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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.20 no.59 Rio de Janeiro oct./dic 2019  Epub 21-Ene-2020

https://doi.org/10.12957/teias.2019.45315 

Outras epistemologias e metodologias nas investigações sobre currículo

ASSIM COMO VIVER, RESISTIR NÃO É PRECISO1? PÓS-UTOPIA E CURRÍCULO EM TEMPOS SOMBRIOS

JUST LIKE LIVING, RESISTING IS NOT PRECISE? POST-UTOPIA AND CURRICULUM IN DARK TIMES

¿ASÍ COMO VIVIR, RESISTIR NO ES NECESARIO? POST-UTOPÍA Y CURRÍCULUM EN TIEMPOS OSCUROS

Maria Inez da Silva de Souza Carvalho2 

Julio Bispo dos Santos Junior3 

2Doutora em Educação. Professora Titular da Faculdade de Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA)

3Doutorando no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Professor Assistente II Universidade Federal de Alagoas (UFAL)


RESUMO

Este artigo apresenta o primeiro movimento e anuncia os demais de uma pesquisa que tem como intenção discutir possibilidades de atribuições de sentido outras para a interface currículo/utopia. Tensiona produções de sentido, ao longo da geo-história, para o termo utopia, perseguindo pontos de fuga, descentração e desconstrução através de pesquisa bibliográfica que é fundante para o estudo da interface em foco. Para tal, o texto traz interrogações, remissivas a Fernando Pessoa, sobre a “precisão” de resistir ao conservadorismo do tempo presente. Ante os aparentes paradoxos, propõe-se uma resistência atualizada que potencialize outra fixação de sentido, ao menos em currículos com pretensões não iluministas, a pós-utopia.

Palavras-chave: Utopia; Currículo; Resistir

ABSTRACT

This article presents the first movement and announces the next steps of a Research that aims discuss possibilities of another attributions of sense to the interface curriculum/utopia. Making tension over sense productions, along of geo-history, to the term utopia, chasing leak points, decentering and deconstruction through the bibliographic research that is funding to the study of the interface in focus. To this, the text brings questions referring to Fernando Pessoa, about the “precision” of resist to conservativism of present time. Toward the evident paradoxes, are proposed an updated resistance that maximize another fixation of sense, at least in curriculums with not-illuminist pretensions to post-utopia.

Key-words: Utopia; Curriculum; Resist

RESUMEN

Este artículo presenta el primer movimiento y anuncia los demás de una investigación que tiene como intención discutir posibilidades de otras atribuciones de sentido para la interfaz currículo/utopía. Tensiona producciones de sentido, a lo largo de la geo-historia, para el término utopía, persiguiendo puntos de fuga, descentración y deconstrucción a través de la investigación bibliográfica que es fundante para el estudio de la interfaz en foco. Para tal, el texto trae interrogantes, remisivas a Fernando Pessoa, sobre la “precisión” de resistir al conservadurismo del tiempo presente. Ante las aparentes paradojas, se propone una resistencia actualizada que potencie otra fijación de sentido, al menos en currículos con pretensiones no iluministas a la post-utopía.

Palabras Clave: Utopía; Currículo; Resistir

Os caminhos/desvios dos currículos escolares, sejam como estudo descritivo da realidade e/ou prescritivos do agir e em suas concretas objetivações, são singulares, provisórios, híbridos, caleidoscópicos; pois densa e intensamente marcados pelo tempo/espaço presente das produções/ações.

Como nosso momento presente, quer em uma escala global quer na vivência nacional, se apresenta um tempo conservador - para muitos um tempo sombrio - surge a precisão da resistência. Mas nos perguntamos: resistir é preciso?

¡No passaran! Expressão-lema popularizada pelos republicanos na luta contra os franquistas na Guerra Civil Espanhola (1936-1939) e título de poema de Octavio Paz (1936) que já comemorou mais de 80 anos, nos convocam desde sempre a resistir:

Como la seca espera de un revólver

o el silencio que precede a los partos

escuchamos el grito;

habita en las entrañas,

se detiene en el pulso,

asciende de las venas a los labios:

No pasarán.4

Mas ... resistir é preciso? Vejamos os dicionários: opor-se, não ceder, agir na defesa do que é seu e, também, conservar-se. (FERREIRA, 2010; RESISTIR, 2018).

Nesta introdução, ao tempo que demarcamos nossa oposição, nossa não cessão, nosso agir em defesa do nosso, focaremos no significado conservar-se intentando problematizá-lo. Problematizar é quase sempre arquitetar dilemas. Não temos aqui, o dilema como “premissa dupla”, mas como raciocínio conversível e insolúvel (ABBAGNANO, 2007) engendrado pela indecibilidade, este significante emprestado da informática que indica a não existência de uma resposta “sim ou não” para um algoritmo. Assim sendo, ao problematizarmos o significado conservar-se temos um conflito.

Conflito expresso pelo dilema que se interpõe entre: a. defender o que é nosso contra “forças externas”, o que se traduz em uma luta por conservar e b. compreender o que é nosso como passível de críticas internas. Em outras palavras: o conflito de defender, sem tornar acrítico, o objeto de defesa.

Como no raciocínio conversível a questão não é descobrir o caminho correto, mas tomar decisões; anunciamos, para o debate deste conflito, um deslocamento da clássica e polarizada via esquerda-direita. Para tal, apoiamo-nos em recente artigo do jornalista Sergio Rodrigues (2019) que avança neste deslocamento:

Não é que a polaridade esquerda-direita já não faça sentido. É que hoje os eixos principais do debate são outros: democracia-autoritarismo, ciência-misticismo, razão-irracionalidade, liberdade-censura, arte-filistinismo, civilização-barbárie. (RODRIGUES, 2019).

Com base em entendimentos dicotômicos destes eixos (para usarmos o termo da citação5), estaríamos resistindo para conservar a democracia, a ciência, a razão, a liberdade, a arte e a civilização e nos opondo e não cedendo ao autoritarismo, ao misticismo, a irracionalidade, a censura, ao filistinismo e a barbárie.

Tomemos o filistinismo. Termo que remete a filisteia que é o território-cenário bíblico da história de David e Golias na qual o filisteu Golias, gigante considerado imbatível, foi morto pelo imberbe David. Presença recorrente na história da humanidade, a metáfora de David e Golias, revelada como a vitória do “espírito”, torna-se, no mundo moderno, corrente estética filosófica de crítica à burguesia emergente. É termo referente àqueles que têm os costumes, os hábitos e o caráter, ou o modo de pensar de um filisteu manifestando-se em uma atitude anti-intelectual que socialmente subestima e despreza a arte, o belo, o intelecto e a espiritualidade. O filisteu é uma pessoa de mente presunçosa, limitada, que possui uma moralidade convencional cujos pontos de vista materialistas e gostos indicam falta e indiferença dos valores culturais e estéticos. (FERREIRA, 2010; FILISTEU, 2018).

Interessa-nos, aqui, lembrar que modernamente o termo Philister, filisteu em alemão, é usado primeiramente em 1689, na cidade de Jena, por estudantes universitários em conflito com a população local. Pejorativamente, os universitários aplicam o termo para descrever uma pessoa que não foi formada na universidade.

Portanto, é alentado que, em tempos de negação das mais diversas intelectualidades, as discussões em torno do eixo arte-filistinismo se potencializem. Entretanto, a preocupação, aqui, é que no confronto com as ideias que rechaçam os valores da academia, possamos agir como os críticos oitocentistas do filistinismo e tomemos atitudes elitistas clássicas que se distanciem dos intentos da universidade do séc. XXI. No Brasil, a expansão das universidades nas duas primeiras décadas deste século, provocou rupturas/expansões/afrouxamentos nos sentidos tradicionalmente atribuídos a intelectualismo/elitismo. E mesmo antes, ainda no século XX, já tivemos, mesmo que em outros moldes, a “invasão” da universidade por outras artes, outras culturas em uma disputa discursiva por legitimação. Disputa revelada através da díade alta cultura/cultura popular (de massa) por Boaventura Santos em seu seminal livro Pela Mão de Alice (2013) e em outras produções sobre a universidade, como por exemplo, a Universidade do Século XXI (2011). Entendemos que esta Díade, frente as atuais negações da cultura, deva ser reativada, sofrer um descolamento.

As trilhas deste deslocamento têm que ser intensamente problematizadas internamente.

Lembremos Derrida:

Cuidado com os abismos e as gargantas, mas cuidado também com as pontes e as ‘barriers’. Cuidado com o que abre a universidade para o exterior e para o sem-fundo, mas cuidado também com o que, fechando-a em si mesma, não criaria senão um fantasma de cercado, a colocaria à mercê de qualquer interesse ou a tornaria perfeitamente inútil. Cuidado com as finalidades, mas o que seria uma universidade sem finalidades? (DERRIDA, 1999, p. 155).

Não sendo assim, frente a agressão externa, não será difícil que com a identificação de um ressurgimento de filisteus, nos fechemos mais uma vez em nossa torre de marfim.

Preocupa-nos, também, os eixos ciência-misticismo e razão-irracionalidade. Temos, hoje, amplamente difundidas, e com certo apoio, posições simplórias que beiram ao risível, como por exemplo, a defesa que a Terra é plana. Não há dúvida, resistir é preciso! Mas como ficam as discussões sobre o conhecimento científico como único saber legítimo? Como fica nosso abraçar as abordagens teórico-metodológicas críticas ao cientificismo negador de outros saberes como o pós-estruturalismo e o pós-fundacional? Como fica a convivência acadêmica contemporânea da razão com a emoção presentes em fundamentais estudos, como por exemplo, uma das mais importantes obras do Prof. Milton Santos, A Natureza do Espaço - técnica e tempo razão e emoção (2014), que já no título indica uma abertura para além da razão? E o clássico Adeus a Razão de Feyerabend (2010)? Como ter conhecimento fecundo sobre a geo-história desconsiderando os misticismos que sempre a povoaram, como bem lembra Marcelo Gleiser no livro a Dança do Universo (2006)?

Que nossa posição contra a barbárie não seja uma louvação ingênua da civilização entendida como única.

Voltemos a díade considerada por Boaventura Santos - alta cultura/cultura popular (cultura de massa). Não estaria ela, nos dias de hoje, esmaecida, volatizada? Frente a este questionamento, propomos para este trabalho, uma radical atualização, com a criação de um outro par: fidalguia/primarismo.

O processo de construção teórica desta nova díade tem início com exercícios de entendimento deste tempo de ataques conservadores à universidade e à intelectualidade, no qual vivemos. Em um perceber primeiro, se destaca o recrudescimento, a nosso ver anacrônico, da díade esquerda/direita, antevista como dicotomia. Em nossas lidas diárias midiáticas, descobrir o artigo de Sérgio Rodrigues, citado no início, levou a um insight: talvez operar com díades outras - ciência-misticismo, razão-irracionalidade, arte-filistinismo, civilização-barbárie, alta cultura-cultura popular - pudesse propiciar um melhor diálogo com a natureza das coisas e traçar um cenário potente.

E assim foi. Sabedores que os pares opostos nos quais estávamos trabalhando podem emergir teoricamente a partir de diversas abordagens, trabalhamos classificando estas diversas emersões como dicotomia, eixos e/ou díades (ver nota de rodapé 2), processamos teorizações. Foram elucubrações que remeteram a questionamentos anunciados desde o início deste texto que ao atingirem ponto de saturação anacronizou cada uma das díades da investigação ao revelar a inoperância, mesmo que parcial, para a compreensão do tempo presente.

O plano de imanência no qual estávamos operando passa a exigir outros pontos de fuga. Havia algo que transversava tudo, desconstruindo, por exemplo, a polarização alta cultura - cultura popular. Não é nem mesmo uma intersecção, mas formas de emergências outras nas quais as distinções tradicionais se diluem, e fomos atrás de inventar (no seu sentido semântico de trazer a luz o que já existe) o par que agora parecia-nos o mais plausível para a compreensão deste espírito de nosso sombrio tempo.

Faltava nomear e foi uma entrevista com o músico Paulo Lima (2019) que revelou a palavra. Dizia ele: pode haver na pobreza, fidalguia. Coisa (fidalguia) que pode estar presente tanto na alta cultura como na cultura popular, tanto na ciência como no misticismo, na arte, na razão, na emoção. Então, dos diversos significados dicionarizados de fidalguia focamos em dois: nobreza de caráter e distinção.

E o termo oposto? Se optamos pela fidalguia como distinção, buscávamos o que se apresenta sem distinção, portanto, sem destaque, ou seja, simplório e não sofisticado. Chegamos, em um primeiro momento, a vulgaridade. Mas ... não pudemos silenciar frente ao reconhecimento que na “não distinção” da vulgaridade pode haver beleza. Vejamos o sentido dado por Tertuliano, apontado por Abbagnano (2007): Vulgar porque comuns, co-muns porque naturais, naturais porque divinas. Então, qual dimensão do vulgar nos contemplaria? E chegamos a primarismo o entendendo como o primário que perdeu a beleza. Portanto, aqui, o confronto é entre o vulgar como primarismo simplório e a fidalguia como distinção.

Não se pretende aqui criar dicotomias - fidalguia e primarismo - mas, nesta feita, ir além e buscar não o primarismo do outro, mas o primarismo que há em nós. O ponto da elucubração que atinge nosso específico objeto: currículo escolar.

Por todo o dito, frente ao clamor conservador reacionário contra formas curriculares consideradas mais progressistas, duas necessárias perguntas: a. o quanto nossos projetos e ações curriculares têm sido conservadores e b. o quanto fizemos que permitiu a emergência deste clamor conservador.

Quanto ao questionamento a. o quanto têm sido conservadores nossos projetos, segue citação de artigo de um dos autores deste texto, que ilustra a perda de distinção (fidalguia) curricular em tempos recentes.

Assim, adentramos em um novo século em que se ouviam os sinos dobrando pela ‘morte’ de certas imposições. Já era possível, com certa tranquilidade, se usar a primeira pessoa do singular em textos acadêmicos em um claro abandono da neutralidade como princípio; escrevia-se a várias mãos (parecia fadado a prosperar iniciativas como NTC6 em que os autores se diluíam no coletivo); contávamos nossas histórias sem precisar nos esconder em anonimatos garantidores de pretensas imparcialidades; as experiências, em suas singularidades, ganhavam status científicos e muito mais.

... [Passado pouco tempo], novos e velhos ‘inimigos’ emergem, em sombrio cenário de muita criação imaginária e exageros. Gradativamente, o velho retoma; a dimensão conservadora se expande.

Ironicamente são as Novas (?) Tecnologias com seus sistemas digitais que, ao contrário do esperado, em não raras vezes, são obstáculos às mudanças (o tão conhecido: ‘o sistema não aceita’); medo de quem é outro, levantando bandeiras que já faziam parte do museu da história (ressurge a tradição, a família e a propriedade); a padronização dos estilos de escrita, fruto de uma crescente burocratização, para serem legitimados, fragmentam os textos encarnados. Isso, e muito mais. (CARVALHO, SALES, SÁ, 2016, 8-9).

O clamor conservador reacionário, também é nosso. Ele está na academia (quase) escondido em outras plumagens.

Quanto ao questionamento b. o quanto fizemos que permitiu a emergência deste clamor conservador, nos apoiaremos em discussão do livro, em prelo pela Editora, De volta para o futuro: em busca do tempo/espaço perdido nas lembranças (2019) que é o Memorial de um dos autores deste artigo.

Comecemos por uma preocupação levantada pelo citado livro: criticar por dentro, em um mundo dicotômico, pode ser interpretado como um pular para o outro lado. Hegemonia em qualquer escala, exige resistência. Neste caso, resistência a um mundo vulgar primarista, aonde quer que se localize, no qual há maniqueísmo, esquematismos grosseiros, e desejos de inversão do poder discursados como “revolução”.

Uma difícil resistência, pois a acusação - estar do outro lado - é comumente feita a quem trabalha com complexidade, a quem se nega a dicotomia. O campo do currículo para se estabelecer como espaço de criação, resistência e diversidade necessita vencer a síndrome do medo de parecer que se está do outro lado para que sejam possíveis deslocamentos teóricos outros, experimentos metodológicos outros e invenções epistemológicas outras.

Para tal, há de se reconhecer que não é raro se deparar com um esquerdismo vulgar presente nos processos de ensino e aprendizagem que permitiu a uma direita mais vulgar ainda, usando de generalizações desonestas, divulgar a existência de um cenário inverossímil.

Acrescentamos, também, que lutamos tanto para a politização dos espaços estudados e hoje temos o clamor reacionário da volta da impossível neutralidade. Tempos sombrios, tempos do inacreditável projeto Escola sem Partido. Escola sem partido é indefensável, facilmente derrubada com bons argumentos científicos. A pergunta que deverá emergir: o que fizemos na nossa ânsia de politização na escola para que ela (Escola sem Partido) pudesse surgir?

Se resistir é preciso em qualquer das duas atribuições poetizadas por Fernando Pessoa, será preciso, então, uma vez que estamos em um plano de indecibilidade, a partir de raciocínios conversíveis, fazer escolhas. Escolhas curriculares, perseguições pedagógicas em meio a tensão entre o plano cartesiano dos eixos aqui estudados e o plano de imanência morada de díades em linhas de fuga.

É importante, a realização de um deslocamento de sentido da ação direta, proposta por Boaventura:

A resistência tem de envolver a promoção de alternativas de pesquisa, de formação, de extensão e de organização que apontem para a democratização do bem público universitário, ou seja, para o contributo específico da universidade na definição e solução coletivas dos problemas sociais, nacionais e globais. (SANTOS, 2011, p. 57).

Radiando-a sempre, ecleticamente, com a ideia deleuziana de que o ato de resistência tem uma profunda afinidade com a obra de arte:

O ato de resistência possui duas faces. Ele é humano e é também um ato de arte. Somente o ato de resistência resiste à morte, seja sob a forma de uma obra de arte, seja sob a forma de uma luta entre os homens ... Não existe obra de arte que não faça apelo a um povo que ainda não existe. (DELEUZE, 1999, p. 14).

O currículo, então, como resistência artística, é apelo a um povo que ainda não existe.

Se o currículo é o apelo a um povo que ainda não existe como não reativar o clássico conceito Utopia? Mas como introduzi-lo em abordagens não finalistas, defensoras da contingência, da provisoriedade; sem ser paradoxal? São os questionamentos que trouxemos, de nossa pesquisa, para colocar em debate neste artigo.

“Utopias, distopias, pós-utopias na formação: o constituir-se professor” é o título da pesquisa que tem como intenção geral7: apresentar possibilidades de atribuições de sentido outras para a interface currículo/utopia. Esta intenção se dilui em 3 movimentos escalares que pretendem: 1. exaustar as atribuições geo-históricas de significar o termo utopia; 2. estudar a interface do termo utopia com currículo; 3. especular atribuições de sentido outras para a interface em estudo. Vamos às argumentações.

SENTIDOS DA UTOPIA: UM MERGULHAR GEO-HISTÓRICO PARA PODER PENSAR O CURRÍCULO

Os estudos sobre currículo, ao menos aqueles de específicas abordagens teórico-metodológicas, se vêm frente ao desafio colocado pela virada paradigmática às leituras essencialistas do mundo. Desessencializar os currículos, sejam nos estudos descritivos da realidade e/ou naqueles prescritivos do agir e em suas concretas objetivações, nos leva a abandonar alguns conceitos, a reativar outros e, mesmo, a questionar a própria ideia de conceito. Haverá um sentido nas coisas, mesmo que tempo/espacialmente marcado, preestabelecido? Assim considerando, tomamos, em nossa investigação, a coisa utopia - o sonho da possibilidade de um outro - como um significante vazio e realizamos um voo panorâmico nas fixações de sentido para este significante.

Foi uma pesquisa bibliográfica com o intento de, ao conhecer os caminhos do significante utopia, sublinhar uma atribuição de sentido contemporânea para a interface currículo e utopia.

O percurso compreensivo perpassou por autores, períodos e interpretações sobre processos sócio-históricos demarcados no campo político como disputa linguística, que negociam sentidos entre características e forma, intenção e objetivos, lugar e temporalidade. Para este voo panorâmico, de forma quase natural, começamos por Morus, mas com o adendo de que os sonhos utópicos não tem início com o livro do século XIV, Utopia.

O surgimento da palavra marcada pela negação do lugar, a Utopia (Morus, 2012), u-topos[não-lugar], e a criação do conceito ligado a idealização, organização política e social imaginária em contraposição à sociedade do século XVI, demarcando um tempo futuro, improvável e hipotético, foram potentes para fomentar a imaginação da cidade e o sonho da sociedade perfeita. Assim, a ilha imaginária de Utopia, surgiu em reposta a um tempo de:

[...] tumulto da reforma protestante, contra reforma católica, das lutas políticas e religiosas de facções que se degladiam no parlamento e em campos de batalha no período do surgimento de monarquias absolutas dos tudors, ou de Henrique VIII que preferia a adulação, a corrupção e a mentira em vez da prudência e verdade, Thomas More inventa uma sociedade ideal, na qual reinam a liberdade e a igualdade, a paz e a ordem, a justiça e a lei (CHAUI, 2008. p.09).

Na obra Utopia (MORUS, 2012), o personagem Rafael Hitlodeu finaliza a sua fantástica descrição afirmando que “reconheço de bom grado que há na república utopiana muitas coisas que eu desejaria ver em nossas cidades. Que desejo mais do que espero ver.” (p.154). Hitlodeu é o porta voz de Morus, sua representação literária, que ao vivenciar os dilemas de seu tempo, dá voz, pela literatura quase fantástica, às suas idealizações na hipotética cidade que tem sua peculiar ideia de perfeição. Assim é Utopia, uma ilha imaginária, um antever personificado, uma idealização de uma nova sociedade isenta de problemas políticos, sociais e éticos que afligiam seu tempo; é o U-topos, o seu não-lugar, o espaço distante que existe na imaginação: uma utopia.

Utopia que surge como pensamento imaginário, condição de desejo e sonho por um mundo melhor, por uma realidade outra, sem a pretensão do realizável, que alimenta e permeia muito do que se tem denominado por força da expressão. Entre sentidos possíveis e passíveis de uma aproximação compreensiva, há desde o significado de país imaginário (FERREIRA, 2010) desterritorializado, ao de energia para “transformação da realidade” (ABBAGNANO, 2007, p. 987) e/ou o de horizonte inalcançável que nos move, nos toca, que nos faz caminhar; sociedade totalmente nova que intenta tornar-se o absolutamente outro (CHAUI, 2008).

Das cidades ideais esboçadas em utopias literárias aos totalitarismos do século XX (WOLF, 2018), os sentidos de utopia bailam entre o ideal inalcançável, posto que presume uma tal perfeição, e a existência de outras utopias que se propuseram a tentar realizar sua ação, destinadas a lutar indefinidamente contra um mal idealizado e, por assim dizer, eleito. Desta forma:

E desde a República de Platão, o mal na comunidade política tem duas faces: ou é Impuro ou é Desigual. Portanto, a Cidade deve ser: ou uma comunidade de iguais, cuja unidade perfeita é garantida pelo fato de que tudo é comum entre eles; ou uma comunidade pura, cuja unidade perfeita é garantida pelo fato de que todos tem a mesma origem. Define-se ou pelo comum das posses (nada deve pertencer a ninguém, mas a todos) ou pela identidade dos seres (ninguém deve ser estrangeiro): o comum que temos (ou deveríamos ter) ou aquilo que somos (ou deveríamos ser). Naturalmente, nessa união de idealismo revolucionário e realismo programático, o Bem absoluto, o Puro, o Comum, é uma idealidade fora do alcance: o combate mortal contra o mal torna-se obsessão dos regimes de terror (WOLFF, 2018, p. 09)

A desconfiança sobre este Bem ornado no político, imersos em incertezas sobre suas intenções, nas discrepâncias entre a utopia social e o Socialismo Real que ruiu frente a um capital aparentemente triunfante, para alguns autores, surge um tempo e lugar onde a utopia não mais se sustenta como ideal de cidade ou como ideal político. É neste tempo e contexto que Russel Jacoby (2001) escreve sobre O Fim da Utopia - política e cultura na era da apatia, para constatar o fim de um conceito. Assim, O fim da Utopia é marcado por uma narrativa do tempo presente de esgotamento das alternativas políticas, borramento das diferenças mais marcantes entre direita e esquerda, hibridismos, miscigenações e estreitamentos por vezes contraditórios. Este tempo presente, momento em que a esquerda busca reencontrar-se ou ressignificar-se ante o ideal de igualdade e equidade, e a direita segue, por enquanto triunfante, com seu discurso também ideológico, marcado prioritariamente pela centralidade nas questões econômicas secundarizando as da igualdade social, é que nos conduz a uma outra interrogação: Será o fim da Utopia ou o esgotamento de um conceito que já escapa às dicotomias, borrando-as?

Na tessitura entre conceitos e sentidos que bailam, as negatividades da ideia de utopia surgem bem antes de nosso tempo presente. O Racionalismo de Karl Popper (1902-1994) na obra Conjeturas e Refutações (2018), demarca um sentido outro, pragmático e racionalista que estabelece uma relação intrínseca entre Utopia e Violência, destacando que há uma correspondência íntima entre conceitos e práticas sociais. O autor considera que o utopianismo é um pseudoracionalismo e, desta forma, distante da ciência e de tudo o que se produz como consciência, liberdade e progresso. O racionalismo de Popper expõe o perigo e a contradição do pensamento utópico que pode conduzir ao personalismo, tirania e ausência de liberdade quando os sábios e iluminados planejam e assumem, estratificam por vezes a estrutura social, estabelecem controle sobre a alegação da lei e da ordem como a acertada opção para o povo. Sendo assim, pela utopia, mesmo que ornada por boas intenções, paradoxalmente, impõe-se um modelo com a premissa do bom, justo e correto ao preço da exclusão da liberdade e do controle em nome de uma ideia de progresso pela ordem.

Há uma dança de sentidos em torno do significante utopia que, com o movimento, ressignifica-se e atualiza-se; são pontos de fuga e de encontro imbricados à condição humana de existir e resistir. Presente neste movimento, Gregory Claeys na obra Utopia: a história de uma ideia (2013), retoma a Utopia como resultante da concepção de um presente, passado e futuro idealizado, em superação à normalidade, ao cotidiano, ao controle, como aquiescência à brevidade e limitação de nossa condição humana, pois “quando nossas vidas neste mundo se deterioram ou são ameaçadas, reagimos cultivando um sentido reforçado de harmonia familiar e identidade étnica, nacional e/ou religiosa” (CLAEYS, 2013, p. 08). Assim, Utopia é também a busca pela perpetuação da vida, busca por sentido, impulso de sobrevivência, desejo de progresso, explorando o espaço entre o possível e o impossível. Mesmo assim, não seria está uma tentativa de controle, de projetar o futuro para a seguridade humana? Uma evidente tentativa de transcendência?

Presença, também recorrentemente, nos movimentos de fixações de sentido para utopia, ante os sonhos de futuridade na literatura, no cinema, nas artes, estão as representações de tentativas de perpetuação no mundo contra nossa finitude. A utopia é uma ideia que transborda, quer seja na vida ou na ficção, reinventa e reinventa-se e, por muitas vezes, reduz a distância entre o ficcional e utópico que desaparece nos avanços da ciência; ou ainda o desaparecimento de sonhos ideais, dentre idealizações que não se materializaram ou não alcançaram um esperado êxito na modernidade. Assim, concordamos com o cineasta Fernando Birri (1925-2017), quando nos diz que utopia é movimento entre o realizável ou não, movimento que atualiza esta condição de existir, posto que “[...] por mucho que yo camine, nunca la alcanzaré. ¿Para qué sirve la utopía? Para eso sirve: para caminar.8” (apudGALEANO, 2011, p.230).

A Utopia como movimento, projeção e projeto para uma realidade outra que se idealiza na existência (ZIMMERMANN; SCHÜTZ, 2012), é impulsionada pela fantasia que aquece o espírito utópico por uma realidade outra; porvir. O espírito utópico é apresentado como uma imaginação que se estabelece entre o sonho, idealização, projeção e a vida, denominada por Teixeira Coelho (1989) como imaginação utópica. É resistência e reação individual ante a uma realidade que se apresenta desfavorável, constituindo desejos outrora inconscientes, tornando-os projeção que se propõe ao jogo de possibilidades, em direção ao irrealizável. Nesta interpretação, a utopia não está fadada ao fim, ou apenas aos dualismos que alimentaram seu sentido na modernidade, mas, sim, abertura a outras possibilidades compreensivas capazes de atualizar sentidos.

Neste sentido, a socióloga inglesa Ruth Levitas (2008), da Universidade de Briston e membro fundadora da Utopian Studies Society (Associação Interdisciplinar Europeia para estudos sobre Utopia, fundada em 1988), em sua obra The Concepet of Utopia (2010), atualiza a ideia ao defender a utopia movida pelo desejo que fomenta a prática e aspira por um mundo melhor: é projeção, projeto e possibilidade entre o imaginário e o real, desejo e principalmente, realização; também movimento. Retira a utopia do campo do apenas imaginário para o espaço de possíveis que se materializam em ações, inspiram e impulsionam práticas, e, por que não afirmar, aproximam a ideia de utopia à de currículo.

Em sentido contrário, as utopias antigas rejeitavam a ideia de Utopia como realização, posto a impossibilidade da perfeição. Dos Campos Elísios na Odisseia de Homero (século IX a.C.); ao Jardim do Éden perdido pelo pecado original na Gênesis -Bíblia Cristã; Mourus com a cidade de Utopia em 1516; a sociedade ideal da Cidade do Sol de Capanella imaginada em 1606; os avanços científicos idealizados na obra Nova Atlântida de Francis Bacon em 1926 até algumas utopias contemporâneas que tem em comum o desejo ancorado em um passado de glória, ora na angústia de um futuro apocalíptico traçado pela imperfeição humana; ou um presente imperfeito e um não-lugar idealizado como espaço de realização imaginária (CIORAN, 2011; CLAEYS, 2013; WOLFF, 2018). Utopia, nesta compreensão, é a expressão da vontade, numa existência desejante sem perspectiva de êxito, não será determinismo ou estagnação, será ato de esperança e sofrimento (CIORAN, 2011), tecido por muitos que, a elaboram como possibilidade de aceitação e/ou enfrentamento das dificuldades que se apresentam no seu tempo presente.

Neste movimento, temos a crítica de Deleuze e Guatarri (1992) que questionam a utopia como conceito vinculado à história, à ideia de evolucionismo, à concepção de progresso, à ideia de democracia pelo apaziguamento e/ou extinção de conflitos, à busca incessante do lugar algum, lugar bom, que nunca se alcança, permanecendo lugar-nenhum (CIORAN, 2011; ZIMMERMANN; SCHÜTZ, 2012). É justamente na ideia do inalcançável proposta pelos autores, que nos interrogamos sobre esta polissemia conceitual quando a Utopia, entre o impossível e o possível, demarca no imaginário as condições para projeção, projeto e realização, criando/recriando espaços e períodos sem, necessariamente, atingir uma sociedade inteira (LEVITAS, 2008; LEVITAS, 2010; CLAEYS, 2013). Seriam estas as dimensões possíveis para se compreender e aproximar a ideia de Utopia e Currículo?

A Utopia e seus múltiplos sentidos, transbordam nas adversidades do tempo, pois tal qual o pensamento indomável e incontrolável, necessita criar, descentrar e produzir sentidos outros como resistência no mundo. A fantasia, esperança e futuridade que interseccionam a utopia, a fazem dançar sem pudor racionalista ou desejo de causa ou efeito, apenas são, existem, manifestam-se naquilo que somente a criatividade nos faz capaz de resistir ante ao mundo, pois “inventamos modos alternativos de ser, outros mundos - utópico ou infernais. Reinventamos o passado e ‘sonhamos’ o futuro”. (STEINER, 2015, p.33). Sim, resistir é preciso!

A fatalidade do devir, das nossas futuridades, onde o amanhã feliz imaginado nas possibilidades do ontem não se concretiza, faz deste tempo futuro um lugar incerto e demanda, para muitos utopistas, a constituição de um termo que possa atribuir conceito a tudo que se afaste da ideia de utopia, não como sua negação, mas como o seu duplo significante do sonho aterrorizante, do amanhã feliz de ontem que não chegará, de um futuro em que nossos pesadelos mais intensos se concretizam e o movimento presente é de afastar a ideia de um possível inferno na terra.

À ideia de Utopia, com uma nova fixação de sentido, um outro conceito faz-se necessário para a compreensão desta condição de futuridade: Distopia. A Distopia surge quando a descrença no amanhã ou a previsão de um futuro assobrado por condições sociais, políticas, religiosas, econômicas, educacionais se apresentam, e destoam do ideal de bem-estar social, de igualdade, alteridade, de justiça e respeito à diferenças; dentre outras descrenças manifestas em futuros idealmente possíveis, assombrados pela ausência de um lugar bom, do sonho e da esperança nas realizações humanas. Nas obras distópicas, tudo de se mostra de forma opressiva, assustadora ou totalitária, por oposição à utopia (FERREIRA, 2010). Neste contexto, a díade utopia e distopia se materializa na construção de futuros possíveis, posto que:

O futuro, objeto de ocupação histórica, razão maior da experiência de hominização, tem sido a questão central que distingue utopia de distopia. É um nó que permanece atado à existência e que insiste em mobilizar sonhos e/ou arrefecer possibilidades. (BIANCHETTI; THIESEN, 2014, p.32).

A utopia e distopia, marcadas na existência, na condição de incerteza sobre o devir, no olhar para as possibilidades deste futuro como projeção e projeto, ressignificam-se: a díade utopia e distopia demarca o político nas divagações humanas de esperança ou de catástrofe. Utopia e distopia assumem neste campo a reação ou revolução (LILLA, 2018) como opção de movimento, pois tanto podem lançar um olhar para o passado saudoso e feliz (Jardim do Éden, Idade de Ouro, etc) com o desejo conservador e reacionário de um mundo no qual estruturas se desfazem e ressignificam-se. Ou trazem a esperança ou descrença no futuro, por sua ideia de passado, como o inevitável inferno na terra, o apocalipse, o colapso do planeta, a escassez de recursos e o comprometimento à vida ou ainda, a solução de tudo isto que nos preocupa, como futuros possíveis e distópicos.

Estes resultados, até aqui apontados, de exaustivo mergulho no termo utopia em si e de introdução às articulações discursivas, entre currículo/utopia, cuja estabilização e sedimentação têm atravessado séculos estão na base de produção de sentidos, hegemonizado no âmbito da modernidade, pautada pela lógica iluminista. Porém, é possível perceber que os borrões já transcendem muitos dos sentidos e significados apresentados e que a descentralização torna incerta cada uma das ideias apresentadas que por vezes se completam, complementam e ressignificam e por outras se embaralham, divergem, contrapõem, desconstroem, descentram-se. Assim nos interrogamos sobre o que transcende a estas ideias, sobre como estas reverberam sobre nossas projeções de futuridade, constituindo novos e imprevisíveis arranjos de futuro, quando qualquer consenso é instável (LOPES, 2013) de projeção, de projeto e realização. Ainda estamos falando de utopia e currículo ou demandamos de atualizações?

As ficções de futuridade como possibilidades imaginadas são a própria utopia necessária, mundos imaginários pelos quais a humanidade pode se nutrir de esperança escondendo-se de um mundo insatisfatório, seja pela própria limitação da condição humana ou por suas interações sociopolíticas que aviltam a existência. Cioran (2011) tece uma crítica voraz ao que ele denomina de “maníacos do progresso indefinido”, por tentar incansavelmente e sem sucesso, tornar vitoriosa a justiça neste mundo que, para o autor, é uma impossibilidade. Descrença e resistência se misturam ao que ele denomina, neste nosso tempo, de “revolução sem fé”, onde nos movemos para resistir, frente ao futuro que se esboça no agora. Assim,

Nossos sonhos de futuro são doravante inseparáveis de nossos temores. A literatura utópica, em seus primórdios, se rebelava contra a Idade Média, contra a alta estima que tinha esta pelo inferno e contra o gosto que professava pelas visões de fim de mundo. Dir-se-ia que os sistemas tão tranquilizadores de Campanella e de Morus foram concebidos com a única finalidade de desacreditar as alucinações de uma santa Hildegarda. Hoje em dia, reconciliados com o terrível, assistimos a uma contaminação da utopia pelo apocalipse: a ‘nova terra’ que nos anunciam adquire cada vez mais a figura de um novo inferno. Mas, este inferno, nós o aguardamos, consideramos mesmo-utopia um dever precipitar sua chegada. Os dois gêneros, o utópico e o apocalíptico, que nos pareciam tão dessemelhantes, se interpenetram, influenciam um ao outro, para formar um terceiro, maravilhosamente apto para refletir a espécie de realidade que nos ameaça e à qual, entretanto, diremos sim, um sim correto e sem ilusão. Será nossa maneira de ser irrepreensíveis ante a fatalidade. (CIORAN, 2011, p. 106-107)

CURRÍCULO E PÓS-UTOPIA

Se a coisa Utopia, neste primeiro momento da pesquisa, emerge como um anacronismo iluminista nas hostes curriculares, mas permanece potente no universalismo do sonho da possibilidade de um outro, nos resta, deleuzianamente, afirmar que somente o ato de resistência resiste à morte. Resistência a morte que nestes tempos de conservadorismo primarista, se realiza, apenas, se alguma profunda afinidade com a obra de arte, nos permitir a distinção da fidalguia.

E foi na arte, na importante obra - o poema pós-utopia - de Haroldo de Campos (1996) que encontramos o mote para nomear esta nova fixação de sentido para utopia: pós-utopia. São estes os novos rumos de nossa pesquisa que já iniciou uma segunda etapa denominada Uma nova utopia para currículos não iluministas: a pós-utopia.

1Título que remete a uma das frases eternizadas por Fernando Pessoa - navegar é preciso, viver não é preciso - onde poeticamente joga com dois distintos significados do termo, a saber, necessidade e exatidão.

4Como a seca espera por um revólver ou o silêncio que precede os nascimentos nós ouvimos o grito; viver nas entranhas, para no pulso sobe das veias até os lábios: Não passarão. (tradução livre).

5Entenderemos, aqui, sinteticamente que os pares opostos (termos opositores que pertencem ao mesmo plano) podem ser antevistos como: dicotomia - separação total -, como eixo - mais relacionado ao plano cartesiano e, como díade - mais relacionado a plano de imanência. A utilização alternada de um ou outro foi uma tentativa de fidelidade às circunstâncias de cada momento do texto.

6NTC - Núcleo de Pesquisa da Faculdade de Comunicação da USP - ECA, que publicava livros de autoria coletiva como, por exemplo, Pensar Pulsar. Para consulta, segue a referência: COLETIVO NTC. Pensar pulsar - cultura comunicacional, tecnológica, velocidade. São Paulo: Edições NTC, 1996.

7Por uma questão de coerência com a abordagem teórica adotada, optou-se pela substituição do consagrado termo Objetivo Geral por Intenção Geral. Objetivo é termo que devido ao apelo a determinação se distancia de nossa defesa da provisoriedade e da contingência.

8Por mais que eu ande, nunca o alcançarei. Para que serve a utopia? Serve para andar. [tradução livre]

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Recebido: Agosto de 2019; Aceito: Dezembro de 2019

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