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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.20 no.59 Rio de Janeiro oct./dic 2019  Epub 21-Ene-2020

https://doi.org/10.12957/teias.2019.44438 

Outras epistemologias e metodologias nas investigações sobre currículo

BICHAS PRETAS E NEGÕES: SEUS FAZERES CURRICULARES EM ESCOLAS DAS PERIFERIAS

QUEER BLACK MEN AND BLACK MEN: PERFORMATIVE ACTS AT PERIPHERY'S SCHOOLS

Marcio Rodrigo Vale Caetano1 

Tarciso Manfrenatti de Souza Teixeira2 

Paulo Melgaço da Silva Junior3 

1Pós-doutorando no Programa de Pós-graduação em Educação da UERJ, sob supervisão da Profa. Dra. Maria da Conceição Silva Soares (PNPD/CAPES), líder do Nós do Sul - Laboratório de Estudos e Pesquisas sobre Identidades, Currículos e Culturas, graduado em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), com mestrado e doutorado em educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF).

2Doutorando em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ); Mestrado em Educação pela mesma universidade na linha de pesquisa em Educação e Diversidades Étnico-Raciais; Especialista em Relações Étnico-Raciais e Educação pela Universidade Federal Fluminense (UFF); graduado em Letras - Português/Língua Inglesa pela Universidade Castelo Branco (UCB)

3Doutor em Educação pela UFRJ (2014), mestre em Educação pela Faculdade de Educação da Baixada Fluminense - FEBF/UERJ (2008). Possui graduação em Desenho e Plástica pela Escola de Artes Plástica da FUMA (1989).


Resumo

Neste artigo, debateremos os limites e as possibilidades das masculinidades negras imersas em normas curriculares cisheteropatriarcais de duas escolas públicas localizadas nas periferias das cidades de Duque de Caxias e Rio de Janeiro, RJ. Para tanto, as experiências autoetnográficas de docentes serão as bases para narrar as tensões e os acordos emergentes dos deslocamentos produzidos a partir das normas escolares, denunciando-nos que, a despeito do controle, emergem ricas e polissêmicas performatividades que habitam os cotidianos das escolas e disputam seus currículos.

Palavras-chave: Masculinidades; Currículos; Cotidianos; Escolas

Abstract

In this paper we will discuss the limits and possibilities of black masculinities immersed in cisheteropatriarchal curricular norms of two public schools at outskirts of the cities of Duque de Caxias and Rio de Janeiro, RJ. To this end, the self-ethnographic experiences of teachers will be the basis for narrating the tensions and agreements emerging from the displacements produced from school norms, denouncing us that despite the control, rich polysemic performativities emerge that inhabit the daily lives of schools and dispute your curruculums.

Keywords: Masculinities; Curriculums; Everyday life; Schools

LOCALIZANDO O DEBATE

Este texto tem por objetivo debater os modos com que jovens de duas escolas públicas nas periferias das cidades de Duque de Caxias e do Rio de Janeiro descrevem suas concepções acerca das masculinidades negras, estabelecendo seus limites e possibilidades performativas na escola e, mais amplamente, na sociedade. Para tanto, buscamos, nas experiências autoetnográficas dos autores, estabelecidas na perspectiva da interação com os estudantes, os dados para elaborar este artigo.

Entendemos que a autoetnografia crítica oferece subsídios teórico-metodológicos fundamentais à investigação, ao produzir sentidos sobre o espaço e as relações estudadas. Enquanto, majoritariamente, procedida de perspectiva interpretativa e interacionista-simbólica, a autoetnografia confere à investigação um suporte teórico que ultrapassa os limites de uma metodologia científica qualitativa. Aos/Às investigadores/as, os conhecimentos construídos pela autoetnografia podem ultrapassar o ideal acadêmico-positivista de uma suposta neutralidade, uma objetividade científica e/ou um entendimento particular acerca do outro. Nesta investigação crítico-colaborativa, a reflexão sobre o existir torna-se fundamental aos seus sujeitos.

Enquanto atribuidora de significados às ações cotidianas, a autoetnografia confere à pessoa pesquisadora um caráter interpretativo singular aos sujeitos que produzem sentidos sobre as suas experiências ao narrá-las. Aos/Às participantes, a autoetnografia crítica proporciona um certo distanciamento do fato que, no geral, lhes é ignorado pela dimensão rotineira das ações, oportunizando a reflexão e a criação de significados às ações.

No Brasil, ainda que incipientes, os enfoques autoetnográficos, nas últimas duas décadas, sobretudo no campo de estudos e pesquisas de gênero, sexualidades e educação, têm crescido consideravelmente, ainda que a bibliografia específica esteja restrita ao inglês (BOSSLE; MOLINA NETO, 2009). No geral, o que se encontra no Brasil são artigos com eixos metodológicos alinhados a análises qualitativas e interpretativas, considerando a inserção do pesquisador no contexto de pesquisa (ELLIS; BOCHNER, 2000).

Ellis e Adams (2014) conceberam a autoetnografia como forma de pesquisa em que se busca descrever e analisar as experiências pessoais interacionistas, a fim de compreendê-las inseridas nas dimensões e experiências culturais coletivas. Em trabalhos mais recentes, Ellis e Adams (2014, p. 254) a define como “pesquisa, escrita, histórias e métodos que conectam o autobiográfico e o pessoal ao cultural, social e político”. Na mesma linha, para Bossle e Molina Neto (2009, p. 133), “a autoetnografia surge como um tipo de etnografia centrada nas vivências do próprio sujeito em seu contexto social”.

Nessa derivação autoetnográfica do cotidiano das práticas docentes, os “fazeres diários” foram revisitados e narrados, a fim de torná-los estranhos para produzir outras possíveis leituras e redes de significados. O texto está organizado em três partes: na primeira, propomo-nos a debater panoramicamente as produções acadêmicas sobre as masculinidades, buscando aproximá-las do campo da educação para, no segundo momento do texto, produzir a análise dos dados e, por fim, na última parte, apresentarmos as últimas considerações.

MASCULINIDADES (NEGRAS): CAMPO DE ESTUDO EM DELINEAMENTO

Connell (2000) nos mostra que as masculinidades são definidas performaticamente em dinâmicas coletivas da sociedade sustentadas e reiteradas até assumirem o caráter de verdade nas e pelas instituições (família, políticas públicas, escola, religião, ciência etc.). Apesar de seu caráter performativo, existe a apreensão em indicar normas que integrem e normatizem modos de ser homem, essencializando-o em suas dimensões biológicas. Nessa dinâmica, a masculinidade é produzida, determinada e blindada pelo grupo, instituindo e recriando parâmetros referenciais idealizados que sustentam o entendimento da masculinidade hegemônica.

Nessa lógica de pertencimentos, a lealdade e o respeito às performatividades são os principais atestados da veracidade masculina. Contudo, Connell (1995) argumenta que, mesmo sendo construída a referencialidade, a masculinidade é cultural, histórica e construída discursivamente. Ela caracteriza-se por sua fluidez, contradição e constante transformação. A masculinidade é, por princípio, plural. Em outras palavras, ela se materializa por meio de experiências coletivas que se desenvolvem a partir de performatividades e provas que objetivam atestar a inteligibilidade do sujeito que se afirma homem.

Nesse caso, a ideia de homem ancora-se, inevitavelmente, em sua relação obrigatória, assimétrica, complementar e direta com a mulher e tem, no sexo anatômico (pênis e vagina), o ponto inicial de sua construção e afirmação. Nessa complexa engenharia, as masculinidades negras são circunscritas em corpos que foram apagados pelo colonialismo. Elas formam parte desses coletivos de sujeitos que historicamente foram negligenciados e/ou essencializados nas sociedades ocidentais por meio da manutenção da colonialidade.

No que tange à relação entre os conceitos colonialidade e colonialismo de que traremos, ao longo deste texto, Walsh (2009) destaca que, apesar de imbricados, eles são diferentes. A colonialidade engloba as conexões de poder mantidas do colonialismo europeu, não obstante o término do regime político colonial. Os efeitos da colonialidade iniciados com o colonialismo apreendem, indiscutivelmente, inúmeras dimensões da vida, estando presentes nas formas como projetamos e concebemos o conhecimento e a existência.

Para Faustino (2014), desde o colonialismo, ao corpo do homem negro foram atribuídas redes de significados que o alocaram no lugar de forte, reprodutor e pouco inteligente. Esse quadro foi estrategicamente elaborado a partir da invisibilidade e desqualificação das populações colonizadas pela universalidade cultural europeia, reconhecida como civilizada. Nesse caso, a população negra, a exemplo das demais que passaram pelo colonialismo, foi invisibilizada, quando se estabeleceram os limites do ser humano universal. O negro foi desqualificado, ao ser representado como contraponto antitético do humano e reduzido à dimensão corpórea, emotiva e ameaçadora da natureza anticivilizada e contra-hegemônica.

Como oposição ao modelo de masculinidade hegemônica, O’Donnell e Sharp (2000) apresentam as masculinidades marginalizadas ou subordinadas. Para os autores, elas são construídas por meio da opressão aos grupos minoritários. Essas performatividades identitárias são produzidas baseadas em estereótipos e abjeções que objetivam marcar os sujeitos. Nessa linha, Connell (2000) irá afirmar que as masculinidades marginalizadas não atendem ao modelo dominante, porque são resultantes da interseccionalidade dos marcadores de raça e classe.

Ainda que, majoritariamente, seja lida como identidade subalterna em decorrência do racismo e/ou da classe social, o homem negro também é enaltecido pelo padrão hegemônico como modelo de virilidade, força e coragem. Esse quadro, associado à ideia majoritária de que o homem negro é bem-dotado e um reprodutor em potencial, pode determinar e/ou impulsionar os limites de suas relações afetivo-sexuais. Existe uma disputa narrativa em que o controle representativo da masculinidade impõe ao outro periférico o adjetivo da masculinidade (a masculinidade negra, a masculinidade gay etc.) mantendo intacta a referencialidade hegemônica do homem-branco-humano. Assim, o homem negro necessita utilizar-se de ferramentas, recursos e estratégias para adentrar neste campo de batalha discursiva e política de representação sobre o que pode ser considerado território performativo da masculinidade.

Se ao homem branco foi lhe conferido o intelecto, um certo grau de sensibilidade e a racionalidade, ao homem negro os atributos valorados lhe foram negados, virando potência físico-sexual. Nessa disputa pelos significados, o “macho negro” passa a ser visualizado como padrão de virilidade, pujante e dotado sexualmente. Produzido como ativo, ele é o sujeito que está disponível ao sexo a todo instante. Grande parte das representações hegemônicas sobre os homens negros recaem sobre o corpo, destituindo-os dos prestígios, recursos e prerrogativas de “homens-humanos”. É no interior dessa organização da masculinidade que emerge a ideia de “negão”. Personagem performatizada pelos homens negros, o negão posiciona-se entre a exaltação da virilidade esboçada na apresentação do falo, dos músculos, da força e, sobretudo, no desempenho sexual. Esses elementos são capazes de orientar a garantia, no ideal negão, de determinada superioridade, ainda que fragilizada, frente às masculinidades brancas (SILVA JUNIOR, 2014).

Considerando que a raça seja uma fantasia móvel (SOMMERVILLE, 2000), as experiências discursivas em torno do “negão” nos evidenciam a defesa da masculinidade negra ancorada nos valores heteronormativos. Os limites determinados a partir do “negão” não permitem a exibição pública de outras sexualidades, mesmo que, na dimensão privada da vida, outras performatividades possam ser vividas. Por meio das redes de significados em torno da identidade e através dela, homens negros adquirem legitimidade e valorização social.

A sexualidade, nesse caso, assume uma dimensão estratégica para protagonizar o homem negro no mercado racial e afetivo-sexual. Esses debates reforçam o que Welzer-Lang (2001) afirmou sobre as relações sociais em torno do sexo. Nas considerações do autor, elas foram produzidas em torno de um paradigma naturalista em que se afirmou uma pseudonatureza que elevou a masculinidade a um status superior, quando comparado à feminilidade, determinando mulheres e homens a relação complementar e assimétrica de dominação. Não obstante esse fato, a pseudonatureza dos sexos apoia a perspectiva heterossexuada de sociedade em que as outras sexualidades são projetadas a partir de sua referenciabilidade e situadas no campo da diversidade.

Nessas dinâmicas da colonialidade, o poder consolidou e se perpetuou, (re)criando a categoria de verdade, naturalizando situações e rejeitando outras, sucedendo, dessa maneira, a invenção do outrem4 do outro. Essas normas são executadas sutilmente de maneira a torná-las aceitáveis e essencialmente normatizadoras. Nessa direção, aqueles sujeitos que ocupam status de normalidade possuem o privilégio de se autorrepresentarem e de elaborarem as representações dos outros. Se consideramos o dito por Welzer-Lang (2001), as representações (capazes de produzir efeitos políticos) da normalidade do negão originam-se do ponto de vista daquele sujeito que, ocupando a status de normalidade, define a “bicha preta” como o seu outro. Ela parece ser o escárnio do outrem. Se o negão flerta com a masculinidade hegemônica, a bicha preta zomba e é zombada por sua posição no mercado afetivo-sexual.

Ao pensarmos nas experiências docentes que balizaram a elaboração deste texto, a bicha preta será aquela que não interessa por onde ela passa, seja no asfalto, na quebrada ou ladeira da favela, ela causa e tomba com as marcas do negão. Diante do escárnio, da zombaria e de ofensas, as bichas surgem do discurso: “Ei...afeminada, bicha louca, bicha estranha, biba, baitola, boiola, frutinha, gayzinha preta, mona, morde fronha, pintosa, viado, maricona etc.”. Não importa como sejam nomeadas, elas são fruto do discurso desqualificante que as menosprezam em relação às outras masculinidades negras. Ao debater esse quadro, Oliveira (2017), salienta que:

[...] O que esses termos dizem é que o relacionamento sexual e afetivo entre pessoas do sexo e do gênero masculino não é humano, não é honesto e, por isso, seus sujeitos não podem ser o centro e a margem, o lado de fora é sim um lugar. O lugar para quem expressa pecado, perigo, anormalidade, fragilidade física e emocional, inadequação a determinadas atividades profissionais, falta de caráter, propensão ao crime, dificuldade de conviver em sociedade etc. (OLIVEIRA, 2017, p. 99).

Dessa maneira, como podemos perceber, as bichas pretas, diferentemente dos negões, evocam um “não lugar” no mundo das masculinidades. Elas estão deslocadas e postas à margem das margens da periferia. A bicha preta, no entanto, possui uma territorialidade, o “deslocamento ou incômodo” (ZAMBONI, 2016, p. 98). Por isso mesmo, a bicha preta é vista como algo “desviado” do negão. Por onde ela passa, provoca um estranhamento e desestabilização. Ela tumultua, contesta e perturba a masculinidade negra hegemônica, ainda mais quando falamos das performatividades vividas nas favelas.

Gay e bicha, como já podemos prever, são categorias reivindicadas como diferentes (ZAMBONI, 2016; OLIVEIRA, 2017). O gay será o “modelo” esperado, quase sempre branco. Isso porque, nas terras tupiniquins, “o gay afirma-se pela negação da bicha” (ZAMBONI, 2016, p. 21). A bicha está no meio de um fogo cruzado, ela é máquina de guerra, é um devir que desestabiliza e que interroga. Assim, a bicha é atacada tanto pela norma cisheteropatriarcal5 quanto pela norma da homossexualidade. Sendo assim, o gay pode ser visto como o “bom homossexual”; já bicha é “uma má cópia do homossexual ideal, igualitário” (ZAMBONI, 2016, p. 22). Dessa forma, não lhe restando outro destino, “ela [a bicha] delata os homossexuais. A pecadora endiabrada, a criminosa perigosa, a imoral desenfreada, a doente, a escandalosa, a louca, enfim a bicha, é acusada de queimar o filme dos gays bem-comportados” (OLIVEIRA, 2017, p. 106).

Se uma bicha causa, ao provocar escândalos e rompimentos na performatividade masculina do gay, uma bicha preta tomba, ao destituir a masculinidade de sua existência performativa. Originárias das lutas, resistências e complexidades das relações sociais, a bicha preta traz as marcas raciais, de gênero, sexualidade e classe. Ela não pode ser vivida em lógicas lineares, sendo sua existência atravessada pela perspectiva interseccional. Osmundo Pinho (2004) afirma que:

[...] no mundo real os sujeitos se produzem através da interseção de diferenças e desigualdades diversas. A interseção ou combinação dessas diferenças produz novas diferenças, então, não é apenas uma soma, ou seja, uma bicha preta não é um sujeito que acumula duas identidades, é outra posição diferente que é produzida através dessa interação ou dessa confluência (PINHO, 2004, p. 129).

A interseccionalidade transpõe a soma das dominações ou arranjos de identidades e diferenças, possibilitando-nos uma visão rizomática e transdisciplinar diante da complexidade de identidades e de desigualdades sociais, através de uma abordagem integrada (POCAHY, 2011). Dessa forma, apostamos na perspectiva interseccional entre racismo e homofobia para pensar a bicha preta, a outra do negão. Segundo Oliveira (2017), os estudos interseccionais entre homofobia e racismo no Brasil ainda são novidade. Se isso, por um lado, pode estar relacionado com a pouca representatividade que as bichas pretas possuem no movimento negro ou no movimento gay; por outro, denuncia também um número reduzido de pesquisadores nas universidades de nosso país interessados nesse tema.

Bailando no jogo das interseccionalidades, traremos as narrativas a fim de debater como o racismo, na colonialidade, irá construir o negão como o outro da masculinidade hegemônica e a homofobia racista irá definir a bicha preta como cópia malfeita da intersecção entre o gay e negão nas experiências curriculares das escolas pesquisadas.

Movimentos curriculares e redes significantes: limites e acordos entre os negões e as bichas pretas

Candau (2010) argumenta que a escola se caracteriza como sendo um microuniverso social que se apresenta mediado por sua diversidade social, cultural e, por vezes, acaba reproduzindo modelos de comportamentos interpelados pelas relações sociais de contextos mais amplos. O cotidiano escolar é, assim, marcado por uma série de contradições e conflitos, em que diferentes visões de mundo, crenças, valores culturais, entre outros, encontram-se tensionando suas verdades e disputando seus currículos.

Mesmo que saibamos que, cotidianamente, disputam-se inúmeras verdades nas escolas, os investimentos de orientá-las, balizados em um determinado percurso, refletem-se em suas dinâmicas didático-curriculares, fazendo-nas, por vezes, espaços monoculturais (GARCIA, 2000). Com Arroyo (2011), sabemos que os silêncios impostos às vozes discordantes pelos discursos hegemônicos têm como meta a produção de modelos socialmente desejáveis ao funcionamento normalidade.

A forma como se configuram as interseccionalidades nos currículos nos sinaliza, por um lado, o seu cenário produtivo, sugerindo-nos que os currículos escolares possuem, ou acreditam possuir, o poder de inventar e impor o senso comum a algumas nomeações. Já por outro lado, evidencia-nos um investimento coletivo de contradizer a heterodesignação a que identidades foram e estão sujeitas com as narrativas científicas, jurídicas, religiosas, escolares etc. Mesmo que, neste momento, as identidades se configurem cada vez mais polissêmicas em seus significados e rizomáticas em suas definições, os discursos produzidos sobre elas, todavia, são mediados pelas ordens hegemônicas nas quais a escola se baseia, como dimensão pedagógica e universalista de seus princípios, reconhecendo a autoridade do conhecimento a se configurar em seus currículos (CAETANO, 2016).

Discutir conceitualmente currículo é direcioná-lo à centralidade das intencionalidades, princípios referenciais e pedagógicos que orientam a educação escolar, já que, segundo Arroyo (2011), a instituição escolar e os seus conhecimentos encontram-se no meio de tensões e disputas políticas mediadas pelos interesses identitários, culturais e econômicos. Assim sendo, a suposta neutralidade idealizada do conhecimento curricular, limitando-o a um processo cognitivo, concede a uma despolitização que reitera a colonialidade eurocêntrica, branca, heterossexual, androcêntrica e judaico-cristã das práticas pedagógicas escolares (CAETANO, 2016).

Ao considerar as categorias gênero, raça e classe como interrogações curriculares, em vez de fatores, de antemão, explicados, esses conceitos satisfazem, na dimensão prática-teoria-prática curricular, ao propósito de posicionar as diferenças nas agendas de pesquisas. Pinar (2004) considera que o currículo congrega o que elegemos rememorar do passado, aquilo que queremos acreditar sobre o presente e o que esperamos do futuro. O currículo é um campo de poder em que se posicionam lutas, tensões e disputas. Com isso, afirmamos que entendemos, como currículos de raça, sexualidade, classe e gênero, os conhecimentos pedagógico-culturais que acabam por produzir verdades que orientam a produção de performatividades, interação e limites entre os sujeitos. Assim, com esse cenário, ensinam-se, disciplinam-se e regulam-se os corpos, elaborando modos de subjetivação e posições sociais dos sujeitos. Nesse sentido, o currículo é o instrumento escolar em que se concentram as tensões que ocorrem na sociedade em torno dos diferentes sentidos e significados sobre o político e o social das identidades (MOREIRA; SILVA JUNIOR, 2016).

Refletir sobre as performatividades identitárias significa pensar sobre as possibilidades segundo as quais os sujeitos podem se produzir e se apresentar socialmente. Essa expressão, performatividade identitária, só terá sentido, se for vista como polimorfa, fragmentada, fluida, múltipla, contraditória, em constantes modificações e negociações, capazes de rearticular desejos e prazeres. Ao reconhecermos as instâncias diversas por onde interagem os sujeitos que integram as instituições escolares e, por sua vez, os interesses político-pedagógicos provocados com os seus fazeres, não limitamos os conhecimentos e movimentos curriculares à escola. Entendemo-los como as tecnologias culturais (arquitetura, livros didáticos, vestimentas, mídia etc.) que planejam e elaboram performatividades, ensinando-as, disciplinando-as e configurando-as a modos de estar e viver na escola e, mais amplamente, na sociedade. Nesse sentido, torna-se impossível existir livres de empreendimentos e expectativas sociais.

Nessa perspectiva, é relevante ressaltar que Gomes e Silva (2017) e Silva (2012) destacam que a escola se caracteriza como espaço por excelência para compreender a indissociabilidade e interseccionalidade das diferenças sociais, culturais, econômicas e sexuais que, por serem ignoradas, acabam por intensificar as redes de vulnerabilidade a que adolescentes negros estão submetidos. Ao mesmo tempo, acreditamos que a escola pode auxiliar as fugas de explicações generalizantes que pouco colaboram com o processo de pertencimentos curriculares. Meninos como Manuel6, que têm aptidão artística, que são mais calmos ou mais compenetrados nos estudos, têm a sua masculinidade “sob suspeita”, eles estão contrariando e infringindo a norma que recai sob a masculinidade negra, hiperpotencializada pela marca de “negão”.

Durante as aulas de Artes de uma das escolas investigadas, surgiu o comentário que uma aluna que havia acabado de ingressar na escola tinha achado Pedro muito interessante. Em meio às conversas paralelas, ele disse: “deixa ela dar mole que eu passo o rodo”. Outro aluno, Lorran, imediatamente completou: “tem que pegar mesmo”. É importante destacar que o fato aconteceu em uma turma de 8º ano e que Pedro tinha, na época (ano de 2018), 16 anos. Pedro é considerado um dos melhores jogadores de futebol do grupo e já namorou diversas meninas na escola. Tanto ele quanto Lorran, de 15 anos, se sobressaem entre os garotos, inclusive os do 9º ano, afirmando que são negões, em contraposição ao que afirmam sobre Manuel.

Em uma conversa informal com os alunos Thiago (16 anos) e Lorran, o primeiro destacou que:

[...] o pai do Lorran é fera! Ele não deixa escapar uma novinha, já deve ter passado o rodo no bairro todo.

Nesse momento, Lorran retomou e disse:

[...] eu acho que se deve transar. Fazer amor, muito amor. Mas não pode fazer filho igual ele fez. Somos muitos e ele não dá atenção para todos. Não cuida de todos. Eu acho que na rua pode ser até bom ouvir isso, todo mundo fala dele como o pegador. O povo brinca e pergunta se somos machos igual ao nosso pai. Mas os filhos sentem falta de um pai mais presente.

Estávamos em roda de conversa informal com uns cinco adolescentes negros, aguardando para realizarmos um passeio cultural, quando surgiu o assunto sobre homens negros que são bichas ou que fazem sexo com outros homens. O aluno Daniel expressou sua opinião:

[...] olha, professor, eu não gosto de pensar em preto viado, eu acho que não combina. Lembra daquele gordão viado que fez o 6º ano conosco? O povo zoa muito ele: preto, gordo e viado. Hoje ele tá de peruca e tudo. Ele é a bicha preta da favela.

Nesse mesmo momento, Pedro defendeu que, para sair com outro homem,

[...] tem que ser no sapatinho. Ficar dando pinta e fazendo show é muito feio. Quando vira mulher de vez igual como a Preta Jéssica, tudo bem. Mas vestido de homem, ficar desmunhecando igual a bicha preta, eu acho feio demais.

Outro aluno, Thiago, destacou que também não gostava e que não fazia nada. Mas também não andava com bicha preta. Em tom de brincadeira, destaca:

Imagina um negão com uma jeba (neste momento gesticulava com mão) desta ficar dando pinta e deitar debaixo de outro macho.

A questão chama atenção por ser uma região pobre e que muitos desses rapazes aceitam fazer sexo com outros homens por dinheiro, conforme nos foram narradas inúmeras vezes em nossas conversas sobre os significados e projetos de vida. Nesse mesmo dia, o aluno Pedro falou:

Olha, professor, vou te contar. Aqui os moleques sabem, eu até já saí com uns viados lá da praça [...], mas eu sou macho [...] sou homem [...] eles oferecem um dinheiro [...] querem ser mulher [...] então a gente vai, joga o grossão pra fora [...] e faz o cara gemer sem sentir dor. Mas isso só rolou com uns gayzinhos da praça, eles me deram uma moral bacana. Com bicha preta não rola! A porra do viado não tem dinheiro. Mas eu parei faz um tempo.

Semelhante a Pedro, Daniel também contou sua experiência sexual com outros meninos por dinheiro. Segundo ele, foi apenas sexo oral:

Mas não sou viado! Não sou mesmo, eu sou é macho.

Nessa conversa, Lorran destacou:

Professor, aqui o negócio é a moral. Deu dinheiro, muitos vão sim. Vai de noite na praça do galo ou do grama. Só não pode falar com ninguém, é no sapatinho. Por isso que não rola com as bichas pretas da favela, elas são escrotas e explanam pra geral. A gente curte, rola um prazer e ainda ganha uma graninha pra não acharem que somos viados. Entendeu?

Ainda que o dinheiro seja usado como justificava para a relação sexual com outros homens, no geral, mais velhos e nomeados por eles como gays, Lorran chama a atenção que, também, serve para manter a integridade do negão. Com isso, reiteramos que não existe apenas uma masculinidade negra, elas são plurais e, nesse universo de negociações e de lutas por reconhecimentos, existem diversas subjetividades negras buscando se impor e subverter e reforçar as contradições apresentadas pelo modelo de masculinidade hegemônica, reiterando o que afirma Sommerville (2000) de que a raça é uma fantasia móvel.

Dessa maneira, eis que surge a bicha preta da favela. Como disse Lorran, ela vem desfilando com seu shortinho pelas quebradas e põe a cara no sol e, assim, afronta, desestabiliza e tumultua a masculinidade negra, especificamente, o estereótipo do negão, o outro da masculinidade hegemônica. Sendo assim, a bicha preta vem nos mostrar a pluralidade - que é tecida em uma rede de poder - e está presente no processo de construção das masculinidades.

A narrativa que segue, vivida em outra escola, ilustra essa “camisa de força” na qual tentam amordaçar as bichas pretas:

Quando entrei na sala da direção - para tirar algumas dúvidas sobre questões meramente burocráticas - vi que Marcelinho, uma bicha preta favelada, de 12 anos, estava sendo repreendido pela diretora da escola. Passados alguns minutos, o aluno saiu da sala de cabeça baixa e a diretora, ainda muito acalorada por causa da conversa, disse: “Este menino está “insuportável”, “incontrolável”, “incorrigível”. E continuou bradando, só que agora, falando diretamente para mim: “Fiz questão que o senhor, professor, visse/participasse a/da conversa, pois vocês dois têm a mesma “questão”, o que se dá para notar. No entanto, ele poderia ser como o senhor, contido, pacato! Não custa nada, né!?”

Nessa narrativa, os sujeitos envolvidos, tanto professor quanto o estudante, são nomeados pela diretora como homossexuais. Eles apresentavam a mesma “questão”. No entanto, um será o oposto do outro. O professor será o gay aceitável, que a diretora faz com que aquele menino perceba que deve seguir como “modelo”. Já o aluno Marcelo era a bicha preta favelada. Ela incomodava, contestava, desestabilizava, tumultuava a ordenação curricular da escola. Era o inaceitável, por isso, deveria ser invisibilizada e silenciada. Como dito por Connell (2000) e O`Donnell e Sharp (2000), as masculinidades subalternizadas ou marginalizadas não obedecem a um modelo hegemônico, por serem marcadas pela intersecção de raça e classe social.

Pedagogicamente, seja em casa ou na escola, muitos meninos vão aprendendo, assimilando em si esse modelo de gay hegemônico, que tenta homogeneizar a imagem do gay branco, bem-sucedido financeiramente, escolarizado nos saberes universais, de gosto refinado nos valores do norte global, masculinizado e, logicamente, rico, em cujos corpos há o predomínio dos músculos e da virilidade, o que demonstra uma representação de beleza, saúde, sucesso e inclusão social, ancorada no “assimilacionismo”. Ou seja, os idênticos aos heterossexuais. Seu contrário está fadado à diferença e à anormalidade, bicha preta afeminada e, de antemão, passiva:

Quando cheguei na escola, os alunos estavam agitadíssimos, Wallace, uma bicha preta de 14 anos, havia “saído do armário”. Dizia para todos que estava “ficando” com um outro aluno da escola. Wallace se dizia candomblecista, era altamente criativo, cheio de vida, energia e queria ser estilista ou desenhista. Assim que Wallace contou a novidade em sala de aula, os demais alunos começaram a gritar: “Seu preto viado!”; “Além de preto, é viado!”; “Olha aí, está desmerecendo a raça, essa bicha preta”.

Os gritos e os comportamentos agressivos dos demais estudantes denunciavam várias coisas, dentre elas de que o racismo leva o homem negro a ser eclipsado sob o estereótipo da virilidade, da força física, da aptidão aos esportes, do apetite sexual insaciável e do pênis hiperdimensionado, ou seja, o negão. O racismo faz com que o homem negro fique aprisionado a uma objetificação e biologização que o limita da racionalidade cultural (ROSA, 2006). Além do mais, como irá dizer Faustino (2014):

O homem negro deve ser “macho ao quadrado” em todas as situações exigidas, e só a partir desses atributos será reconhecido […] a própria afirmação do subalterno não prescinde dos atributos oferecidos pelo opressor, a ausência ou a deficiência de algum elemento relacionado ao corpo terá consequências catastróficas para a identidade deste homem. (FAUSTINO, 2014, p. 86).

Sob a constituição do negão, também veremos incidir a homofobia, uma vez que, “se o estereótipo do homem negro viril e superdotado sexualmente é utilizado para afirmar sua cis heterossexualidade, também o é para negar a sua homossexualidade” (OLIVERIA, 2017, p. 20). Podemos perceber que as bichas pretas estarão na confluência dos processos de desigualdade provocados pelo racismo e pela homofobia. No entanto, a homofobia não irá funcionar apenas como um dispositivo discursivo, baseado na relação direta entre negritude e heterossexualidade, para formar o negão. A homofobia, para esses meninos, funcionará como um instrumento pedagógico capaz de denunciar os “deslizes” da “masculinidade vacilante” e “enquadrar” o jovem aos ditames da masculinidade hegemônica (BORRILLO, 2009).

Marcelinho chegou muito triste em sala de aula e, naquele dia, ele veio acompanhado de sua mãe. Assim que a responsável deixou o aluno em sala, ela me disse: “Hoje ele vai ficar mais comportado porque ele apanhou! E já sabe que irá levar uma surra, se eu receber mais reclamações sobre o mau comportamento dele. E se continuar andando igual a um “viadinho” vai apanhar mais ainda. Porque é melhor antes sofrer as consequências pelas minhas mãos do que pela mão dos outros”.

A homofobia ganha, dessa forma, contornos curriculares institucionais (CAETANO, 2016), pois faz parte das dinâmicas pedagógicas debatidas em salas de aula, está presente na atuação de pais e profissionais da educação; está presente na fala, no comportamento e nas “brincadeiras” entre os alunos. É ensinada por meio dos silenciamentos curriculares e/ou gritos esquizofrênicos das verdades sexuais ensinadas por meio dos conhecimentos universalizados com as escolas. Como aquela mãe deixa bem claro em sua fala, ela mesma prefere “corrigir” seu filho. Ela sabe que a correção também poderá vir pela mão de outros e a escola já começou o seu investimento.

Dessa forma, compreendemos que a homofobia é algo curricularmente institucionalizado, aceitável e que culpabiliza o agredido. Aqui, podemos voltar à fala dos “negões” que fazem sexo com outros homens. Em suas falas, Daniel, Pedro e Tiago deixam evidente que, apesar de se relacionarem sexualmente com outros homens, primeiro, eles continuam sendo machos e, posteriormente, (des)qualificam o comportamento dos homens afeminados como sendo feios, exagerados e exibidos. Como se estivessem passando dos limites do que seja aceitável, como fizera a diretora da escola de Marcelo, (re)afirmando a necessidade do “sapatinho”, como sendo a melhor opção para não se converterem na bicha preta.

A homofobia estabelece uma espécie de “vigilância do gênero” (BORRILLO, 2009), que aponta os “desvios” e os “deslizes” da masculinidade frente à feminilidade e vice-versa, atuando reiteradamente, a fim de lembrar aos sujeitos a performatividade “certa” do gênero. Dentro dessa perspectiva, segundo Caetano (2016), a instituição escolar pode se configurar como um espaço de produção de opressões onde exista a preocupante violência contra as dissidências, seguindo sempre o “esculacho”, o tapa e a surra:

Ednaldo era uma bicha preta, tinha 16 anos e era famoso por ser um exímio bailarino. Sua principal diversão, nos finais de semana, era colocar seu “shortinho” e ir “até o chão” nos bailes que aconteciam na comunidade. Dessa vez, o “baile” aconteceu na escola. No meio das músicas caipiras dos festejos de julho, eis que surge uma música da Beyonce. No término da apresentação, Ednaldo foi aplaudido por todos. Terminada a festa, quando o menino voltava para casa, a bicha preta usando seu “shortinho” foi surpreendida por um grupo de alunos que a espancou. O menino ficou desacordado e teve que ser levado por moradores para o pronto socorro da comunidade.

As experiências narradas nos mostram a fragilidade e a vulnerabilidade em que se encontra a vida de jovens negros nas periferias. Se pararmos para observar com atenção, elas nos mostram o fim que já é destinado à bicha preta favelada. Se retomarmos uma das falas dos negões, veremos que Daniel diz que não consegue pensar na relação entre o negão e a bicha, mostrando a impossibilidade de existência da performatividade negra deslocada do “negão”. Já Pedro e Thiago vão deixar evidenciar o estranhamento e a total falta de senso de gays em ficarem “dando pinta”. A mãe de Marcelo e a aplicação da corrigenda no menino mostram que a expressão popular “mereceu cacete!” é algo presente nas vidas desses sujeitos da periferia. A mãe sabia que isso poderia acontecer com seu filho, caso ele continuasse se comportando daquela forma. Provavelmente, o que aconteceu com o Ednaldo serviu de exemplo para vários outros Wallaces ou Marcelinhos.

As narrativas dos docentes, que balizaram os debates no texto, nos mostram que somos repletos de experiências autoetnográficas que servem como pontos reflexivos de nossas práticas pedagógicas, como nos estimularam fazer Ellis e Adams (2014). As narrativas “viram de ponta a cabeça” a lógica de conhecimento que predomina sobre as masculinidades, mostrando-nos, assim, possibilidades outras de se fazer circular o conhecimento dentro destas nos espaçostempos das escolas. Para chegarem a essa lógica outra, os professores se lançaram nos cotidianos das escolas buscando mergulhar na realidade apresentada e interpretada a partir dos sentidos produzidos com as vozes, os sabores e os odores, tocando os tecidos das relações, bem como vendo a escola e os meninos, com suas performatividades, naquilo que estavam dispostos a mostrar e os professores, aptos a ver, como nos ensinaram Bossle e Neto (2009). E como não deixar o olhar ficar capturado por aquilo que já estamos acostumados a ver em nossas andanças pelas escolas? Como prender a atenção de nosso olhar para aquilo que não queremos ver?

As linhas abissais que se instauram nas relações curriculares nos remetem a processos de negação, silenciamento e invisibilidade. Com os negões e bichas pretas, foi possível atar os abismos que separam, por exemplo, as masculinidades; performatividades sexuais (ser ativo e ser passivo); força física e sensibilidade. Com suas histórias e através das performatividades de seus corpos, vimos pessoas em confluência com tais atributos. Vimos sujeitos que têm toda a potência física de seu corpo negro, mas, ao mesmo tempo, possuem a sensibilidade para desenhar seus croquis e encantar a todos nas aulas de Artes. Vimos outros que, simultaneamente, dançam com seu shortinho, mas também partem para briga contra os ataques homofóbicos. E, por fim, também vimos aqueles, que por mais que sejam um negão pegador, têm medo de assumir seus relacionamentos, esporádicos que sejam, com outros meninos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As narrativas e as experiências autoetnográficas nos mostraram as diversas nuances e a rica polissemia que está contida nos cotidianos das escolas por onde passaram os docentes e como elas se desdobraram em vidas fora e dentro delas. Assim, os autores procuraram sentir/ouvir/tocar naqueles que, na maioria das vezes, são silenciados e excluídos pelos “currículos oficiais” de suas redes, trazendo-nos, assim, fazeressaberes nos movimentos curriculares tecidos nos cotidianos, muitas das vezes não nos lugares “oficiais” das escolas, como, por exemplo, nas salas de aulas, mas na miudeza de lugares desprestigiados pelas lógicas da colonialidade curricular: nas conversas pelos corredores, no pátio, nas rodinhas de conversa entre estudantes, nas pichações dos banheiros e conversas amigas entre professores e estudantes etc.

A lógica aplicada nos currículos esteve centrada em relações complementares e assimétricas entre os sexos (masculino e feminino), nas quais os relacionamentos aceitáveis são formados com base no sexo biológico (macho e fêmea). Desse modo, as demais identidades sexuais, principalmente a bicha preta, foram, frequentemente, negadas e posicionadas como as outras do outrem, fato que auxiliou, em muito, a construção de redes de vulnerabilidade e violência a que estão submetidas.

Os movimentos curriculares cotidianos, que emanam dessa imensa rede de saberesfazeres, muitas das vezes ignorados por olhos/ouvidos/tatos tão bem apurados - e por que não, bem treinados - pelas percepções oficiais, serviram para propor um olhar outro sobre a educação, quando envolve as agendas de gênero, raça, sexualidade, territorialidades e masculinidades. Questões que, na maioria das vezes, são silenciadas por práticas e por um currículo oficial.

Por fim, foi preciso propor um olhar outro que lançasse mão dessa rede de saberesfazeres, que emanasse do cotidiano da escola, para propormos - ou simplesmente pensarmos - em modos como os movimentos produzidos com os currículos produzem modos de enfrentamentos à força reguladora impulsionada pelas normas.

4Este termo, de acordo com Walsh (2009), seria o posicionamento de fronteira, que não quer dizer necessariamente contraposição ou alternativa, mas probabilidades diferentes, com procedências contra-hegemônicas na contra-hegemoneidade.

5O cisheteropatriarcado (de cis[generidade], hetero[ssexualidade] e patriarcado) tem se caracterizado como sendo um sistema sociopolítico no qual a heterossexualidade cisgênera (sujeito que se nomeia, em todos as dimensões e sentidos de sua existência, com o seu gênero designado no ato de nascimento) e o gênero masculino têm supremacia sobre os demais formas de performatividades de gênero.

6Destacamos que os nomes e dados produzidos nas duas escolas foram misturados e alterados de modo que não se pudessem identificar os sujeitos, as instituições e localidades. Essa decisão foi tomada por razões éticas.

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Recebido: Agosto de 2019; Aceito: Dezembro de 2019

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