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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.21 no.61 Rio de Janeiro abr./jun 2020  Epub 08-Jun-2020

https://doi.org/10.12957/teias.2020.43792 

Artigos de Demanda Contínua

"E OS BEBÊS?": quando os bebês interrogam a nossa docência

"WHAT ABOUT THE BABIES?": when babies question our teaching

"¿Y LOS BEBÉS?": cuando los bebés interrogan nuestra enseñanza

Marta Regina Paulo da Silva1 
http://orcid.org/0000-0002-8574-760X

1Universidade Municipal de São Caetano do Sul


Resumo

Quem são os bebês? Essa e tantas outras perguntas instigaram o trabalho realizado com os bebês em três creches municipais. Trata-se de um projeto vinculado ao Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID). Nele foram organizados diferentes contextos educativos, no intuito não apenas de instigar a curiosidade, fantasia, imaginação e inventividade dos bebês, potencializando suas experiências, mas, também, instigar a própria curiosidade dos(as) estudantes, educadores(as) e pesquisadores(as) acerca dos bebês e suas produções culturais. Como resultado, foi possível repensar a docência com os bebês tendo-os como interlocutores privilegiados na construção de uma prática pedagógica dialógica, o que exigiu dos(as) adultos(as) silenciarem-se para então escutá-los e com eles também aprender.

Palavras-chave: bebês; diálogo; formação docente

Abstract

Who are the babies? This and many other questions have encouraged the work with babies in three municipal nurseries. It is part of a project connected to Institutional Program to Teaching Initiation Scholarship (PIBID). Different educational contexts were organized in order not only to arouse curiosity, fantasy, imagination and inventiveness of infants, enhancing their experiences, but also to stimulate students’, educators’ and researchers’ curiosity about babies and their cultural productions. As a result, it was possible to rethink our teaching with babies, considering them as privileged interlocutors in the construction of a dialogic pedagogical practice, which required adults to be silent so that they could listen to them, so they could also learn from them.

Keywords: babies; dialogue; teacher training

Resumen

¿Quiénes son los bebés? Esta y muchas otras preguntas instigaron el trabajo realizado con los bebés en tres guarderías municipales. Es un proyecto vinculado al Programa Institucional de Becas de Iniciación a la Docencia (PIBID). En él se organizaron diferentes contextos educativos no solo para instigar la curiosidad, fantasía, imaginación e inventiva de los bebés, potenciando sus experiencias, pero también la curiosidad de los estudiantes, educadores e investigadores sobre los bebés y sus producciones culturales. Como resultado, fue posible repensar la enseñanza con los bebés, haciéndolos interlocutores privilegiados en la construcción de una práctica pedagógica dialógica, lo que exigió de los adultos guardar silencio para que puedan escucharlos y también aprender de ellos.

Palabras clave: bebés; dialogo; formación docente

INTRODUÇÃO

As coisas não querem mais ser vistas por pessoas razoáveis.

Elas desejam ser olhadas de azul

Que nem uma criança que você olha de ave.

(Manoel de Barros)

“E os bebês?” Eis o questionamento de uma estudante do curso de pedagogia. A pergunta inquietante surgiu em meio a um dos nossos encontros do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID)1. Tal Programa tem por objetivo o aperfeiçoamento e valorização da formação de professores(as) para a educação básica. A perspectiva é de que os(as) graduandos(as) estejam inseridos(as) nas escolas públicas desde o início de sua formação, desenvolvendo atividades pedagógicas sob a orientação de um(a) docente da licenciatura e de professores(as) das instituições parceiras, reconhecendo esses(as) últimos(as) como co-formadores(as) dos(as) futuros(as) docentes da educação básica. Nossa participação ocorreu em creches e pré-escolas de um município da região do Grande ABC Paulista, através do Projeto Brincadeiras de agora, brincadeiras de outrora: as crianças e a produção das culturas infantis. Nele contávamos com a participação de estudantes de pedagogia, educadores(as) e gestores(as) das instituições de educação infantil.

Ao longo do Projeto dialogamos sobre o brincar, as culturas infantis, a educação das crianças pequenas em creches e pré-escolas etc.; além de realizar de forma colaborativa um trabalho interventivo junto às unidades escolares. A dinâmica consistia em encontros mensais com todo o grupo (estudantes, docentes e gestoras envolvidas no projeto) para estudo, tematização das práticas e encaminhamentos do trabalho; idas semanais às instituições parceiras, organizadas em momentos de planejamento, realização de atividades com as crianças, avaliação e replanejamentos; e acompanhamento individual com as estudantes. O trabalho foi marcado por estudos, pesquisas e muitas discussões. Enfim, um processo reflexivo e dialógico. Tudo parecia caminhar de acordo com o que havíamos proposto. Até a chegada da questão inquietante, proferida por uma estudante em um de nossos encontros mensais: “e os bebês?”. “Como assim os bebês?”, perguntei à estudante. A resposta veio com outra pergunta: “É, o que fazemos com eles?”. Silêncio. Talvez o primeiro de muitos que se seguiram a essas perguntas iniciais. Se acreditávamos de fato que os bebês são potentes, como muitas vezes defendíamos em nossas discussões coletivas desde os estudos da pedagogia e da sociologia da infância, por que saber o que “fazer” com eles era ainda uma questão tão difícil?

A pergunta provocadora da estudante tinha uma fonte: os próprios bebês. A observação atenta aos bebês no cotidiano das creches e, em especial, aos contextos educativos oferecidos a eles, provocou em nós o que Larrosa (2003, p. 192) chama de “contra-imagem”, resultado da “[...] inversão da direção do olhar: o rosto daqueles que são capazes de sentir sobre si mesmos o olhar enigmático de uma criança, de perceber o que, nesse olhar, existe de inquietante para todas as suas certezas e seguranças [...]”. O olhar enigmático dos bebês estava a questionar a nossa docência. Afinal, o que oferecíamos a eles? Que sentidos eram construídos a partir daquilo que era proporcionado a eles? Demo-nos conta que pouco dialogávamos sobre os bebês e muito menos “com” eles. Observamos uma distância entre o discurso e a prática. No discurso tínhamos clareza da potência dos bebês, de que eles são seres pensantes, investigativos, participativos, dialógicos, produtores de cultura; mas, na prática, esse discurso parecia não fazer eco. Questionei e me questionei: “Quem são os bebês?”; “Acreditamos de fato que eles são seres pensantes, investigativos, participativos, dialógicos, produtores de cultura?”; “Confiamos neles?”. Era preciso (re)pensar o caminho até então percorrido no interior do projeto. Era preciso conhecê-los e, para isso, era preciso nos silenciarmos.

Compartilho neste artigo o caminho trilhado pelo grupo (estudantes, docentes e gestoras) com os bebês de 1 a 2 anos: nossas aprendizagens e os desafios que se colocaram e que ainda se colocam a uma prática educativa que, como nos ensina Freire (2003), se faça e se refaça cotidianamente, na perspectiva de construir uma educação infantil emancipadora.

É PRECISO SILENCIAR-SE PARA ESCUTAR OS BEBÊS

Nosso primeiro movimento, e também nosso primeiro desafio, foi suspender as supostas “certezas” que tínhamos sobre os bebês. Aqui encontramos uma pista em Larrosa (2003, p. 183): “As crianças, esses seres estranhos dos quais nada se sabe, esses seres selvagens que não entendem nossa língua”. Entendíamos que era preciso, portanto, ter os bebês como aqueles que ainda não foram capturados por nossos discursos e práticas. Fazia-se necessário ter os bebês como um “enigma” (LARROSA, 2003).

“Quem são os bebês?”. Resolvemos perguntar a eles, e então fomos estar com eles, con-viver com eles, sem procurar enquadrá-los em quadros teóricos predeterminados. Uma outra pista em Paulo Freire. Em 1979, esse educador pernambucano dizia: “Não fui às classes oprimidas por causa de Marx. Fui à Marx por causa deles. O meu encontro com eles é que me fez encontrar Marx e não o contrário” (FREIRE apud GADOTTI, 1996, p. 609), respondendo a uma pergunta acerca de ser marxista. Não podíamos estar com os bebês por causa desse ou daquele autor ou autora, mas ao estarmos com os bebês “concretos”, irmos a esses e essas como novos interlocutores e interlocutoras.

Os bebês nos provocaram, instigaram e continuam instigando nossa curiosidade enquanto estudantes, professoras e pesquisadoras. Foram e continuam sendo nossos interlocutores na reflexão sobre a prática educativa:

Andemos um pouco mais e vejamos como nos movemos no contexto concreto de nosso trabalho, em que as relações entre a prática e o saber da prática são indicotomizáveis. Mas, mesmo que indicotomizáveis, no contexto prático, concreto, não atuamos o tempo todo epistemologicamente curiosos. Fazemos as coisas porque temos certos hábitos de fazê-las. Ainda que assumindo a curiosidade típica de quem busca a razão de ser das coisas, mais amiúde do que na situação descrita da experiência na cotidianidade, preponderantemente não o fazemos. O ideal, na nossa formação permanente, está em que nos convençamos de, e nos preparemos para, o uso mais sistemático de nossa curiosidade epistemológica. (FREIRE, 1993, p. 104)

E nossa curiosidade nos levou a organizar certos contextos educativos em que poderíamos estar com os bebês, em ação. Decidimos, então, trabalhar inicialmente com o Cesto dos Tesouros, uma vez que tal proposta não era, até aquele momento, desenvolvida nas creches em que realizamos o Projeto. Essa proposta, desenvolvida por Goldschimied (2006), consiste no manuseio e exploração de diferentes materiais pelos bebês, individualmente e em grupo, estimulando os vários sentidos, o reconhecimento das diferentes propriedades dos materiais, bem como a interação entre os bebês (SILVA, 2016).

O Cesto dos Tesouros foi uma fonte rica de pesquisa não só para os bebês, mas também para nós. Mitos como: “o tempo de concentração dos bebês é curto”, “eles não interagem entre si”, “é preciso que o(a) educador(a) intervenha o tempo todo”, foram sendo desconstruídos e, em seu lugar, foi se materializando o discurso do bebê como um ser capaz, potente. Como alguém que nos convidava a (re)pensar a educação, com eles. A viver a experiência. Experiência compreendida aqui como:

O que nos passa, ou o que nos acontece, ou o que nos toca. Não o que se passa, ou o que acontece, ou o que toca. Mas o que nos passa, o que nos acontece ou nos toca. A cada dia se passam muitas coisas, porém, ao mesmo tempo, quase nada nos passa. Dir-se-ia que tudo o que se passa está organizado para que nada nos passe. (LARROSA, 2004, p. 152)

O que nos toca em nossa docência? E em nossa docência com os bebês? Como nos propõe Larrosa (2004), é preciso um gesto de ruptura e pensar mais devagar. Olhar mais devagar. Escutar mais devagar.

Seres investigativos? Pensantes? As escolhas realizadas pelos bebês demonstravam para nós seus interesses e preferências. Os materiais do Cesto eram explorados de diferentes formas e observávamos o movimento intencional que ia se constituindo para estabelecer relações entre eles. É o caso de Caio, por exemplo, que ficou um bom tempo explorando um tubo grande de papelão e uma colher. Em um dos movimentos que fez, a colher caiu dentro do tubo e escorregou até a outra ponta, sendo acompanhada por seu olhar curioso que, na segunda vez, pegou a colher e colocou, agora intencionalmente, dentro do tubo, mais uma vez acompanhando o seu movimento. Nas outras vezes em que colocou a colher novamente no tubo, inclinava-o como que observando a velocidade da descida da colher. O que Caio aprendeu com essa experiência? O que descobriu sobre esses objetos?

E o que dizer de tantos outros bebês que: batiam os materiais uns nos outros; olhavam através de peneiras, vidros ou tecidos coloridos; que pegavam um mesmo objeto e o olhavam por bastante tempo e exploravam com a boca, depois batendo e escutando os barulhos que faziam? Observando essas inúmeras explorações dos bebês nos perguntávamos: “o que eles estão pensando?”, “quais perguntas estão se fazendo?”. Afinal, o que significa olhar o mundo através de uma peneira? Ou de um vidro? De um tecido? Um tecido azul? Ver o mundo “de azul”, como tão lindamente nos convida Manoel de Barros (2004, p. 21)?

Aprendíamos com os bebês a “ver o mundo de azul”, de outros lugares, outras perspectivas, para além daquilo que está (pre)definido. Atentamos então para o quanto as propostas destinadas a eles eram dirigidas e controladas, com pouco ou nenhum espaço para a imaginação, para a surpresa, para o encantamento. Deparávamo-nos com concepções que os viam tão somente como aqueles que ainda não sabem, como seres da falta. Fortunati (2009, p. 37) chama-nos a atenção para o quanto os discursos da criança competente podem se transformar em pura retórica:

Mas a imagem de uma criança competente, ativa, interativa, originalmente direcionada ao papel principal de experiência em princípio intencional e, portanto, efetivamente construtiva, choca-se inexoravelmente tanto com a rotina da profissão docente quanto com os mais “musculosos” projetos de definição das prescritivas orientações educacionais.

Os bebês são curiosos, fazem perguntas e se perguntam. Perguntas que pouco escutamos, pois partem de uma outra racionalidade, de sua razão infantil, e se expressam através de todo o seu corpo: o olhar, o gesto, as expressões faciais, o choro, os movimentos etc. Suas cem linguagens (MALAGUZZI, 1999). E o que fazemos com essa curiosidade? Acompanhamos o olhar dos bebês? Ou insistentemente chamamos sua atenção para nós, para aquilo que desejamos que eles olhem? Mas e o que eles desejam olhar, descobrir, conhecer? Por que não lhes acompanhar em seu olhar e olhar o mundo também a partir de seus olhos?

Resolvemos acompanhar esse olhar, e o gesto, e o corpo, o que não foi fácil, conforme se observa nos relatos das professoras acerca do trabalho com o Cesto dos Tesouros:

Houve dificuldade inicial no desenvolvimento da atividade porque acreditava que deveria intervir o tempo todo. Superada esta ideia, minha observação tem outro foco, porque percebo que as crianças não estão imitando movimentos, como acontecia antes quando imitavam meus movimentos, mas estão realmente agindo sobre os objetos, conhecendo e fazendo descobertas. (Profa. Vanderléia2)

Nosso papel é saber esperar, a todo o momento a gente quer intervir. Nosso papel foi de se conter para ver a experiência, como ia ser, não deixar nossa ansiedade passar por cima da proposta. (Profa. Adriana)

Não fomos alfabetizados nessas linguagens (FARIA, 2005), ao contrário, em uma sociedade grafocêntrica como a brasileira, em nossa formação aprendemos a esquecê-las e a valorizar tão somente um jeito de dizer o mundo, pela escrita. O trabalho com os bebês nos convida a (re)encontrarmos essas tantas outras formas de expressão que, em algum momento, abandonamos, para, inclusive, não as roubar deles.

Seres dialógicos? Participativos? A proposta do Cesto dos Tesouros, e tantas outras que se seguiram a esse trabalho com o Cesto, nos possibilitou verificar o quanto os bebês estão atentos uns aos outros. O quanto são dialógicos e participativos; como se observa no registro de campo de Rafaela, uma estudante de pedagogia participante do projeto:

Foi novamente uma tarde muito gostosa e divertida, as crianças estavam animadas [...], se aproximaram das caixas [...] O túnel grande foi bem legal, várias crianças entraram ao mesmo tempo, umas entravam de um lado e saíam do outro, se encontrando no meio. Porém a Rayla, depois de entrar e sair do túnel grande, notou uma outra caixa menor que estava do lado, mas essa não estava aberta do outro lado. Então ela entrava na caixa e lá dentro se virava para sair, fazendo uma manobra engraçada para sair. O Carlos se aproximou e começou a brincar de entrar e sair da caixa da mesma forma, tentando se virar do lado de dentro. A Rayla partiu para procurar uma outra caixa para explorar de modo diferente e deitou dentro dela, o Johnny deitou com ela e o Augusto ficou observando. Ficaram nessa posição por um tempo, até que a caixa cedeu abrindo um pequeno buraco no fundo. Ao descobrir o buraco, a Rayla passou um tempo olhando por ele, quando de repente eu olho novamente para a cena, a Rayla está se enfiando pelo buraco para sair da caixa, depois de muito tentar ela conseguiu, sozinha, sair, descobrindo assim uma nova brincadeira, que seus amigos adoraram. Então Johnny e Augusto foram tentar sair. Depois dos dois saírem, a Rayla foi tentar voltar pelo buraco e ao conseguir deu muita risada. E assim a brincadeira durou por mais algum tempo com os três e depois outras crianças que estavam observando também se aproximaram para participar da diversão.

O diálogo que se estabeleceu entre esses bebês demonstra que ele passa por outras vias que não apenas a verbal; os bebês exploram, brincam entre si, agem sobre os objetos, aprendem sobre eles com todo o seu corpo. É possível observar o quanto se interessam uns pelos outros. Se interessam por aquilo que o outro está olhando, tocando, explorando; o que faz com que se aproximem.

Musatti (1998, p. 200-201) pontua que “[...] as crianças não são indiferentes à presença, atividade e sentimento das outras crianças”, mas ao contrário, com elas “[...] entrelaçam atividades, jogos e relações afetivas de acordo com processos de sociabilidade que possuem”. Para a autora, as crianças pequenininhas, e dentre elas os bebês, desenvolvem uma “[...] alta e sofisticada capacidade de produzir estratégias interativas diferentes, em função do parceiro do qual aprendem

a conhecer precocemente os estilos interativos e com o qual entrelaçam relações diferentes”, o que demonstra que aprendemos no coletivo, em relação. Nesse sentido, a creche constitui um espaço social extremamente rico para os bebês, visto possibilitar a convivência com tantos outros sujeitos para além daqueles do ambiente familiar. E como as relações dialógicas não se dão em um vazio, a mediação é dada pelo contexto organizado pelo(a) educador(a), no caso do relato acima, a oferta de caixas.

Cabe destacar aqui essa mediação. Nessa relação há no mínimo dois sujeitos: o(a) educador(a) e o(s) bebê(s) ou o bebê e outro(s) bebê(s) que, em relação, agem sobre o objeto de conhecimento e, juntos, aprendem sobre tal objeto. A mediação é dada pelo objeto (o mundo) e não pelo(a) educador(a); porém, é esse(a) educador(a) quem disponibiliza o mundo para os bebês, daí seu papel fundamental na organização dos contextos, sem com isso conduzir os bebês a determinado resultado, mas criando possibilidades e um trabalho marcado pelo prazer do espanto e da surpresa (FORTUNATI, 2009).

O trabalho com as caixas, Cesto dos Tesouros, painéis sensoriais, salas sensoriais, livros surpresas, materiais não estruturados e tantas outras atividades, nos permitiu verificar que, à medida que se vão tornando mais autônomos para se sentar, levantar, andar, novas possibilidades vão sendo experienciadas pelos bebês, em um movimento em que vão, aos poucos, observando como os outros bebês brincam, explorando e criando a partir da brincadeira do outro e com o outro, caminhando de uma brincadeira mais individual para o coletivo, como vemos nos depoimentos das educadoras:

Os bebês aprenderam a brincar com objetos diferentes dos brinquedos da escola, experimentaram sensações diferentes e pelo fato dos objetos provocarem interesse das crianças quando estavam com outra criança, foi possível aprender a brincar com outro bebê. Presenciei uma cena em que um bebê ajudava outro a colocar objetos na lata. (Profa. Carolina)

Os bebês aprendem muitas coisas: aumentam a concentração, há maior interação entre eles sem conflitos nas trocas dos objetos, algumas crianças param para observar outras manuseando os objetos. Acredito que a principal aprendizagem é essa observação da brincadeira do outro. (Profa. Vanderléia)

Seres produtores de cultura? O que produzem os bebês enquanto brincam? Enquanto exploram? De que cultura estamos falando? Essas perguntas nos impulsionaram a olhar mais atentamente para aquilo que os bebês produziam: suas marcas deixadas na areia ao riscá-la com seu dedo ou um graveto; suas pinturas que começavam na folha e se expandiam para todo o seu corpo; caixas que empilhavam... O que essas produções nos diziam?

A Maria Eduarda em uma das caixas descobriu um buraquinho e um pedacinho de papel, e começou a jogar o papel pelo buraco e pegar dentro da caixa. Fez o movimento algumas vezes e isso chamou a atenção do Johnny e da Rafaela, que foram ao seu lado e ficaram observando e participando da brincadeira. Eles ficaram bastante tempo colocando o papel no buraco, observando e buscando dentro da caixa. Após algum tempo, a Rafaela e o Johnny quiseram colocar o papel no buraquinho também, mas a Maria Eduarda não deixou, e correu com os papéis na mão. Os dois continuaram olhando no buraquinho e entrando na caixa para procurar os papéis. Depois que a brincadeira deles com a caixa terminou, o Diego se aproximou e subiu na caixa, mas diferente das outras que desmontavam, essa ficou em pé. Ele ficou muito feliz e começou a se balançar em cima, a professora se aproximou apenas para o caso dele cair, mas não interferiu na cena, e o Diego continuou a balançar até que desceu e foi brincar com outra coisa. (Registro de campo de Rafaela, bolsista do Projeto)

As culturas infantis não estão vinculadas apenas às brincadeiras, mas essas, sem dúvida, são fundamentais para sua produção. Segundo Cascudo (2004, p. 580), “[...] a necessidade lúdica, o desejo de brincar, o uso de jogo é uma permanente humana”. Dessa maneira, “[...] a ludicidade constitui um traço fundamental das culturas infantis” (SARMENTO, 2002, p. 15) e, embora a brincadeira não seja uma atividade exclusiva das crianças, mas de todos os seres humanos, no caso delas o brincar é o que fazem de mais sério, visto ser essencial para a construção das relações sociais e das leituras que fazem do mundo.

Nessa perspectiva, as culturas infantis emergem na medida em que as crianças interagem com seus pares, atribuindo sentido ao mundo em que vivem. Trata-se, portanto, de um processo dinâmico, produzido e partilhado entre as crianças ao participarem no coletivo de uma experiência social. Nesses tempos e espaços criam estratégias para lidar com a complexidade dos valores, crenças, saberes, hábitos, comportamentos, artefatos que lhes são impostos, partilhando formas próprias de compreensão e de ação sobre o mundo. Com isso, vão construindo um sentimento de pertencer a um grupo: o das crianças, cujo brincar as remete a novas formas de ser e estar no mundo, em um exercício constante de questionamento e criação de novos sentidos, como nos parece ter feito Maria Eduarda, Johnny, Rafaela e Diego na cena relatada acima.

O TRABALHO COM OS BEBÊS

Uma das tantas aprendizagens que os bebês nos possibilitaram foi a compreensão de que é impossível enquadrá-los em qualquer perspectiva teórica. Isso não significa que as teorias não nos servem, ao contrário, indica que precisamos dialogar com elas a partir dos bebês e não o contrário. Indica, também, o quão devemos ampliar nossas referências em distintas áreas do conhecimento: artes, filosofia, sociologia, antropologia, comunicação, arquitetura, entre outras.

Pensar o trabalho pedagógico com os bebês a partir de uma educação emancipadora implica romper com visões adultocêntricas e grafocêntricas que têm marcado o trabalho com eles e oferecer espaços e atividades em que eles possam fazer escolhas, tomar decisões, dizer sua “palavra”. Para isso, faz-se necessário reconhecer os bebês como sujeitos que leem e comunicam o mundo desde que nascem, por meio do brincar e demais formas de expressão: choro, gestos, olhar, dança, desenho, pintura etc.

Exige um trabalho sério, mas não sisudo, em que a organização de tempos, espaços e materiais se dê em um continuum, de modo a romper com uma visão fragmentada de áreas de conhecimento / disciplinas, realizando um trabalho que parta da curiosidade e interesses deles, considerando suas hipóteses e valorizando os sentidos que vão construindo nesse processo. Isso significa realizarmos leituras do universo dos bebês. Foram essas leituras que nos possibilitaram propor intervenções com diversos materiais e nos diferentes espaços das creches.

Desse modo, com a presença de tecidos, cheiros, tintas, materiais não estruturados, objetos musicais e tantos outros, as salas transformaram-se em experiências sensoriais. Mesas viraram cabanas que possibilitaram aos bebês se esconderem e realizarem diferentes explorações. Rampas foram cobertas com lycras, forradas com plástico bolha, com diferentes papéis, e objetos foram intencionalmente colocados nesses espaços para instigar a curiosidade, criando desafios e, assim, proporcionando muita diversão e criação de novas e diferentes relações com os materiais e espaços. O parque foi invadido por cabanas construídas com diferentes tecidos e demais materiais foram colocados, enriquecendo e potencializando ainda mais as explorações e brincadeiras dos bebês. Também foram confeccionados livros sensoriais, inspirados nos pré-livros3 de Bruno Munari (1998), tapetes de sensações, painéis sonoros com luzes, e demais propostas com materiais não estruturados. Como pudemos verificar:

O prazer de explorar, de transformar a si mesmos e as coisas e o prazer de criar envolvem as crianças e os adultos em um jogo cada vez mais diverso e que, ao mesmo tempo, vai contendo cada vez mais o proveito da experiência anterior e o conhecimento que cada um experimentou e assimilou. (FORTUNATI, 2009, p. 153)

Os bebês haviam nos ensinado que era preciso imaginar. Tarefa nada fácil quando ainda aprisionados(as) ao mito da explicação, que pressupõe que alguém não seja capaz de compreender sem a explicação do(a) professor(a) (RANCIÈRE, 2004). Com isso, não se permite aos bebês que façam descobertas, que se surpreendam, que explorem diferentes possibilidades desde suas próprias leituras. Tudo tem que ser explicado, orientado, muitas vezes, inclusive, direcionando suas “falas” e suas ações.

Concordo com Freire (apudFREIRE, GUIMARÃES, 1984, p. 45) quando afirma que muitas vezes tememos imaginar:

Acho que o que falta, a muitos de nós, educadores, e a mim também, é imaginação. A gente tem medo de deixar a imaginação voar, mas é preciso deixá-la voar! Não voar a ponto de se perder, mas voar, imaginar coisas concretas, coisas possíveis, com as crianças.

Imaginar “com” as crianças e não para elas. Elas têm o direito de participar ativamente dos processos educativos, em uma relação mais horizontal, o que não significa a negação da autoridade do(a) educador(a). Em Pedagogia do Oprimido, Freire (2003, p. 81) afirma que:

Ao fundar-se no amor, na humildade, na fé nos homens, o diálogo se faz uma relação horizontal, em que a confiança de um polo no outro é consequência óbvia. [...].

Se a fé nos homens é um dado a priori do diálogo, a confiança se instaura nele. A confiança vai fazendo os sujeitos dialógicos cada vez mais companheiros na pronúncia do mundo.

Uma relação dialógica com os bebês pressupõe acreditar neles, confiar em sua capacidade de ler o mundo e de dizer sua palavra a partir de diversas formas de expressão. A perspectiva é de que avancem em seu conhecimento do mundo e que o façam de maneira participativa, investigativa e alegre, porque a alegria faz parte do processo de ensinar e aprender.

Assim, o diálogo é uma “exigência existencial” (FREIRE, 2003) e o sendo, ler e dizer o mundo é direito de todos(as), inclusive dos bebês. Para escutá-los, precisamos nos silenciar. Silêncio que não significa omissão ou abandono, mas um profundo respeito à sua capacidade e às suas formas de pensar e agir no mundo. Isso porque, o silêncio, como um valor educativo, possibilita que o(a) outro(a) diga a sua palavra, a partir de múltiplas linguagens, e é esse silêncio que permite que suas vozes aflorem, pois:

Se, na verdade, o sonho que nos anima é democrático e solidário, não é falando aos outros, de cima para baixo, sobretudo, como se fôssemos os portadores da verdade a ser transmitida aos demais, que aprendemos a escutar, mas é escutando que aprendemos a falar com eles. Somente quem escuta paciente e criticamente o outro, fala com ele, mesmo que, em certas condições, precise falar a ele. O que jamais faz quem aprende a escutar para poder falar com é falar impositivamente. [...] O educador que escuta aprende a difícil lição de transformar o seu discurso, às vezes necessário, ao aluno, em uma fala com ele. (FREIRE, 1996, p. 113)

Falar “com” ele, amorosamente. A amorosidade constituiu-se em nosso trabalho como um pressuposto, sendo ela fundamento do diálogo, uma vez que não há diálogo se “[...] não há um profundo amor ao mundo e aos homens. Não é possível a pronúncia do mundo, que é um ato de criação e recriação, se não há amor que o infunda. Sendo fundamento do diálogo, o amor é, também, diálogo” (FREIRE, 2003, p. 79).

Nesse sentido, a amorosidade é compreendida como radicalidade de uma exigência ética, visto caracterizar-se como uma intercomunicação entre duas consciências que se respeitam, em que o(a) outro(a) não é propriedade, mas alguém pelo qual se tenha um profundo compromisso, um(a) outro(a) em que se reconheça e se respeite a sua alteridade e, consequentemente, os seus tempos.

É PRECISO “DAR TEMPO”

“Qual é o tempo?”, “Quanto tempo para esta atividade?”, “E se eles não fizerem nada?”, “Se não se interessarem?”, “E aquele bebê que só fica com aquele material?”. Essas eram perguntas constantes em nossas discussões no grupo, em especial quando discutíamos o planejamento das atividades. Afinal, “Qual é o tempo da experiência?”.

A experiência, como um modo de ser e de estar no mundo, pressupõe disponibilidade e abertura ao que a ela se oferece, ao mesmo tempo em que permanece sujeita às influências do desejo, da imaginação e da paixão. Daí ser caracterizada também pela singularidade, pela heterogeneidade, pela incerteza, pela imprevisibilidade e pelo descontrole. Para Agamben (2005), esta é uma das razões da ciência moderna ter se empenhado tanto em cercear a experiência, visto que a incerteza e a imprevisibilidade não cabem no discurso dessa ciência. Para ela é preciso medir, quantificar, prever, encontrar um caminho seguro, criar instrumentos de medição e um método que quantifique com exatidão as impressões sensíveis. Experiência transformou-se, assim, em experimento, cuja lógica é a do consenso, da homogeneidade, do genérico, daquilo que pode ser repetido, do previsível. Ao contrário do experimento que se fecha, que cerceia o homem em sua singularidade, a experiência implica abertura ao novo, ao desconhecido, àquilo que é dado a conhecer.

Desse modo, o tempo da experiência não é um tempo Chronos, o tempo do relógio, do capital, mas um tempo kairós, do momento, da oportunidade, e também aión, da temporalidade intensiva e não linear (KOHAN, 2007). E é nesse tempo, compreendido como ruptura, como descontinuidade, como entrecruzamento das dimensões passado, presente e futuro, que talvez possamos melhor compreender os bebês, cujo tempo é presente.

Walter Benjamin (1995), em um belo texto - Criança desordeira -, narra o cotidiano das crianças na leitura que essas fazem do mundo. Na capacidade que elas têm de transpor a realidade imediata, em um tempo saturado de “agoras”, de novas possibilidades, um tempo que não é linear, cartesiano, mas de rupturas, de entrecruzamentos, como tão bem poetizou o cantor e compositor Chico Buarque: “agora eu era o herói”. Um tempo presente de um eterno recomeçar. O “mais uma vez”. Para Benjamin (1984, p. 74-75), nada alegra mais a criança do que o “mais uma vez”, já que toda e qualquer experiência mais profunda deseja repetição e retorno a uma situação da qual nasceu o primeiro impulso. Segundo esse pensador, “[...] a essência do brincar não é um ‘fazer como se’, mas um ‘fazer sempre de novo’, transformação da experiência mais comovente em hábito”.

Nessa relação com o tempo, o bebê encontra naquilo que é inútil e inexpressivo para o(a) adulto(a) todo um mundo repleto de mistérios a serem desvendados, lendo e comunicando o

mundo de forma diferente do(a) adulto(a). Daí talvez a dificuldade deste último em esperar o tempo do bebê e, quase sempre, procurar impor o seu tempo sobre ele. Talvez por isso, apaguem os rastros dos bebês, e das demais crianças, não permitindo que uma turma continue de onde a outra parou, quando pensamos, por exemplo, nos espaços; ou porque eles(as) não podem continuar amanhã uma atividade que começaram hoje; ou ainda, porque a cada turma o espaço coletivo tem que ser “arrumado” conforme a lógica adulta. Mas, quais são as marcas dos bebês pelos espaços das creches? Quais são seus rastros?

Para Fortunati (2009, p. 153): “O tempo da experiência - de uma experiência ativa, criada e continuamente reconstruída pelas crianças, sozinhas ou junto com os educadores - é um tempo penetrante e ao mesmo tempo múltiplo e diferente para cada um”. Essa dimensão do tempo foi outro grande desafio no trabalho com os bebês, já que era preciso desconstruir a lógica cartesiana do tempo e da homogeneidade das atividades. Era necessário repensar a organização dos espaços de modo que as crianças pudessem fazer escolhas: o que fazer, com quem fazer e por quanto tempo. Isso foi possível em função do olhar atento e amoroso que o grupo foi desenvolvendo para com os bebês.

Nesse sentido, fomos descobrindo que estávamos introduzindo os bebês a um certo exercício democrático, a princípio sem muita consciência disso, visto que estava sendo possibilitado a eles: fazer escolhas, tomar decisões e dizer sua palavra.

As crianças precisam crescer no exercício desta capacidade de pensar, de indagar-se e de indagar, de duvidar, de experimentar hipóteses de ação, de programar e de não apenas seguir os programas a elas, mais do que propostos, impostos. As crianças precisam de ter assegurado o direito de aprender a decidir, o que se faz decidindo. (FREIRE, 2000, p. 58-59)

Contudo, esse exercício exige tempo. É preciso dar tempo aos bebês. Um tempo afetivo, dialógico e amoroso. Um tempo impossível de ser medido pelo relógio.

EDUCADORES(AS) BRINCANTES

Aprender com os bebês, aprender com a infância. Em sua obra Pedagogia da Autonomia, de 1996, um dos saberes necessários à prática educativa apresentado por Freire (1996, p. 23) é de que “[...] não há docência sem discência”, uma vez que, enquanto ensina, o(a) educador(a) também aprende. E aprende na relação com seus educandos(as) mediatizados(as) pelo mundo. Isso porque, o(a) educando(a) é sujeito de sua formação. Segundo Freire (apudFREIRE, GUIMARÃES, 1984, p. 55):

O educador que tenha uma opção popular, e não populista, não pode, no meu entender, ficar no exercício de uma pedagogia imobilizante. Uma pedagogia que seria apenas a repetidora ou transferidora de conteúdos considerados indispensáveis. Não! O educando é também sujeito da sua formação, e não só objeto.

O bebê é sujeito de sua formação e deve ser respeitado como tal. Escutar suas vozes é fundamental. Isso implica que o(a) educador(a) esteja presente e disponível, atento(a) aos bebês e suas produções, reconhecendo e respeitando suas formas de expressão. Trata-se de uma relação potente, marcada pelo acompanhamento e companheirismo que se estabelece entre o(a) educador(a) e o bebê. Sobre essa relação, Rinaldi (2012) pontua que, para Malaguzzi (1999), o papel do(a) educador(a) assemelha-se ao "Fio de Ariadne". Nessa metáfora, segundo a autora, a tarefa do(a) professor(a) é a de:

[...] dar orientação, sentido e valor à experiência das escolas e das crianças (uma saída do 'labirinto'). Os professores vistos como aqueles que têm o fio, que constroem e constituem os entrelaçamentos e as conexões, a rede de relacionamentos para transformá-los em experiências significativas de interação e comunicação” (RINALDI, 2012, p. 106).

Essa relação solicita a organização intencional de contextos, de modo a não cair em um completo abandono aos bebês ou em um excessivo controle de suas ações. Uma organização que possibilite aos bebês investigarem, descobrirem, se espantarem, se surpreenderem, pensarem, decidirem, fazerem escolhas.

Estar com os bebês nos permitiu compreendê-los um pouco mais. Com eles, fomos estabelecendo uma certa cumplicidade que nos levou a redescobrir aspectos de nossa própria infância, pois, tal encontro: “[...] não possui somente o efeito de oferecer à criança uma gama de possibilidades lúdicas posteriores, em relação àquela que poderia experimentar sozinha ou com os colegas, mas também permite ao adulto a redescoberta de aspectos de sua infância esquecida”. (BONDIOLI, 1998, p. 227)

A redescoberta de tais aspectos nos possibilitou sermos tocadas pelas infâncias, nossas e a dos bebês, e com isso educar a sensibilidade perante o humano (ARROYO, 2000). Nesse processo, encontramos muitos desafios, mas aprendemos que jamais podemos deixar de viver a alegria do ensinar e do aprender, pois, no momento em que o(a) educador(a):

[...] já não se alegra, não se arrepia diante de uma alegria, da alegria da descoberta, é que ele já está ameaçado de burocratizar sua mente. E, se ele se burocratiza pelo hábito de fazer [...] ele, burocratizando-se, perdeu a capacidade de espantar-se. E, se ele já não se espanta com a alegria do menino que descobre, pela primeira vez, algo que ele descobriu várias vezes, e redescobriu, então ele já não é mais educador. (FREIRE apud FREIRE, GUIMARÃES, 1982, p. 84-85)

Continuamos educadoras. Neste trabalho com os bebês fomos nos constituindo como educadoras brincantes que, como entendemos, são seres curiosos, que constantemente procuram instigar sua própria imaginação e criticidade e, por isso mesmo, vão se reencontrando com sua capacidade de estranhamento e encantamento. Seres que, de uma perspectiva dialógica, ao suspenderem suas certezas, reconhecem que, enquanto ensinam, também aprendem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os bebês, cotidianamente, interrogam a nossa docência. Interrogam a nossa capacidade de ainda nos encantarmos com as coisas do mundo. Seu tempo é um tempo de possibilidades, em que o “mais uma vez” significa recomeçar; um tempo intenso, pois “[...] no reino infantil que é o tempo, não há sucessão nem consecutividade, mas intensidade da duração” (KOHAN, 2007, p. 87). Um tempo de continuidade e descontinuidades em que se pode dizer: “agora eu era o herói” e assim subverter o tempo cronológico.

Nesse tempo de convívio com os bebês, aprendemos um pouco mais sobre a nossa própria humanidade. Nossa curiosidade pelas coisas do mundo; a capacidade de vermos para além daquilo que está dado; a vontade e a alegria de aprender e de ensinar; a dizer “mais uma vez” e compreender que a cada vez novos elementos se apresentam na compreensão do mundo; a continuar eternamente perguntando.

Aprendemos que a docência supõe prazer, alegria e seriedade. E que seriedade não é sinônimo de sisudez e muito menos o contrário de alegria. Seriedade é ir à raiz de algo, é comprometer-se. Nossa docência precisa ser séria e alegre, ser uma “humana docência” (ARROYO, 2000). Aprendemos com os bebês, sobretudo, a não deixar morrer em nós a (nossa) infância e, justamente por isso, nossa vontade de transformar o mundo.

1A participação no PIBID deu-se a partir do Edital Capes n. 11/2012, sendo o projeto revisto nas versões de 2013 e 2016.

2Os nomes apresentados neste trabalho são verídicos, tanto das professoras, estudantes, quanto das crianças. Todos com as devidas autorizações.

3Os pré-livros são pequenos livros marcados pela visualidade dos recursos gráficos (cores, formas, materiais) e sem nenhum texto escrito. Trata-se de compreender o livro como objeto sensorial. Nas palavras de Munari (1998, p. 226): “Eis por que esses livrinhos não são mais do que estímulos visuais, táteis, sonoros, térmicos, materiais. Devem dar a impressão de que os livros são objetos assim, com surpresas dentro”.

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Recebido: Julho de 2019; Aceito: Abril de 2020

E-mail: martarps@uol.com.br

Informações da autora

Marta Regina Paulo da Silva

Universidade Municipal de São Caetano do Sul, E-mail: martarps@uol.com.br

ORCID: http://orcid.org/0000-0002-8574-760X

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/7145831589734229

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