SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.20 número58LO QUE IMPULSA LA ESCRITURA EN LA NOCHE: UNA LECTURA DE LAS MEMORIAS DE LOS CIEGOS DE JACQUES DERRIDAJUVENTUD FLEXIBLES EN LA AMAZONIA BRASILEÑA: INCERTIDUMBRES DEL SIGLO XXI índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Servicios Personalizados

Revista

Articulo

Compartir


Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.20 no.58 Rio de Janeiro jul./sep 2019  Epub 26-Dic-2019

https://doi.org/10.12957/teias.2018.44382 

Entrevista

ENTREVISTA TANTAS MÃOS: EDUCAR É MAIS QUE CONDUZIR, É DAR-SE AS MÃOS(*)

ENTREVISTA: TANTAS MANOS: EDUCAR ES MÁS QUE CONDUCIR, ES TOMARSE DE LAS MANOS

INTERVIEW: SO MANY HANDS: TO EDUCATE IS MORE THAN TO CONDUCT, IS TO HOLD HANDS

Marisol Barenco

Carlos Roberto Carvalho


RESUMO

Esta entrevista é um texto dialógico, aonde os intelocutores conversam confrontando os pontos de vista e de cegueira, baseados em suas trajetórias de estudos e leituras de dois grandes pensadores do século XX: Hannah Arendt e Mikhail Bakhtin. Trata-se de uma conversa e os autores convidam os leitores a espiar dois velhos amigos falando de liberdade, de escritura, de literatura, de transformação, de linguagem e de educação. Um convite explicito ao pensar sem corrimãos a partir de suas vivências concretas no mundo.

Palavras-chave: Hanna Arendt; Mikhail Bakhtin; linguagem e educacão

RESUMEN

Esta entrevista es un texto dialógico, donde los interlocutores confrontam los puntos de vista y de ceguera, en base a sus trayectorias de estudios y lecturas de dos grandes pensadores del siglo XX: Hannah Arendt y Mikhail Bakhtin. Es una conversación y los autores invitan a los lectores a espiar a dos viejos amigos que hablan de libertad, escritura, literatura, transformación, lenguaje y educación. Una invitación explícita a pensar sin barandillas desde sus experiencias concretas en el mundo.

Palabras clave: Hanna Arendt; Mikhail Bakhtin; lenguaje y educación

ABSTRACT

This interview is a dialogical text, where the speakers discuss confronting the points of view and of blindness, based on their trajectories of studies and readings of two great twentieth century thinkers: Hannah Arendt and Mikhail Bakhtin. It is a conversation and the authors invite readers to peek two old friends talking about freedom, writing, literature, transformation, language and education. An explicit invitation to think without handrails from your concrete experiences in the world.

Keywords: Hanna Arendt; Mikhail Bakhtin; language and education

Esta entrevista é um texto dialógico, um diálogo entre dois amigos que há mais de trinta anos pensam, brigam e discutem juntos educação, filosofia, relações humanas, literaturas. Amigos, como Blanchot afirmava, que são o liame fundamental da humanidade, aqueles que pensam juntos e transformam-se, catando os gravetos para a transformação do mundo. Aqui, para essa revista, conversam confrontando os pontos de vista e de cegueira, baseados em suas trajetórias de estudos e leituras de dois grandes pensadores do século XX: Hannah Arendt e Mikhail Bakhtin. É um ensaio dialógico, portanto, totalmente de responsabilidade dos autores, pois representa uma leitura desses pensadores, a partir de suas vivências concretas no mundo. Possivelmente equivocadas Leitura tem algumas ausências de compreensão, já que a leitura dessas duas obras demanda ainda mais tempo de lida. Mas, ao mesmo tempo, esses amigos enriquecem-se mutuamente nesses entendimentos provisórios e férteis, dada a grandeza dos autores de referência. Nos encontramos para uma conversa e convidamos o leitor a espiar dois velhos amigos falando de liberdade, de escritura, de literatura, de transformação, de linguagem e de educação.

Beto: O que eu tenho para essa conversa são duas garrafas de vinho e a gente conversando. Mas sempre dá certo a nossa conversa.

Marisol: Se der errado a gente apaga e não faz.

Beto: É verdade. Mas é pensar livremente. Eu estou irritado, muito irritado intuitivamente. O que tem acontecido nos meios acadêmicos é que muito frequentemente se subscreve o pensamento com que concorda, se repete o que outro disse. O pensar livremente não é citar o que o outro está dizendo, mas é pensar a partir dessa questão. E aí acho que eu já começo a colocar para nós a primeira questão: dentro dessa situação que a gente está vivendo, o que significaria pensar sem corrimão?

Marisol: Então... é isso que eu vim discutindo com os autores dos dois textos que eu estou te propondo: Augusto Ponzio e Julia Ponzio. E, ao mesmo tempo, fui reler Hannah Arendt também, pra entender o que é que ela está falando de educação sem corrimão. Os textos que eu conhecia da Hannah Arendt anteriormente ‒ além dos livros que são clássicos, como As Origens do Totalitarismo ‒ eram um texto sobre educação, o qual eu sempre tive alguma reticência. Nesse texto, ela faz uma crítica bastante grande às metodologias novas americanas.

Beto: Aquele texto dela sobre a educação?

Marisol: É. Sobre a educação.

Beto: Sim.

Marisol: Ela bate com muita força nas metodologias ditas "novas". Ela certamente está nos Estados Unidos, olhando para aquelas correntes novas dos pensamentos que têm a influência de John Dewey, que a gente acabou vivendo no Brasil a partir da segunda metade do século XX, mas que os Estados Unidos viveram em um período anterior, de pedagogias, vamos dizer, liberais.

Beto: Sim.

Marisol: E ela faz uma crítica muito forte (eu acho até que bastante desqualificadora) à pedagogia, e penso que sem compreender totalmente as suas questões...

Beto: Mas ela mesma diz: “eu não sou uma educadora...”

Marisol: Ela não é, mas, ao escrever esse texto, ela bate forte no campo da educação, e no no sentido do campo pedagógico mesmo. Até leria pra você um trecho em que eu acho que ela foi além do lugar da filósofa.

Beto: Então me diga isso.

Marisol: É. E eu sempre tive esse texto como uma contradição. E eu acho que o texto dela, que é o texto Educação Sem Corrimão, vem muito dessa perplexidade...

Beto: ...pela banalidade do mal.

Marisol: ...pela banalidade do mal e de como que, de alguma maneira, a humanidade se deixou guiar de uma maneira irrefletida...

Beto: ...pela normatividade, né?

Marisol: é. Pela legalidade da normatividade. Que não é de se surpreender, quando você tem uma sociedade burocratizada, industrial, como era a Alemanha dos anos 30, pós-depressão e tal, aniquilada no entre-guerras. Então, quando você tem uma sociedade altamente normatizada, burocratizada, não é de se espantar que as pessoas vivam numa égide legalista, que é mais ou menos o que a gente está vivendo atualmente. Se você pensar, hoje estamos vivendo o excesso do Judiciário, né?

Beto: Sim.

Marisol: Isso está acontecendo aqui.

Beto: Sim.

Marisol: Então... eu estava acostumada com esses textos da Hanna Arendt e, quando eu li esse aqui sobre a educação, eu senti aquele desconforto que a gente sente quando a coisa sai do prumo.

Beto: Bom... eu leio de uma outra forma. Mas a gente está aqui pra conversar mesmo.

Marisol: Vamos conversar. Eu quero te mostrar o que é pra mim o ponto do meu desconforto. Então... no texto, ela está tratando da crise e aí precisamos nos perguntar que crise é essa. O que ela está chamando de crise? Ela está falando da crise do sistema escolar.

Então ela primeiro fala das autoridades educacionais, que foram incapazes de lidar com a crise e etc. Aqui ela está falando que a crise nos obriga a voltar às questões mesmas, exige respostas novas ou velhas etc. E aí ela entra na questão do que que ela acha que é a crise da educação na América. E aí, em primeiro lugar, eu acho que ela tenta trazer um pouco uma certa diferença que ela sente entre as perspectivas de educação no que ela chama de América e a educação que ela conhece, de seu próprio país. Então ela coloca que na América, indiscutivelmente, a educação desempenha um papel diferente, incomparavelmente mais importante politicamente do que em outros países, já que a América sempre foi uma terra de imigrantes. Então, para a maior parte das crianças, o inglês não era a língua natal e tinha que ser aprendido. Hannah Arendt dá uma situada no que seria a educação na América, dizendo que não só é simplesmente um país colonial, mas ela analisa esse lema, que é Uma Nova Ordem do Mundo, uma tentativa de dizer que a América ‒ isso que ela chama de América, que são os Estados Unidos ‒ tem uma pretensão de reescrever o mundo, e daí ela faz uma análise política e econômica disso.

Beto: É um país de imigrantes, né?

Marisol: sim. Por isso que eu quero te dizer que na verdade ela não está fazendo só uma análise filosófica, mas ela entra dentro daquilo que é, no meu modo de ver, o ethos mesmo do próprio campo da educação. E eu me senti muito desconfortável.

Então ela diz assim, vou ler:

Ora, no que diz respeito à educação ela mesma, só no nosso século é que a ilusão emergente do pathos do novo produziu as suas mais sérias consequências. Em primeiro lugar, permitiu que essa mistura de modernas teorias educativas provenientes da Europa Central, e que consiste numa espantosa salganhada de coisas com sentido e sem sentido, revolucionasse todo o sistema de educação sob a bandeira do progresso. Aquilo que na Europa não passou de uma experiência, testada aqui e além, em algumas escolas e instituições educativas isoladas, estendendo depois, gradualmente, a sua influência a alguns setores, produziu na América, de há cerca de vinte e cinco anos a esta parte e, por assim dizer, de um dia para o outro, uma transformação completa no que diz respeito às tradições e aos métodos estabelecidos de ensino e de aprendizagem.

Marisol: Você percebe? Ela já detona completamente com a base teórica, que é a base teórica europeia que possivelmente viria do John Dewey, Kilpatrick, Maria Montessori, dentre outros. De toda a raiz do movimento da Escola Nova. E aqui o novo, pra ela, já começa a ficar sob suspeita. Aqui ela já define o que é crise pra ela.

Beto: Uma europeia falando, né?

Marisol: Quer dizer, ela faz uma crítica ainda ao fato de que a igualdade, nos Estados Unidos, tornaria a escola secundária mais “frouxa”, porque não aplicaria critérios de avaliação, por exemplo, como os da Inglaterra, que segundo ela instaurou uma meritocracia. E conclui:

Deste modo, o que faz com que a crise da educação seja tão especialmente aguda entre nós é o temperamento político do país, o qual luta, por si próprio, por igualar ou apagar tanto quanto possível a diferença entre novos e velhos, entre dotados e não dotados, enfim, entre crianças e adultos, em particular, entre alunos e professores. É óbvio que este nivelamento só pode ser efetivamente alcançado à custa da autoridade do professor e em detrimento dos estudantes mais dotados.

Marisol: Ao entrar na análise mesma da crise, ela cita três grandes ideias, vou continuar a ler, para conversarmos depois:

Estas medidas catastróficas podem ser esquematicamente explicadas por intermédio de três ideias-base, porventura demasiado familiares. A primeira é a de que existe um mundo da criança e uma sociedade formada pelas crianças; que estas são seres autônomos e que, na medida do possível, se devem deixar governar por si próprias. O papel dos adultos deve então consistir em limitar-se a assistir a esse processo. É o grupo das crianças ele mesmo que detém a autoridade que vai permitir dizer a cada criança o que ela deve e não deve fazer.

Marisol: Ainda, seguindo a leitura:

A segunda ideia-base a tomar em consideração na presente crise tem a ver com o ensino. Sob influência da psicologia moderna e das doutrinas pragmáticas, a pedagogia tornou-se uma ciência do ensino em geral ao ponto de se desligar completamente da matéria a ensinar. O professor - assim nos é explicado - é aquele que é capaz de ensinar qualquer coisa. (...) Porque o professor não tem necessidade de conhecer a sua própria disciplina, acontece frequentemente que ele sabe pouco mais do que os seus alunos. O que daqui decorre é que, não somente os alunos são abandonados aos seus próprios meios, como ao professor é retirada a fonte mais legítima da sua autoridade enquanto professor.

Marisol: Aqui ela vai argumentar pela ausência de foco nos conteúdos, criticando a escola por sua ausência de “matérias”, de sua função de transmissão dos conteúdos da cultura. E a terceira ideia-base:

Foi uma moderna teoria da aprendizagem que permitiu à pedagogia e às escolas normais desempenhar este pernicioso papel na atual crise da educação. Essa teoria é, muito simplesmente, a aplicação lógica da nossa terceira ideia-base, ideia que foi durante séculos sustentada no mundo moderno e que encontrou a sua expressão conceptual sistemática no pragmatismo. Essa ideia-base é a de que se não pode saber e compreender senão aquilo que se faz por si próprio. A aplicação à educação desta ideia é tão primitiva quanto evidente: substituir, tanto quanto possível, o aprender pelo fazer.

Marisol: Por que ela está se perguntando não só pela resposta à questão, por exemplo, por que Joãozinho não sabe ler?, mas à questão mais geral: por que que os níveis escolares da escola americana média se acham tão atrasados em relação aos padrões médios da totalidade dos países da Europa? Aqui ela já entrou na análise educacional e espera-se que ela tenha algum tipo de propriedade pedagógica pra estar falando disso. Eu vou prosseguir., só mais um pouco, para a sua conclusão da análise da crise na educação.

A educação é assim o ponto em que se decide se se ama suficientemente o mundo para assumir responsabilidade por ele e, mais ainda, para o salvar da ruína que seria inevitável sem a renovação, sem a chegada dos novos e dos jovens. A educação é também o lugar em que se decide se se amam suficientemente as nossas crianças para não as expulsar do nosso mundo deixando-as entregues a si próprias, para não lhes retirar a possibilidade de realizar qualquer coisa de novo, qualquer coisa que não tínhamos previsto, para, ao invés, antecipadamente as preparar para a tarefa de renovação de um mundo comum.

Beto: Porque aí ela coloca uma questão que é: não se deve abandonar a criança a si mesma...

Marisol: Só acontece que eis a questão: os métodos progressistas de origem escola novista não são só isso. Isso é uma leitura do que sejam os métodos progressistas na educação. Largar a criança a si mesmo.

Beto: Mas aí eu pergunto: você... talvez eu possa estar te interrompendo o pensamento?

Marisol: Não. Eu só queria te mostrar aonde estava meu mal-estar. A sua crítica ao pragmatismo das perspectivas novas de certa forma desconsidera os aspectos da própria crítica às perspectivas tradicionais que, sem nenhuma passagem, fazem da tradição europeia a tradição mesma.

Beto: Eu sei. Podemos discordar dela, mas não é às vezes uma interpretação? Porque mais lá pra frente ela vai falar da questão importante, que é o papel do educador. Não pode ser uma interpretação de que alguém pode estar falando que a criança, dentro da Escola Nova, seria a criança como centro do processo educativo?

Marisol: Uma interpretação dela dos processos ou interpretação...?

Beto: Não. Uma crítica que ela pode estar fazendo dessa interpretação.

Marisol: Eu acho que ela está olhando pra escola americana. Por que que eu estou insistindo em falar disso? Porque a minha vida toda foi uma tentativa de me colocar fortemente contra os sistemas autoritários que objetificam os conhecimentos, que criam uma maneira de olhar pra tradição europeia como a tradição, e essa como coisa, como objeto a ser passado adiante pra geração futura, e não olhar pra geração ‒ que é a geração jovem, que é essa geração que está vindo ao mundo ‒ como capaz, plenamente capaz, de transformar criativamente os conteúdos da cultura, criando um novo mundo possível. Então, ela está apontando, no meu modo de ler, que pode ser precário, para a tradição como responsabilidade sobre o mundo, pra que se possa zelar pela tradição, zelar pelo mundo.

Beto: Engraçado... eu não vejo isso. Eu não sei onde foi que eu li isso. Talvez diretamente no Larrosa, que ela fala que a educação tem a ver com a natalidade.

Marisol: Sim.

Beto: E que, quando uma criança nasce, um novo inteiramente outro nasce no mundo.

Marisol: Essa era a minha Hannah Arendt.

Beto: Essa é a minha Hannah Arendt. Porque a Hannah Arendt tem uma coisa que eu vejo assim... eu tenho lido essas obras toda dela, principalmente A Condição Humana, Homens em Tempos Sombrios, Entre o Passado e o Futuro. Ela fala que, quando uma criança nasce no mundo, quando uma criança aparece entre os homens, ela nasce dentro de um mundo que é construído. Eu acho que está nesse artigo aí mesmo. E aí é um inteiramente outro que nasce e que essa criança, quando nasce, nasce dentro de um mundo humano, de um mundo já construído, mas esse mundo não é para ser seguido por esse novo. Porque esse novo é um messias, né? Ela fala assim: é alguém que nasce totalmente outro.

O Larrosa tem uma coisa muito interessante, que é falar dessa selvageria. Quer dizer, essa criança é um selvagem dentro dessa cultura. Existe aí uma tensão entre respeitar o que já foi... considerar. Nem é respeitar só. Considerar o que já foi construído, o que já foi posto pela humanidade, pelos outros homens, mas não, necessariamente, há que se seguir isso. Eu acho que ela não pensa na educação nesse nnível.

Marisol: Eu não tenho nenhuma autoridade pra dizer o que se pensa sobre a educação Hannah Arendt. Eu estou dizendo que quando eu li esse texto, eu percebi que aqui ela tem uma opinião filosoficamente embasada sobre o ensino progressista nos Estados Unidos e ela chama isso de crise da educação. É um nome bem genérico pra quem está fazendo análise de conjuntura de um lugar específico, certo? Ela poderia dizer: a crise da educação na América. Mas ela disse a crise da educação. Por que ela está dizendo isso? Porque ela sabe que os Estados Unidos têm vocação, eles têm o desejo e essa pulsão pra se universalizar. Acho que ela está sentindo isso que ela diz estar na nota de dinheiro dos Estados Unidos: a Nova Ordem Mundial. Ela sabe que esse é um perigo planetário, porque é uma sociedade em plena expansão que tem uma pulsão de desejo de dominação do mundo e a base educacional deles é de um progressismo que ela diz que beira a irresponsabilidade.

Então as minhas reflexões são, nesse sentido, em primeiro lugar: nenhuma criança está entregue a si mesmo. Porque, se você disser que alguém está entregue a si mesmo, significa admitir que, em algum momento da história da humanidade, um humano possa estar só.

Beto: Sim.

Marisol: E nós estamos já enredados o suficiente, desde o nascimento, nisso que a gente chama da cultura, da tradição. Tanto que beira o conservadorismo, porque nós somos a escritura que o outro fez de nós e a nossa forma de responder a isso. Então eu penso que não preciso de mais conservadorismo. A existência humana, a possibilidade da existência humana, de ser humano, é já um total enredamento, mas não só no sentido positivo da rede; no sentido mesmo da armadilha, da teia de aranha ‒ na cultura, na tradição e na palavra do outro, que não está sabendo guiar o mundo não, está?

Então, não existe humano com um dia de vida que já não seja ele mesmo completamente enredado na tradição, por causa da linguagem. Porque a linguagem é essa anciã, entendeu? É ela que te permite ser humano, mas ela é cavalo de Tróia. Ela traz com ela todas as lutas, mas muitas vezes do ponto de vista do oficial, do vencedor, muitas vezes encarnado na voz desses seres humanos próximos a mim, que me mostram e me apontam para a vida. E ele me mostra sempre com valor. Os valores dele.

Beto: Sim!

Marisol: Então não existe educação que não seja autoritária, nesse sentido. Não existe processo de humanização que não seja, desde o seu princípio, conservador.

Beto: Mas ela fala isso!

Marisol: Então... mas não se pode conceber que haja uma criança entregue a si mesma. Porque, pra dizer que uma criança estaria entregue a si mesma, significaria desconsiderar que, mesmo quando eu estou só ‒ pense em Robinson Crusoé, e pense também nos Limbos do Pacífico... Quando que você está só com você mesmo? Porque, se você estiver só com você mesmo, você está no mundo material, nem mesmo um ser mononuclear está só. Você vai ter que estar como o Robinson dos Limbos do Pacífico, dentro da terra e virar uma parte material do planeta, como ele ali quase se tornou, não fosse seu outro, Sexta-feira. Ninguém está entregue a si mesmo.

Beto: Eu acho que a sua crítica, ela é bacana, porque nos acorda pra esse detalhe, para essa leitura. Te confesso que eu nunca tive essa leitura. Mas tem uma coisa que eu acho interessante: ela fala que ‒ e aí eu tô pensando livremente o que ela me faz pensar, talvez nem seja o que ela esteja dizendo ‒ cada um que nasce é um mundo pra si mesmo. Ele não nasce só no mundo: ele é um mundo.

Marisol: Sim.

Beto: Nós não podemos fazer pelas crianças o que é tarefa delas. As novas gerações têm uma tarefa no mundo.

Marisol: Sim.

Beto: Porque, senão, isso seria anular uma crença. Eu não acho que ela está falando que as pessoas estão deixando as crianças... mesmo porque eu acho que é impossível.

Marisol: Ela está criticando as pedagogias progressistas por tentarem ou arriscarem-se a fazer isso, sim.

Beto: É, ela pode estar criticando, mas eu leio uma outra coisa aí. Que, a cada um que nasce, cabe uma tarefa, e essa tarefa não pode ser feita nem pelo pai, nem pelos professores.

Marisol: Isso é o que o Bakhtin vai chamar de ato responsável e da ética da responsabilidade singular. Mas a história ainda está um pouco mal contada. A crítica de Hannah Arendt porta consigo um certo clamor por pedagogias mais conteudistas e pelo lugar de autoridade do professor, para que a liberdade então se exerça coletivamente sobre os conteúdos do mundo, e não em alguma forma de ausência de mundo, uma espécie de “mundo das crianças”, como se no mundo das crianças já não houvesse essa cultura ancestral.

Beto: Sim.

Marisol: Quando você diz assim: uma criança é um mundo, eu vou te dizer: pra mim, toda criança é o mundo.

Beto: É o mundo. É.

Marisol: Não é um mundo, mas é o mundo. Só que ela é uma expressão única, nova, inédita deste mundo.

Beto: Sim. Eu concordo nisso com você.

Marisol: Isso foi Bakhtin quem me ensinou. Porque, na verdade, ele diz: qualquer coisa no mundo humano só é possível porque tem um outro que me concede essa liberdade. Precisaríamos de mais tempo e debruçarmos mais sobre o texto de Hannah Arendt para falar mais aprofundadamente disso, dessa visão da responsabilidade pelo mundo como tarefa da relação adultos-crianças, sobre as “matérias" do mundo.

Beto: Pois é. Eu acho que é isso. Acho que o problema da educação, eu vejo assim, é que às vezes a gente quer que o outro, na relação adulto-criança, que é sempre problema pelo conflito de gerações, a gente quer que eles sigam o nosso modelo de mundo.

Marisol: Será que a gente quer isso? Porque, na verdade, o nosso modelo de mundo está falido, e isso está fácil de observar; estamos bastante doentes.

Beto: Eu sei. Mas a educação não é um pouco isso?

Marisol: A gente aprendeu que educação é uma coisa. Mas eu gosto de pensar, Beto, e eu faço isso com meus estudantes na graduação e na pós-graduação. Eu gosto de pensar que a gente, na verdade, deveria olhar pras coisas como um mistério. Porque a educação, ela não se resolve, você não consegue fechá-la em uma definição...

Beto: Muito bem! Eu acho ótimo.

Marisol: ...a gente não consegue. Então, quando parece sair do controle, as pessoas assumem políticas de fechamento, como essa política agora do BNCC, que é de você fechar de novo os sentidos, imposição de sentidos passados, por medo da falta de controle. Aí você cria um método, cria uma amarra e diz: é assim que se faz. Com medo da dispersão. Porque o que que é a dispersão? A dispersão implica uma outra perspectiva de olhar pro mundo. Não um mundo que vai se replicando, não como um mundo que vai, de alguma maneira, sendo transmitido ‒ porque olha: essas palavras são horrorosas! ‒, mas um mundo que, desde sempre, está numa expansão caótica. Porque, se nós somos, cada um de nós, uma expressão única, inédita e imprevisível deste mundo ‒ porque eu sou o mundo, você também é o mundo, a gente não é dois mundos -, significa que o movimento dessa totalidade é caótico e disperso, à deriva mesmo: é um mundo plural e multivolitivo.

Beto: Eu concordo.

Marisol: Então... ele é assim desde sempre. Percebe? Essa é o princípio. O estado normal do mundo humano ‒ não do mundo biológico, porque a gente também não entende nada dele, né? A gente acha que a gente entende porque a gente tem uma teoria caduca de evolução. É este acontecimento imprevisível: a qualquer instante, tudo pode mudar, pois as múltiplas formas de ser já estão aqui, tensionando, forçando para fora, para frente... Não tem nada dado, nem garantido. E é por isso que os grandes autores, filósofos, sociólogos, literatos, artistas da história, foram grandes, porque botaram o dedo nesse lugar: de entender que, a cada segundo, tudo pode mudar. Assim... vamos dizer que você está no pior momento de opressão. O Bakhtin...

Beto: sim A cada segundo tudo muda.

Marisol: Exatamente. O pensamento bakhtiniano para o Stalin apresentava-se terrível. Para mim não é terrível, porque desejo a tranformação permanente do mundo, mas para o Stalin, para qualquer um interessado em um mundo estável, é terrível.

Beto: Nesse caso ela não está influenciada por sua visão crítica do totalitarismo?

Marisol: Ela viveu a guerra. A gente não viveu a época que ela viveu. Uma mulher que viveu os horrores da guerra e viu a guerra à sua volta e contabilizou os seus mortos; ela tem um olhar por mundo que eu não tenho capacidade de seguir. Eu não sou nem capaz de pensar o que pensou Hannah Arendt, entende? Porque eu não vi os meus serem destruídos pela guerra. Ela viu o seu país colapsar na ignorância do fascismo, do nazismo.

Beto: ...os seus amigos morrerem.

Marisol: A família toda morreu. O Bakhtin, por exemplo, sua mãe e irmãs morreram de fome. Você imagina o que seria pra você seguir a sua vida sabendo que sua mãe morreu de fome? É impensável. É impossível.

Beto: Eu ainda não entendi bem como é que você vê essa crítica que você está fazendo a ela...

Marisol: Veja bem: eu tô fazendo a crítica ao que ela escreveu ali.

Beto: Sim. Sem nenhum problema.

Marisol: Eu preciso dizer isso... Porque a Hannah Arendt é, além de tudo, uma das pouquíssimas mulheres pensadoras, críticas do nosso século. Do século que eu e você vivemos, que é o século XX. Então assim, no meu modo de ver, a Hannah Arendt é uma das grandes. Mas eu quero dizer: uma das grandes, mas que, como tantos grandes, reduz os processos educacionais e pedagógicos escolares. Reduz porque não enxerga ali um lugar de pensamento crítico, reduz quando diz o que disse, por todas as considerações e discussões que se tem no campo educacional.

Beto: Sim. Ela disse isso.

Marisol: Eu quero dizer que eu entendo. Mas eu quero dizer que ela botou o dedo num lugar onde talvez seja o único lugar do mundo em que eu me movo com familiaridade.

Beto: Pois é. Por isso que eu estou querendo centrar nessa fala tua. Porque é surpreendente a sua leitura.

Marisol: E pode estar errada, inclusive.

Beto: Não, não. Não tem nada errado. O importante é pensar. Não é aceitar. E acho que aqui está a essência da minha pergunta: o que é pensar um texto não glosando, corroborando, aceitando? Mas o que eu quero mais é que você fale sobre isso no sentido de uma educadora olhando uma pessoa. E, nesse caso, ela não nega, sabe que está se metendo num lugar que não é dela. Ela está falando da crise na educação, de como essa crise se reflete na educação.

Marisol: Sim. Dentro de um olhar para uma educação americana que, pra ela, saiu de um certo rumo do que ela considera o papel mesmo da educação.

Beto: Sim.

Marisol: Que é ‒ eu acredito que seja isso -, de uma certa forma, de ser essa garantia de que a gente não vai repetir Auschwitz.

Beto: sim. Eu acho isso.

Marisol: Que não existe. É uma garantia que não existe. Mas ela sabe disso, mas, ao mesmo tempo...

Beto: É dever dizer.

Marisol: É dever buscar esse lugar, certo? Então... eu quero dizer que, escutando do meu lugar, ela faz pouco caso da pedagogia no final.

Beto: Não. Ela critica os professores.

Marisol: Eu me irrito. Sim, mas aqui ela não está criticando um professor. Ela criticou a pedagogia. Ela disse uma coisa que, pra mim, me soou mal.

Não é possível educar sem ao mesmo tempo ensinar: uma educação sem ensino é vazia e degenera com grande facilidade numa retórica emocional e moral. Mas podemos facilmente ensinar sem educar e podemos continuar a aprender até ao fim dos nossos dias sem que, por essa razão, nos tomemos mais educados. Tudo isto são detalhes que devem ser deixados à atenção dos especialistas e dos pedagogos.

O que nos diz respeito a todos e, consequentemente, não pode ser confiado à pedagogia enquanto ciência especializada, é a relação entre adultos e crianças em geral ou, em termos ainda mais gerais e exatos, a nossa relação com o facto da natalidade: o facto de que todos chegamos ao mundo pelo nascimento e que é pelo nascimento que este mundo constantemente se renova.

Beto: Você concorda com isso?

Marisol: Sim. Eu preciso acreditar. E eu preciso acreditar, inclusive, na minha natalidade a cada minuto. Mas aqui ela disse que não é a pedagogia que pode dar isso. Ela conclui um artigo mostrando a incompetência da pedagogia de tratar disso. Então eu quero dizer: em primeiro lugar, eu não acho que a pedagogia seja a ciência pra cuidar disso. Eu acho que a gente está falando de uma coisa grande demais pra um campo específico, que é o campo da pedagogia, que seria da educação, dos processos sistemáticos da educação escolar e extraescolar. Então eu não botaria tudo isso na mão de ninguém: nem do filósofo, nem do pedagogo. Mas de uma ação conjunta que diz respeito a todo mundo: ao matemático, ao feirante, a todos. A gente está falando da própria possibilidade da existência do mundo humano e da qualidade desse, correto?

Beto: Isso é muito bom, né?

Marisol: Sim. Então isso não pode ser tarefa de um, mas, ao mesmo tempo, é preciso que alguma categoria humana se debruce com profundidade e seriedade sobre algumas questões. Para mim, a Pedagogia é, sim, o campo plural e competente para tratar disso. As pesquisas em Educação debatem, há mais de cem anos, as questões que são sérias e profundas, compondo um campo científico e do pensamento. Não trataremos de detalhes técnicos, mas somos, sim, os profissionais que temos expertise para discutir as relações entre adultos e crianças. E, segundo a parte do conhecimento que trabalho na minha vida acadêmica e pedagógica, há outras questões a serem tomadas em conta nas relações que Hannah Arendt trata de crise e do que ela recomenda como possibilidade de se superar essa mesma crise. E aí eu quero te dizer o que eu penso sobre Educação Sem Corrimão. Porque, do meu modo de ver, e eu acho que o professor Augusto vai dizer isso...

Beto: É possível educar sem corrimão?

Marisol: Então... É isso que eu quero dizer. Augusto Ponzio, em seu texto aqui nesta revista, vai dizer: não. A gente nasce e a gente é social, porque nascemos no seio de uma linguagem, de uma cultura, com corrimãos. E eu tenho os meus corrimãos, ele diz: é o Levinas, é o Bakhtin etc. Então ele interpreta corrimão como essa guia teórico, espiritual, epistemológico, filosófico, que te faz ver o mundo de uma determinada forma. Eu creio que Hannah Arendt fala que, pra ela, educar sem corrimão significa que a gente possa exercer um espírito crítico, libertário e criativo nas relações que a gente tem com qualquer um. Pra mim é: Auschwitz nunca mais. E, principalmente, o ser humano precisa aprender a pensar livremente. Pra mim é isso que ela está dizendo.

Beto: Eu acho.

Marisol: Se não é isso, é uma leitura precária minha. Mas essa liberdade, segundo ela, se dá nas condições da autoridade e da crítica coletiva ao se aprender os conteúdos da cultura.

Beto: Ela foge do pensamento único. Na verdade, é que, quando eu tô propondo essa questão nessa revista, é exatamente esse mal-estar que nós estamos vendo hoje.

Marisol: Com certeza.

Beto: Nesse esvaziamento...

Marisol: Por que que o twitter é mais importante do que um livro de filosofia? Mas, Beto, eu não terminei de dizer o que eu queria dizer sobre o corrimão.

Beto: Sim.

Marisol: Porque eu acho que a gente precisa inverter um pouco a direção do olhar aí. Eu pensei muito no corrimão. Eu estava dentro do Vaticano e tirei uma foto de um corrimão, porque você tinha me falado da revista e da entrevista. E eu estava descendo as escadas que vão dar na Capela Sistina e ali havia um corrimão dourado muito lindo. Tirei uma foto dele, porque eu estava pensando: o dourado, o rústico. Um corrimão é aquilo que, de alguma forma, me guia o caminho. Ou não me deixa cair. Ou, de alguma forma, que faz um caminho comigo; que me leva através de alguma coisa. Parece o sentido clássico mesmo do educar. Mas, em primeiro lugar, precisamos considerar que não é possível sequer pensar já ter algum guia anterior, interno, porque eu penso com uma linguagem, eu penso em um gênero, com palavras que não fui eu que inventei; eu penso através de textos que não fui eu que escrevi. Isso quem está dizendo é a Júlia...

Beto: Eu penso com linguagem.

Marisol: Não existe pensamento que não seja um pensamento enredado no outro e nas redes de relações que foram estabelecidas e das quais eu sou uma recém-nascida. Não é isso?

Beto: Eu concordo nisso com você.

Marisol: Por outro lado, eu acho que tanto o professor Ponzio quanto Hannah Arendt, quanto eu mesma, quando eu estava olhando pro corrimão no Vaticano, estamos de certa forma considerando unilateralmente o lugar do corrimão. E eu quero dizer o que eu penso sobre isso pensando no trabalho que eu faço efetivamente com as crianças, com os jovens, com os adultos, há 36 anos. Não se pode, e isso eu aprendi com a Madalena Freire em A paixão de conhecer o mundo, desconsiderar as autorias dos sujeitos. As pessoas que nasceram nesse mundo são herdeiras de um patrimônio cultural, artístico, epistemológico, que estava aqui antes delas.

Beto: Sim.

Marisol: E elas precisam ser inseridas nesse patrimônio de uma maneira plena, de uma maneira sem limites. Essa é a minha perspectiva primeira: as pessoas têm direito ao acesso ao patrimônio cultural, artístico, epistêmico que a humanidade produziu. Cada um é herdeiro disso. Está bem? Por outro lado, o papel deles na relação com tudo isso não é o de guardião. O papel deles em relação a tudo isso não é o lugar daquele que recebe uma herança. O papel deles é ‒ e aí eu chego aonde eu quero ‒ o lugar do corrimão, se há algum corrimão, é o de possibilitar a esse sujeito único que nasce (Vamos falar do nascimento, certo? E ele nasce a qualquer instante. Eu estou nascendo agora, aqui, enquanto estou falando, porque eu nunca tinha pensado nisso antes) se equipar, da melhor forma possível, pra que possa ler esse mundo e para que possa transformar esse mundo. Se eu não tenho vivência nas coisas desse mundo, eu não tenho como transformar esse mundo. O corrimão te leva pra lá (em frente). Eu preciso, ao contrário, virar pra cá, olhar nos olhos dessa tradição que fala comigo, que me convoca pra ser humana junto com todos os humanos que falaram antes de mim. Isso para mim que é responsabilidade sobre o mundo: olhar nos olhos dele.

Beto: Penso que Hannah Arendt também fala isso.

Marisol: É, pois é. Mas acontece que eu não posso olhar nos olhos do mundo. Eu só posso olhar nos olhos do outro que está diante de mim. Esse é o problema: eu não posso olhar pro conjunto da humanidade. Eu só posso olhar para os outros que estão diante de mim. O mundo, Beto, vem pra mim, na minha vida, refletido na pupila do olho da minha mãe.

Beto: Sim. Claro.

Marisol: Você acredita nisso?

Beto: Mas eu não vejo que ela negue isso.

Marisol: Não. Eu acho que ela não se ocupou disso. E eu penso que ‒ vou terminar a questão do corrimão pra mim ‒ uma criança que aprende a linguagem ‒ e vamos dizer a linguagem escrita e vamos colocar a linguagem escrita literária -, ela mergulha na tradição. Existe um limite pra isso, não é? Que é o conjunto das obras que a gente tem acesso na nossa cultura e que a gente considera literatura boa ou má que seja. Isso não é um corrimão, porque isso não a leva a lugar nenhum. Essa criança não vai ser aquele que vai portar esse saber adiante, um guardião ou um mensageiro. Na verdade, essa criança vai, mergulhando nesse mundo literário, ser ela mesma uma escritora. Ser escritora significa necessariamente redizer o mundo, transformar as palavras do mundo.

Beto: É pensar sem corrimão mesmo...

Marisol: Os nossos corrimãos nos disseram o seguinte: que primeiro a gente aprende e depois a gente comunica.

Beto: Sim.

Marisol: Eu quero dizer que Bakhtin ensinou para nós que não. Que, no momento em que você está compreendendo, você já está comunicando, você já está respondendo. É um e o mesmo processo.

Beto: Nós somos sempre uma resposta pro mundo.

Marisol: Sim. E a minha compreensão é uma resposta pro mundo. A minha compreensão já é uma resposta única. Enquanto eu te escuto, eu já estou te respondendo. Você está me respondendo agora. O que você está fazendo? Você está procurando coisas nos livros, porque você já está me respondendo.

Beto: Não. Eu sei.

Marisol: Isso é compreensão.

Beto: Tem uma coisa que aqui ela fala, que é citado, é uma nota. Ela fala assim: nossa herança não foi precedida por nenhum testamento. Isso é o que eu compreendo: ela não nega que existe uma herança, mas que ela não é um testamento, ela não é uma herança que eu seja obrigado a recebê-la. A resposta é: eu já estou no mundo que já existe ‒ ela não nega essa existência.

Marisol: Sim.

Beto: Quer dizer, pra ela, quando eu chego no mundo, eu chego no mundo plural. Eu já chego no mundo habitado, não é? Embora eu seja único e singular, nenhum sujeito nunca será...

Marisol: ...nunca foi e nunca será...

Beto: Porque ele faz parte de uma espécie, mas não representa essa espécie.

Marisol: Absolutamente não.

Beto: Por isso que ele é um mortal.

Marisol: Sim. Exato.

Beto: Então, quando ela fala dessa singularidade, desse ser único, eu acho que ela não está... E eu estou entendendo o que você está falando, e é ótimo que se leia isso, mas ela não nega a nossa herança, ela não é um testamento que eu tenha que receber ele todo.

Marisol: Sim.

Beto: Então eu recebo a linguagem, eu recebo a pátria... Mas eu acho que aí que a gente começa a pensar mesmo. O problema para nós é que às vezes ‒ e aí é o totalitarismo ‒ a gente quer... tem uma ambição nos educadores, da gente construir um mundo, não é? E esse é, em parte, o totalitarismo?

Marisol: Essa ambição funciona pra não acontecer nada mesmo, entendeu?

Beto: Pois é. Por isso que não dá certo, não é?

Marisol: Porque é uma tarefa impossível, é uma tarefa que não vai conseguir acontecer, então fica tudo como está. Faz parte. Não estou falando mal dos professores, porque os professores têm esse desejo, que é o desejo da transformação, então a gente não pode jamais desqualificar, ao contrário, é aqui o lugar do trabalho da formação...

Beto: Sim.

Marisol: Mas o que eu quero dizer é: Guimarães Rosa tinha uma frase que era... eu não sei a frase toda de cor, mas ele dizia através de Riobaldo: O que que é que a gente faz? Ele dizia: (...) repetir, repetir e repetir, até que saia uma palavra sua. Isso é o que eu quero dizer, quando digo sobre crianças e corrimãos. Não como guias que as levem a outros lugares, mas como suas próprias possibilidades, naquele conjunto da humanidade que te vem na linguagem ‒ e a linguagem é o maior de todos os corrimãos...

Beto: O homem é linguagem.

Marisol: A criança dizer-se com uma palavra que é, ao mesmo tempo, única (porque é a primeira vez que foi dita) e anciã ‒ porque ali, na sua voz, enuncia toda a humanidade. Porque é isso o bonito em Bakhtin: quando essa palavra nova é enunciada com a potência de um ser humano que está dizendo a sua palavra, seja lá o que for isso; quando essa pessoa enuncia, existe um movimento de rotação onde todo o conhecimento da humanidade se renova por ali. Ela mexe com tudo. Nada mais permanece como era antes. Perceba o pavor que devem ter aqueles interessados na permanência do mundo, ao vislumbrar a possibilidade de uma criança pobre da periferia enunciar e enunciar-se. Eu fui ontem num espetáculo teatral sobre a Carolina Maria de Jesus e o monólogo constou da leitura de seus diários, desde pequena. Quando aquela criança diz “quero ser homem, mãe. O que que eu faço pra ser homem?”(com 5 anos de idade), “(...) porque ser mulher não vai me favorecer”. Essa é uma palavra novíssima dita por uma menina negra, do interior de Minas Gerais. Ali toda a humanidade deu uma volta. E não é que ela se transformou, mas ela é um vórtice de força e de potência. O que é que a gente deveria fazer, enquanto educador? Jogar mais força ali! A criança falou isso? Bota mais! Toma aqui, Carolina, olha quem também disse isso. Lê isso, amiga. Escuta isso, escreve mais. Sabe? Quando existe uma força que está apontando pra um lugar e você consegue ter a felicidade de percebê-la, de participar de seu movimento, é alimentar aquela força. Isso não é corrimão.

Beto: Pois é. Mas é isso que eu estou aqui pensando. Eu não penso nessa perspectiva que você está pensando ‒ e é muito bom que você esteja pensando nisso. Porque também ela é um

enunciado que abre essa perspectiva. Aliás, você já colocar contra esse pensamento já é não aceitar o que está posto.

Marisol: Sim.

Beto: Na nossa experiência, eu tenho sentido: as pessoas têm se agarrado a pensar com o que o outro pensou. O pensamento pensado. E negando a si mesmo. E essa é uma das coisas que Hannah Arendt fala no A Vida do Espírito: que o pensamento é algo do humano. E o pensamento não está a serviço de nada. O pensamento está a serviço de si mesmo. Eu acho que a educação da mente. Acho que corrimão aqui é que as pessoas parecem que só conseguem pensar a partir de alguém.

Marisol: ...de um cânone. É porque, na verdade, você está muito influenciado pela vivência tua dentro da universidade também. E de perceber que a ordem do discurso ‒ quando Foucault proferiu a aula inaugural A Ordem do Discurso foi em 1972 ‒, vamos dizer... foi há 50 anos! Em A Ordem do Discurso, o Foucault vai criticar duramente: essa é a falência do pensamento.

Beto: É a falência! Isso!

Marisol: ...a falência do pensamento desejada por uma questão de valores de uma determinada ordenança de uma sociedade, qualquer sociedade de ordem, de fechar o discurso pra garantir a permanência das relações.

Beto: Aí que eu acho que é o corrimão.

Marisol: É. Eu acho que esse é o corrimão que Hannah Arendt está se contrapondo. E contra isso a gente não tem como dizer não, porque, na verdade, é preciso liberdade de discurso. Até porque o discurso é livre. Na verdade, o estado natural ‒ natural aí entre aspas ‒ do discurso é a liberdade. É preciso uma força imensa pra impedir essa expansão.

Beto: Na verdade, voltando ao corrimão que é necessário, é preciso que depois o homem esteja com as duas mãos livres, para se lançar ao abismo, não é...

Marisol: Ele nunca é corrimão.

Beto: Isso me irrita. O trabalho que a gente tem feito, a tentativa de se pensar numa nova escrita em que se possa pensar ciência, filosofia e arte... Mas não te parece ‒ aí eu queria te perguntar ‒ que nós vivemos, nós que estamos aí trabalhando com a formação de intelectuais, não te parece que se toma o científico pela citação? Quase não existe um livre pensamento.

Marisol: Então... É isso que eu estava dizendo...

Beto: Não é negar o corrimão, mas é um dia soltar as mãos.

Marisol: Isso não é corrimão.

Beto: Isso não é corrimão, isso é direção...

Marisol: Isso é a vontade de poder através da ordem do discurso. Por isso eu convido a todos que leiam A Ordem do Discurso, porque Foucault descreve muito competentemente quais são as ferramentas, procedimentos e modos de garantir que um discurso não seja o do livre pensamento. Pelo cânone, pela autoridade, pela proposição daquilo que pode ou não pode ser dito. Eu acho que é um livro atual, que todo educador e pensador deveria ler.

Beto: Vou voltar à leitura dele. É verdade.

Marisol: Então, na verdade, essa política da citação faz parte dessa ordem do discurso e de um cânone de autoridade que diz que eu só posso dizer, dentro de uma determinada ordem, aquilo que não ultrapasse o que os cânones referenciais disseram antes. E eu só posso dizer se tiver algo mais anterior e já legitimado, autorizado pela ordem dessa sociedade do discurso.

Beto: Que é o discurso da tradição.

Marisol: Porque o discurso da tradição é difuso, grande e libertário. O problema é a sociedade do discurso, porque ela fecha e diz o que pode e o que não pode ser dito.

Beto: E quem pode dizer.

Marisol: Sim. E quando. Porque eu só posso dizer livremente sem o outro autor de referência quando eu já tiver alcançado um certo patamar. Só que, pra eu chegar lá, eu reneguei toda a minha liberdade. Porque o caminho vai tirando de você as ousadias e, quando você chega lá, seja lá o que for, você já perdeu muito. Isso que a gente chama de citação ‒ por isso que eu chamo pra ler o Foucault ‒ faz parte disso: eu só posso dizer se alguém autorizado disse antes de mim, e eu concordo ou discordo dele. Essa seria a posição do pensador nessa perspectiva de ordem.

Beto: Mas é antibakhtiniano isso.

Marisol: Totalmente, porque pensar não se trata somente daposição de concordar ou discordar. Não se trata da posição “ou eu concordo com o que tu disseste ou eu discordo do que tu disseste”. Não é assim que a gente pensa.

Beto: Hannah Arendt fala isso. Não existe diálogo aí.

Marisol: Isso não é dialógico. Dialógico é, segundo Bakhtin, a minha palavra responsiva, que muitas vezes está respondendo a cinco sujeitos ao mesmo tempo. As réplicas desse discurso já se perderam e eu não sei mais pra quem eu estou respondendo, mas nesse momento eu respondo a você.

Beto: Sim

Marisol: Mas é a todo um conjunto de provocações que eu respondo, quando eu respondo a você. Tem tanta gente aqui na minha voz, que polemiza com eles. A minha voz é plural: tem nela um monte de intrigas e de brigas...

Beto: O homem é essa pluralidade.

Marisol: Não é?

Beto: São muitas vozes...

Marisol: Eu estou falando contra quem? Contra o machista, eu estou reclamando ainda contra o meu pai, ainda estou falando contra todos aqueles que não me permitiram ser. Então, a cada palavra minha, um conjunto muito grande de polêmicas toma forma numa resposta pra você. Mas você não é, necessariamente, a origem do meu discurso, percebe? Meu discurso é ancestral: ele vem de outros lugares. A Academia finge que faz conhecimento quando ela cita.

Beto: E isso me incomoda.

Marisol: Aquilo é ficção. Aquilo é um jogo discursivo controlado dentro das regras, que são regras pra não deixar o sistema se autodestruir. Porque uma boa palavra destruiria o sistema. Uma boa palavra, uma palavra pensada, como a que eles produzem todos os dias. Se a gente escutar direitinho os graduandos falando, eles são muito críticos dos sistemas universitários e das maneiras de proceder da Academia.

Beto: Eu acho que o que me incomoda aqui ‒ e até falando um pouco do Boaventura lá naquele livro da Razão Indolente ‒ é que os espelhos se tornaram estátuas. Entendeu?

Marisol: Sim.

Beto: É isso que eu estou te falando: os autores que eram espelhos, lugares, paisagens, eles se tornaram estátuas e falsos ídolos.

Marisol: Sim.

Beto: E a gente começa a repetir e aí é totalmente antidialógico, porque na verdade isso é um desserviço aos autores, que a gente na verdade utiliza como voz do outro. A gente não está nem hibridizando a palavra alheia. A gente não entra em diálogo mais com eles. Isso que você está fazendo com a Hannah Arendt é trazer a Hannah Arendt pro diálogo vivo.

Marisol: Sem desrespeitá-la, porque, se ela tivesse aqui, ela estaria certamente conversando comigo.

Beto: Sem desrespeitá-la. Discutindo. Isso.

Marisol: Alguns de nossos colegas ‒ e eu sou muito cansada disso desde sempre, desde o doutorado ‒ parece que escolhem um autor, o leem em profundidade e os repetem, não é? Fazem de certa forma sua exegese. E eu penso que a palavra de um autor ‒ assim como eu te falei o que eu penso do acervo da linguagem que uma criança entra em contato ‒ só pode servir para provocar, entende? Então, quando eu leio, por exemplo, o Derrida, que estou lendo agora, não é só para saber o que Derrida pensava. Isso é fácil de resolver. Isso eu faço rápido.

Beto: Resenha! Faz uma resenha.

Marisol: Eu leio o Derrida e digo: bom, o que o Derrida estava dizendo? E a gente não vai chegar à essa conclusão, porque o Derrida não se deixa aprender nem resenhar. Mas eu chego até um certo ponto em que eu consigo mais ou menos situar o conjunto discursivo, os argumentos dessa pessoa.

Beto: Isso a gente já aprendeu, não é?

Marisol: Essa parte não é ainda estudar.

Beto: Nem pensar...

Marisol: Nem pensar. Mas no momento em que eu compreendo o suficiente pra começar a sentir a sua provocação, ou a me sentir provocada a criticar outra coisa a partir da influência dele, naquele momento o pensamento começou. Agora me diga uma coisa: eu posso pensar isso sem aquele autor?

Beto: Não. Mas eu penso com o outro, no diálogo.

Marisol: Exato. Só que ele não é um corrimão, porque ele não está me levando a lugar nenhum. Eu estou sempre, na verdade, com os dois braços levantados, às vezes com os punhos cerrados. Eu estou sempre com os dois braços à frente, tateando. Só que eu não sou capaz de pronunciar ou de enunciar uma palavra que seja sem todos esses “corrimãos” que fazem parte de meu modo de olhar para a vida. Eu tenho estudado...

Beto: Verdade.

Marisol: E isso significa que eu tenho passado muito tempo dialogando com autores e pessoas vivas que leem os autores, etc, pensando sobre um pedaço de mundo específico, que é a criança pequena aprendendo a ler. Desde que você me conhece eu estou fazendo isso.

Beto: Eu sei. Em profunda ignorância, não é?

Marisol: E eu não sei te dizer como é que uma criança aprende a ler absolutamente. Mas eu continuo mergulhada nesse mistério que é o enunciado humano. Nesse nascedouro.

Beto: Porque se você parar aí também, acabou.

Marisol: Sim.

Beto: É que eu já li, não sei onde, que a pior coisa para o pensamento é quando você chega a uma conclusão.

Marisol: Não existe. Não é possível.

Beto: Parou aí. Cessou o pensar.

Marisol: Exato. Ela é falsa. É uma ficção. Bakhtin diz: todo acabamento é provisório. Porque, no momento mesmo que esse acabamento é dado, o outro que o vê já o abre novamente, quando pensa nele. Eu escutei a Julia Ponzio essa semana, em conferência ao Grupo Atos. Passei essa semana transcrevendo e traduzindo sua fala para a revista, porque eu acho que o livro Memórias de Cego, do Derrida, é muito pertinente para toda essa discussão. O cego é aquele que, a rigor, precisaria de um corrimão, não é? E o Derrida analisa as imagens de cegos que tateiam no escuro. E ele diz que esse é o estado mesmo da humanidade: tatear no escuro. Ele diz: a visão é aquilo que veio pra destruir esse estado de beleza que é um ser humano tateando no escuro. Toda escritura é uma escritura na noite.

Beto: Você está vendo isso agora com as tuas crianças e com as crianças que você teve e aí acho que a gente entra na questão da natalidade. Quando você chega no mundo, tudo é estranho, não é?

Marisol: Sim.

Beto: Tudo é curiosidade.

Marisol: Eu tenho um neto e você tem um neto. Os olhos de quem vê as coisas pela primeira vez. Mas é um átimo, porque, naquele minuto mesmo, tem sempre alguém acompanhando. Talvez uma das grandes desgraças da nossa geração, da nossa época, seja o fato de que a gente, por questões de segurança e direito das crianças, não deixa mais as crianças sozinhas. E tem sempre um adulto que diz e aponta e valora. Porque quando eu digo isto é um livro, no tom da minha voz vai junto o valor se isso é uma boa coisa, que você deve abraçar, ou se isso é uma péssima coisa da qual você deve fugir.

Beto: Mas esse é o nosso papel, né? Acho que é o papel do adulto...

Marisol: Não, não. Isso não é nem papel; isso é a condição.

Beto: É.

Marisol: É a condição...

Beto: É a condição humana. É verdade.

Marisol: ...de eu dizer assim: olha esse vinho (com tom admirado) ou olha esse vinho (com tom de crítica). São as mesmas palavras, mas o outro sabe que você está dizendo pare de beber ou beba comigo. A criança que tem uma total e aberta confiança em você ‒ e isso é uma coisa muito grave ‒, pra ela você é o sol.

Beto: Pois é. É mais do que uma única direção. É um universo que se abre, não é?

Marisol: É. Aquilo que você ama é o mundo dela. Então a noite e o dia dela vão se formando com o amor e o ódio que esse adulto que ela ama está desenhando com ela, desenhando no corpo dela. Perceba: isso não é corrimão.

Beto: Você está falando isso e é tão grande... e também a gente começa na sedução de tentar construir o que ela quis dizer. Eu acho que isso é um universo tão grande! A obra que eu mais gosto da Hannah Arendt é A Condição Humana, com o seu conceito de vida ativa.

Marisol: Sim. Eu quero dizer que o Bakhtin diria ‒ se Bakhtin e Hannah Arendt se encontrassem: “Hannah, o risco é sempre o outro”. Não existe uma ontologia. Se você quiser pensar numa filosofia da vida, ela não é uma ontologia, ela é uma ética. Essa é a grande diferença entre Bakhtin e outros filósofos, todos os que são filhos do Kant e do Husserl, que são os filósofos do século XX. Bakhtin se diferencia deles, e Levinas se aproxima muito de suas ideias. Eu estou lendo Levinas, agora. Estou lendo Entre Nós, da Vozes, dentre outros, e o livro do professor Augusto Ponzio que se chama Com Levinas, que é uma retomada de toda a sua obra. Augusto estudou Levinas a vida inteira. O que eu quero dizer é que Bakhtin e Levinas, tanto pra um quanto pra outro (dentro da minha pouquíssima possibilidade de leitura de Levinas e de uma leitura um pouco menos inicial de Bakhtin), eu posso dizer que, para Bakhtin, há a necessidade da crítica profunda às ontologias, porque, pra ele, não existe isso do ser. É uma ficção essa coisa chamada ser, esse ser supostamente sozinho.

Beto: Não... eu estou descobrindo que isso é uma roubada.

Marisol: É. Pra ele, é uma ficção, é um desejo. É um desejo de identidade.

Beto: Eu acho que é um desvio.

Marisol: Pode ser.

Beto: É uma negação, na verdade.

Marisol: Uma negação dessa condição, que é: a condição primeira da arquitetônica do mundo é a relação eu-outro. Bakhtin vai dizer que a unidade mínima do humano são três. É a arquitetônica tríplice: do eu para mim, o outro para mim e eu para o outro. E não como três momentos, mas como a condição mínima para qualquer coisa existir. Um grito de dor que seja, no mundo humano, depende disso. Então sua filosofia da vida não é uma ontologia, mas uma ética. Acho que é isso que Bakhtin diria pra Hannah Arendt se ela falasse sobre esse herói aí. Ele ia dizer: o herói é sempre o outro.

Beto: Eu gosto dessa ideia da pluralidade. O que eu gosto em Hannah Arendt, esse conceito de vida ativa, eu tenho estudado. Ele me instiga, porque também não é separado. Você não pode deixar esse nível do ser humano. É a natureza também. Você é uma natureza. Você participa do grande concerto da criação.

Marisol:Sim.

Beto: Mas o grande problema da análise da Hannah Arendt, a meu ver, é que o homem parou nessa questão do trabalho, da obra só, apenas.

Marisol: Isso a Europa, né, Beto? Porque, na verdade, eu acho que a gente precisa falar agora de uma coisa: nós não somos europeus. Nem eu, nem você. E eu acho, se a gente pudesse pensar numa linha de fuga disso (uma tragédia pra mim), que é essa armadilha mesmo, que a ordem discursiva relegou a nós, que talvez pensar autorizadamente, pra nós, é pensar dentro dos cânones...

Beto: Isso está me irritando.

Marisol: E esse cânone é fraco, esse cânone está viciado, ele está a favor de uma determinada visão de mundo, não é?

Beto: De uma dominação.

Marisol: Então a gente precisa olhar. E aí eu quero te falar, assim, da belezura que é pra mim, por exemplo, ler o Antônio Bispo dos Santos, sabe? Ou a Carolina Maria de Jesus. E ler essa gente que está escrevendo fora do cânone. Que está escrevendo! Assim... não estou nem falando dos saberes orais, dos saberes da tradição oral. Não estou nem falando do Toumani, um djeli que uma mestranda do meu grupo, Miza Carvalho, trouxe do universo epistêmico de Mali/Burquina Faso. Não estou nem falando disso, porque isso eu nem alcanço. Estou falando de autores e pensadores que estão fora da universidade, mas que estão escrevendo na mesma linguagem que nós, sabe? Trazendo outras lógicas e modos de ver o mundo, não estão rendidos ao cânone. Precisamos encontrar um modo de nos relacionar com os europeus, esses que pra mim ainda estão dizendo coisas que são importantes.

Beto: ...com o outro.

Marisol: Mas acontece que eu preciso olhar nos olhos deles e a eles responder. Ele não pode ser um corrimão pra mim, até porque eu não estou perdida, sabe? Eu acho que, inclusive, a Europa está bem perdida e, no meu modo de ver, a gente precisa olhar nos olhos dessas pessoas. Então nem que seja olhar nos olhos da Hannah Arendt e dialogar com ela, polemizar com ela.

Beto: Isso é respeitar o outro.

Marisol: Sim. E a mim mesma, porque sou sujeito do diálogo, assim como o menino de 5 anos com quem trabalho o é. E eu acho que a gente precisa fazer isso, com essa atitude, que é uma atitude não subserviente e não idólatra. Eu não idolatro essas pessoas. Mas, ao mesmo tempo, a gente precisa também fazer a Academia dialogar com autores como Antônio Bispo dos Santos. Nesse trazer para Academia outras falas, outras linguagens, outras lógicas, essas vão, de alguma maneira, romper com essa ordem, com esses cânones envelhecidos e que já não dizem mais palavras de risco.

Beto: Mas eu acho, Sol, que não é só trazer outras. E você está fazendo isso. Quando eu escolho você pra pensar nisso, eu penso que a questão não é negar os corrimãos que estão por aí. Porque negar os corrimãos, nesses termos que a gente está colocando, é negar o outro, e isso é totalmente anti-bakhtiniano.

Marisol: É uma ficção.

Beto: O outro é um valor absoluto. O problema é...

Marisol: ...como eu me coloco. Como eu me coloco diante do mundo numa atitude crítica, mas numa atitude de quem compreende o estado permanente de transformação e pulsão pra ser mais do mundo.

Beto: Não responder o outro é negar o outro, não é?

Marisol: Sim. É uma forma de matá-lo. Eu li Os Imortais, do Borges, porque nosso grupo de pesquisa discutiu alguns meses sobre a morte. Porque, pro Bakhtin, o valor da vida humana é o valor da vida mortal. E isso era uma frase que, pra mim, soava abstrata.

Beto: Você me fez ler isso: a nossa própria morte... Se você não entender isso, que você é um mortal...

Marisol: ...é porque eu sei que eu não vou estar aqui daqui a 30 anos, é porque eu sei que eu não estarei aqui, seguramente, daqui a 40 anos, que eu aprecio essa taça de vinho tão bem. Mesmo sem poder beber.

Beto: É. Estar aqui.

Marisol: Porque agora está aqui. Em Os Imortais, do Borges, tem uma cena ‒ que não é uma cena, porque é uma escrita, mas é uma cena mental que eu faço ‒ que é quando o personagem principal, que se tornou imortal, bebe aquela água e ele consegue entrar na cidade dos imortais, em que os hominídeos estão lá fora. Sabe essa história, não é?

Beto: Não. Não sei não.

Marisol: É genial. Uma história do Borges maravilhosa: Os Imortais. O personagem central era um centurião romano e este ouviu falar, enquanto ele estava em campanha, que havia um rio da imortalidade e, então, ele seguiu com a sua legião de romanos para encontrá-lo. Todos morreram; só ele sobreviveu e chegou, finalmente, no lugar onde era o lugar da imortalidade. Quando ele chegou, era um lugar devastado, cheio de pessoas estranhas que ficavam deitadas em fendas de rocha: hominídeos, meio primitivos, que não sabiam mais falar e um fio de água podre, que ele bebeu, porque estava com sede. E, então, se tornou imortal, porque aquele era o rio dos imortais. E aí ele passa a procurar a cidade dos imortais. E um desses hominídeos o segue como um cachorro, o acompanha até as portas dessa cidade. E, quando ele entra, narra aqueles labirintos, que depois o Escher vai desenhar. Aqueles labirintos do Escher de escadas subindo e descendo são um pouco a representação desse lugar que não leva a lugar nenhum. Eu quero te falar: essa imagem é muito bonita, porque a cidade dos imortais foi uma quimera humana de construir um lugar da imortalidade. Só que quando os imortais viveram centenas de anos nessa condição de imortais, eles perceberam a desgraça que era isso. Mais tarde, um dos imortais vai dizer para ele (que eram aqueles hominídeos) que eles perderam completamente a compaixão, o sentimento, o afeto, o valor. Ele disse: uma vez um companheiro, um dos nossos amigos, caiu num buraco e ficou lá 70 anos. Ninguém o ajudou a sair. Não tinha necessidade. Ele sofria de dores horríveis, mas ninguém o ajudou, porque a compaixão acabou. A compaixão só existe num mundo mortal. E aí eles destruíram a cidade dos imortais e construíram essa cidade cheia de escadas que não dão em lugar nenhum, pra confundir o viajante. Pra ninguém acessar jamais a imortalidade. E essas escadas não tinham corrimão: eram escadas que não davam em lugar nenhum. Depois, quando ele sai, Beto, esse hominídeo que o seguiu começa a rabiscar na areia e balbuciar umas coisas e...

Beto: ...porque na verdade é um labirinto...

Marisol: Exato. E escreve algumas coisas na areia, em uma linguagem estranha, e aí, em um momento, o protagonista o chama de Argos, o cão dos infernos, e então ele diz que isso o lembra Ulisses. E o hominídeo responde: “Fui eu que escrevi”. Ele era Homero. É lindo, maravilhoso.

Beto: O Borges é lindo, né?

Marisol: É é cego. Como essas pessoas que a Julia traz: é alguém que tateia na noite. Não existe corrimão pra um cego. E essa cena das escadas, que depois ,quando você olha lá no Escher, você vê: são escadas que não vão a lugar nenhum e nenhuma delas tem corrimão. Essa é a condição humana, sabe? Só que isso não é ruim! É isso que eu queria te dizer agora: é justamente esse tatear no escuro, é justamente essa possibilidade de que as coisas se tornem qualquer coisa.

Beto: Pois é.

Marisol: Isso é que salvaria a gente do corrimão.

Beto: Você está me levando a uma outra pergunta, uma outra consideração: será que a nossa utopia é a de um dia poder pensar sem o corrimão, sem o apoio, e que você possa então ser você mesmo?

Marisol: Aquilo que você toca, tateando, e que você não conhece, vai se tornando isso mesmo corrimão pra alguém. Mas escute: a mão não corre. Eu vou te pedir pra você pensar nessa diferença de analogia: o corrimão leva a algum lugar onde alguém já foi; tatear no escuro faz com que você desenhe um mundo, com a ponta dos seus dedos, que ainda não existe. É um outro modo de correr com as mãos.

Beto: Pois é. Porque o meu problema não é quando você começa aí. O meu problema não é nem achar, pensar, não usar o corrimão. Quando uma criança nasce... quando a gente nasce, até aqui a nossa vida foi se apoiando nesses autores que nos antecederam, pensando com outras pessoas. Pensar sem corrimão talvez seja utopia do homem: pensar por mim mesmo, sem negar o outro.

Marisol: Mas não existe pensar por si mesmo.

Beto: O que me incomoda é essa dependência total...

Marisol: Sim.

Beto: Não ter medo de se largar e dizer: não, agora eu posso caminhar. Não é ficar prisioneiro.

Marisol:Não. Eu estou te propondo uma segunda metáfora, que é essa do estado natural da escada da cidade dos imortais do Escher e dessa condição de cegueira que é a de não saber onde você está indo. Essa é a condição da vida humana.

Beto: Que seria a inquietação, né? A angústia.

Marisol: Para Derrida, a cegueira está relacionada ao fato de que a gente não conhece o início dessa história e não vai conhecer o fim. Isso é o que, pra ele, a cegueira é. Você chega numa história que já começou e você vai deixar essa história, e ela não vai ter terminado. Então a vida, a nossa vida, é um estado permanente de cegueira. É por isso que a gente está tão perdido, por isso que a gente está tão precisado, necessitado, de segurar a mão de alguém. Entendeu? Na minha percepção, quando Derrida diz assumir esse estado de cegueira como uma condição natural, significa levar as mãos adiante. Porque ver com as mãos é diferente de ver com os olhos. Ver com os olhos é prever. Não existe acontecimento quando você vê.

Beto: Mas é engraçado. Ele está dizendo isso, mas não está dizendo que essa é a solução; ele está dizendo que essa é a condição.

Marisol: Ele está dizendo que essa é a condição, porque ele fala uma coisa muito bonita. Um livro, que é o Memórias de Cego ‒ eu estou doida pra traduzir para o português, porque ele só tem em Portugal...

Beto: Ah, que bom que eu vou poder ler coisas que você vai traduzir.

Marisol: ...que é: com a ponta dos dedos o cego desenha aquilo que ele depois vai ver. Na noite, na sombra, eu não vejo. Mas, depois que eu toco com os meus dedos, aquilo passa a existir, e eu passo a ver. Então você desenha o seu próprio corrimão. Só que esse corrimão, ele não é alguma coisa que vai guiar outros. Essa é a metáfora de Derrida sobre a escritura.

Beto: O corrimão não é pré-existente.

Marisol: Não.

Beto: É porque você vai criando o seu fio...

Marisol: É. Fica com essa imagem do fio. Do fio que você mesmo vai levando.

Beto: Na verdade a vida é um labirinto, não é?

Marisol: É. Você procede às cegas.

Beto: É porque você está falando do Borges... E eu estou me lembrando de um conto dele que se parece muito com isso aqui, que é do Minotauro.

Marisol: Sim.

Beto: Que é maravilhoso! Que no final, quando você encontra o Minotauro, é você mesmo.

Marisol: Sim. Mas talvez a gente pudesse reescrever isso dizendo que não é a si mesmo que a gente encontra. Porque, se a gente encontra a si mesmo, a gente também fechou.

Beto: É.

Marisol: A gente vai encontrar um outro, que vai te abrir pra um outro, que vai te abrir a um outro, ao infinito. Sabe qual é o medo que a gente tem? É que isso não tem fim, não tem garantias e não tem resultado. Só tem abertura, só tem possibilidades imprevisíveis e imponderáveis de existência. E infelizmente a gente não quer isso. Essa que é a tragédia da condição humana: a gente não quer isso. Talvez porque temos medo do que não controlamos, mas também porque o fascismo é imponderável. Perceba o risco. Talvez por isso Hannah Arendt queira tanto garantir uma educação crítica dos conteúdos da cultura, guiada por adultos autoridades e responsáveis.

Beto: Mas aí deixa eu te falar uma coisa. Aí voltando, talvez até pra gente fechar um pouco. A gente começou falando da natalidade. E a vida de um homem tem um início completamente único, completamente singular. Ninguém assim antes dele.

Marisol: Sim.

Beto: Ele se dá conta de que é um ser mortal. E agora eu entendo que essa é uma maturidade: eu sou um ser mortal. Somos todos mortais. Tem gente que vive achando que não é mortal, o que é uma tragédia. Mas, quando a gente reconhece isso, que a gente entra no mundo ‒ o mundo já existia antes; eu morro e o mundo vai continuar existindo . E aí nesse meio é que entra a minha angústia: como eu me torno um ser imortal? Acho que essa é uma ideia da Hannah Arendt. Não sei se é só da Hannah Arendt. Acho que não é de ninguém. Mas aí é que está o grande drama: eu me reconheço mortal e quero ser imortal.

Marisol: Mas eu acho que a Hannah Arendt bota a cabeça por cima de tudo e diz: isso, esse saber-se mortal, é o que eu consigo ver com a minha vida singular. Mas, se eu levanto a cabeça ‒ como Bakhtin fala, por cima dos ombros dos gigantes ‒ eu tenho responsabilidade por mais do que isso. Entende? Porque, para o Bakhtin, o grande tempo é o infinito do homem, da humanidade. Se existe alguma imortalidade, ela é o grande tempo da existência e da humanidade.

Beto: Mas ela fala uma coisa linda aí também. Quando ela fala assim, dessa imortalidade, eu acho que é no A Condição Humana ou A Vida do Espírito... Eu não sei. Ela fala sobre a importância dos poetas, dos narradores... Se não houvesse alguém que escrevesse a vida dos heróis, de cada herói, da narrativa, a importância da narrativa... Ulisses, Aquiles... Se Homero não registrasse a vida... Porque a vida é passageira, não é?

Marisol: Sim.

Beto: A vida é um sopro. Se não houvesse a linguagem, alguém que narrasse a história de Ulisses ou a história de Aquiles, eles não existiriam mais, não é? Eu acho que ela fala da questão da linguagem maravilhosamente.

Marisol: Na literatura a gente encontra essa segunda vida do homem. E essa segunda vida do homem, ela é universal nesse sentido. Ela ultrapassa essa condição mortal pequena.

Beto: A arte é imortal. A poesia, a literatura...

Marisol: Sim.

Beto: Não é a imortalidade, é a quase imortalidade.

Marisol: Ela não é a minha imortalidade, mas ela é a imortalidade da humanidade. E, para o Bakhtin, a gente vive nessa condição dupla de ser, ao mesmo tempo, no pequeno tempo, mortal; mas, ao mesmo tempo, como parte da humanidade, imortal.

Beto: A Hannah Arendt vai colocar que todos os seres, por exemplo, só o homem é mortal, porque uma árvore, uma formiga, uma minhoca são a espécie. Porque o homem é pura singularidade. Não vai existir outro homem igual a mim, outra mulher igual a você.

Marisol: Sim, mas então... O perigo que a gente tem de escorregar dessa singularidade pra a identidade, para os processos em que eu acredito que eu sou, é muito grande. E essa é a grande vantagem do Bakhtin: é a gente compreender que a gente é, ao mesmo tempo, singular, mas parte...

Beto: Ah, não! Hannah Arendt também faz isso! Porque ela vai falar nesse nível aqui da ação ‒ dentro desse conceito, que eu acho que isso é genial ‒ eu na verdade participo... senão não poderia construir um mundo comum, não é? Não haveria nem comunicação se fôssemos completamente singularidade e individualidade. Então temos uma identidade comum e, ao mesmo tempo, temos uma individualidade. Porque esse é o drama da sociedade.

Marisol: Para o Bakhtin não é uma identidade comum. Pro Bakhtin é: nós somos sempre alteridade.

Beto: Sim. Mas, ao mesmo tempo, somos coletividade.

Marisol: Somos humanidade. No grande tempo, não há o fim. A morte não é o fim. A morte é o início de uma outra coisa. E assim vai...

Beto: Mas isso na Hannah Arendt, o que a gente deixa ali, nesse nível da questão da política, né, da polis, é lá que o herói vive, né? A vida privada desaparece. Não fica nada depois da sua morte. Ficam os ossos.

Marisol: Nem eles.

Beto: Nem eles...

Marisol: Acho que podíamos pensar em outra coisa que não seja com ou sem corrimão, podíamos pensar nas mãos, que aparecem a todo momento na nossa conversa: “correndo" no corrimão, tateando na escuridão...

Beto: ...e segurando a mão do outro...

Marisol: ...e segurando a mão do outro...

(*)Transcrição: Natália Abreu.

Recebido: 30 de Abril de 2019; Aceito: 05 de Agosto de 2019

Creative Commons License Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative Commons Attribution NonCommercial, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer meio, sem restrições desde que sem fins comerciais e que o trabalho original seja corretamente citado.