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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.21 no.spe Rio de Janeiro ago. 2020  Epub 20-Ene-2021

https://doi.org/10.12957/teias.2020.46716 

Artigos de Demanda Contínua

REPRESENTAÇÕES DE MATRIARCAS E DE ESTUDANTES DE PEDAGOGIA SOBRE A CRIANÇA E SUA EDUCAÇÃO: presença e influência no processo formativo1

REPRESENTATIONS OF MATRIARCHES AND PEDAGOGY STUDENTS ABOUT CHILDREN AND THEIR EDUCATION: presence and influence in the formative process

REPRESENTACIONES DE MATRIARCADOS Y ESTUDIANTES DE PEDAGOGÍA SOBRE NIÑOS Y SU EDUCACIÓN: presencia e influencia en el proceso formativo

Solange Martins Oliveira Magalhães1 
http://orcid.org/0000-0003-1187-112X; lattes: 2611615064976822

1Universidade Federal de Goiás - Curso de Pedagogia e Programa de Pós-graduação em Educação - Faculdade de Educação/UFG


Resumo

Na composição de uma pesquisa acadêmica que tem como objetivo analisar e compreender os sentidos discursivos sobre formação e profissionalização docente entre graduandos(as) do curso de Pedagogia, identificamos a ênfase na influência de grupos sociais e familiares na determinação de representações sobre a criança e sua educação de estudantes de Pedagogia. Destaque importante foi dado à influência familiar de matriarcas - avós e bisavós, aspecto que suscitou continuidade e aprofundamento de análises. Via aporte teórico da História Cultural, questionamos sobre os aspectos das representações: se/qual influência era mantida nas formas de pensar, ser e agir das estudantes em formação. Entendendo que as narrativas circulam no cotidiano dos grupos entrevistados e que compõem a empiria da pesquisa, a partir de sua análise identificamos os aspectos que são articulados pelas estudantes ao papel docente e as formas de ser e agir no processo formativo. Conforme a base teórica assumida, as representações de avós e bisavós se tornam matrizes geradoras de sentidos, que são ancorados na cultura e por isso precisam ser reconhecidos no processo formativo, como parte de um conhecimento prévio dos estudantes que influencia na prática educativa das futuras professoras.

Palavras-chave: formação de professores; cultura; representações; educação da infância

Abstract

In the composition of an academic research that aims to analyze and understand the discursive meanings about the formation and professionalization of teachers among Pedagogy students, we identified the emphasis on the influence of social and family groups in determining representations about children and their education among pedagogy. The family influence of the matriarchs - grandparents and greatgrandparents was highlighted, an aspect that required continuity and deepened the analysis. With the theoretical contribution of Cultural History, we questioned the aspects of the representations: if/what influence was maintained in the ways of thinking, being and acting of the students in formation. Understanding that the narratives circulate in the daily lives of the interviewed groups and that compose the empirical part of the research, from their analysis we identified the aspects that the students articulate with the teacher's role and the ways of being and acting in the classroom. According to the assumed theoretical basis, the representations of grandparents and great-grandparents become meaning-generating matrices, as they are anchored in culture and, therefore, must be recognized in teacher training, as part of the students' prior knowledge that influences educational practice of the future teacher.

Keywords: teacher training; culture; representations; childhood education

Resumen

En la composición de una investigación académica que tiene como objetivo analizar y comprender los significados discursivos sobre la formación y profesionalización de los docentes entre los estudiantes de Pedagogía, identificamos el énfasis en la influencia de los grupos sociales y familiares en la determinación de las representaciones sobre los niños y su educación entre estudiantes de pedagogía. Se destacó la influencia familiar de las matriarcas - abuelos y bisabuelos, aspecto que requería continuidad y profundizó los análisis. A través de la contribución teórica de la Historia Cultural, cuestionamos los aspectos de las representaciones: si/qué influencia se mantuvo en las formas de pensar, ser y actuar de los estudiantes en formación. Entendiendo que las narrativas circulan en la vida diaria de los grupos entrevistados y que componen el empirismo de la investigación, identificamos, a partir de su análisis, los aspectos que los estudiantes articulan con el papel del maestro y las formas de ser y actuar en el aula. De acuerdo con la base teórica asumida, las representaciones de abuelos y bisabuelos se convierten en matrices generadoras de significado, ancladas en la cultura y, por lo tanto, deben ser reconocidas en la formación docente, como parte del conocimiento previo de los estudiantes que influyen en la práctica educativa de futuros profesores.

Palabras clave: formación de profesores; cultura; representaciones; educación infantil

AS REPRESENTAÇÕES DE CRIANÇAS E DE SUA EDUCAÇÃO COMO OBJETO DE PESQUISA

Na composição de uma pesquisa acadêmica que tem como tema: os sentidos discursivos sobre formação e profissionalização docente dos(as) graduandos(as) ingressantes e concluintes do curso de Pedagogia, identificou-se a grande influência de grupos sociais, famílias, escolarização, gênero na determinação de princípios e valores nas narrativas, representações e práticas dos estudantes. Destaque importante foi dado à influência familiar, sobretudo na formulação de ideias sobre a infância e sua educação. Aspecto que mereceu continuidade e aprofundamento de análises, por referendar aspectos que articulados ao papel docente, definindo formas de ser e agir de futuras professoras.

Apoiados na História Cultural, entendemos que as narrativas que circulam no cotidiano dos grupos entrevistados e que compõem a empiria da pesquisa - matriarcas/avós e bisavós e estudantes, podem ajudar a compreender se existe e qual seria a influência das representações nas estudantes. Portanto, questionamos sobre os aspectos das representações e se/qual influência é mantida nas formas de pensar, ser e agir das estudantes em formação.

A pesquisa foi realizada no ano de 2019, primeiro e segundo semestres, envolveu um grupo de 32 alunos do curso de Pedagogia, da Faculdade de Educação, Universidade Federal de Goiás. Foi desenvolvida nas disciplinas Sociedade, Cultura e Infância e Fundamentos da Educação Infantil. A primeira sustenta a discussão sobre a criança e sua educação a partir de autores clássicos da Pedagogia, como: Rousseau, Froebel, Freinet, Pestalozzi, conteúdo que é articulado e continuado na segunda disciplina, se dá sequência a discussão apresentando autores contemporâneos da educação, como: Montessori, Dewey, Vygotsky, Saviani, chegando às políticas atuais da educação infantil. Durante a construção teórica, conforme planejamento curricular das disciplinas, torna-se bastante esclarecedor estabelecer diálogos que esclareçam a relação teoria e prática, pois esses diálogos fundamentam o entendimento sobre o como os teóricos estudados, permeiam as narrativas e as representações do grupo de professores, bem como suas futuras práticas docentes.

No que se refere a pesquisa, estudar as representações destaca e ressignifica a importância dos conhecimentos e sentidos que circulam nos grupos sociais, nas famílias, logo, nas salas de aula. Elas revelam um conhecimento que embora seja natural e integrante da realidade dos estudantes, precisa ser revisto no contexto da formação docente para, se necessário, ser afastado do senso comum. Assim, o movimento da pesquisa recupera, pela evocação e discursos, a herança do passado que continuava perpassando as narrativas e representações de estudantes.

Reforçamos que no âmbito da formação docente, sobressai o peso dos significados e sentidos atribuídos pelos estudantes aos fenômenos educacionais, manifestam influências que são adquiridas no âmbito dos grupos sociais, mas, sobretudo nas famílias. Dessa forma, assumir as representações como objeto de estudo, articula-se a vontade de entender o porquê algumas ideias sobre a criança e seu educar são consideradas mais verdadeiras ou mais próximas da realidade do que outras, entrando, em muitos casos, em conflito com o aporte teórico estudado.

Partimos da hipótese que se princípios, valores, metodologias, saberes são reorganizados através do tempo, muitos aspectos são mantidos pois articulam-se ao reconhecimento e legitimação de estratégias que estão, no nosso caso, relacionadas à existência da criança e sua educação familiar. A princípio, conforme os estudos desenvolvidos, as famílias, no espaço e no tempo, são responsáveis pela articulação de experiências, relações sociais, subjetividade e identidade coletiva, o que favorece a noção de que existe uma transmissão intergeracional de práticas educativas que, além de comporem as representações, se fazem presentes e resistentes a mudanças nas salas de aula. (MARIN, 2013; OLIVEIRA, 2011)

Metodologicamente, foi necessário um recorte de gênero (DEL PRIORE, 2001), primeiro porque o curso em questão - Pedagogia é predominantemente feminino; segundo, porque a manutenção social das relações associadas à criança e sua educação familiar, acontece, sem dúvida, pelo grupo de mulheres que perpassa informações via laços consanguíneos. Portanto, dezenove estudantes responderam ao solicitado para a pesquisa: tinham avós ou bisavós, com idades entre 75-88 anos, todas concordaram com a participação na pesquisa. Nomes foram suprimidos, seguindo-se, assim, os preceitos éticos da pesquisa com seres humanos.

No desenvolvimento da pesquisa, seguiu-se um roteiro de entrevista que foi aplicado por bolsistas de iniciação científica e por pesquisadores nas matriarcas e suas respectivas netas-alunas do curso. O roteiro, que também acabou compondo as categorias de análise, versou sobre: 1) criança; 2) educação (criação de filhos, netos); 3) cultura e ambiência (escolarização; socialização, formação); 4) religiosidade; 5) posição social na família. Posteriormente, as entrevistas foram compiladas, analisadas e os resultados foram debatidos com o grupo em sala de aula em “rodas de conversas”, como uma forma de fortalecimento da relação teoria e prática no processo formativo.

Aporte teórico

Pensar historicamente é um fenômeno cotidiano e inerente à condição humana (FERRI, 2011). É por meio da análise de uma exposição lógica dos acontecimentos do passado que a história produz um conhecimento racional. Isso indica que a história se ocupa de fenômenos que ocorrem em um determinado espaço e tempo, estudá-la significa recordar e organizar fatos do tempo e do espaço para produzir e atribuir sentido ao passado (SOUZA, 2019). E embora se possam construir infinitas possibilidades para sua compreensão, é pela reflexão teórico-metodológica dos fenômenos históricos que podemos compor e compreender as práticas discursivas partilhadas por diversos/diferentes grupos sociais, elas indicam seus modos de ser, pensar, agir, suas múltiplas narrativas pessoais e subjetivas.

A narrativa do passado, portanto, pode dar um sentido prático pelo qual se pode acessar representações significadas nas ações empreendidas pelos sujeitos no tempo. Como as narrativas circulam o cotidiano dos grupos, por meio delas é possível acessar aspectos das representações que podem ajudar a conhecer um pouco do passado vivido, da tomada de decisão e das escolhas realizadas pelos sujeitos, em suas experiências cotidianas.

Desse modo, como destacou Barros (2005), a análise das narrativas quando associada ao campo da História Cultural, torna-se uma modalidade historiográfica (DUBY, 1990) que atrai o interesse de historiadores das mais diversas matizes teóricas, inclusive da historiografia marxista, abrigando estudos variados: cultura letrada, cultura popular, representações, práticas discursivas partilhadas por diferentes e diversos grupos sociais, bem como, sobre “[...] os sistemas educativos, a mediação cultural [...], ou a quaisquer outros campos temáticos atravessados pela polissêmica noção de ‘cultura’”. (BARROS, 2005, p. 126). Por isso, voltamos ao estudo da dimensão cultural de um grupo de estudantes historicamente localizado. Isso indica que a dimensão cultural, por estar associada ao termo cultura, relaciona-se a todo processo humano que se constrói na prática social; à cultura é delegado o mérito da interpretação do mundo, da vida, dos sujeitos, do cotidiano, bem como os domínios da produção do conhecimento.

Fundamentalmente, qualquer sujeito, ao existir, já está automaticamente produzindo cultura, como afirmou Barros (2005, p. 127), “[...] a própria linguagem e as práticas discursivas que constituem a substância da vida social” embasam uma noção mais ampla de cultura. Ela ajuda a projetar o modo de ser e estar no mundo, o percurso coletivo, os acordos sociais, a linguagem oral e escrita, as representações e as práticas culturais, discursivas e não-discursivas (BARROS, 2004; CANDAU, 2016; CHARTIER, 1990), os sistemas educativos, a indústria cultural, os meios de comunicação, as organizações socioculturais e religiosas, as práticas sociais e os processos, bem como as visões de mundo, os sistemas de valores, os sistemas normativos, que podem até constranger os indivíduos. (FOUCAULT, 1972)

Na especificidade de cada sujeito, a cultura é devir, envolve modos de pensar, ser e agir, que permeiam a própria subjetividade e a objetividade. Enquanto produção social e histórica, a cultura leva ao encontro de um conjunto de significados partilhados, gestando uma forma simbólica e valorativa de leitura e tradução da realidade. Ela “[...] existe tanto fora de nós, em qualquer dia de nosso cotidiano, quanto dentro de nós”, nos obrigando a aprender, desde crianças e “[...] pela vida afora, a compreender as suas várias gramáticas e a falar as suas várias linguagens” (BRANDÃO, 2002, p. 16-17). Essa noção de cultura se constitui a partir do universo de abrangência da História Cultural, logo, as diversas correntes e abordagens que atravessam o campo, o que mereceria maior destaque. Entretanto, na sequência deste artigo - e na impossibilidade de examinarmos, no limite de espaço de que dispomos para esta reflexão, buscamos apoio em Chartier e em suas proposições nas práticas culturais, representações, e difusão de conteúdos veiculados através da oralidade. Isso fortalece nosso objeto de estudo, pois para ele, a cultura pode ser examinada no âmbito das práticas e representações, como já dissemos, seria por meio dos sujeitos produtores e receptores de cultura, que, de certo modo, correspondem aos “modos de fazer” e aos “modos de ver”. (CHARTIER, 1990).

Complementando, as representações são “[...] personificações de uma ausência, onde representante e representado guardam entre si relações de aproximação e distanciamento” (PESAVENTO, 2006, p. 49), como é o caso do grupo pesquisado, mas que estão relacionadas à maneira de ver e enxergar o mundo. Portanto, as representações além de estarem presentes em todas as culturas, têm sempre um caráter dinâmico e envolvem condições históricas que suscitam velhos ou novos conceitos entre os sujeitos.

As representações ainda abarcam a manutenção de valores e sentidos, ideias e imagens, que “[...] viajam no tempo e no espaço, em reconfigurações, transfigurações de significado”, mas também se ocupando da manutenção e cristalização de uma série de representações, como afirmou Pesavento (2006, p. 48).

Na sequência, Candau (2016) sustentou que representar é uma operação de ordenamento que emoldura o tempo, portanto, a memória. Visão que é ampliada por Halbwachs (2006) que ao conceituar memória a divide em coletiva e histórica para indicar que ambas estão associadas as representações, que são construções sociais, coletivas, que dependem dos relacionamentos, da posição e dos papéis sociais dos sujeitos com o mundo da vida. A primeira - memória coletiva -apresenta continuidade e densidade maiores que a memória histórica, é sempre plural, constituída por lembranças do passado que transcendem a individualidade. (SOUZA, 2019). A memória histórica, por sua vez, destina-se à participação dos sujeitos como membro de um grupo que contribui para “[...] evocar e manter as lembranças impessoais, na medida em que estas interessam ao grupo”, conforme explica Halbwachs (2004, p. 57). Ao final, as duas - memória coletiva e histórica - relacionam-se ao representar, sobretudo por se referirem por meio de símbolos “àquilo que se impõe por si”, pois independente da linguagem e da consciência.

Isso destaca que a representação tem existência, e pode ser percebida por outros sujeitos que as presenciam quando ocorreram (LIMA, 2006, p. 268). Na verdade, há um sistema simbólico que envolve um sujeito que conhece e que ao fazê-lo deve levar em consideração os quadros de significados produzidos. Estes, por sua vez, em devir, mudam e constituem novos sentidos, indicando que os sujeitos (re)elaboram ideias sobre o real que, ao longo dos tempos, se traduzem em narrativas, discursos, imagens e práticas sociais, representações que acabam por orientar a percepção da realidade.

Há ainda outro aspecto relacionado às representações, elas exigem uma ação humana e, por sua própria natureza, é inevitavelmente ambígua. O caráter ambíguo das representações encarna o fato de uma coisa ser e não ser simultaneamente na existência de um imaginário coletivo. Essa forja um sistema de ideias e imagens que os sujeitos, durante a convivência social, durante a história, constroem para dar sentido às coisas do mundo. Por isso, parece bastante adequado pensar que alguma forma de representação da realidade, também seja diversa, interessada, particular, contraditória, o que confronta com o fato de os sujeitos serem sócio-histórico-culturais. Isso também reforça o fato que as representações envolvem histórias, subjetividades, emoções, desejos, sonhos, frustrações, trajetórias pessoais, diferentes histórias de vida, sensibilidades, aspectos que sempre participam e influem no representar, no dar sentido ao mundo, além de gerar e sustentar condutas e práticas sociais.

Pesavento (2006) argumentou que quando um grupo acessa as representações de seu grupo social, ele rememora. Rememorar exige o outro para o resgate da manifestação dos sentidos e significados, salvando-o para o presente, ao mesmo tempo em que ajuda a identificar a influência dessa memória na configuração das representações no presente. E pelo fato de comportarem o entrecruzamento dos vários aspectos citados, algumas representações acabam adquirindo um status de autoridade maior, aceito e acordado como importante, de tal modo que se chega a esquecer de seu verdadeiro status de representação no jogo social. Por isso, as representações sustentam um sistema educativo que se inscreve como prática cultural (BARROS, 2005, p. 136), ao mesmo tempo que inculca, modela certos padrões de caráter, determinado repertório linguístico e comunicativo que pode ser vital para a vida social, pelo menos tal como a concebem os poderes dominantes. (FOUCAULT, 1972)

No horizonte teórico histórico-cultural, com Chartier (1990, p. 17) sustentamos que as representações comportam “[...] o modo como em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade cultural é construída, pensada, dada a ler”; permitem inclusive existências de verdadeiras “lutas de representações”, pois elas estão impregnadas de ideologia, sustentando uma rede de relações ideológicas ou significações necessárias à integração dos sujeitos, diante de algo que explique, expresse ou traduza o real, como expressou Pesavento (2006). Nesse sentido, elas se inserem em um campo de disputas que envolvem termos de poder e de dominação. (FOUCAULT, 1972)

Portanto, o campo da História Cultural mostra que refletir sobre as representações, narrativas, práticas discursivas, tem possibilitado abarcar um conjunto maior de fenômenos culturais, além aclarar o dinamismo da construção cultural e da apropriação cultural pelos sujeitos, não só a partir das próprias representações, mas esclarecendo sobre as escolhas dos sujeitos e suas relações na construção e desconstrução do cotidiano em determinados contextos históricos (CERTEAU, 2000, 2002). Essas ideias fomentaram o estudo e o debate sobre as representações sobre a criança e sua educação, no caso a familiar, de matriarcas e estudantes, o que amplia as condições de interpretação das ações e motivações desses sujeitos históricos.

Esclarecido o conceito fundamental que permeia a reflexão encaminhada pela História Cultural sobre representação, ainda evocamos Duby (1990), que é quem nos ajuda a afirmar que dentro de um contexto social, como é a sala de aula ou as famílias, destacam-se mecanismos de produção dos objetos culturais, como também mecanismos de recepção via linguagem, narrativas, representações, práticas culturais, discursivas e não-discursivas, o que reafirma uma pluralidade de culturas (seu devir), mantidos por sujeitos que, ao mesmo tempo, são produtos, produtores e receptores de cultura. Portanto, a análise e compreensão das representações, ajuda a decifrar algumas normas culturais que atravessa o cotidiano dos sujeitos pesquisados. (CHARTIER, 1990)

O aporte teórico sustenta nosso entendimento sobre o fato que na sala de aula de Pedagogia, manifestam-se várias representações sobre a criança e sua educação, o que exige que o processo formativo as reconheça como parte de um conhecimento prévio dos estudantes e, se possível, valorizá-las na construção do conteúdo curricular. Também implica reconhecer que as representações estarão sempre articuladas à criação de novos sentidos que se desenvolvem nos cursos de formação, e mais do que isso, exige considerar que elas exprimem “[...] valores culturais, traduzidos em ideias e imagens, [...]” expressos sobre determinados conteúdos nas salas de aulas, como afirmou Pesavento (2006, p. 48).

A análise das representações sobre a criança e sua educação, de matriarcas, via narrativas, pode esclarecer sobre o se/como alguns aspectos influem nas representações de estudantes de Pedagogia. Questionamos: as estudantes recebem influência das representações de avós e bisavós, gerando informações que passam a fazer parte do ser professor e sua ação pedagógica? Na busca de respostas, as representações são aqui consideradas como objeto de estudo da pesquisa acadêmica no campo da formação docente. (FERREIRA, 2002, p. 321)

Aspectos das representações das estudantes de Pedagogia

Os resultados mostraram que as representações de crianças das estudantes associavam aspectos relacionados à ideia de um “ser frágil” que “vive o momento mais lindo do desenvolvimento”; que personifica um “momento da inocência”, “pureza”, “alegria”, associando ideias do senso comum sobre a infância e a criança. Na articulação com o conteúdo das disciplinas, foi discutido que embora as ideias compiladas tivessem certa proximidade com alguns autores clássicos da Pedagogia: Rousseau, Froebel, Freinet, Pestalozzi, Dewey, havia a necessário de reformular as concepções apresentadas.

O processo também mostrou a importância da cultura na manutenção das ideias ou de um conjunto de significados partilhados. Logo, a cultura foi entendida como uma produção social e histórica que se expressa, através do tempo, em valores, modos de serem, objetos, práticos. A cultura passou a ser referendada como:

[...] uma forma de leitura e tradução da realidade que se mostra de forma simbólica, ou seja, admite-se que os sentidos conferidos às palavras, às coisas, às ações e aos atores sociais apresentam-se de forma cifrada, portando já um significado e uma apreciação valorativa. (PESAVENTO, 2006, p. 46).

Outros aspectos teóricos foram incorporados e debatidos pelos estudantes nas rodas de conversas, como: se a educação pode ser pensada como cultura, como proposto por Brandão, o que ampliou o papel do saber e da reprodução do saber no social, o que também indicou que existe uma dimensão cultural que se faz presente na prática social. Dessa forma, a cultura perpassa os sujeitos, seu cotidiano, envolvendo, inclusive, o domínio de vários aspectos da formação docente, como discutido por Barros (2005).

No que se referiu à educação da criança, identificamos aspectos como: “deve-se chamar a atenção das crianças”; “apoiar a correção das coisas erradas”; “bater”, “colocar de castigo”; “privação” de algumas coisas para que a “criança entenda o que está fazendo de errado”; mas esses não foram aspectos de todas as representações. Algumas estudantes afirmaram que “não se pode bater em criança”; que “isso não ajuda em nada”. Embora as respostas tenham sido bastante variadas, o que impulsionou acirrado debate nas rodas de conversas, foi necessário comparar os aspectos apresentados com que é proposto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), clarificando a concepção de criança presente na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, 1996) - criança como “cidadã de direitos”. As narrativas mostram que a “[...] linguagem e as práticas discursivas são a substância da vida social e embasam uma noção mais ampla de Cultura” (BARROS, 2005, p. 127), ou seja, de certa forma os sistemas culturais envolvem modos de ser e agir relacionados aos processos educativos.

Mesmo que o aspecto destacado tenha sido a violência contra a infância, a representação que também pertence à cultura projeta modos de ser e estar no mundo, reafirmando percursos coletivos presentes nos seios das famílias do grupo pesquisado (BARROS, 2004; CANDAU, 2016; CHARTIER, 1990), o que justifica a manutenção de práticas que podem até serem violentas a ponto de constranger os próprios sujeitos. (FOUCAULT, 1972)

Sobre a ambiência, escolarização, criação/educação das crianças destacaram-se aspectos da própria criação: “no dia a dia, foram corrigidas”, “foram colocadas de castigo”, que na sua escolarização, várias ações contribuíram para a “aceitação de que essas atitudes com a criança eram corretas”.

Suas mães, avós e tias, mulheres que as educaram, cuidavam das crianças da mesma forma. Reafirmava-se a ideia de que “não havia espaço para a criança falar”, “elas não faziam o que queriam”, “havia pouco ou nenhum afeto”, “nenhum espaço para criatividade, nem na escola”; a “mãe trabalhava fora, chegava cansada, não falava comigo”; “gostava de ajudar a fazer bolo, por exemplo, mas minha mãe não me deixava ajudar”; “minha avó cuidava de mim, mas não sentia proximidade”. Nas rodas de conversas destacou-se novamente a importância da cultura no compartilhamento de ideias que necessitavam mudanças a partir do processo formativo.

Quanto à religiosidade, as estudantes afirmaram que houve pouca ou nenhuma preocupação sobre a religiosidade em suas famílias. Embora percebessem que suas avós eram religiosas, não foram ensinadas e, algumas, não ensinaram suas próprias filhas e, muito menos, as netas. Nas rodas de conversas foi marcado que elas consideram a importância da religiosidade em suas vidas, mas diferentemente da visão e ação das avós e bisavós, que tentavam repassar esse valor, elas não repassavam essa prática. Como destacou Chartier (1990), as representações também estão articuladas à criação de novos sentidos, esses podem expressar novos valores culturais, novas ideias e imagens, reconfigurando significados das estudantes.

Quanto à posição social na família, destacaram que viveram a exigência de respeito aos pais, avós, tios, a todos os mais velhos, mas sentiam que não havia o mesmo em relação a elas. A maioria não percebia que tinham direito, que poderiam ter espaço de opinião e diálogo. Eram tratadas com indiferença, como dependentes e tinham que ficar nesse lugar social - sem fala. Ainda pontuaram que a família não priorizava dias ou horários para elas: “não saiam para passeios com as crianças”, no “domingo não se priorizava brincar com os filhos”, “a gente estava lá, mas ao mesmo tempo não estávamos”. As falas indicaram que a criança estava na família, mas não tinha um lugar especial, e isso causou bastante ressentimento entre as estudantes. Elas ainda relacionaram esses aspectos aos teóricos estudados, afirmando que ainda se mantém uma atitude bastante arcaica em relação às crianças, como preconizou Rousseau, por exemplo.

Aspectos das representações das avós e bisavós das estudantes e Pedagogia

Seguindo o mesmo roteiro de entrevista: 1) criança; 2) educação (criação de filhos, netos); 3) cultura e ambiência (escolarização; socialização, formação); 4) religiosidade; 5) posição social na família, as matriarcas responderam sobre a representação de criança resgatando a forma como foram tratadas: com indiferença, sem lugar de fala e participação, encaminhadas prematuramente aos trabalhos na roça ou domésticos. Não se lembravam de terem tempo para brincar, para expressarem a natureza infantil como singela e inocente. Todas lamentaram e reconheceram que isso lhes fez muito mal e que percebem que isso mudou atualmente.

As matriarcas afirmaram quanto à educação, criação/educação das crianças - filhos e netos, que viveram (algumas ainda vivem) no campo, em fazendas, o que, segundo elas, dificultou sua socialização e, principalmente, a frequência na escola. Todas responderam se reportando a própria infância:

[...] na fazenda, estudar era muito difícil porque não existia escola próxima [...] conheci as primeiras letras aos 13 anos. Nossa vida era a fazenda, a roça, plantar, colher, cuidar da casa. (Matriarca 1, 2019)

[...] frequentei uma pequena escola próxima de casa por 3 meses, mas tive que abandonar os estudos para me dedicar ao trabalho na roça. (Matriarca 5, 2019) [...] não tive chance de educação [...] o mundo me ensinou. A vida era difícil e os pais não valorizavam a educação. (Matriarca 8, 2019)

[...] frequentei a escola depois de casada, antes foi só trabalho para ajudar a família. (Matriarca 19, 2019)

[...] era só plantar mandioca, trabalhar na roça, ajudar nos afazeres domésticos.

(Matriarca 2, 2019)

Os trechos destacados mostram como esse grupo de mulheres da zona rural sente com pesar as razões que as impediram de estudar. Afirmaram que sentiram a falta da educação formal. Acreditam que se as coisas tivessem sido diferentes, se tivessem tido o direito à educação, poderiam ter tido vidas diferentes, poderiam ter dado a seus filhos melhores condições de vida. Muitas se mostraram contrariadas pela impossibilidade de estudar.

Alegaram que foram preparadas para casar-se, aprender a cozinhar, lavar, passar, costurar e cuidar de crianças, pois isso era considerado importante, não havendo mais nada às mulheres. Para elas, era a falta de estudo que limitava suas vidas, não saiam, não liam, não conversavam com quase ninguém, logo foram se tornando mulheres “fechadas em si mesmas”.

Conforme alegou Barros (2005), temos narrativas do passado dando um sentido prático, o que nos ajuda a acessar representações significadas nas ações empreendidas pelas matriarcas. Podemos perceber como elas circulam nos cotidianos destacando um passado vivido, o que influiu na tomada de decisão, nas escolhas e nas experiências cotidianas desses sujeitos.

Algumas afirmaram que foram vítimas de repressão e violência na sua infância, um tipo de violência que continuou em seus casamentos. A opressão as impediu de se revoltarem, como afirmou Foucault (1972), embora se revelassem relações de poder e de dominação, mas elas não sabiam como poderia ser diferente; justificaram o estado das coisas que viveram pela falta de estudo. Todas relataram que a educação era muito rígida, sem diálogo, com muita autoridade, ignorância e espancamento:

[...] eram tempos diferentes [...] não poderíamos brincar, fazer amigos, participar da vida social. Éramos muito cobradas, tínhamos que respeitar totalmente os mais velhos, não podíamos entrar e conversas dos adultos, nem cruzar a sala quando estivessem conversando. (Matriarca 2, 2019)

[...] Era uma educação severa e solitária, não tínhamos amigos e brinquedos.

(Matriarca 6, 2019)

[...] levei muita surra por teimosia. Naquela época era comum os pais baterem nas crianças. Meu pai me agrediu fisicamente, foi uma experiência dolorosa, mas aprendi que teimosia não trazia benefícios. (Matriarca 12, 2019)

[...] minha infância foi muito sofrida, cresci entre vivencias e experiências, acordava cedo para ir à roça. Os valores que me eram ensinados: ser honesto e trabalhadores, não roubar. (Matriarca 14, 2019)

[...] minha mãe morreu no parto, fui criada por uma irmã. Ela me batia, me amarrava no tronco, me deixava sem comer e beber. Batia em mim e nos seus filhos com cinto. (Matriarca 18, 2019)

[...] meu pai morreu numa briga de bar quando eu tinha 9 anos, foi um enorme alívio, ele espancava a família. Foi um alívio, pois minha mãe não teria mais que apanhar, e ficar sangrando [...]. (Matriarca 3, 2019)

[...] minha educação era rígida demais, meu casamento foi pior!! Um dia fiquei louca, dei três tiros no marido que me batia até sangrar [...] tenho culpa, mas enfrentei as pessoas. (Matriarca 18, 2019)

Os trechos destacados mostram que o grupo de matriarcas foi marcado por uma condução violenta da educação. Elas foram desrespeitadas, violadas, viveram sem direitos. Contraditoriamente, destacaram aspectos positivos da ação violenta que viveram, alegaram que mesmo sofrendo abusos e violências, aprenderam valores como: honestidade, respeito, força para o trabalho e resistência. Esse aspecto foi debatido nas rodas de conversas, sobretudo pelo fato de que não houve nenhuma conotação condenatoria das práticas educativas violentas sofridas pelas avós.

Elas afirmaram que suas experiências de vida deixaram marcas profundas, que lhes tirou o espaço de autonomia, direitos, integridade, mas “ensinou muito” a todas elas. Nenhuma das avós culpabilizou os pais pela violência sofrida na sua educação; elas inclusive justificaram dizendo que naquela época era diferente, pois os pais só sabiam fazer daquela forma. Por isso, sofriam caladas aquelas violências, e como afirmou Pesavento (2006), estariam fortalecendo a manutenção de valores e sentidos, e estes estariam viajando no tempo e no espaço, em reconfigurações, transfigurações de significado frente à família e suas netas? Esses aspectos também foram bastante debatidos nas rodas de conversas.

Ainda sobre os aspectos relacionados às formas de criação, socialização e educação das crianças, elas afirmaram que repetiram as ações de seus pais, ou seja, os mesmos valores e princípios na educação de seus filhos, inclusive a mesma violência (salvo extremos como “amarrar, deixar a criança passar fome e sede”) para que os filhos aprendessem o respeito aos pais e ao trabalho. Por isso, afirmaram que fizeram o mesmo na criação dos filhos. Ainda afirmaram que se tivessem chance, não mudariam nada, justificando uma educação “violenta”, como a base do educar do caráter. Acreditavam que e se essa forma tinha dado certo com elas, daria com seus próprios filhos. Segue o exemplo da narrativa de uma matriarca:

[...] essa forma de educar afastava meus filhos das coisas erradas, mas também os impedia da expressão de afetividade. Isso foi um fardo para mim, pois na relação com meus filhos não houve espaço para a manifestação de afeto. Talvez se tivesse agido diferente, se tivesse sido mais amorosa, agido com menos autoridade e violência, talvez meus filhos fossem pessoas diferentes. (Matriarca 18, 2019)

A análise das narrativas identificou que algumas matriarcas mudaram a forma de pensar a educação da criança na criação dos próprios netos (nossas estudantes). Elas afirmaram que ao ajudarem a criar os netos, sentiram que deveriam ser diferentes.

[...] sou ressentida porque não consegui, por exemplo, ser diferentes com algumas filhas que foram mães solteiras. Eu cuido dos netos, sou diferente com eles, mas expulsei minha filha de casa quando ficou grávida. Acho que foi por causa de um bloqueio emocional. (Matriarca 15, 2019)

A reflexão da Matriarca 15, sobre os acontecimentos passados, mostrou que ela identificou sua forma de educar como errada e gradativamente a mudou na criação dos netos. Como reforçou Lima (2006) identificamos a presença de um sistema simbólico, ele envolve as matriarcas, que o reconhecem e que tentam repensar seus quadros de significados. Este movimento poderia mudar constituir novos sentidos, indicando um processo de reelaboração das ideias sobre o real que, ao longo dos tempos, se traduzem nas narrativas das matriarcas.

Sobre a religiosidade, as matriarcas afirmaram que foram ensinadas a serem religiosas, por isso eram crentes a Deus. Afirmaram que tentaram passar essa fé aos filhos, poucos seguiram o mesmo caminho. Seus filhos não vão à igreja, alegam que não têm tempo e, pior, não ensinam ou passam essa religiosidade aos netos. Elas disseram que sentem a falta de religiosidade na família.

Algumas valorizam e destacaram suas posições na igreja. Três avós afirmaram serem conselheiras religiosas, e uma delas ainda assume o papel de benzedeira na comunidade:

[...] sou muito religiosa, tenho a posição de apostolado da oração na igreja, além de ser a melhor costureira da cidade. (Matriarca 11, 2019)

[...] sou matriarca, conselheira, meu aniversário é considerado pelos meus familiares como uma tradição [...] todos festejam comigo e ficam felizes. (Matriarca 12, 2019)

[...] sou religiosa e sou benzedeira respeitada na comunidade. Benzo cobreiro, sapinha, dor no corpo, enjoo de mulheres grávidas, caxumba e pessoas com problemas de cicatrização. Nunca cobrei nada de ninguém, porque era dom de Deus, mas ganhava presentes e agrados [...]. (Matriarca 14, 2019).

As avós se orgulham de sua religiosidade, das posições assumidas na comunidade e na família, mas lamentaram que os filhos e netos não dessem importância ao caminho que trilharam.

No que se refere à posição social e na família, as matriarcas afirmaram que conquistas nessa área estavam associadas às posições e de respeito nas igrejas. Embora poucas tenham ocupado esse lugar de respeito. Ao contrário, a maioria queixou-se da ausência dos filhos, do fato de não possuírem um lugar efetivo de decisão na família. Como argumentou Pesavento (2006), quando um grupo acessa as representações de seu grupo social, ele rememora. Quando as matriarcas rememoram houve o resgate de sentidos e significados, ressignificando o presente, ao mesmo tempo em que se destaca a influência dessa narrativa/memória na reconfiguração das representações no presente.

Influência das representações das avós e bisavós nas estudantes de Pedagogia

Empregar a História Cultural como enfoques possível para a análise e compreensão das representações, significa que assumirmos que existe a possibilidade de decifrarmos algumas normas culturais através do cotidiano dos sujeitos pesquisados. No caso das matriarcas, que fazem parte de nosso grupo pesquisado, entendemos que transmitem, via cultura oral, visões de mundo, sistemas normativos, concepções, ideias, os quais são mantidos e disseminados coletivamente por meio de correntes e movimentos de diversos tipos e, mesmo estando fora da cultura letrada da universidade, são portadoras de conteúdos veiculados pela oralidade para as estudantes de pedagogia. (CHARTIER, 1990)

Sobre a influência das representações das matriarcas nos discursos e representações das estudantes sobre a criança e sua educação, destacaram-se a manutenção da hierarquia da autoridade do adulto - cultura adultocêntrica como legítima e, em muitos casos, validando a violência contra a criança, a correção, a punição e os castigos. Nas rodas de conversas debateu-se sobre o fato que não houve repúdio ou manifestação de revolta pela perda de diretos das avós; não houve conotação da violência que sofreram por parte de seus maridos, nem sobre a forma como os maridos se consideravam superiores as esposas. A maioria das estudantes aceitavam que os maridos ou os pais de suas avós exerceram o poder sobre todas as pessoas da família, e que a família lhe devia obediência e respeito, como aspecto normal da socialização. Esse aspecto foi bastante debatido exigindo novas reflexões.

Quanto ao que seria “normal” ou aquilo que deveria ser destinado apenas à mulher e aos filhos, algumas afirmaram:

[...] Aceito que as formas de educar mudam ao longo dos anos, mas não estaria correta a correção violenta para ensinar respeito aos filhos? (Estudante 11, 2019) [...] Tem criança muito teimosa, não para de falar, quer tudo, da birra! Não devem ser educadas? (Estudante 18, 2019)

Nas rodas de conversas, as estudantes identificaram que os discursos das avós traziam aspectos de uma época cultural diferente, mas que os aspectos identificados faziam parte de décadas da história das mulheres brasileiras. Como destacou Pesavento (2006) identificamos valores culturais traduzidos em ideias e imagens, elas se faziam presentes nas reconfigurações e transfigurações de significados na relação parental.

A pesquisa mostrou que as representações sistematizaram formas de doutrinação, exemplificaram práticas educativas e sociais de uma sociedade machista que se impõe até os dias atuais à mulher brasileira. (FOUCAULT, 1972; DEL PRIORE, 2001)

Houve relatos sobre a articulação entre os aspectos identificados com a pesquisa e a teoria aprendida sobre a infância e seu educar. Afirmou-se que a cultura mantém aspectos cristalizados nas formas como se pensa a criança:

[...] Foi uma experiência incrível a promovida pela pesquisa. Os relatos das avós mostram o como carrego alguns aspectos na forma como penso a educação de crianças. (Estudante 1, 2019)

Quanto à importância do esclarecimento sobre as representações postas sobre a criança e sua educação no processo formativo, clarificou-se a importância da cultura como condutora de costumes cristalizados entre os familiares. Entendemos, como expressa o aporte teórico (LIMA, 2006), que a representação tem existência e pode ser percebida por outros sujeitos, ela também sustenta um sistema simbólico que pode suscitar a discussão dos significados que carregam, movimento que pode suscitar a elaboração e novos sentidos, pois os sujeitos são produtos e produtores de cultura, reorientar a percepção da realidade. As estudantes acrescentaram:

[...] A entrevista relatada mostra como carregamos a herança cultura de uma sociedade machista e patriarcal, percebi com o trabalho que várias formas de violência, privação, amargura, que foram se repetindo ao longo da história da minha avó, fazem parte da cultura do nosso país, e se faz presente até hoje na história das mulheres. A experiência foi importante por me ajudar a associar o conteúdo das disciplinas estudadas, a necessidade de mudarmos nossas representações sobre o educar, a importância da afetividade e do brincar para a criança. (Estudante 11, 2019)

[...] entendi que as formas de violência vividas pela minha avó eram naturalizadas (continuam sendo) na cultura, conforme estudamos na disciplina Sociedade, Cultura e Infância e Fundamentos da Educação Infantil, é necessário pensarmos sobre nossas representações, elas mostram-se arraigadas a nossa cultura, as histórias de nossas famílias, mantendo práticas educativas. Outra coisa que me chamou bastante a atenção, era a forma como a culpa era sempre jogada nas mulheres, isso era repassado de mãe para filhas. As mães (avós) diziam que isso era normal, serem violentadas e oprimidas, ensinavam suas filhas a suportarem as agressões. Eu sou mais feliz, minha avó ensinou suas filhas (entre elas minha mãe), e a mim (sua neta), que não devemos suportar isso! (Estudante 3, 2019)

As conclusões suscitadas nas rodas de conversas, nesta fase da pesquisa, culminaram em novas questões. Algumas estudantes expressaram uma nova compreensão:

[...] A entrevista foi proveitosa para meu processo formativo porque além de conhecer mais sobre o passado de minha família, fiz associações do passado com o presente: necessidade de compreender as histórias das crianças e sua educação para ajudar a coibir certas coisas [...] entendi a mentalidade de outra geração. Entendi por que minha avó é tão radical em algumas coisas, e isso me levou a respeitar quem tem mais idade e mais história. (Estudante 14, 2019)

[...] A atividade foi interessante e enriquecedora na minha vida acadêmica, compreendi a história de vida da minha avó e como isso vem influenciando as formas de educar [...]. (Estudante 12, 2019)

[...] Entendi como a forma como uma pensou educa pode mudar. Minha avó pensa a educação de uma forma bem diferente que a atual, até valoriza a violência! Vou levar a experiência para minha vida pessoa e profissional como docente. (Estudante 19, 2019)

Para as estudantes o movimento da pesquisa promoveu “mais carinho e afeição” (Estudante 5, 2019) entre avós e netos; ou ainda, apreciação do contato com a avó: “[...] minha avó achou ótima nossa conversa e fez sucesso na produção de quitandas para acompanhar nossa entrevista” (Estudante 8, 2019).

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES: PRESENÇA E INFLUÊNCIA DE REPRESENTAÇÕES NO PROCESSO FORMATIVO DE PROFESSORES

É contando histórias, nossas histórias, o que nos acontece e o sentido que damos ao que nos acontece, que nos damos a nós próprios uma identidade no tempo. (LARROSA, 2001, p. 69)

A realização da pesquisa representou um tempo de perceber os múltiplos fatores e condições que interferem nas representações sobre a criança e seu educar. Os relatos analisados mostram as marcas que foram deixadas, nas estudantes, em relação as representações da infância e como estas representações acabam por influenciar no campo da formação de professores, especialmente da pedagogia, e, da educação de modo geral. Um “novo” foi incorporado reorganizando formas de pensar.

Articular ensino e pesquisa na formação docente deu um novo sentido aos conteúdos programados pelas disciplinas, sobretudo por relacioná-los aos conhecimentos prévios das alunas. A experiência mostrou ser possível reviver episódios socioculturais, pois vivificados nas lembranças, como daqueles expressos pelas matriarcas. (LARROSA, 2002)

Resumidamente, a pesquisa identificou: 1) que os sentidos e discursos das avós matriarcas expressavam a cultura; 2) que há influência de aspectos das representações das matriarcas nas representações das estudantes sobre a criança e seu educar; 3) vários aspectos das representações perduram via cultura e passam a integrar as ações educativas; 4) na articulação entre pesquisa e ensino pode-se ter clareza sobre as influências geracionais, o que pode ajudar a evitar a reprodução de aspectos negativos na ação das futuras docentes.

No caso das representações da criança e sua educação, ampliou-se o entendimento das estudantes e permitiu melhor apropriação do conteúdo e reformulação do pensamento. A pesquisa ajudou a promover novas formas de significação que traduziram expressões da cultura no processo ensino-aprendizagem. Ele se tornou mais criativo, capaz de despertar mais interesse por parte dos estudantes.

Ao final, o grupo estabeleceu contato entre “passado” e “presente”, sobretudo por reposicionar as matriarcas como sujeitos históricos e culturais, expressando as condições de seu tempo, de suas histórias, de suas culturas. Portanto, a cultura, ou as diversas formações culturais identificadas, pode ser compreendida no âmbito da pesquisa, via narrativas e representações identificadas na relação interativa entre os sujeitos pesquisados. Conforme aporte teórico, elas são produtos e produtoras de práticas e representações, bem como receptoras de cultura que circulam entre elas, o que de certo modo corresponde respectivamente aos modos de fazer e aos modos de ver e ser frente a criança e sua educação. No recorte da pesquisa, essa é a realidade social decifrada, embora saibamos que seja sempre complexa, múltipla, plural, que sempre suscitara novas aproximações diferenciadas.

Da experiência da pesquisa vislumbramos a necessidade de continuidade da pesquisa para abarcar novas possibilidades à escrita da história das estudantes, a partir de algumas tendências historiográficas que possibilitem a análise entre história e gênero, inter-relações socialmente construídas entre os sexos e a condição feminina na vida familiar na nossa sociedade, os papéis atribuídos à mulher mãe e esposa, alteridade e identidade feminina, pois esses temas destacaram-se nas narrativas que indicavam práticas culturais que limitavam o espaço da mulher, reforçando as desigualdades de gênero.

Por agora, a História Cultural favoreceu a análise e a compreensão das representações presentes no cotidiano dos sujeitos pesquisados, o foco fica na identificação de que as representações são disseminadas coletivamente por meio de correntes e movimentos de diversos tipos e, mesmo estando fora da cultura letrada da universidade, as matriarcas são portadoras de conteúdos veiculados pela oralidade para as estudantes de Pedagogia (CHARTIER, 1990). Isso se faz importante quando destacamos o papel social dos agentes formadores, no sentido freiriano ele deve estimular processos pedagógicos que ampliem a conscientização de professores, como mediadores entre o conhecimento e um sujeito. Sujeito que é visto como um ser inerentemente concreto, mediado pelo social, determinado histórica e socialmente, que para se humanizar necessita de relações e vínculos.

Por certo, as estudantes do curso de Pedagogia reviveram episódios socioculturais que estavam vivificados nas suas lembranças e nas de suas avós e bisavós. Como afirmou Pesavento (2006), as representações estão sempre relacionadas à maneira de ver e enxergar o mundo, fazem parte das culturas, são dinâmicas, envolvem condições históricas que suscitam velhos ou novos conceitos entre os sujeitos. Nesse sentido, a experiência da pesquisa trouxe vivências fizeram convergir aspectos do passado social e subjetivo de cada estudante, ajudando-as, por exemplo, a se perceberem no movimento de repetição de práticas violentas na educação de crianças.

1Agradecimento a todos os estudantes do Curso de Pedagogia, ano de 2019, pelo apoio e participação na pesquisa.

2Alguns eixos referendam o atual desenvolvimento da História Cultural, ao lado da “Escola Inglesa (Thompson, Hobsbawm e Christopher Hill) e da abordagem polifónica da cultura (Bakhtin e Ginzburg), há as adjacências, de todo um grupo de historiadores que toma para objeto o discurso científico, e o discurso historiográfico em particular, consolidando uma linha de reflexões que teve alguns de seus textos pioneiros com Michel Foucault, notadamente a partir de A Arqueologia do Saber (1972). Compondo esta nova perspectiva, que desloca o olhar para o campo dos discursos, aparecem aqui as análises de Hayden White (1992) e Dominick La Capra (1983)” a respeito da História como uma forma de narrativa como todas as outras, a incluir componentes de retórica, estilo e imaginação literária que devem ser decifradas pelos analistas do discurso historiográfico. Sobre o lugar de produção do discurso historiográfico, sua prática e sua recepção, deve ser mencionada ainda a marcante contribuição de Michel de Certeau (1982, p. 65-119) com “A operação historiográfica”. Estas várias perspectivas da História Cultural são tão importantes como a proposta por Chartier, e cada uma delas mereceria um estudo em maior profundidade (BARROS, 2005, p. 140-141; SANTOS, 2005).

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Recebido: Novembro de 2019; Aceito: Julho de 2020

E-mail: solufg@hotmail.com

Informações da autora

Solange Martins Oliveira Magalhães Universidade Federal de Goiás - Curso de Pedagogia e Programa de Pós-graduação em Educação - Faculdade de Educação/UFG

E-mail:solufg@hotmail.com

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1187-112X

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