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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.21 no.61 Rio de Janeiro abr./jun 2020  Epub 08-Jun-2020

https://doi.org/10.12957/teias.2020.49500 

Desafios da educação na/da/para a Amazônia

EXPERIÊNCIAS DE / COM UMA “PESSOA T” INDÍGENA ENTRE-GÊNEROS DO / NO COTIDIANO TOCANTINENSE

EXPERIENCES OF / WITH AN INDIGENOUS “T PEOPLE” AMONG GENDERS OF / IN TOCANTINENSE EVERYDAY

EXPERIENCIAS DE / CON UNA "PERSONA T" INDÍGENA ENTRE GÉNEROS DE / EN TOCANTINS TODOS LOS DÍAS

1Pós-Doutor em Educação pela Universidade Estadual do Pará (UEPA)

2Doutorando em Educação na Amazônia PGDEA/UFPA/UFT

3Mestrando do Programa de Pós-graduação Profissional em Educação (PPPGE/UFT)


Resumo

Ser anunciada como travesti no contexto do dia a dia é vigilância e punição para qualquer jovem. Em se tratando de uma jovem indígena entre-gêneros, as marcações de preconceito interseccionadas de etnia, gênero, sexualidade, travestilidade, identidade e cultura agem como governamentalidade do seu corpo e do seu ser / existir. Tensionar esses conceitos e (de)marcá-los na / com as narrativas da experiência de “pessoas T” é um desafio para estas pessoas, para a comunidade tradicional indígena e para nós da pesquisa / pesquisadores(as) “implicados” com / na educação. A investigação em andamento no Programa de Pós-graduação Profissional em Educação da Universidade Federal do Tocantins (PPPGE/UFT) aborda questões no entorno das “relações homodesejantes” no Norte do Brasil, valendo-se da pesquisa-ação e participante de abordagem fenomenológica. Com Guacira Louro (2004), Berenice Bento (2008), Richard Miskolci (2016), Sandra Corazza (2001, 2002) nos implicamos da vivência / experiência de / com uma “pessoa T” indígena entre-gêneros, buscando construir aportes teóricos para descentrar práticas cis-heteronormativas na / da Amazônia oriental. Queremos ir além de uma formação impositiva de modelos de como ser homem ou ser mulher, ser masculino e / ou ser feminino, hétero / homo / bi, para práticas igualitárias de gênero.

Palavras-chave: travestilidade indígena; pessoas T; práticas curriculares

Abstract

Being announced as a transvestite in the context of everyday life is vigilance and punishment for any young person. In the case of a young indigenous woman between genders, the marks of prejudice intersected by ethnicity, gender, sexuality, transvestite, identity and culture act as the governmentality of her body and her being. Tensioning these concepts and (de)marking them in / with the narratives of the experience of "T people" is a challenge for these people, for the traditional indigenous community and for us in the research/researchers "involved" with / in education. The ongoing investigation at PPPGE / UFT addresses issues surrounding “homodesirable relationships” in Northern Brazil in action research and participant in a phenomenological approach. With Guacira Louro (2004), Berenice Bento (2008), Richard Miskolci (2016), Sandra Corazza (2001, 2002), we are involved in the experience / experience of / with an indigenous “person T” between genders, seeking to build theoretical contributions to decentralize cis-heteronormative practices in / from the eastern Amazon. We want to go beyond an imposing formation of models of how to be male or female, male and / or female, straight / homo / bi, for gender equality practices.

Keywords: indigenous transvestite; T people; curricular practices

Resumen

Ser anunciado como travesti en el contexto de la vida cotidiana es vigilancia y castigo para cualquier joven. En el caso de una joven indígena entre géneros, las marcas de prejuicio intersectadas por etnia, género, sexualidad, travesti, identidad y cultura actúan como la gubernamentalidad de su cuerpo y su ser. Tensionar estos conceptos y (des)marcarlos en / con las narrativas de la experiencia de "personas T" es un desafío para estas personas, para la comunidad indígena tradicional y para nosotros en la investigación / investigadores "involucrados" con / en educación La investigación en curso en PPPGE / UFT aborda cuestiones relacionadas con las "relaciones homodesiables" en el norte de Brasil en investigación de acción y participante en un enfoque fenomenológico. Con Guacira Louro (2004), Berenice Bento (2008), Richard Miskolci (2016), Sandra Corazza (2001, 2002), estamos involucrados en la experiencia/experiencia de/con una "persona T" indígena entre géneros, buscando construir contribuciones teóricas descentralizar las prácticas cis-heteronormativas en / desde el Este de la Amazonía. Queremos ir más allá de una imponente formación de modelos de cómo ser hombre o mujer, hombre y / o mujer, heterosexual / homo / bi, para las prácticas de igualdad de género.

Palabras clave: travesti indígena; personas T; prácticas curriculares

INTRODUÇÃO

Há significado “fraco” e significado “forte”, conforme Norberto Bobbio (1986), para a ideologia. As questões de gênero, ou melhor, de igualdade de gênero, é um desses significados que, na atualidade, tem provocado debates polarizados. Nessa perspectiva, o significado de “fraco” se refere a um conceito “neutro” em relação a valores políticos e a comportamentos coletivos. Já o “forte” de ideologia tem um sentido “negativo”, porque as concepções ideológicas, de senso comum, contrariam concepções científicas. Esse senso comum por oposição à ciência, tende a ser considerado errôneo para elaborar uma falsa interpretação da realidade na classe dominada. Um exemplo dessa questão pode ser a polêmica entre a chamada “ideologia de gênero” versus a “ideologia de gênesis”.

Se as questões de “igualdade de gênero” no contexto do padrão cis-heteronormativo (homem e mulher) é controverso e contraditório, quando se incluem as “pessoas T” nesse debate, amplifica-se a generofobia.

O texto abordaria, preliminarmente, a travestilidade indígena. Mas com o avanço dos nossos estudos, entendemos a inviabilidade desse projeto, e passamos a fazer abordagens teóricas, introdutórias, inconclusivas com base nos relatos orais de / com uma pessoa indígena Karajá que, ao aprendermos que não poderíamos enquadrá-la em nenhuma denominação de gênero, levou nossa reflexividade a assumir a possibilidade emancipacionista de identificá-la como uma “pessoa T” indígena entre-gêneros. A partir dessa pesquisa-aprendente trouxemos uma amostra resultante da enquete realizada na 16ª Parada da Diversidade de 2019, em Palmas, capital do Tocantins, sobre “pessoas Trans”, além de outras reflexões que vimos fazendo na pesquisa Currículo das diferenças e suas indagações sobre práticas preconceituosas na escola e na universidade.

De início, há que se dizer que não se pode apreender a “pessoa T” entre-gêneros como “indígena travesti”, pois não fizemos enquadramentos e nem falamos sobre sua construção social de gênero. Ela / ele não é “sujeito” e muito menos “objeto” de pesquisa. O que nos moveu foi a sua experiência, vivência e narrativa como pré-texto para a discussão das práticas curricularizantes cis-heteronormativas.

Entendemos que as noções subsunçoras colonialistas eurocentradas - as categorias de pesquisa que são, a priori, compulsórias - expressam uma categorização da expressão moderna, europeia, burguesa, e não retratam a realidade dos povos tradicionais, originários e os estudos do / no cotidiano indígena. Mesmo assim, compreendemos que as categorias de pesquisa coloniais que orientam as reflexões têm sido: heteronormatividade, sexismo, machismo etc.

A partir desse pressuposto, vamos dialogar com / no entorno de uma “pessoa T” indígena, para problematizar os currículos machistas amazônicos. Estamos considerando, sem categorizar, que uma “pessoa T”, é uma pessoa “entre-gêneros”, numa referência a homens e mulheres transexuais e às travestis, que nasceram em um corpo que não representa o que é e o que são, como construção identitária.

Existem diferenças entre transexual, transgênero e travesti, todavia, entendemos que é a pessoa que define o que é, e como quer ser reconhecida: “Que um homem não te define. Sua casa não te define. Sua carne não te define. Você é seu próprio lar”, como nos diz a letra da canção Triste, louca ou má de Francisco, El Hombre. Ou ainda: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”, na assertiva de Simone de Beauvoir, mundialmente conhecida.

MAS É PRECISO FALAR DA POPULAÇÃO INDÍGENA KARAJÁ, DA ILHA DO BANANAL, NO TOCANTINS

A “pessoa T” da nossa convivência pertence à etnia Karajá. É importante dizermos que a maioria dos povos indígenas brasileiros vive na Amazônia, falando cerca de 188 línguas diferentes. E a Ilha do Bananal é conhecida como a maior ilha fluvial do mundo, localizada no estado do Tocantins. Há uma diversidade natural, com grande variedade de animais, plantas e ecossistemas, como também uma importante diversidade cultural de seus povos Karajá e Javaé.

No estado do Tocantins, os Karajá, os Javaé e os Xambioá constituem uma população aproximada de 3.150 pessoas, sendo 250 pessoas dos Xambioá; aproximadamente 1.800 dos Karajá; e cerca de 1.100 de Javaé. Dessas aldeias, as Karajá e as Javaé ficam na Ilha do Bananal, enquanto as aldeias Xambioá ficam na região Norte do estado do Tocantins, no município de Santa Fé do Araguaia.

No Tocantins convivem as seguintes etnias: a) povo Iny (Karajá, Karajá-Santana, Karajá-Xambioá, Javaé); b) povo xerente (Akwê Xerente, Funi-ô; c) povo krahô-canela descendentes dos Krahô e Canela; d) povo Timbira; e) povo krahô-timbira setentrional; e f) povo apinayé - timbira ocidental.

Comumente, quando refletimos sobre a condição social indígena não consideramos as peculiaridades da população indígena de acordo com o “nível” ou “grau” de “contato” com a sociedade nacional (SOUZA, 2015). Nesse sentido, podemos então pensar em quatro categorias distintas de contato (SOUZA, 2015): os “grupos isolados”; os “grupos em contato intermitente”; os “grupos em contato permanente”; e os “grupos integrados”.

A população indígena Karajá, da Ilha do Bananal no Tocantins, que é nossa referência, pode ser considerada como “grupo em contato permanente” e como “grupo integrado”. E dizer que as pessoas Karajá são consideradas no grau permanente e integrado de contato, não diminui em nada os problemas sociais, culturais, educacionais e os conflitos pelo quais passam essas pessoas.

De acordo com Souza (2015), o que caracteriza esses grupos é a sua condição de estabelecerem diversas relações com a “sociedade envolvente”, mas em constante conflito, tanto devido a seu modo de produção sem propriedade privada, do modelo de produção capitalista quanto pela permanente luta pela garantia de seus territórios tradicionais, invadidos pelos projetos pecuaristas, agroindustriais que impactam sua existência e sobrevivência.

A organização social desses povos tradicionais, baseada no coletivismo; a ausência de política, de Estado e governo; a ausência de moeda e de trocas mercantis; as religiões politeístas baseadas em elementos da natureza; e a ausência da escrita, são questões do passado recente.

No que se refere à saúde indígena, por exemplo, uma questão essencial é que não há na política estadual do Tocantins um protocolo da sexualidade indígena, especialmente, para as “pessoas T”; torna, assim, a pesquisa com aportes da travestilidade indígena, se assim fosse possível, um desafio de desnaturalização das armadilhas de gêneros.

Os documentos que tratam especificamente das políticas públicas de saúde indígena falam em saúde diferenciada, mas não explicitam as especificidades dos povos indígenas, apesar de fazer referência ao respeito a suas culturas.

Devido ao processo de ocupação, há outros moradores não-índios na Ilha do Bananal. São os chamados “posseiros de residência permanente” e os “retireiros” - moradores de residência temporária (dos “retiros”) -, que trabalhavam como vaqueiros das fazendas de médio e grande porte da região. A partir de 2009, a Ilha do Bananal passou a não ter criadores de gado e rebanhos, mas a pressão para a utilização das pastagens naturais continua, com registros da entrada clandestina de rebanhos.

REGISTROS DO / NO COTIDIANO INDÍGENA

Para nós, “pesquisa implicada” é comprometimento com seres humanos, buscando compreender sempre a coletividade, os “praticantes” dos cotidianos (MACEDO, 2012). Por mais que não tenhamos realizado uma etnografia com a comunidade indígena da Ilha do Bananal, queremos com eles tomar consciência de que nosso olhar sobre / com eles significa esforço de aprender com o outro, a alteridade.

Nesse sentido, entender os rituais é “compreensão indexada” (MACEDO, 2012). Os Javaé têm um ritual dos homens que se chama casa de Aruanã ou ritual de Aruanã. Consiste em evocar os espíritos das profundezas dos rios que proveem suas vidas, tendo cada família seu espírito protetor. Nesse período de ritual é construída a casa, onde todos os homens se concentram para essa celebração. Independentemente da identidade de gênero, todos os membros da comunidade, do sexo masculino, entram obrigatoriamente para a realização do ritual do Aruanã.

Não estamos afirmando que o ritual tem alguma conotação contrária ou de repulsa a “ser gay”, “homossexual” ou “travesti”, estamos narrando tradições, mesmo porque desde o início da colonização há registros de “práticas homoafetivas” entre indígenas, não sendo essa uma condição atual.

A homossexualidade indígena aparece de múltiplas formas em diversas fontes desde o início da colonização do Brasil. Autores como Gaspar de Carvajal (1540), Padre Manuel da Nóbrega (1549), Padre Pero Correia (1551), Jean de Léry (1557), Pero de Magalhães Gandavo (1576) e Gabriel Soares de Sousa (1587) fazem referência à homossexualidade indígena, especialmente entre os Tupinambá (FERNANDES, 2016, p. 17).

Conforme Fernandes (2016, p. 21), “Couto de Magalhães1 registra a existência, entre os Chambioá2, de um grupo de homens dedicados a servir sexualmente a outros”. E ainda, em outro registro a narrativa: “Ele vivia com as mulheres e, à semelhança delas, mantinha em geral os cabelos nitidamente mais longos que os outros homens, e só executava trabalhos femininos”, numa demonstração a priori de não estranhamento.

Para Fernandes (2016), a questão do preconceito, ou não, dos indígenas homossexuais (dentro e fora de suas aldeias) começa a aparecer em relatos mais recentes sobre o tema.

Com a ritualística indígena queremos refletir a condição das / com as “pessoas T” indígena entre-gêneros da Ilha do Bananal, na busca de entendimento se ela / ele vivencia alguma situação de constrangimento, por ser considerada do sexo masculino, mas com “performance de gênero” dissonante.

Não temos respostas, nossa vivência não nos permite nenhuma elaboração, mas essas questões nos colocam o desafio da pesquisa em educação com quaisquer dos chamados “corpos estranhos” (LOURO, 2004), no momento em que a “pessoa T indígena” Karajá nos interroga sobre processos formativos e atos de currículo cis-heteronormativos na escola e na Universidade: para quem nós pesquisamos?

A pesquisa-participante nos oportunizou primeiras impressões; vislumbrar entrelinhas do social; implicando-nos do / na necessidade de abrirmos espaços de escuta, de fala, para desvelar a voz, o corpo, a experiência do / no cotidiano das “pessoas T’ entre-gêneros.

Nossa experiência / vivência na Ilha do Bananal, na perspectiva da pesquisa-ação e participante, nos implicou no sentido de que conviver em uma aldeia indígena, em seu ambiente cultural foi uma sensação comparada à total exposição de si, talvez, como se estivéssemos nus, despidos em público. Foram tantos aprendizados sobre o quanto a “sociedade envolvente” considera o Outro, o indígena, como um ser tão diferente de nós, sem se dar conta dessa acepção.

Cotidianamente, observamos que as chamadas práticas homoeróticas, homodesejantes têm histórias entre as pessoas da comunidade, apesar de entendermos que elas não classificam assim suas relações sociais e afetivas. O denominado “corpo estranho” da “pessoa T” entre-gêneros indígena Karajá que, aparentemente desestabilizaria, talvez não desestabilize tanto assim a sua comunidade.

Por isso o efeito e o impacto das experiências desses sujeitos são tão fortemente políticos - o que eles ousam ensaiar repercute não apenas em suas próprias vidas, mas na vida de seus contemporâneos. Esses sujeitos sugerem uma ampliação nas possibilidades de ser e de viver. Acolhem com menos receio fantasias, sensações e afetos e insinuam que a diversidade pode ser produtiva. Indicam que o processo de se “fazer” como sujeito pode ser experimentado com intensidade e prazer. Fazem pensar para além dos limites conhecidos, para além dos limites pensáveis. Afetam, assim, não só seus próprios destinos, mas certezas, cânones e convenções culturais (LOURO, 2004, p. 23-24).

Louro (2004) nos fala da provocação do “corpo estranho” e, na observação atenta, nas conversas, nos ritos, apreendemos que, para alguns da comunidade indígena, os considerados gays pela sociedade envolvente, são considerados apenas estéreis, porque não geram filhos: uma outra concepção não baseada na identidade ou na diferença, mas na conjugalidade. É comum, também, a observação de que a mulher indígena que não se casou passe a ser considerada tia, por não ter filhos próprios: uma conotação de que a tia pode também compartilhar o cuidado das crianças que não são seus filhos biológicos.

A NÃO DEFINIÇÃO DE PAPÉIS DE GÊNERO NAS COMUNIDADES INDÍGENAS

A priori, entre as pessoas indígenas não há hierarquização de papéis de gênero, conforme o binarismo heteronormativo homem e mulher. Há na transmissão das tradições culturais na educação das crianças, exemplos dos tipos de representação de cada membro da comunidade, como no caso da pedagogia da boneca Ritxókó.

As bonecas Ritxókó são esculpidas em cerâmica pelas mulheres da aldeia Karajá, nas cores preta e vermelha, com três matérias primas básicas: a argila ou o barro (suù), a cinza e a água. Elas têm grafismos que representam as formas humanas, a pintura corporal, os adereços e, também, a fauna regional das margens do rio Araguaia, nos estados de Goiás e Tocantins, onde estão localizadas as principais aldeias do povo Karajá.

As bonecas Ritxókó, também conhecidas como Licocó, Titxkòò ou Litjokê, resultam do trabalho artesanal organizado em cinco etapas: extração; preparação do barro; modelagem das figuras; queima; e pintura, envolvendo técnicas tradicionais transmitidas de geração em geração.

Nas aldeias, a boneca é dada às meninas, não somente como brinquedo, mas como também como objeto de educação e de formação da identidade Karajá. As meninas ganham um conjunto de bonecas que as mulheres denominam como “família”. Essa família de bonecas traz representações das diferentes faixas etárias das mulheres da aldeia, identificadas principalmente pelos ornamentos que usam.

Essa nossa experiência com a “pessoa T” entre-gêneros indígena Karajá, se deu no entorno da questão provocativa de fala: Quem foi que disse que você é Trans?

A outra questão que nos interpelou para esse texto foi a enquete que realizamos durante a Parada da Diversidade em Palmas, em 2019, quando perguntamos a 194 pessoas: Você conhece algum(a) pessoa indígena Trans? Desse total, 160 disseram desconhecer e 34 responderam que conheciam.

Para corroborar essas questões, trouxemos outro dado de uma amostragem da pesquisa Currículo das diferenças e suas indagações sobre práticas preconceituosas na escola e na universidade, realizada com alunos do ensino médio e com alunos universitários no município de Palmas. Para eles perguntamos como eles definiam sua identidade se mulher: mulher trans (masculino para o feminino); homem trans (feminino para o masculino); se homem: gênero não-binário (não se identifica nem como homem, nem como mulher ou se identifica como os dois). Entre os 25 respondentes LGBTI, obtivemos a seguinte amostra: 20% identificaram-se como mulher; 72% como homem; 8% como não-binário.

A pesquisa demonstra a inexpressividade numérica das pessoas trans nas escolas e na universidade e, no intuito de entendermos a influência de currículos machistas cis-heteronormativos, pedimos que as pessoas dessa amostra indicassem sua orientação sexual: 60% dos participantes consideram-se “assumidos LGBTI” para todos ou para a maioria das pessoas que conhecem; e 12% como “não assumidos como pessoas LGBTI”. Os demais alunos, correspondentes a 28%, não se autodefiniram.

As narrativas nos ajudam a compreender o processo de construção de gênero quando a “pessoa T” indígena entre-gêneros nos disse que sua descoberta como menina se dera brincando em Canoanã com suas amiguinhas. Narrou-nos que sua mãe lhes cortava os cabelos, reafirmando que ele / ela era menino, que iria casar, fazer e criar seus filhos. Ele / ela ainda nos falou que sempre achou que fosse menina, talvez numa alusão de que “o ser” uma “pessoa T” para uma criança não se ligue ao seu genital, mas percebendo-se por suas sensações e identificações interativas no brincar.

Os cabelos longos das pessoas indígenas, comumente sequestram, para nós, o sentido conservador do feminino. Alterar a configuração dos cabelos longos de uma mulher ou de homem Karajá ou Javaé é questão cultural e identitária, mas não necessariamente questão de gênero.

Na aldeia indígena Karajá falamos de questões de saúde, sexualidade e tratamos de “assuntos gays” ao perguntarmos se eles / elas conheciam índios que tinham práticas homodesejantes, ou se sabiam de “pessoas gays”; e as falas foram afirmativas e exclamativas: “[...] são muitos que temos aqui. Não sabemos lidar, a gente fica só observando, tem cada coisa!”.

Implicados pelo não enquadramento de pessoas e identidades, não fizemos questão de nomear, apontar, sinalizar quais pessoas eram consideradas “gays, lésbicas ou transexuais”, apesar do entendimento que essas categorias eurocentradas não fazem parte da cultura dos povos tradicionais, pelo menos com essa denominação.

O que quisemos nessas incursões foi construir aportes para pensarmos outros currículos, outras pedagogias, outros sujeitos, a começar por nós, que sempre precisamos estar em vigilância política, para não cairmos nas normatizações e (pre)conceitos. Nesse sentido:

[...] uma pedagogia e um currículo queer estariam voltados para o processo de produção das diferenças e trabalhariam, centralmente, com a instabilidade e a precariedade de todas as identidades. Ao colocar em discussão as formas como o “outro” é constituído, levariam a questionar as estreitas relações do eu com o outro. A diferença deixaria de estar lá fora, do outro lado, alheia ao sujeito, e seria compreendida como indispensável para a existência do próprio sujeito: ela estaria dentro, integrando e constituindo o eu. A diferença deixaria de estar ausente para estar presente: fazendo sentido, assombrando e desestabilizando o sujeito. Ao se dirigir para os processos que produzem as diferenças, o currículo passaria a exigir que se prestasse atenção ao jogo político aí implicado: em vez de meramente contemplar uma sociedade plural, seria imprescindível dar-se conta das disputas, dos conflitos e das negociações constitutivos das posições que os sujeitos ocupam (LOURO, 2004, p. 48-49).

Entender como se manejam as “pessoas T” ou as sexualidades dissidentes no dia a dia ou numa comunidade tradicional, nos impõe o desafio de trabalharmos com a microfísica do poder e entender sua governamentalidade. Na concepção foucaultiana (CANDIOTTO, 2010, p. 35):

[...] as artes de governar que explodem no século XVI e se difundem até o final do século XVIII não são manuais de conselhos ao príncipe ou tratados de ciência política. Elas constituem diferentes possibilidades de governar os outros e de governar a si mesmo. Na pastoral católica e protestante, tem-se o governo das almas e das condutas; na pedagogia do século XVI, o problema do governo das crianças; na política, a questão do governo do Estado pelos príncipes. As questões fundamentais passam a ser: como se governar, como ser governado, como governar os outros, como fazer para ser o melhor governo possível?

É reconhecer a nossa “posição de sujeito” para assumirmos um pós-currículo das diferenças, dado que uma pedagogia e um currículo queer:

[...] “falam” a todos e não se dirigem apenas àqueles ou àquelas que se reconhecem nessa posição-de-sujeito, isto é, como sujeitos queer. Uma tal pedagogia sugere o questionamento, a desnaturalização e a incerteza como estratégias férteis e criativas para pensar qualquer dimensão da existência. A dúvida deixa de ser desconfortável e nociva para se tornar estimulante e produtiva. As questões insolúveis não cessam as discussões, mas, em vez disso, sugerem a busca de outras perspectivas, incitam a formulação de outras perguntas, provocam o posicionamento a partir de outro lugar. Certamente, essas estratégias também acabam por contribuir na produção de um determinado “tipo” de sujeito. Mas, neste caso, longe de pretender atingir, finalmente, um modelo ideal, esse sujeito - e essa pedagogia - assumem seu caráter intencionalmente inconcluso e incompleto (LOURO, 2004, p. 52).

A prática homodesejante parece nos sugerir um “natural” exercício da nossa sexualidade e identidade de gênero. Na verdade, a homodesejabilidade é o nome que expressa questões de desejo e afeto entre pessoas do mesmo sexo, mas não esconde as violências cruzadas, a denegação de gênero e as ações LGBTfóbicas e generofóbicas.

A visualidade das “pessoas T” nas comunidades indígenas é bastante comum. Há etnografias sobre os povos Karajá e Javaé, no estado do Tocantins, que constatam práticas sexuais entre pessoas do mesmo sexo, apesar de não termos dados sobre as questões decorrentes dessas práticas nas comunidades indígenas.

Outras análises recentes também apontam para práticas homossexuais entre os Karajá (Macro-Jê), grupo da mesma família linguística dos Xambioá (mencionados aqui a partir de Couto de Magalhães, 1876). Entre os Karajá, Torres (2011) aponta, partindo do relato de uma enfermeira, que “entre os Karajá tem muitos bissexuais, é muito comum encontrar homem casado que mantém relações sexuais com vários outros homens, os que se assumem como homossexuais nas aldeias são muitos, eles sempre têm 5, 6 casos com homens casados nas aldeias” (: 189). Entre os Javaé (também da família Karajá), a tese de Patrícia de Mendonça Rodrigues (2008) aponta a existência de pajés homossexuais que cobram serviços sexuais dos homens desejados, em troca das atividades xamânicas (: 762), sendo que os Javaé possuem um termo para homossexual (hawakyni) que significa “falsa mulher” (: 414-415) (FERNANDES, 2016, p. 27, Indicações de páginas do autor).

O processo de aculturação que influi na sexualização e na questão de gênero, precisa ser entendido no contexto da colonização. Nesse sentido, numa outra perspectiva sobre a sexualidade indígena, há um movimento que se constitui numa janela de explicitação das práticas indígenas para além de sua performance de gênero: o two-spirit.

Há uma crítica do movimento two-spirit norte-americano (FERNANDES, 2015, 2017), bastante interessante para se pensar a condição espírito-sexual indígena. O termo two-spirit foi cunhado por indígenas dos Estados Unidos e Canadá ao longo dos anos 1990 em contraposição ao uso da palavra berdache, de cunho estigmatizante e ligado, etimologicamente, ao sujeito passivo em uma relação homodesejante.

Remetemo-nos ao movimento two-spirit (FERNANDES, 2015, 2017) como possibilidade de entendimento decolonial das manifestações identitárias indígenas plurais, assim como de muitos outros povos originários, ancestrais.

Traduzimos aqui a ideia de two-spirit como sendo a da existência de “dois-espíritos” ou “espíritos duplos” ao se referir aos “papéis espirituais e de gênero mistos” de indígenas americanos e canadenses.

O que se entende desse movimento é que os papéis incluíam vestir roupas e executar o trabalho de ambos os gêneros, masculino e feminino. O termo usualmente implica um espírito masculino e outro feminino vivendo no mesmo corpo e foi cunhado pelos gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros americanos nativos da atualidade para descrever a si próprios e os papéis tradicionais que eles reivindicavam.

Pessoas na condição de “dois espíritos” eram comuns entre os nativos das regiões da América do Norte, dando corpo ao gênero masculino e ao gênero feminino. Todavia, para além da questão de “dois espíritos” ou de vivências sexuais, o ativismo two-spirit faz dura crítica ao processo de colonização e, aqui acrescentamos, ao processo de aculturação, etnocentrismo e ao eurocentrismo falocêntrico.

As marcas identitárias, território delimitado pelo olhar do outro, nos falam que o gênero se constrói pela política da diferença, e que esta é atravessada pela interseccionalidade de raça, etnia, cultura, ancestralidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS DE IMPLICAÇÕES

A endocompreensão seja dos movimentos sociais, seja de uma cultura específica implica o etnopesquisador a uma elaboração de sua própria inteligibilidade, de sua própria analisibilidade e de sua própria operacionalidade.

No início desse trabalho delimitamos o problema de pesquisa como sendo a aproximação a uma pessoa travesti indígena Karajá. Obviamente não a tomamos nem como “sujeito” ou “objeto” de pesquisa, porque aprendemos que as categorias atribuídas às pessoas LBGTI não se legitimam às pessoas nativas, tradicionais, ancestrais.

Nossa “miopia” e “daltonismo cultural” - forma figurativa de desvalorização e negação da nossa interculturalidade - não nos permitiu, num primeiro momento, irmos além do trabalho com noções subsunçoras já estabelecidas e colonialistas atribuídas às pessoas LGBTI.

No decorrer dos nossos estudos na / da vivência / experiência com a pessoa indígena, percebemos que não podíamos considerar de forma compulsória sua identidade, muito menos categorizar ou indicar seu gênero. Essa criação de saberes e afirmação sociocultural nos levou a indicá-la como uma “pessoa T” entre-gêneros.

A partir dessa construção implicada, fomos “desterritorializados”, “desfamiliarizados”, abrindo mão das concepções generalistas de mundo, de cultura, de raça, de etnia, de sexo, de gênero, de identidade. E a crítica decolonial do movimento two-spirit nos

chamou atenção para os riscos do uso da expressão “travesti indígena” ou “homodesejabilidade indígena”, pois estas categorizações estão / são permeadas de preconceitos interétnicos, atravessadas por relações de poder, além do discurso cis-heteronormativo ocidental.

Mesmo considerando que o processo histórico de colonização do povo indígena brasileiro é divergente dos estadunidenses e canadenses, o extermínio, a tradição religiosa judaico-cristã, a educação baseada no binarismo sexual propiciaram a incorporação impositiva da cultura do colonizador.

Para além de pesquisas que façam inquéritos sobre quais etnias possuem vivências homoeróticas; de como elas experienciam essas práticas; ou ainda, de estudos sobre a sexualidade indígena, o importante é o enfrentamento de práticas curricularizantes cis-heteronormativas constantes nas ruas, na comunidade, em espaços acadêmicos.

São comumente aceitas e naturalizadas as agressões verbais, os xingamentos, as piadas para com as “pessoas T” entre-gêneros e as demais pessoas LGBTI. Uma sociologia da emergência, uma nova sociologia do currículo se faz necessária para barrar a influência do apreendido desrespeitoso do / no currículo masculino sobre a identidade de gênero e a orientação sexual das pessoas na / da sociedade envolvente, ou desta para com as etnias, sejam elas indígenas ou não. Talvez, praticarmos o que Estevão Rafael Fernandes (2016) nos provoca em nota no seu texto “indigenizar o queer (ou de se queerificar o indígena?)”, seja a partir da experiência com nossos povos indígenas do Tocantins, ou de outros lugares da Amazônia brasileira.

1José Vieira Couto de Magalhães foi um político, militar, etnólogo, escritor e folclorista brasileiro, considerado o responsável pelo antigo Presídio de Chambioás, fundado em 1868, que deu origem à atual cidade de Xambioá/Tocantins. Couto de Magalhães dá nome a outra cidade do estado do Tocantins, que também tem sua origem nesse mesmo período.

2A partir da “Convenção para a grafia dos nomes tribais”, aprovada durante a 1ª Reunião Brasileira de Antropologia, realizada em 1953, e publicada na Revista de Antropologia, v. 2, n. 2, 1954, p. 150, o nome do povo indígena Chambioá passou a ser grafado Xambioá.

REFERÊNCIAS

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Recebido: Março de 2020; Aceito: Abril de 2020

Informações dos autores

Damião Rocha

Pós-Doutor em Educação pela Universidade Estadual do Pará (UEPA)

E-mail: damiao@uft.edu.br

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5788-7517

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/9799856875780031

Marcos Irondes Coelho

Doutorando em Educação na Amazônia PGDEA/UFPA/UFT

E-mail: marcosico@uft.edu.br

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3428-9714

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/7032271689187056

Alexandre Araripe

Mestrando do Programa de Pós-graduação Profissional em Educação (PPPGE/UFT)

E-mail: araripeto@gmail.com

ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7328-8592

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