id., 2003, p. 42) Estes homens consideram essas máscaras como coisas sérias e não como um espetáculo de marionetes, e todo homem sério, segundo eles, não deve mais tornar-se um Dom Quixote e querer aventurar-se em quiméricas realidades. A realidade já está posta: É a ciência histórica na avalanche dos seus acontecimentos, que no século XIX engendrou não o homem sintético, mas o homem disperso, fragmentado. Mas a questão principal para Nietzsche é a seguinte: O homem já não precisaria antes estar disperso para poder se deixar dispersar na avalanche da história? E como se daria essa dispersão?

Ele vai entender que a dispersão ocorre devido a uma carência de força plástica, e a força plástica ele compreende como poder de dosar memória e esquecimento, o histórico e o a-histórico, mas que, contudo, não é um poder do homem, conforme já mostramos acima; antes é um poder da vida que ora dispõe o homem para a dispersão na história, ora o mantém na coesão, na unidade, configurando-o como homem sintético. A força plástica como poder de delimitar um horizonte, de criar, entendendo-se o criar como amor não ao próximo, mas ao distante, o distante que só se aproxima mantendo distância, e que representa a própria centelha da beleza passada fulgindo no horizonte do futuro. O grande homem, desse modo, é entendido por Nietzsche como aquele que capta o espírito do seu tempo para transmiti-lo como documento eterno para a posteridade, tal como foi Burckhardt.

A força plástica podemos também compreender como aquilo que Nietzsche em sua maturidade, como, por exemplo, em “Assim falou Zaratustra”, irá compreender como atividade do corpo, como poder de incorporação, sendo o corpo entendido como “uma multiplicidade com um único sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor” (NIETZSCHE, 1995, p. 51). No contexto da “Segunda Intempestiva”, podemos pensar isto como a multiplicidade da herança histórica na direção de uma unidade no grande homem. Temos assim “tudo e um” desde a vida, que Heráclito pensou com a expressão hen panta. Guerra e paz, rebanho e pastor, significando tudo e (é) um? O rebanho assim entendido como a dispersão na ordem, o todo em um, sem ser simplesmente a identidade do um nem a indeterminação do todo. O diferenciar-se do um não sendo uma mera diferença sem identidade, nem tampouco, uma mera identidade sem diferença. É a partir desse poder de se manter na tensão de identidade e diferença que Nietzsche irá pensar a cultura grega como uma autêntica cultura, capaz de manter a sua identidade diante da multiplicidade histórica herdada (diferença).

A força plástica, portanto, é um poder da vida, que põe tanto a utilidade como a desvantagem, uma vez que toda utilidade posta, como o que traz a saúde, traz sempre em si também a possibilidade da desvantagem, de deslizar para o impróprio e para a doença. O que Nietzsche pensa radicalmente na “Segunda Intempestiva” é a saúde e a doença de mãos dadas, uma junto da outra e em necessária confrontação. Engendrar o grande homem, como sendo a autêntica formação, significa para ele engendrar o homem capaz de pensar essa unidade. O homem histórico, no entanto, como o que recusa toda atividade sintética, é o que deixa passar opinião após opinião. A história, desse modo, apresenta-se como um estoque de trajes, de máscaras, e o homem histórico é o que não se ajusta a nenhum estilo, vivendo do troca-troca de épocas e costumes e no desespero por tudo provar e nada nele assentar. Temos com isso a fragmentação, o caos, o não acreditar em mais nada ao perder-se na torrente do devir.

Diante disso, a fixação num ponto de vista, a delimitação de um horizonte, apresenta-se como atitude verdadeiramente filosófica que, contudo, no século XIX, segundo Nietzsche, não se consegue mais encontrar. A abstinência histórica, desse modo, é vista como útil à vida, provocada pelo esquecimento como força ativa, que instaura o fechamento mesmo em relação às coisas boas vindas da tradição. Temos assim apresentada a necessidade de horizontes limitados, o estreitamento das perspectivas como condição para a vida e o crescimento. É a partir disso que Nietzsche irá entender o homem criador como aquele que cria desde a obediência, desde a coerção às leis que troçam de toda formação por conceitos como sendo algo frouxo, múltiplo, equívoco. Para estes é necessário obedecer por muito tempo e numa direção.

O estreitamento das perspectivas, a estupidez, é, portanto, necessária como condição de vida e crescimento. Quando fala do supra-histórico, Nietzsche o apresenta como força configuradora da unidade de estilo, como o que tem o poder de desviar o olhar do vir a ser dirigindo-o ao que dá à existência o caráter do eterno e do estável em sua significação, conforme mostramos acima, apresentando-se assim - ao lado das forças a-históricas, que se fundamentam no poder esquecer - como antídoto contra a dispersão no histórico, pois não basta apenas o poder esquecer, é preciso também poder criar, poder ser educado para uma autêntica cultura, que precisa envolver “o conceito de cultura como uma physis nova e aprimorada, sem dentro e sem fora” (Id., 2003, p. 99), sem separação de conteúdo e forma. O supra-histórico, no entanto, também é ambíguo, pois ao lado do fechamento saudável do horizonte, encontra-se a necessidade de se admitir o que se contrapõe, de viver um perigoso não fechamento no seu próprio sentir e pensar.

Como se sustenta então o antídoto do supra-histórico diante da crítica de Nietzsche à metafísica? Não é a partir dessa crítica que Nietzsche pretende instaurar uma unidade de estilo, um modo próprio de pensar, para assim diferenciar-se da avalanche das concepções metafísicas? Mas a força supra-histórica ao configurar nele uma unidade de estilo, não cria apenas mais uma concepção metafísica, que iguala em sua composição o passado e o presente, de modo que o homem supra-histórico seria aquele que não compreende que os próximos dez ou vintes anos seriam melhores, pois sempre vê que “o mundo em cada instante singular está pronto e acabado” (NIETZSCHE, 2003, p. 15)? Segundo Nietzsche, os homens supra-históricos, embora nunca estejam de acordo se é a felicidade ou a resignação o sentido da história, chegam, contudo, à plena unanimidade quanto ao princípio de que

...o passado e o presente são um e o mesmo, isto é, em toda multiplicidade tipicamente iguais: enquanto onipresença de tipos imperecíveis, dá-se inerte a composição de um valor igualmente imperecível e eternamente igual em sua significação. (p. 15).

O homem supra-histórico, desse modo, não chegaria à saturação e ao nojo diante da profusão infinita do que acontece, conforme chega a pensar o próprio Nietzsche? (Cf. Id., Ibid., p. 16) Mas essa possibilidade de saturação e nojo do homem supra-histórico não seria apenas um efeito colateral, uma desvantagem que necessariamente se apresenta junto com o antídoto, com aquilo que é útil, constituindo a tensão própria da vida? E não é essa tensão o que mantém a vida em sua elevação e crescimento? Parece ser isso o que indica Nietzsche na parte final da “segunda Intempestiva”, ao dizer:

O a-histórico e o supra-histórico são os antídotos naturais contra a asfixia da vida pelo histórico, contra a doença histórica. É provável que nós, os doentes de história, também tenhamos de sofrer com os antídotos. Mas o fato de sofrermos com eles não é nenhuma prova suficiente contra a correção do tratamento escolhido (p. 96).

O sofrimento causado pelos antídotos do a-histórico e do supra-histórico parece ser devido ao fato de que eles provocam o reconhecimento de que “não há nenhuma bela superfície sem uma terrível profundidade” (Id., KSA 7, 7 [91], p. 159), que é o reconhecimento da tensão entre conteúdo e forma, interior e exterior como aquilo que constitui a dinâmica própria da vida, que assim nunca repousa e descansa, colocando sempre diante do homem o espetáculo da criação e destruição de tipos e valores imperecíveis em seu eterno retorno. Esse sofrimento, portanto, é a dor própria do existir, do saber e dar-se conta do jogo de diferenciação e transformação que constitui a vida, que pode levar à apatia e ao nojo com relação à existência, conforme mostra Nietzsche. No entanto, “não é nenhuma prova suficiente contra a correção do tratamento escolhido.” E parece ser esse reconhecimento que a educação histórica do século XIX procura a todo custo afastar, ao associar cultura com ser culto, com erudição, como forma de fugir da dor de nada ser a não ser um “entre”, um estar sempre em tensão. Com essa fuga se instaura uma oposição através do domínio do “ter” sem “ser”, do “ser culto” sem a necessidade de engendrar nenhuma cultura, do estar na superfície do já criado sem precisar saber dos abismos de toda criação, o que vai constituir propriamente a barbárie.

REFERÊNCIAS

HEIDEGGER, Martin. Zur Auslegung von Nietzsches II. Unzeitgemässer Betrachtung: “Vom Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben”. Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 2003. [ Links ]

______. Paisagem criativa: Por que permanecemos na província? Trad.: Maria Assumpção Rodrigues. In: Idéias, Campinas (SP), n. 9, nova série, 2° semestre, 2014. [ Links ]

MELO NETO, João Cabral de. Antologia poética. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora - Sabiá, 1973, [ Links ]

NIETZSCHE, Friedrich. Sämtliche Werke: Kritische Studienausgabe in 15 Bänden (KSA). München: Deustscher Taschenbuch Verlag de Gruyter, 1999. [ Links ]

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______. II Consideração intempestiva: da utilidade e desvantagem da história para a vida”. Trad.: Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003. [ Links ]

Recebido: 30 de Março de 2019; Aceito: Agosto de 2019

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