INTRODUÇÃO: COMEÇAR POR ONDE NO CAMINHO DA PESQUISA?
Tratar da relação entre pesquisa e formação significa buscar caminhos que contribuam para a construção do conhecimento em educação (trans)formando os sujeitos que as constituem. Não se trata de uma temática nova. A relação entre pesquisa e formação de professores(as) passou a integrar o debate no meio educacional a partir da segunda metade do século XX, no mundo todo. Buscando pontos de intersecção entre pesquisa e formação e voltados para a intervenção nas escolas a partir das iniciativas dos(as) professores(as) que nelas atuavam para transformar sua realidade, diferentes pensadores(as) investiram na construção desse caminho (ANDRÉ, 2002; BUENO, 2002; RAUSCH, 2012).
O potencial formativo da pesquisa tem sido demonstrado por diferentes abordagens, alinhadas ao paradigma qualitativo: a pesquisa-ação (THIOLLENT, 2007); a pesquisa colaborativa (GARRIDO; PIMENTA; MOURA, 2000; MOURA; FERREIRA, 2004); a pesquisa-ação crítico-colaborativa (PIMENTA, 2006); a pesquisa participante (BRANDÃO, 1990; NORONHA, 2000); a pesquisa coletiva (ALVARADO PRADA, 1997), guardadas suas especificidades metodológicas. E é reconhecendo a força e o potencial da articulação entre pesquisa e formação que objetivamos, com esse estudo, apresentar reflexões que compõem nossas pesquisas de doutorado em andamento e que se articulam a um grupo de pesquisa maior, cujos trabalhos são desenvolvidos sob a perspectiva Histórico-Cultural. Isso também justifica nossa opção por buscar superar por incorporação as contribuições do paradigma qualitativo da pesquisa, buscando construir nossas investigações segundo os princípios do Materialismo Histórico-Dialético, que “[...] tem a prática social como referência fundante da construção do conhecimento, nela residindo os seus critérios de validação” (MARTINS, 2015, p. 40).
Buscamos, nesse texto, evidenciar o potencial emancipatório e crítico que a articulação entre a pesquisa e a formação de professores(as) pode e deve assumir. Partimos do pressuposto epistemológico que localiza os sujeitos participantes da pesquisa como históricos, co-construtores de um processo que os forma, nos forma e dá forma ao conhecimento em educação. E, para tanto, valoriza o diálogo, a reflexão, a ressignificação e a tomada de consciência a respeito da temática sobre a qual o conhecimento é construído.
Nossas reflexões sustentam-se no estudo bibliográfico efetivado em busca de uma alternativa teórico-metodológica coerente com os pressupostos da Teoria Histórico-Cultural e, portanto, com os princípios do Materialismo Histórico-Dialético (DELARI JR., 2015; KOSIK, 2002; MARTINS, 2015; NAGEL, 2015), tendo nosso olhar direcionado para o objeto das pesquisas de doutorado de duas das autoras desse texto, orientadas pela terceira: a formação do professor formador de outros professores, na Universidade e em instituições vinculadas às Secretarias Municipais de Educação.
Dessa forma, nesse artigo, trataremos, especificamente, sobre as concepções que fazem convergir pesquisa e formação e que podem gerar aproximações entre os sujeitos que pesquisam e os que são pesquisados, na perspectiva de constituir o que aqui denominamos pesquisa com formação, um espaço-tempo organizado intencionalmente para oportunizar vivências formativas emancipadoras que permitam produzir conhecimentos e autoconhecimento sobre a formação do(a) professor(a) formador(a) de outros(as) professores(as), tema apontado por Zeichner (2009) e corroborado por Diniz-Pereira (2013), como prioridade absoluta na constituição de uma agenda para a pesquisa sobre formação de professores.
A PESQUISA COM FORMAÇÃO: DESAFIOS E POSSIBILIDADES
Sabemos que a intencionalidade da pesquisa e a ação investigativa estão estreitamente interligadas, conectando-se por elos teóricos e práticos na construção do método (VIGOTSKI, 2018). Assim, para alcançarmos o objetivo de uma pesquisa, precisamos estar cientes do valor de estabelecer nexos entre os procedimentos por intermédio dos quais se ascende ao conhecimento científico e os seus fins e, ainda, das dificuldades a serem enfrentadas para a apreensão do real, avançando da aparência à essência dos fenômenos. Portanto, “[...] é preciso caminhar das representações primárias e das significações consensuais, em sua imediatez sensível, em direção à descoberta das múltiplas determinações ontológicas do real” (MARTINS, 2015, p. 36-37).
Enxergar a realidade a ser investigada, dialeticamente construída diante dos e pelos pesquisadores e sujeitos da pesquisa, a partir da postura participativa, problematizadora, crítica e responsável pressupõe as noções de totalidade, de movimento e contradição. Nessa perspectiva, para que possamos conhecer a coisa em si (a formação do(a) professor(a) formador(a) de outros(as) professores(as), especificamente), isto é, a essência do objeto ou do fenômeno da pesquisa, precisamos ter clareza de que é preciso buscar sistematicamente a sua estrutura, a sua natureza e os seus múltiplos determinantes. Entretanto, nenhum desses aspectos se mostra imediatamente. Por isso, a realidade investigada requer ser decomposta em suas unidades constitutivas (VIGOTSKI, 2018) e não pode ser confundida com os fenômenos que se manifestam de modo mais imediato. Isso significa buscar, na formação dos(as) professores(as) formadores(as) de outros(as) professores(as) - objeto das pesquisas - e nos procedimentos construídos para a produção de dados, aqueles elementos que trazem consigo todas as partes do todo investigado, sem fragmentá-los: os sentidos que os sujeitos, localizados historicamente, atribuem ao trabalho de formar outros(as) professores(as), ao como o fazem e ao por que o fazem e, ainda, se, pela mediação da pesquisa, os transformam e como os transformam.
É preciso construir caminhos para acessar esses sentidos e tais caminhos não estão prontos a priori. Precisam ser forjados com e pelos sujeitos, produzindo situações que permitam deixar vir à tona conhecimentos, afetos, necessidades presentes na biografia de cada um e mediados por condições concretas de existência. A pesquisa assume, assim, sua vocação formativa e transformadora,
[...] ao reconhecer na origem da teoria do conhecimento um “nós”, um “cogitamos”, e não um “cogito” [...] [partindo] de uma situação objetiva, de um dado concreto, de um fato social, que diretamente fixa e qualifica a posição de cada indivíduo singular num processo histórico [...]. (PINTO, 1969, p. 16).
No processo da pesquisa temos, pois, o desafio de superar a pseudoconcreticidade, para a qual os fenômenos são concebidos como se não fossem produzidos historicamente pelo homem a partir do seu trabalho, e a práxis fetichizada - fragmentada e naturalizada -, para, assim, atingir a concreticidade ou a compreensão da realidade como totalidade concreta (KOSIK, 2002). Somente assim poderemos conhecer o(a) professor(a) formador(a) como sujeito real de um mundo real e superar a naturalização da alienação, da precarização e da desumanização em seus processos formativos e na sua atuação profissional.
Assim como a pesquisa é histórica, datada e situada, o(a) pesquisador(a) e o sujeito da pesquisa também o são e desenvolvem suas atividades no trato com a natureza, com a sociedade e com os outros homens, a partir de determinados objetivos, necessidades e interesses em meio a um conjunto de relações sociais. O ser humano, neste caso, o(a) professor(a) formador(a), no materialismo histórico-dialético:
[...] é tal qual se produz. [...] Não existe uma essência, um conteúdo programado, uma humanidade que anteceda a própria atividade do homem. Ele é o trabalho, e é o trabalho que lhe confere qualquer distinção, qualquer característica, qualquer dignidade. Sua história é a história da produção dos meios para satisfação de suas necessidades (necessidades sempre criadas pelo próprio trabalho obrigatório para ficar vivo). (NAGEL, 2015, p. 23)
Nessa perspectiva, a pesquisa com formação, embasada no Materialismo Histórico-Dialético, busca conhecer o movimento, identificar quais são as condições de existência de uma determinada formação social - e de um grupo específico, no caso, de professores(as) formadores(as) no interior dessa formação - e suas contradições, na perspectiva de gerar necessidades que coloquem os sujeitos da pesquisa em desenvolvimento, intencionalmente.
Não é possível, pois, conhecer o trabalho do(a) professor(a) formador(a) separado do contexto histórico, do exercício da sua profissão e da sua formação, pois cada atitude e depoimento têm sentido apenas quando estão vinculados à realidade e à pessoa que os gera. O conhecimento, nesse entendimento, exige a consideração das condições concretas e contraditórias da formação e da docência de cada sujeito. Assim, o percurso da pesquisa requer que reflitamos, continuamente, sobre essa realidade e sobre como as necessidades dos(as) professores(as) são criadas e se modificam, a partir de um suporte teórico-científico que favoreça a crítica e a tomada de consciência, para dar voz e vez aos sujeitos que, na pesquisa, tecem um conhecimento a respeito de si e do seu trabalho, entretecendo-se.
Nesse contexto, a partir das reflexões e análises sobre os pressupostos do Materialismo Histórico-Dialético, a pesquisa com formação surge para nós como uma possibilidade, um caminho teórico-metodológico. Porque o pensamento dialético exige um profundo senso crítico e a unidade entre a análise teórica e a prática que lhe é correspondente, entendemos que a pesquisa se coloca como atividade teórico-prática de construção de um conhecimento e, portanto, como trabalho intelectual de todos(as) os(as) que nela estão envolvidos. Assim, à medida que essa atividade transforma a natureza daquilo que se sabe sobre formação de professores(as) formadores(as), constituindo saberes acerca desse fenômeno, os(as) transforma a si mesmos(as). Não há pesquisa sem formação daqueles(as) que pesquisam e participam desse processo, embora com funções distintas - a daqueles(as) que são convidados(as) a refletir sobre sua própria formação e a nossa, aqueles(as) que têm como reponsabilidade mediar os processos e sistematizar o conhecimento produzido (PASQUALINI, 2015).
Decorre daí o desafio incessante, para nós, de pensarmos dialeticamente. Sem separar sujeito e objeto, teoria e prática, entender a formação e o trabalho do(a) professor(a) formador(a) requer conhecer, a partir das vozes dos sujeitos participantes da pesquisa, as condições concretas de sua atividade, do se tornar humano, superando falsas dicotomias. Com base nisso, temos a intenção de produzir o que queremos pesquisar: não nos basta olhar a pesquisa a partir de fora; pelo contrário, queremos fazer parte, dialogar, porque partimos dos pressupostos de que é no diálogo que se produzem as consciências (VOLÓCHINOV, 2017) e de que “[...] a pesquisa de abordagem histórico-cultural se constitui como um espaço educativo no qual se desenvolvem diferentes processos de comunicação” (FREITAS, 2009, p. 2). Deparamo-nos, então, com nosso próximo desafio: construir um conjunto de procedimentos que, a partir da base epistemológica já apresentada, nos faça transitar nesse duplo lugar - de sujeitos que pesquisam e que constroem conhecimentos, sendo por eles construídos, privilegiando o processo formativo de todos(as) os(as) envolvidos(as).
Para ampliar e refinar nosso olhar sobre o que aqui concebemos como pesquisa com formação, partimos, inicialmente, da conceituação apresentada por Josso (2004, p. 41): a pesquisa-formação, entendendo-a como uma simultaneidade entre sujeito e objeto. Nessa perspectiva, “Os
participantes da pesquisa, aprendentes, constroem suas capacidades de escuta de si mesmo e de partilha, atentos às considerações sobre formação, tecidas no trabalho de narrar suas experiências e seus processos formativos”. Como é possível notar, Josso (2004) assevera que o(a) pesquisador(a)-formador(a) não se distancia, mas se embrenha no universo da pesquisa, numa busca constante de (re)construir sentidos e significados, a fim de formar e formar-se, transformar e transformar-se ao longo do processo.
Essa forma de pensar a pesquisa carrega a dimensão formativa como elemento norteador, tornando-a prenhe de possibilidades, essencial na investigação. Os caminhos da pesquisa-formação, assim, nos permitem romper com o distanciamento entre pesquisador(a) que investiga e sujeitos investigados, fazendo com que tanto um quanto o outro sejam responsáveis pela produção de conhecimentos. Entretanto, sabemos que as narrativas oriundas do processo de pesquisa-formação não podem dar conta de tudo o que rodeia e perpassa a pesquisa, visto que:
[...] a narrativa de vida não tem em si poder transformador, mas, em compensação, a metodologia de trabalho sobre a narrativa de vida pode ser a oportunidade de uma transformação, segundo a natureza das tomadas de consciência que aí são feitas e o grau de abertura à experiência das pessoas envolvidas no processo. (JOSSO, 2004, p. 153).
Nesse sentido, começamos a refletir sobre um caminho teórico-metodológico que pudesse superar o da pesquisa-formação enunciada por Josso, já que queríamos imprimir um jeito de caminhar particular, tendo em vista nossas escolhas epistemológicas e, também, o nosso envolvimento com formação continuada de professores em nosso percurso profissional. Dessa forma, optamos por desenvolver o que chamamos de pesquisa com formação. E, embora tenhamos nas narrativas produzidas pelos sujeitos também um elemento essencial de análise, colocamo-las no interior de um processo coletivo, em que o diálogo se apresenta como a fonte de sentidos sobre a qual nos debruçamos. Passamos a denominá-las enunciações, próprias da prática discursiva que nos constitui as consciências, sob a perspectiva de Volóchinov (2017). Entendemos que, se por um lado, os enunciados expressam singularidades, também nos permitem perceber a particularidade em que os sujeitos atuam - as condições concretas em que seu trabalho se desenvolve - nos possibilitando perceber em que medida essa particularidade autoriza ou obstaculiza a aproximação dos sujeitos com o trabalho como atividade de desenvolvimento humano de si e de outrem, com a universalidade (OLIVEIRA, 2005; PASQUALINI, MARTINS, 2015).
Essa é, pois, não só uma migração conceitual, mas, também, um deslocamento do lugar em que o(a) pesquisador(a)-formador(a) se coloca na pesquisa: de alguém que analisa para alguém que produz sentidos, no e pelo diálogo com os(as) participantes do processo. E sobre o que dialogam os sujeitos? Colocam sob perspectiva o que significa ser formadores de professores em cada locus e, sobretudo, na sociedade capitalista, hoje; como a realidade material permite que a relação com o trabalho de formar outros(as) professores(as) seja mais livre e universal ou como impede essa liberdade e a aproximação com aquilo que se coloca como o ideal da formação.
Tal prospecção aproxima o ato de pesquisar do ato de contribuir para a emancipação humana e profissional dos sujeitos. Pela mediação dos encontros dialogais, das práticas discursivas entre pesquisador(a) e sujeitos surgem oportunidades de co-construir o conhecimento sobre si mesmos e a realidade e a possibilidade de tornar a atividade teórica, durante a formação - e a atuação profissional -, a base orientadora da reflexão crítica e da prática transformadora da realidade. Entendemos que o conhecimento verdadeiro “[...] implica uma reprodução espiritual da realidade, reprodução que não é um reflexo inerte, mas sim, um processo alvo que Marx definiu como ascensão do abstrato ao concreto em e pelo pensamento” (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2011, p. 244).
Trata-se de atuar, na pesquisa, em função da formação do pensamento reflexivo, ou da reflexão como função psíquica superior - de natureza social (VYGOTSKI, 2012) - ou de mediar um processo metacognitivo que permite ao sujeito colocar em ação seu pensamento, sua volição, seus afetos, de forma pessoal e intransferível.
A conceituação da prática reflexiva como uma atividade mediada por ferramentas para que os professores desenvolvam a reflexão como uma função psicológica superior permite projetar programas de formação de professores e atividades que conduzam ao desenvolvimento dos professores como aprendizes e pesquisadores de sua prática. (LAMPERT-SHEPEL, 2018, p. 2).
Teoria e prática não são, assim, dicotômicas; formam uma unidade. Unidade essencial à práxis, à crítica, ao conhecimento, à humanização e à docência. Sendo assim, a pesquisa com formação assume o próprio movimento do processo formativo em que tanto pesquisador(a) como professores(as) investigados(as) se colocam em dupla direção. Se são pesquisadores de sua própria formação e prática, buscando transformá-la pela mediação dos elementos conceituais que vão sendo apresentados e discutidos no decorrer da pesquisa, são, também, sujeitos dessa pesquisa, dando-se a conhecer e a autoconhecer-se.
Se apenas a teoria não transforma a realidade, ela é essencial para subsidiar a tomada de consciência pelos sujeitos e fundamentar as ações que objetivam tal transformação. A atividade teórica pode promover a tomada de consciência sobre o desenvolvimento intencional de uma atividade prática já existente, mas pode, igualmente, conduzir ao desenvolvimento de uma prática que ainda não existe ou que é ainda inicial. A teoria apenas será fecunda se estiver em relação com a “[...] realidade que é objeto de sua interpretação e transformação e com a própria atividade prática que é sua fonte inesgotável” (SÁNCHEZ VÁZQUEZ, 2011, p. 258) e critério de verdade.
Desse modo, entendemos que é na práxis que o conhecimento é produzido, permitindo compreender a realidade, pois o movimento de trazer para o diálogo a prática da formação de outros(as) professores(as) e de pensar coletivamente sobre os elementos que a compõem historicamente, na realidade material, suscita, pela mediação de abstrações, a necessidade de conhecer, provocando transformações na e da pesquisa. Tal movimento deve estar assegurado no percurso investigativo, que vai sendo constituído à medida que os diálogos se adensam e direcionam para aquilo que deve ser aprofundado.
As enunciações sobre as vivências1 dos(as) professores(as) formadores(as) são utilizadas na pesquisa para promover o conhecimento de si, do outro e do objeto da pesquisa. Mediar os processos reflexivos sobre as vivências que se destacam no campo formativo e no campo da atuação na formação de outros(as) professores(as) é a tarefa precípua do(a) pesquisador(a) que, ao colocar-se nesse lugar, também se forma.
1 [...] A vivência é uma unidade na qual, por um lado, de modo indivisível, o meio, aquilo que se vivencia está representado - a vivência sempre se liga àquilo que está localizado fora da pessoa - e, por outro lado, está representado como eu vivencio isso, ou seja, todas as particularidades da personalidade e todas as particularidades do meio são apresentadas na vivência, tanto aquilo que é retirado do meio, todos os elementos que possuem relação com dada personalidade, como aquilo que é retirado da personalidade, todos os traços de seu caráter, traços constitutivos que possuem relação com dado acontecimento. Dessa forma, na vivência, nós sempre lidamos com a união indivisível das particularidades da personalidade e das particularidades da situação representada na vivência (VIGOTSKI, 2010, p. 6).
Para Toassa (2009, p. 28), “[...] as vivências não podem ser meramente deduzidas dos atos da pessoa, pois, embora determinando as ações, a relação interior da consciência / personalidade com o meio depende de uma elucidação da perspectiva da própria pessoa” e as práticas discursivas são meios privilegiados de acesso e de tomada de consciência a respeito dessas vivências, constitutivas dos sentidos atribuídos ao ser professor(a) formador(a). Assim, as enunciações como produção autoral, na participação individual e coletiva, trazem a possibilidade da construção do
conhecimento crítico, da objetivação das reflexões mediadas pelos elementos culturais organizados pelo(a) pesquisador(a) para suscitar os diálogos - textos científicos; pintura; música; poesia; literatura, por exemplo.
Sabemos que cada processo de formação vivido pelos sujeitos, bem como cada história de vida, formação e profissão são únicas. Dão-se num movimento dialético e dialógico, constroem-se a cada dia a partir das interações consigo, com os outros e com o meio, num determinado espaço-tempo. É nessa relação com os(as) outros(as) e dessa intersubjetividade dos sujeitos que advém o(s) conhecimento(s), novos modos de ser e de estar no mundo e, consequentemente, de fazer educação. Tomamos como princípio metodológico o fato de que os encontros intersubjetivos são formadores das capacidades de reflexão individual, atuando sobre a produção de sentidos e envolvendo, portanto, os sujeitos da pesquisa como pessoas completas: cognição, afetos, desejos, visão de si mesmos e do outro se movimentam (VYGOTSKI, 2012).
[...] Só coletivamente se pode buscar e atingir uma noção melhor sobre o conjunto do processo a respeito do qual se busca um conhecimento crítico. Porém, mesmo que necessário, o confronto dialógico não é suficiente para haver objetividade, cabendo também o confronto com a realidade material mediante a “intervenção” prática sobre ela, no interior dela, como componente dela. (DELLARI JR, 2015, p. 53).
Nesse sentido, o diálogo coloca em confronto pontos de vista diferentes, constituídos nas vivências de cada sujeito, o que envolve suas relações com as condições materiais do seu trabalho e seus efeitos na forma de dar sentidos a ele. Conhecer exige confronto. Para compreender o próprio processo formativo e as escolhas no / do caminho, precisamos do diálogo, da escuta, do acolhimento, do conflito e da troca entre os pares, assim como de espaço-tempo para a diferença, para a diversidade e para o respeito. É preciso superar a aceitação incondicional ou resignada do status quo e construir a participação ativa de todos os sujeitos como possibilidade de cada um vir a conhecer a si mesmo, ao outro, à própria profissão e à formação. Nesse sentido, para dar forma à pesquisa com formação, nosso principal procedimento tem sido os grupos de discussão, mediados pelo que Heller (1987) denomina objetivações não-cotidianas, considerando que:
[...] do ponto de vista específico da prática educativa, a consciência crítica implica lançar mão da filosofia, com a qual se desenvolve a contemplação, a reflexão e a crítica; da ciência, pela qual apropria-se de um método para pensar e apreender a prática inserida no contexto mais amplo da realidade objetiva; da arte que, ao apresentar, de forma intensificada, os conflitos existentes na realidade contraditória que todos os homens vivem, educa os órgãos dos sentidos para participar das benesses da cultura e dos problemas do gênero humano; da ética e da moral que ensinam valores essenciais que permitem que o processo de apropriação não se realize em benefício único e exclusivo de alguns homens ou de uma classe e em detrimento do gênero humano. (MELLO, 2000, p. 108).
Durante a pesquisa é mister que todos os envolvidos estejam disponíveis para essa aprendizagem e, também, para ouvir o outro, para expor forças e fragilidades, dar-se conta da parcialidade dos conhecimentos e das práticas, percebendo-se em relação e em construção. Nesse sentido, a postura do(a) pesquisador(a)-formador(a) deve ser consciente, intencional e flexível, já que cabe a ele(a) mediar as práticas discursivas, trazendo elementos para instigar a reflexão e considerar os sentidos que os sujeitos atribuem a suas vivências no trabalho e na própria pesquisa com formação.
DE UMA FORMAÇÃO EM-SI A UMA FORMAÇÃO PARA-SI NA PESQUISA
As condições objetivas de existência de cada indivíduo oferecem ou negam possibilidades para a elevação da consciência, por isso a necessidade de ultrapassar, na pesquisa, o nível da aparência e verificar quais são as possibilidades reais para a criação de uma formação de professores(as) formadores(as) que promova a efetivação de uma prática docente que enseja em si a crítica à práxis fetichizada, à alienação e à desumanização. O processo de humanização requer a superação da cotidianidade, a apropriação de objetivações da esfera da vida não-cotidiana (arte, ciência, filosofia, moral e política produzidas histórica e socialmente pelos homens) que possibilitam a elevação das reflexões ao nível da genericidade humana (DUARTE, 2013).
A natureza histórico-social e as mediações políticas, sociais, econômicas e culturais interferem na subjetividade humana. Tomar consciência das próprias vivências e da influência das mesmas na intencionalidade da formação e da profissão docentes impõe uma relação consciente do(a) professor(a) consigo mesmo(a), com o seu próprio condicionamento, com a sua profissão e com a realidade. Como a intencionalidade é decorrente do nível de consciência, não há a possibilidade de se efetivar qualquer ação formativa sem que a mesma seja atravessada pela personalidade do(a) professor(a) formador(a) e que seu desenvolvimento não seja o pressuposto do trabalho (MARTINS, 2001).
A superação de uma formação em-si (própria das esferas cotidianas) a uma formação para-si (formação do indivíduo como alguém que faz de sua vida uma relação consciente com o gênero humano) não se dá imediatamente. É uma construção que vai se fazendo no processo, à medida que nos apropriamos da realidade e que, a partir dela, nos objetivamos. Assim, para além do acesso às esferas não-cotidianas do conhecimento, a tomada de consciência implica também a mudança de postura diante dos problemas da realidade que se nos apresentam a partir de uma interação qualitativa, problematizadora e reflexiva com essa realidade. O que, de fato, coloca em movimento os processos de mudança é o sentido que atribuímos às apropriações e às objetivações que fazemos e a pesquisa com formação busca oportunizar momentos reflexivos que ensejem esse movimento de dar sentidos ao trabalho de formar outros(as) professores(as).
Dessa forma, acreditamos, o processo essencialmente formativo deve ser o foco central de nossas pesquisas se quisermos colaborar com o desenvolvimento pleno do(a) professor(a) formador(a) para que ele(a) tenha condições de vir a ser - condições objetivas e subjetivas favoráveis que o aproximem da universalidade do gênero humano e para que possa, consequentemente, contribuir para a formação humano-genérica de outros(as) professores(as), num movimento que atinja, também e consequentemente, as crianças, jovens e adultos nas escolas. Esse processo poderá contribuir para que cada sujeito possa compreender melhor as contradições existentes na sociedade e no seu trabalho, sem fetichizações, bem como as possibilidades de transformação e de emancipação.
Olhar a realidade de forma mais clara é distanciar-se da alienação em relação ao próprio trabalho. E isso exige, de nós, estar sempre atentos para as teias da realidade que engendram, como se fossem parte da vida cotidiana, espaços que devem constituir-se como específicos da vida não-cotidiana, como a formação de professores e a docência. Assim, se a “[...] alienação está presente quando, por conta de determinadas condições materiais, sociais e econômicas, a estrutura da vida cotidiana incha, hipertrofia-se, e penetra em todas as esferas da vida dos indivíduos” (ROSSLER, 2004, p. 113), cabe construir espaços de questionamento e reflexão e a pesquisa com formação pode constituir uma alternativa para tanto.
Se é pela atividade que formamos nossa consciência e “[...] a atividade dos sujeitos envolvidos no processo educativo pressupõe a sua historicidade, a sua biografia, as relações sociais das quais participam e que portam, em si, a essência humana” (BISSOLI, 2007, p. 357), é certo dizer que a atividade dos sujeitos envolvidos com a pesquisa deve ser de tal forma arraigada em sua
biografia e nas suas vivências pessoais e profissionais, que tenha condição de gerar necessidade de se questionar sobre os motivos do seu fazer e provocar a tomada de consciência que:
[...] não se reduz a um mundo interno isolado, ao contrário, se está intimamente vinculada à atividade, só pode ser expressão das relações do indivíduo com os outros homens e com o mundo circundante, sendo social por natureza. Mas a passagem do mundo social ao mundo interno, psíquico, não se dá de maneira direta, pois o mundo psíquico não é cópia do mundo social. No trânsito da consciência social para a consciência individual, a linguagem e a atividade coletiva laboral têm papel fundamental. (RIGON; ASBAHR; MORETTI, 2016, p. 23).
Os sujeitos envolvidos com a pesquisa precisam, portanto, refletir sobre seus fazeres e seus modos de pensar, a princípio, na coletividade, com seus pares e, pela mediação dos conhecimentos não-cotidianos disponibilizados para as reflexões na pesquisa, poderão também transitar na vida não-cotidiana, gerando processos formativos e autoformativos.
Dessa forma, a pesquisa com formação sustenta-se na concepção de que “[...] a consciência pressupõe também ser intransigente em relação a toda vilania que mutile, menospreze e deforme a vida do homem” (RUBINSTEIN, 2017, p. 128). Esse percurso de idas e vindas constantes, tanto para pesquisadores(as) como para professores(as) formadores(as) investigados(as), pode nos dar possibilidades de ascender de uma formação em-si à formação para-si. Para isso, é imprescindível que o(a) pesquisador(a)-formador(a) se entenda como organizador(a) de processos, que tanto podem formar outros(as) como a si próprio(a), aproximando-os(as) a todos(as) do vir a ser.