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Revista Teias

versão impressa ISSN 1518-5370versão On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.21 no.62 Rio de Janeiro jul./set 2020  Epub 09-Fev-2022

https://doi.org/10.12957/teias.%y.49740 

Raça e Cultura

FORMAÇÃO DE PROFESSORES E RACISMO — para onde vamos?

FORMAÇÃO DE PROFESSORES E RACISMO — where are we going?

FORMACIÓN DE PROFESORES Y RACISMO — ¿para donde vamos?

Rejane Lucia Amarante de Macedo1 
http://orcid.org/0000-0002-4264-028X

1Doutoranda em Educação (UFF); Professora Mestra em Educação - UERJ; Pedagoga (UERJ), Professora dos Anos Iniciais e Orientadora Educacional; Área de Educação Especial e Inclusiva.


Resumo

Escrever sobre racismo, nos dias atuais, é trazer à tona fatos do cotidiano que apontam para o debate sobre a questão racial no Brasil. A proposta dessa escrita baseia-se no reconhecimento de que o racismo está presente também na formação de professores e, de um modo geral, muitos preconceitos concebidos e introjetados ao longo da vida social estão no espaço escolar de forma explícita, ou ainda, de forma camuflada. Pensar a formação de professores como um espaço de discussão das relações raciais é possível? Na sociedade brasileira o racismo se efetiva de diversas formas e o racismo se dá não apenas pelas questões culturais, mas também com relação aos aspectos físicos observáveis no corpo do/a negro/a. Nesse cenário apresentado, esse artigo dará maior destaque à educação que acontece no interior da escola, pois há tempos recai sobre ela uma aposta para a emancipação e garantia de melhores condições de vida para a população negra.

Palavras-chave: formação de professores; racismo; discriminação racial; currículo

Abstract

Writing about racism nowadays is to bring up everyday facts that point to the debate on the racial issue in Brazil. The proposal of this writing is based on the recognition that racism is also present in the training of teachers and in general, many prejudices conceived and introjected throughout social life are in the school space in an explicit way, or even in a camouflaged way. Is it possible to think of teacher education as a space for discussing race relations? In Brazilian society, racism takes place in different ways and racism occurs not only due to cultural issues, but also in relation to the physical aspects observable in the body of the black person. Within this presented scenario, this article will give greater emphasis to the education that takes place inside the school, as it has long been a bet for emancipation and guarantee of better living conditions for the black population.

Keywords: teacher training; racism; racial discrimination; curriculum

Resumen

Escribir sobre el racismo hoy en día es sacar a la luz hechos cotidianos que apuntan al debate sobre el tema racial en Brasil. La propuesta de este escrito se basa en el reconocimiento de que el racismo también está presente en la formación de los docentes y, en general, muchos prejuicios concebidos e introyectados a lo largo de la vida social se encuentran en el espacio escolar de manera explícita, o incluso, de forma camuflada. ¿Es posible pensar en la formación docente como un espacio para discutir las relaciones raciales? En la sociedad brasileña, el racismo se produce de diferentes maneras y el racismo se produce no solo por cuestiones culturales, sino también en relación con los aspectos físicos observables en el cuerpo de la persona negra. Dentro de este escenario presentado, este artículo dará mayor énfasis a la educación que se lleva a cabo dentro de la escuela, ya que durante mucho tiempo ha sido una apuesta por la emancipación y la garantía de mejores condiciones de vida para la población negra.

Palabras clave: formación de profesores; racismo; discriminación racial; plan de estudios

INTRODUÇÃO

Escrever sobre racismo nos dias atuais é trazer à tona fatos do cotidiano que apontam para o debate sobre a questão racial no Brasil. Não só a denúncia e a interpretação da realidade social e racial brasileira, bem como também o posicionamento da população em geral, do meio político e acadêmico sobre essas questões trazem apontamentos importantes para uma discussão.

A proposta dessa escrita baseia-se no reconhecimento de que o racismo está presente também na formação de professores e, de um modo geral, muitos preconceitos concebidos e introjetados ao longo da vida social são reproduzidos no espaço escolar. Poderíamos então repensar a formação de professores como um espaço de discussão das relações raciais? Seria possível? Freire (1999, p. 92-93) destaca a necessidade de assumirmos uma “educação corajosa” que conscientize o homem de sua necessidade de participação e de uma educação que leve esse homem a uma nova postura diante dos problemas de seu tempo e de seu espaço, entre eles o racismo.

A questão racial e o racismo que afeta os/as negros/as brasileiros/as aqui mencionados dizem respeito às pessoas classificadas como pretas e pardas nos censos demográficos realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) (SOUZA, 2002, p. 13 apudGOMES, 2005, p. 39). Inicialmente, apresenta-se a questão do ser negro/a e/ou tornar-se negro/a, a partir de processos culturais, sócio-políticos e históricos, nos quais os sujeitos vão assumindo “[...] múltiplas identidades, produzidas gradativamente, num movimento que envolve diversas variáveis, desde as primeiras relações com os grupos sociais que estão inseridos e as outras relações que experimenta na sociedade” (GOMES, 2005, p. 43).

As múltiplas identidades sociais que os negros/as vão construindo possuem dimensões pessoais e sociais que não podem ser separadas. Elas se entrecruzam e estabelecem uma conexão com a vida social dos sujeitos. Ser negro é um “tornar-se negro” (SOUZA, 1983), pois vai muito além dos estereótipos determinados pela sociedade. Busca-se, assim, entender a construção da identidade negra não somente na sua dimensão subjetiva e simbólica mas, sobretudo, no seu sentido político (GOMES, 2003).

É importante também apontar a compreensão sobre raça apresentada nessa escrita, pois assume múltiplos sentidos. Entre eles, destaca-se a ressignificação política atribuída aos próprios negros/as, principalmente no campo da militância e, também, como uma categoria social que infelizmente promove formas de exclusão, violando direitos e reafirmando estereótipos (MUNANGA, 1994).

Destaca-se, ainda, que a sociedade brasileira faz uso do termo “raça” para nomear, identificar ou falar sobre pessoas negras, evidenciando o racismo e a inferioridade do negro. Quando se fala de raça não se inclui o branco. Com isso, o termo raça se apresenta carregado pelo ranço da escravidão e pelas imagens construídas do negro e do branco no Brasil (GOMES, 2005). Daí a importância de se perceber o sentido em que esse termo é utilizado, em qual contexto ele surge, quem fala e o que fala (RIBEIRO, 2017), pois a “raça” foi utilizada em outros tempos com a ideia de “raças superiores e inferiores”, legitimando atrocidades contra a humanidade, como aconteceu na Alemanha no século XX. Embora se saiba o quão “[...] difícil é aniquilar as raças fictícias que rondam nossas representações e imaginários coletivos” (MUNANGA, 2003, p. 10), é preciso estabelecer um debate sobre essa questão na atualidade.

SOBRE RACISMO E FORMAÇÃO DE PROFESSORES

No Brasil, a relação entre discriminação racial e o racismo se dá não apenas pelas questões culturais, mas também com relação aos aspectos físicos observáveis no corpo do/a negro/a. A discriminação racial diz respeito, segundo Gomes (2005, p. 55), “[...] a distinção, diferenciação, sendo considerada como a prática do racismo”. É produto direto do preconceito. A mesma autora ainda fala sobre o racismo como um comportamento relacionado ao ódio em relação às pessoas que possuem pertencimento racial observável por meio da cor do cabelo e cor de pele, por exemplo (GOMES, 2005, p. 52).

O racismo está presente na vida da humanidade por séculos, e no caso do Brasil ele se fundamenta principalmente nos aspectos físicos das pessoas negras. O cenário de discriminação afeta a vida dos/as negros/as e, com isso, tudo que vem deles é considerado inferior. Ser negro/a no Brasil “é ser violentado diariamente” (SOUZA, 1983, p. 2). A violência física e a simbólica vão dando corpo ao racismo e as normas da sociedade tentam produzir um negro brasileiro que não dá conta da complexidade das experiências de negritude no Brasil (GOMES, 2002).

É comum dizer que em nosso país não existe racismo, pois somos frutos de uma grande miscigenação. Daí a forma ambígua com que ele se apresenta na sociedade e suas especificidades, pois ao mesmo tempo em que é reconhecido, as pessoas negam que exista racismo no Brasil. Diversas pesquisas apontam para um cotidiano repleto de contradições, em que os/as negros/as ainda são discriminados/as e vivem na pele os efeitos da profunda desigualdade racial quando comparados com outros grupos étnico-raciais (GOMES, 2005). Então, a sociedade brasileira convive com o imaginário de uma narrativa de democracia racial que foi produzida para, de alguma forma, camuflar o quão estrutural e real é o racismo na nossa sociedade. Essa questão tem, infelizmente, se consolidado há bastante tempo e as pessoas acabaram por adotar práticas discriminatórias em suas vidas. O racismo acaba por se afirmar através de sua própria negação, nos discursos de quem diz combater o racismo, mas que faz piadinhas com negros/as ou ainda com quem assume discursos politicamente corretos, mas que lá no fundo não se relacionam com pessoas negras (RIBEIRO, 2017).

Com relação ao racismo, destaco alguns autores que desenvolvem pesquisas nessa área, como Gomes (2003, 2005); Munanga (1994); Souza (1983), apontando que o histórico da escravidão no Brasil ainda produz efeitos na vida dos descendentes de africanos que vieram, forçadamente, para o nosso país. Junta-se a isso o fato de que após a abolição do trabalho escravo, o Estado não se posicionou, de fato, sobre o combate ao racismo. Ao contrário disso, houve uma total omissão com relação às políticas públicas, pois desconsideravam a discriminação racial existente entre negros e brancos, dificultando/impedindo que o/a negro/a se apropriasse de seu direito à cidadania. Ainda hoje os/as negros/as são pensados por alguns setores da sociedade de forma inferior, dando a eles/as apenas espaços não desejados, subalternos e marginalizados. Isso se afirma nas relações de gênero, no mercado de trabalho, na educação e nos diversos setores que vão compor uma sociedade que, no fundo, é racista.

Torna-se urgente também se pensar sobre a intersecção e as relações estruturais de poder, de raça, classe, gênero e sexualidade que reproduzem injustiças sociais de uma geração à outra (COLLINS, 2017, p. 6). Lutar para combater o racismo é entendê-lo como algo que age nas estruturas e, também, nas brechas, articulando diversas questões que não dizem respeito só à cor da pele. Vai muito além disso e, sendo assim, é preciso abandonar interesses individuais nesse contexto de combate ao racismo, para se juntar ao coletivo, às forças que se unem para entender e combater as raízes da discriminação racial.

No cenário aqui apresentado, destaca-se uma preocupação constante no campo da educação — a questão do racismo na formação de professores. Ao pensarmos sobre essa questão, a educação então é entendida como “[...] um amplo processo, constituinte da nossa humanização que se realiza em diversos espaços: na família, na comunidade, no trabalho, nos movimentos sociais, nas escolas, dentre outros” (GOMES, 2002, p. 38). A educação assume, aqui, sua multiplicidade, afirmando-se e reafirmando-se como espaço não só de conteúdos e saberes escolares, mas também de valores da vida cotidiana que produzem outros novos saberes, e acontece no cenário brasileiro de desigualdades, tendo como um dos seus recortes a questão racial.

De alguma maneira pensa-se a educação como meio de assegurar equidade, justiça social e é nas escolas que estas questões são mais enfatizadas. Reconhecemos sua dimensão mais ampla, no entanto, nesse artigo, daremos maior destaque à educação que acontece no interior da escola, pois há tempos recai sobre ela uma aposta para a emancipação e garantia de melhores condições de vida para a população negra. Essa não é uma questão simples e necessita de ampla discussão.

Freire (1999, p. 93) afirma que “[...] não há nada que mais contradiga e comprometa a emersão popular do que uma educação que não jogue o educando às experiências do debate e da análise dos problemas e que não lhe propricie condições de verdadeira participação”. Com isso, destaca-se a importância de incluir o educando nos debates das escolas, principalmente com relação às questões raciais. De uma forma ou outra, essa temática adentra as escolas e os professores se deparam com algumas situações que geram conflitos, tensões e diversas atitudes, incluindo o racismo. Com isso, recai sobre a escola mais uma tarefa: a de superar situações discriminatórias e racistas, favorecendo vínculos baseados no respeito à diversidade, em busca do fortalecimento das identidades étnicas (GOMES, 2002, 2003, 2005).

A escola pode ser pensada de diversas formas, entre elas, como um dos espaços de formação, em um processo educativo mais amplo, em que professores e estudantes experimentem princípios democráticos. Importante destacar, ainda, que na escola circulam saberes e tensões inerentes à sociedade, entre eles as desigualdades.

O fato de que há desigualdade racial e, também, de gênero, no mercado de trabalho, é uma comprovação de que o racismo age estruturalmente na nossa sociedade, podendo dar pistas sobre o encaminhamento de mulheres para o exercício do magistério. Essa questão é aqui levantada devido ao fato de que, historicamente, as mulheres negras no Brasil foram colocadas em trabalhos considerados subalternos, entre eles os trabalhos domésticos, manuais; e em certo momento, com a desvalorização do magistério, as mulheres negras foram encaminhadas, de diversas maneiras, para ofícios de menor remuneração como, por exemplo, o magistério (GOMES, 2003). Importante deixar claro que tal afirmação não se configura em regra geral, mas é aqui utilizada para estabelecer uma possível relação entre magistério e mulheres negras no Brasil.

O entendimento de que não é só uma competência ou formação que determina para onde as pessoas vão e em que trabalham, principalmente se forem negros/as, pois se o empregador tem princípios e valores racistas, ele pode impedir que uma pessoa esteja naquele lugar, em determinado emprego, não por uma questão de currículo ou competência, mas porque ele olha para a cor da pele daquela pessoa. É uma forma de o racismo operar institucionalmente e, também, ser naturalizado.

Uma das possibilidades para que algo substancial seja possível de ser realizado na escola, no tocante às relações raciais, diz respeito à formação de professores. Para isso, trago contribuições de Freire (1999, p. 50):

[...] o que importa, não é a repetição mecânica do gesto, este ou aquele, mas a compreensão do processo educativo, das práticas pedagógicas emancipatórias, do valor dos sentimentos, das emoções, do desejo, da insegurança a ser superada pela segurança, do medo que, ao ser “educado”, vai gerando coragem.

O autor destaca que um dos principais papéis da escola é formar cidadãos críticos e reflexivos. Isso inclui os/as professores/as, pois eles irão mediar a relação entre preconceito e cidadania. O que não é uma tarefa fácil. Pensar, então, os gestos desses/as professores/as na perspectiva de desconstruir, na tentativa de reverter a ideologia e os estereótipos racistas no cotidiano escolar seria uma possibilidade? Seria possível fazer isso? Diante desses questionamentos, a escola assume uma tarefa relevante a cumprir, considerando-se que os/as professores/as não podem ficar indiferentes à problemática da diversidade e do combate ao racismo. Cada vez mais estão explícitos, nas escolas, os estereótipos que reforçam a discriminação racial. Seguindo por esse caminho, Gomes (2003, p. 171) aponta a dificuldade existente de reafirmar os aspectos positivos do corpo negro e sua relação com a formação de professores no Brasil:

Construir uma identidade negra positiva em uma sociedade que, historicamente, ensina ao negro desde muito cedo que para ser aceito é preciso negar-se a si mesmo, é um desafio enfrentado pelos negros brasileiros. Será que, na escola, estamos atentos a essa questão? Será que incorporamos essa realidade de maneira séria e responsável quando discutimos nos processos de formação de professores, sobre a importância da diversidade cultural?

A autora ressalta a importância que a escola pode assumir na formação das identidades, valorizando as diferenças, fugindo das armadilhas, dos estigmas e da discriminação racial. Também afirma a importância da formação de professores como espaço determinante na formação de identidades e, para isso, destaca a necessidade de esses/as professores/as estarem atentos à realidade em que vivem, e quais fatores estão determinando ou reforçando o preconceito com relação aos negros/as no Brasil.

No cenário formativo aqui defendido, destaca-se ainda a importância das ações afirmativas implementadas pelo governo federal para superar situações de racismo na educação, a saber: a Lei n. 10.639/03 e o Estatuto da Igualdade Racial, Lei n. 12.288, de 20 de julho de 2010. Ambos destinados a garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, o combate ao racismo e a qualquer outra forma de intolerância étnica, além da defesa de direitos étnicos individuais, coletivos e difusos. É fundamental pensar que as questões raciais são questões da sociedade e devem se encaminhar para a desconstrução de qualquer forma de discriminação. Além disso, já se passaram alguns anos e, por isso, cabe pensar se houve impacto dessas leis nas escolas brasileiras. Como a legislação tem afetado o cotidiano? Sabe-se que ocorreram investimentos em recursos presenciais e a distância com relação à formação de professores nos mais diferentes níveis. Ampliaram-se as discussões sobre a história e a cultura afro-brasileira. No entanto, reafirma-se cada vez mais a necessidade de sensibilizar professores/as para trabalhar os temas relacionados ao racismo, pois esses temas, de certo modo, desequilibram a forma como professores/as se veem, se colocam no mundo e instituem suas práticas pedagógicas.

REPENSANDO A FORMAÇÃO DE PROFESSORES - EM PAUTA AS RELAÇÕES RACIAIS

Ainda sobre a formação de professores e o racismo, vale destacar a preocupação com a formação inicial e em serviço. Pensando com Gomes (2003, p. 4), quando a autora escreve sobre educação, identidade negra e formação de professores, surgem as seguintes perguntas: como os/as professores/professoras se formam no cotidiano escolar? As temáticas sociais e culturais, incluindo o racismo, são abordadas na sua formação? A questão do racismo é discutida/problematizada nos currículos escolares dos cursos de formação de professores? Muitas coisas entram no jogo das tensões que vão compor um território de disputa que é o currículo na formação de professores. Torna-se urgente pensar sobre o fato de as questões étnico-raciais estarem presentes ou não nesse processo de formação.

Existe legislação específica que trata sobre a inclusão das temáticas étnico-raciais na educação. Não se podem simplificar as questões aqui levantadas, pensando que basta reunir produções acadêmicas sobre a questão racial na educação e em outras áreas do conhecimento, sem pensar em que aspectos essas produções devem fazer parte da formação de professores (GOMES, 2003, p. 2). O grande desafio seria, então, propor discussões sobre tais produções e avaliar que aspectos precisam compor a formação de professores, produzindo currículos que articulam cultura, identidade negra e educação. Essa articulação se dá e é produzida nas escolas. É imprescindível que se tenha atenção a todo esse processo.

Uma pergunta ainda chama atenção durante essa escrita, pois seria impossível pensar a formação de professores distante da discussão do racismo: como o tratamento conferido às relações étnico-raciais nos cursos de formação de professores pode incidir na sua formação inicial para lidar com concepções racistas em nossa sociedade? É possível que alguns professores no seu processo de formação encontrem dificuldades para lidar com temáticas relacionadas aos negros/as no Brasil. Uma boa opção seria repensar a formação a partir das ideias de Gonzalez (1984, p. 29), que enfatiza a necessidade de “[...] provocar e desestabilizar a epistemologia dominante”, que desconsidera a diversidade cultural em muitos aspectos.

As desigualdades que também são produzidas nos cursos de formação de professores se reafirmam pelo modo com que o poder articula identidades, tornando-se resultado de uma estrutura de opressão que privilegia algumas culturas e despreza outras, nas escolas (RIBEIRO, 2017, p. 33). Isso afeta diretamente a formação que precisa, antes de tudo, ter preceitos antirracistas. A falta de discussão sobre questões raciais na formação de professores também revela relações de poder, que ainda determinam o que ensinamos e aprendemos nas escolas.

As escolas preocupam-se com conteúdos disciplinares, com a rigidez dos métodos de ensino e a reflexão sobre práticas educativas são trabalhadas de forma secundária. A “concepção bancária” (FREIRE, 1999) ainda ronda o cenário educacional, e nos processos formativos utiliza a educação como instrumento de opressão, caracterizando-a como depósito, dádiva para com o povo considerado sem conhecimento. Nesse cenário, um dos desafios na formação de professores seria estimular um processo de evolução que saia de uma consciência ingênua ou mítica para uma consciência crítica, quando os sujeitos assumiriam o papel de produtores de conhecimentos. Com isso, cria-se espaço para diversas discussões, entre elas o racismo.

Pensando ainda sobre o currículo na formação de professores, vale ressaltar a questão das diferenças. Costuma-se tratá-las nos cotidianos das escolas de forma desigual. De alguma maneira “[...] a diferença acaba por ocupar um estado de maldição” (DELEUZE, 2006, p. 57). Direta ou indiretamente se hierarquizam as diferenças, transformando-as em desigualdades. Deleuze (2006, p. 57) ainda afirma que a diferença “[...] deve sair de sua caverna e deixar de ser um monstro; ou, pelo menos, só deve subsistir como monstro aquilo que se subtrai ao feliz momento, aquilo que constitui somente um mau encontro, uma má ocasião”. Aprende-se na escola e em outros contextos a ver negros e brancos como diferentes. As diferenças são categorizadas e hierarquizadas. É assim que, infelizmente, se é educado e socializado. Sobre diferenças, Gomes (2002, p. 40), afirma que:

[...] no processo educativo, a diferença coloca-se cada vez mais de maneira preponderante, pois a simples existência do outro aponta para o fato de que não somente as semelhanças podem ser consideradas como pontos comuns entre os humanos. A diferença é, pois, um importante componente do nosso processo de humanização. O fato de sermos diferentes enquanto seres humanos e sujeitos sociais talvez seja uma das nossas maiores semelhanças.

As diferenças aproximam, distanciam as pessoas e são consideradas como deficiências, produzindo desigualdades. Com relação às questões raciais, a partir do olhar que discrimina o negro, as diferenças o isolam, o materializam e reforçam o racismo. Os sujeitos agem a partir de comparação e classificação entre negros e brancos. Os estereótipos são reforçados e, no caso da escola o/a aluno/a negro é sempre visto como fraco/a, lento/a e indisciplinado/a. Tudo o que for depreciativo acaba por recair sobre ele/a. São questões que também atravessam a formação de professores, pois o corpo não é uma temática na formação de professores (GOMES, 2003, p. 1).

Aí vem a pergunta: o que a formação de professores tem a ver com isso? Acontece que se essas questões passam despercebidas durante a formação de professores, contribui-se para a reprodução do racismo e, se quisermos tanto combatê-lo, temos que, primeiramente, educar a nós mesmos, professores/as. Pensar as diferenças como construções sociais, culturais e políticas. Daí a importância de se atentar sobre tais questões na formação inicial, em serviço e no olhar que escapa da hierarquização das diferenças. Assumir o compromisso social, pedagógico e político de superar o racismo seria tarefa importante para se pensar a formação de professores nos tempos atuais?

Ainda sobre as questões relacionadas às escolas e à formação de professores é relevante também destacar a posição de professores/as diante de situações discriminatórias, preconceituosas ou racistas ocorridas no espaço escolar. Munanga (2005, p. 15) declara que:

[...] alguns professores, por falta de preparo ou por preconceitos neles introjetados, não sabem lançar mão das situações flagrantes de discriminação no espaço escolar e na sala como momento pedagógico privilegiado para discutir a diversidade e conscientizar seus alunos sobre a importância e a riqueza que ela traz à nossa cultura e à nossa identidade nacional.

Vale ressaltar a importância de trazer ao cerne das discussões na escola as questões raciais no Brasil, desmistificando o racismo e superando a discriminação racial. Não é uma tarefa fácil propor isso, pois o racismo é algo muitas vezes naturalizado. É preciso combatê-lo de forma real e, no que diz respeito, à formação de professores, pensar estratégias que busquem a transformação do homem em sujeito de sua realidade histórica, humanizando-o, despertando nele o desejo de lutar pela liberdade, pela “desalienação” e pela sua afirmação enquanto cidadão (FREIRE, 1999, p. 37).

Os homens educam-se entre si, mediatizados pelas relações com o mundo, pela educação problematizadora, que exige ruptura com os modelos tradicionais de ensino (FREIRE, 1999, p. 40). Superar a contradição entre educador e educando e os diálogos que precisam existir nos processos de formação, pois estes consolidam uma nova perspectiva educacional, em que ambos se tornam sujeitos do processo, crescendo juntos em liberdade.

São as nossas ações como professores/as que podem também contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e democrática, que combata qualquer forma de discriminação. Segundo Gomes (2012, p. 102), é importante reafirmar “[...] a necessidade de formar professores e professoras reflexivos e conscientes sobre as culturas negadas e silenciadas nos currículos”. As estratégias individuais e coletivas se tornam cada vez mais necessárias, buscando assim uma formação de professores que promova uma nova relação com a desigualdade, a diversidade cultural e o conhecimento, enfatizando a importância de problematizar a temática das relações raciais nas escolas e assim combater o racismo. Abandonar velhos hábitos e pensamentos racistas. Saber quem é o Outro no processo de produção das identidades, respeitando-o em suas diferenças. Conciliar escola, formação de professores, currículo e educação étnico-racial (MUNANGA, 2005, p. 18). São caminhos possíveis para inventar as estratégias educativas e pedagógicas de combate ao racismo.

CONCLUSÃO

Se, em termos acadêmicos, a formação de professores e o racismo têm-se tornado objeto de pesquisa, em termos políticos o debate dessas temáticas tende a romper os muros das universidades. Desdobra-se em uma necessária discussão sobre a formação de professores, seus aspectos sociais e políticos na promoção de relações raciais mais justas nas escolas e de respeito ao multiculturalismo em nossa sociedade. A urgência da escrita desse texto possibilitou algumas reflexões necessárias com relação à construção de processos formativos que tragam ao cenário educacional professores/as que adotem práticas antirracistas.

Enquanto profissionais da educação, torna-se emergente indagar sobre os processos de formação de professores e o racismo, pois são questões que atravessam as práticas educativas. Algumas questões levantadas durante a escrita desse texto evidenciam a necessidade de superar o discurso escolar que enaltece a longa tradição europeísta, na qual uma cultura (negro, índio, mulher, homem do campo, marginal urbano) é subalternizada e responsável por sua própria exclusão socioeconômica, cultural e sociopolítica na sociedade brasileira.

A questão racial é trabalhada/apresentada de quais maneiras nos currículos dos cursos de formação de professores? Tem-se de fato atentado para essa questão? É importante destacar que a legislação vigente que trata sobre as questões raciais no Brasil chegou muito mais como uma obrigatoriedade do que como uma ferramenta de combate ao racismo. Nesse sentido, a consciência crítica dos sujeitos sobre a realidade será grande aliada para que se possa combater as ações das elites opressoras (FREIRE, 1999), promovendo assim práticas emancipatórias dentro das escolas. As questões raciais demandam mobilização de toda a sociedade, na tentativa de desconstruir qualquer forma de discriminação.

A árdua tarefa de pensar a formação de professores e o racismo trouxe importantes discussões sobre as questões raciais, insistindo na reflexão e reformulação dos currículos e na promoção de políticas públicas antirracistas. Além da necessidade de se fazer cumprir a legislação, é preciso que os sujeitos abandonem práticas racistas enraizadas na sociedade e que abandonem também práticas de discriminação racial. Torna-se urgente respeitar as diferenças e o outro em sua alteridade. Importante reafirmar ainda a necessidade de se adotar na educação a produção de estratégias e ações relacionadas à temática étnico-racial para aplicação nas escolas, com vista ao cumprimento da Lei n. 10.639/03 e do Estatuto de Igualdade Racial. Com isso, é importante tratar a questão do/a negro/ para todos, respeitando as várias formas de ser e existir no mundo.

As discussões sobre educação e racismo não se encerram por aqui. Elas continuam a movimentar a vida da pesquisadora que ora dedicou-se a essa escrita, pois a mesma vive/experimenta o processo do “tornar-se negra” (SOUZA, 1983) e de construção de múltiplas identidades, dentre elas a identidade negra (GOMES, 2005). A desvalorização do magistério pode ser um dos motivos pelos quais muitos/as negros/as são encaminhados a este ofício, pois infelizmente, ainda se reproduz na sociedade o lugar do negro como o do subalterno, como o que deve exercer profissões de menor remuneração. É preciso de fato combater esse pacto racista que ronda o magistério. É no bojo dessa discussão e no intuito de desconstruir práticas relacionadas à formação de professores que se fortalece o desejo de eliminar alguns estereótipos construídos sobre os/as negros/as a respeito de sua cultura, do seu modo de ser e de resistir às situações adversas.

A escrita do texto oportunizou algumas discussões importantes sobre a formação de professores e o racismo, dentre elas a reprodução de desigualdades que acontecem dentro das escolas. Foi também o exercício de pensar sobre o racismo, o preconceito e a discriminação tão presentes no exercício do magistério. A escola foi então pensada como uma instituição que está inserida nessa sociedade racista, discriminatória e preconceituosa na qual se vive e, também, onde se reproduzem essas práticas, de forma consciente ou camuflada. Sendo assim, os cursos de formação de professores precisam atuar de forma real e sistemática diante das injustiças e discriminações que possam ocorrer no seu interior. É urgente que a educação assuma sua tarefa de combate ao racismo e a importância de adotar ações que busquem preparar os/as futuros/as professores/as no seu processo de formação, para lidarem com as questões étnico-raciais nas escolas.

REFERÊNCIAS

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Recebido: Março de 2020; Aceito: Agosto de 2020

Informações da autora

Rejane Lucia Amarante de Macedo

Doutoranda em Educação (UFF); Professora Mestra em Educação - UERJ; Pedagoga (UERJ), Professora dos Anos Iniciais e Orientadora Educacional; Área de Educação Especial e Inclusiva.

E-mail: reluam30@hotmail.com

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4264-028X

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/4173577020037130

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