Há muito tempo não programo atividades para “depois”.
Temos de parar de ser convencidos. Não sabemos se estaremos vivos amanhã. Temos de parar de vender o amanhã. (KRENAK, 2020, p. 12)
Nosso segundo número de 2020 está “no ar”. E esta é a melhor metáfora que encontramos no momento em que publicamos este número, quando nós - e o mundo - tem a vida em suspensão, partilhando globalmente das mesmas angústias e incertezas que, dessa vez, estão ancoradas no desafio de viver, de manter-se saudável, de não se contaminar em meio a uma pandemia a que o mundo não assistia fazia cerca de 100 anos.
Isolados, os que podem, em suas casas, guardando o distanciamento social recomendado para que a velocidade de contaminação não atinja a muitos ao mesmo tempo, pressionando os frágeis sistemas públicos de saúde, encontramos forças e energias para fazer com que nossa escrita, nossas reflexões, possam encontrar eco em leitores que, como nós, se ocupam em produzir criativamente para manter as ideias relativamente no lugar e não adoecer de outras formas de desequilíbrio orgânico. Por isso, Teias cumpre também esse papel, nesse tempo histórico absurdo.
Ouvimos e vemos lives, filmes, debates online, buscamos revistas, artigos científicos, interagimos com orientandos e com colegas, projetamos para um futuro... o que será, no entanto, esse futuro?
Sem saber do amanhã, e já nos afastando há mais de 40 dias do nosso ontem, do passado, vivemos o presente, a cada dia, unicamente.
Ailton Krenak, um sábio indígena que desde a Constituição Federal de 1988 impactou a nós e ao mundo fazendo calar um Congresso ruidoso que não lhe ouvia, parando para pintar-se com tinta negra em plenário, incorporou ali um espírito poderoso do tempo que, segundo ele, ainda carrega marcado em seu corpo. Esse indígena, apesar de todos os ataques que os povos da floresta vêm sofrendo, e que tem sido uma voz lúcida e muito buscada - uma espécie de volta às origens para, em conexão com a mãe Terra, com a ancestralidade que nos habita e que deixamos de reconhecer em nós - nesse momento em que as incertezas (que tantos estudiosos defendem, em busca de novos paradigmas para a ciência) nos acometem e assaltam aos turbilhões, causando talvez efeito semelhante à falta de ar dos doentes pela Covid-19, assim inquere o que passamos a considerar como nossa humanidade:
Como posso explicar a uma pessoa que está fechada há um mês num apartamento numa grande metrópole o que é o meu isolamento? [...] Somos piores que a Covid-19. Esse pacote chamado de humanidade vai sendo descolado de maneira absoluta desse organismo que é a Terra, vivendo numa abstração civilizatória que suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos. (KRENAK, 2020, p. 7)
Calamos, baixamos a voz, tentamos escutar sons e sinais que antes não nos ocupávamos em perceber, para resgatar, talvez, nosso sentido de ser humano, de saber por onde anda nossa humanidade, como ensina Krenak (2020, p. 9). “‘Filho, silêncio!’ A Terra está falando isso para a humanidade. E ela é tão maravilhosa que não dá uma ordem. Ela simplesmente está pedindo: ‘Silêncio’. Esse é também o significado do recolhimento”. O olfato se aguça, porque o medo de perdê-lo e ao paladar são alguns sinais indesejados. E Ailton Krenak, entrevista após entrevista, justifica e explica com suas Ideias para adiar o fim do mundo e com O amanhã não está à venda, que o nosso mundo, o mundo que cada um construiu e faz existir para si, não é a idealização futura, mas o hoje, o presente. Contando-nos histórias, imagina que seja esta a forma de adiar esse tal fim do mundo, porque nossa capacidade de fazê-lo é imensurável. E a metáfora mais significativa que nos entrega nessas histórias é quando alia o hoje, esse dia difícil de enfrentar e viver - o presente - com a ideia mágica de um presente que, cotidianamente recebemos, e que não sabemos desfrutar.
Viver cada dia como um presente é a receita de Krenak (entrevista em 6 maio 2020) para que novamente possamos nos conectar ao canto dos pássaros, aos ruídos da Terra, ao movimento das estações que mudam as cores da natureza, e descobrir, em cada um de nós e em nossos espaços do viver, o presente diário que a vida nos dá e que não temos tempo, correndo do jeito em que vivíamos, de apreciar, de descobrir, de admirar: nosso presente, o estar vivos, e poder viver cada mágico momento que a vida nos oferece - este o nosso melhor presente!