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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.21 no.62 Rio de Janeiro jul./sept 2020  Epub 09-Feb-2022

https://doi.org/10.12957/teias.%y.49739 

Raça e Cultura

O CENTRO AFROCARIOCA DE CINEMA ZÓZIMO BULBUL COMO ESPAÇO DE EDUCAÇÃO DECOLONIAL

THE AFROCARIOCA CINEMA CENTER ZÓZIMO BULBUL AS A SPACE FOR DECOLONIAL EDUCATION

EL CENTRO DE CINE AFROCARIOCA ZÓZIMO BULBUL COMO UN ESPACIO PARA LA EDUCACIÓN DECOLONIAL

Fábio José Paz da Rosa1 
http://orcid.org/0000-0003-0672-191X

1Universidade Estácio de Sá


Resumo

O presente artigo tem o objetivo de analisar o Centro Afrocarioca de Cinema, inserido enquanto expressividade do Movimento negro, no qual as questões raciais e culturais têm na sétima arte a linguagem articuladora com a literatura, a dança, a música e o teatro. Entendemos esse espaço fundamentado em uma Pedagogia decolonial ao qual o fundador Zózimo Bulbul e seus pares constroem perspectivas fundamentais para repensar o currículo, prática docente e a escola básica em consonância com a Lei 10.639/2003. Dessa forma, compreendemos a necessidade de os professores terem por referência os conhecimentos produzidos por artistas e intelectuais negros ao evidenciarem a indissociabilidade da ancestralidade, da oralidade e das diferentes linguagens artísticas com vistas à produção de novas imagens cinematográficas.

Palavras-chave: Centro Afrocarioca de Cinema; Movimento Negro; pedagogia decolonial

Abstract

This article aims to analyze the Afro-Brazilian Center for Cinema, inserted as an expression of the Black Movement, in which racial and cultural issues have in their seventh art the articulating language with literature, dance, music and theater. We understand this space based on a decolonial pedagogy to which founder Zózimo Bulbul and his peers build fundamental perspectives to rethink the curriculum, the teaching practice and basic school in line with Law 10.639/2003. In this way, we understand the need for teachers to have as reference the knowledge produced by black artists and intellectuals when showing the inseparability of ancestry, orality and different artistic languages with a view to the production of new cinematographic images.

Keywords: Afrocarioca Cinema Center; Black Movement; decolonial pedagogy

Resumen

Este artículo tiene como objetivo analizar el Centro Afrobrasileño de Cine, insertado como una expresión del Movimiento Negro, en el que los problemas raciales y culturales tienen en su séptimo arte la articulación del lenguaje con la literatura, la danza, la música y el teatro. Entendemos este espacio basado en una pedagogía descolonial a la que el fundador Zózimo Bulbul y sus colegas construyen perspectivas fundamentales para repensar el plan de estudios, la práctica docente y la escuela básica de acuerdo con la Ley 10.639/2003. De esta manera, entendemos la necesidad de que los maestros tengan como referencia el conocimiento producido por artistas e intelectuales negros al mostrar la inseparabilidad de la ascendencia, la oralidad y los diferentes lenguajes artísticos con miras a la producción de nuevas imágenes cinematográficas.

Palabras clave: Centro de Cine Afrocarioca; Movimiento Negro; pedagogía descolonial

INTRODUÇÃO

O Movimento Negro (MN) após a abolição reorganizou-se com o intuito de preservar as culturas e as memórias negras por meio de associações recreativas, da imprensa, dos clubes, dos grupos teatrais e dos terreiros de Umbanda e Candomblé. Esses diversos grupamentos do MN tornaram-se referências para a criação do Centro Afrocarioca de Cinema Zózimo Bulbul. Pereira (2008) lembra o Movimento Negro em três fases:

[...] a primeira, do início do século até o Golpe do Estado Novo, em 1937; a segunda, do período que vai do processo de redemocratização, em meados dos anos de 1940, até o Golpe Militar de 1964; e a terceira, o movimento negro contemporâneo, que surge na década de 1970 e ganha impulso após o início do processo de abertura política em 1974 (PEREIRA, 2008, p. 89)

Uma das pioneiras organizações negras a se consolidar a partir da década de 1930 foi a Frente Negra Brasileira (FNB). Como lembra Pereira (2008), a FNB é fundada tomando por base outros grupamentos pleiteadores dos direitos das populações negras com destaque para a imprensa negra por meio do jornal a Voz da raça.

A segunda fase inicia-se no final do regime ditatorial varguista, quando o Movimento Negro amplia sua atuação com destaque para o teatro. A criação do Teatro Experimental do Negro (TEN) em 1944, por Abdias do Nascimento, surge com o intuito de resgatar a pessoa humana bem como os valores culturais negro-africanos. Além de formar seus participantes para as artes cênicas, o TEN alfabetizava parte de seus integrantes e desenvolvia neles a sensibilidade para o reconhecimento de suas ancestralidades no contexto nacional.

Solano Trindade, ator, poeta e militante das causas negras, além de participar da fundação da Frente Negra Pernambucana e dos Congressos Afro-brasileiros em Recife e Salvador na década de 1930, fundou o Teatro Popular Brasileiro (TPB) em 1950, na cidade de Duque de Caxias, Baixada Fluminense, junto com a esposa Margarida Trindade e o sociólogo Édison Carneiro. O objetivo desse grupamento teatral era ressignificar a cultura afro-brasileira por meio dos trabalhadores.

Em meados dos anos de 1950, o Brasil, como outras nações diaspóricas, foi influenciado pelas lutas das populações negras africanas tanto por suas emancipações políticas quanto pelo movimento dos direitos civis desencadeados nos Estados Unidos, tendo como um de seus maiores expoentes o pastor Martin Luther King Jr.

Esses movimentos anteriores foram determinantes para que, na década de 1970, diferentes organizações começassem a fomentar um movimento político com o intuito de lutar pelos direitos dos negros no Brasil. Entre esses movimentos estavam o Centro de Cultura e Arte Negra (CECAN) e o Núcleo Socialista Afro-Latino-América. Além de grupamentos organizados, muitos integrantes foram motivados a criar um movimento negro institucionalizado por constatarem o racismo latente na sociedade brasileira como a repercussão do caso de tortura sofrida pelo trabalhador Robson Silveira da Luz, ocasionando sua morte no distrito policial de Guaianes, São Paulo e a discriminação sofrida por quatro garotos negros impedidos de treinar voleibol no clube de regatas do Tietê (PEREIRA, 2008).

A indignação em suas diferentes vertentes mobilizou a criação do Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial (MUCDR) em 7 de julho de 1978, nas escadarias do Teatro Municipal da capital paulista. O Jornal Folha de São Paulo documentou a mobilização na edição do dia seguinte: “O braço direito esticado e a mão fechada característico do movimento americano Black Power, foi usado ontem, nas escadarias do teatro municipal, como o princípio de uma luta negra contra o racismo no Brasil” (FOLHA, 1978). O evento recebeu apoio de outros grupamentos negros como o Instituto de Pesquisas de Artes Negras (IPCN), no Rio de Janeiro, do qual o cineasta Zózimo Bulbul era integrante.

Além dos grupamentos já instituídos, a reivindicação do posicionamento do negro na constituição histórica do Brasil convocou a população negra a lutar em diversos espaços, entre eles:

[...] [c]entros de luta nos bairros, nas vilas, nas prisões, nos terreiros de Candomblé e Umbanda, nos locais de trabalho e nas escolas, a fim de organizar a peleja contra a opressão racial, a violência policial, o desemprego, o subemprego e a marginalização da população negra (DOMINGUES, 2007, p. 114).

Esses objetivos foram também documentados pelo Jornal Folha de São Paulo por ocasião da manifestação no dia 7 de julho de 1978:

Algumas faixas empunhadas reforçavam o movimento e atraíam os negros e brancos que passavam: “pela participação de todos os negros no movimento”. “Contra a discriminação racial”, “Contra a opressão policial que o negro sofre”. (FOLHA, 1978)

Além das reivindicações econômicas, políticas e sociais, o Movimento Negro urdiu o debate sobre a sociedade negra se fazer presente de forma institucionalizada na legislação educacional e no currículo oficial. Tais exigências culminaram na promulgação da Lei n. 10.639/2003, que altera a Lei n. 9.394/1996, versando sobre a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura afrobrasileira em todos os níveis da educação básica.

Em 2004, o Ministério da Educação, em parceria com a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, promulga o Plano Nacional de Implementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o ensino de História e Cultura Afro-brasileira com o intuito de promover “[...] atitudes, posturas e valores que eduquem os cidadãos quanto à pluralidade étnico-racial” (BRASIL, 2004, p. 10).

As lutas das diversas entidades educacionais e de pesquisas para fazer valer as práticas pedagógicas fundamentadas nas diversidades étnico-raciais se devem principalmente ao Movimento Negro compreendido, de acordo com Nilma Lino Gomes (2017), como um dos pedagogos das questões tanto políticas quanto sociais.

Ainda de acordo com Gomes (2017), a escola é uma das instituições primordiais para transmitir e socializar esses conhecimentos. No entanto, é preciso questionar quais saberes e quais currículos tornam possíveis as comparações, inter-relações e, principalmente, diferenciações nas formas de concepção do conhecimento escolar. Para isso, é preciso compreender o termo raça enquanto condicionante dos currículos voltados para questões étnico-raciais e antirracistas.

Se a busca constante do Movimento Negro em suas diferentes expressividades é ensinar por meio dos saberes emancipatórios, cabe aos educadores compreender a produção desses conhecimentos nas vivências raciais por meio da transgressão, da libertação e da emancipação dos africanos e seus descendentes (GOMES, 2017).

Nessa perspectiva, Antônio Sérgio Alfredo Guimarães (1999) lembra sobre as raças não existirem no sentido científico do mundo físico, contudo, existirem nos constructos sociais. Dessa maneira, as raças são “[...] formas de classificar e de identificar que orientam as ações humanas” (GUIMARÃES, 1999, p. 67). Sem dúvida, o conceito de raça, ainda hoje, é uma referência para compreender como esse conceito foi utilizado historicamente para subjugar e oprimir.

Não obstante, a raça foi ressignificada para potencializar as populações negras nas suas formas de ser e estar no mundo. Ao invés de simplesmente omitir, ao contrário, ao emergir o conceito de raça e suas diferentes relações com a cultura promove-se a recuperação “[d]o sentimento de dignidade, de orgulho e de autoconfiança, que foi corrompido por séculos de racialismo universalista e ilustrado.” (GUIMARÃES, 1999, p. 61).

Para Guimarães (1999), a relação entre raça e cultura constitui inclusive processos antirracistas, pois permite aos afrodescendentes a oportunidade de perceberem e reconstruírem a ancestralidade fundamentada em diferentes expressividades. Gomes (2017) também reitera essa perspectiva na qual a reelaboração racial faz-se afirmativa na literatura, nas artes cênicas e nos diversos campos do conhecimento.

Dessa forma, questionamos: como, e de quais formas, as diferentes expressividades do Movimento Negro articulam os conceitos e práticas de raça e cultura? E em um segundo momento, como esse Movimento contribui para pensar a implementação da Lei n. 10.639/2003 nas escolas da educação básica do país?

Com o intuito de pensar esses questionamentos, trazemos para essa discussão as produções de diferentes intelectuais, cineastas, escritores e dramaturgos participantes do Centro Afrocarioca de Cinema Zózimo Bulbul. Ao mesmo tempo, interessa-nos compreender como a sétima arte relaciona esse espaço cultural com outras linguagens artísticas e permite construir epistemologias negras capazes de reconceituar a inter-relação raça e cultura. Por último, analisaremos como esse espaço de preservação das culturas negras pode propiciar reflexões e práticas fundamentadas na Lei n. 10.639/2003 nas escolas da educação básica do país.

O CENTRO AFROCARIOCA DE CINEMA ENQUANTO ESPAÇO DE PEDAGOGIA DECOLONIAL

O Centro Afrocarioca de Cinema está intrinsecamente relacionado à trajetória de vida do cineasta Zózimo Bulbul. Suas experiências o tornaram cineasta e no fundador de um dos mais importantes espaços voltados para pensar e reelaborar a estética do negro no cinema brasileiro. Ainda na infância, Zózimo compreendeu e vivenciou pela primeira vez o racismo:

O Getúlio Vargas tinha montado a Escola Pública. A escola foi um susto. Eu queria entrar para a escola e quando finalmente entrei, deparei, realmente, com o racismo da coisa. Lembro-me dessa professora, a primeira professora do primário. Ela selecionava na sala de aula. As crianças brancas sentavam na frente, as mulatas no meio e as negras atrás (BULBUL, 2014, p. 8).

Durante a adolescência, o cineasta lembra da sua expulsão de várias instituições de ensino e, da última vez, ao ser encaminhado a um reformatório para menores. Lá, além de se contrapor às atitudes dos dirigentes, Bulbul organizou grupos de estudos com o intuito de ultrapassar “o tal currículo” (BULBUL, 2014, p. 13), limitado e sem representatividade negra.

Em 1959, Bulbul ingressa na Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro. Nessa época, lia sobre as artes indiana, chinesa e africana. Ao ler mais, questionava a escola, o currículo e o despreparo de professores incapazes de corresponder aos anseios dos conhecimentos dos jovens brasileiros negros dos anos de 1960, os quais não se viam representados no currículo escolar.

Ao ingressar no Centro Popular de Cultura da União Nacional dos Estudantes (CPCUNE), Bulbul teve a oportunidade de ampliar seus espectros políticos e artísticos (CARVALHO, 2012). No CPC, Zózimo aproximou-se de jovens cineastas integrantes de um novo movimento disposto a elaborar novas estéticas no cinema nacional: o Cinema Novo. Dessa forma, Bulbul inicia sua carreira de ator:

A participação no CPC abriu as portas para o trabalho com os principais diretores do cinema novo. Em 1965 atuou nos filmes Ganga Zumba (Carlos Diegues) e Grande sertão (Geraldo e Renato Santos Pereira). Em seguida trabalhou em El justicero (Nelson Pereira dos Santos, 1967), Terra em transe (Glauber Rocha, 1967) (CARVALHO, 2012, p. 3).

No entanto, o movimento cinemanovista ainda não trazia problematizações acerca do negro enquanto produtor de suas imagens e de seus conhecimentos. Sem contar a teledramaturgia, da qual Zózimo afastou-se após recusar o papel de escravo em uma novela da maior emissora do país. Dessa forma, a escolha para assumir a direção e o roteiro de seus próprios filmes possibilitou a presentificação de novas perspectivas das negritudes com suas ancestralidades, histórias e conhecimentos.

Nesse contexto, Bulbul inicia sua carreira de cineasta, produtor e roteirista com seu primeiro curta-metragem Alma no Olho (1973). Esse filme demonstra uma nova e potente estética ao narrar a história dos povos africanos entre liberdades e subjugamentos corpóreos, históricos e sociais. O filme todo apresenta uma performance mis-en-scène de Zózimo Bulbul.

No ano de 1981, Bulbul produz o filme Aniceto do Império. Esse curta-metragem narra a trajetória do sambista Aniceto de Menezes, fundador da Escola de Samba Império Serrano e expresidente do sindicato dos estivadores do Rio de Janeiro. O intuito desse filme era relacionar “[...] exemplarmente o que Bulbul e seus companheiros militantes buscavam: ativismo político, história do negro e identidade negra” (CARVALHO, 2012, p. 102). Em Abolição (1988), Bulbul ressignifica o processo abolicionista por meio dos intelectuais negros e das intelectuais negras. Assim, o documentário traz para o cerne da História os pensadores, professores, artistas, ativistas do Movimento Negro, entre outros personagens preservadores da memória afro-brasileira. Tanto em Aniceto do Império quanto em Abolição, Bulbul inicia essas obras em homenagem ao Movimento Negro, ao qual tem por referência para desenvolver novas imagéticas, fundamentando-se na ancestralidade afro-brasileira.

A necessidade de continuar a resgatar a ancestralidade afrodiaspórica amplia-se quando Zózimo é convidado a participar de festivais internacionais de cinema. No ano de 1995, em Nova York, integra a mesa redonda no III Festival de Filmes da África e da Diáspora contemporânea. Em 1997, Bulbul é o convidado do XV Festival Pan-Africano de Cinema e TV (FESPACO) em Burkina Faso, na África. Já em 1999, o cineasta recebe o convite para a exibição de Alma no Olho (1973) e de seu longa-metragem Abolição (1988) na sessão sobre a retrospectiva do Cinema Afrobrasileiro dentro da nona edição do Festival de Cinema Africano de Milão.

O diálogo com outros cineastas africanos e diaspóricos permitiu a Zózimo resgatar esse caráter do memorial africano. Essa construção da vida ressignificada no cinema e na ancestralidade mobilizou Bulbul a fundar o Centro Afrocarioca de Cinema no ano de 2007, ato-vida compreendido por uma pedagogia decolonial.

A teorização decolonial é um posicionamento intelectual e político dos pesquisadores da América Latina originários do Grupo Modernidade / Colonialidade (M/C) surgido em meados dos anos de 1990 com o intuito de romper com fundamentações ainda na perspectiva eurocêntrica (MIGNOLO, 2007). As pedagogias decoloniais são construídas em “[...] escolas, colégios, universidades, no seio das organizações, nos bairros, nas comunidades, nos movimentos e na rua, entre outros lugares” (WALSH, 2009, p. 27). Tais pedagogias são insurgentes e buscam intervenções nos campos relacionados ao poder, por meio de práticas rebeldes evidenciadas pelas intelectualidades afro-americanas e indígenas (WALSH, 2009). Nesse sentido, a produção de outras epistemologias, por sociedades historicamente colonizadas, em uma perspectiva decolonial torna necessário o fortalecimento de intelectuais e ativistas em suas estratégias de composição em redes (MIRANDA, RIASCOS, 2016).

A criação do Centro Afrocarioca é nessa perspectiva decolonial, por assumir a produção de novas imagens reelaboradoras da raça negra e de sua cultura. Os questionamentos e reelaborações das imagens através da criação do Afrocarioca de Cinema foram feitos por Bulbul em agosto de 2011, ao ser o convidado do Programa 3 a 1 no Canal Brasil. O programa apresentado pelo jornalista Luiz Carlos Azevedo contou ainda com a participação do cineasta Joel Zito e da jornalista Renata Moreira Lima. Ao ser questionado por Moreira se haveria uma entrada maior dos negros no teatro brasileiro, Bulbul foi categórico:

Nem tem teatro. Isso daí é uma coisa vista pelo branco. Não tem nada a ver com a nossa ótica. “Nós do morro” já é uma coisa mais comercial. O pessoal do Vidigal. Dentro do gueto. (BULBUL, 2011)

É importante situar a fala firme do cineasta diante das produções de grupos artísticos das favelas do Rio de Janeiro surgidos no início dos anos 2000 e absorvidos pela indústria audiovisual. Na concepção de Bulbul, havia uma grande produção, mas essa não chegava a mostrar a ótica das negritudes em seus plenos anseios e conhecimentos. Em seguida, o cineasta Joel Zito apresenta seu contraponto à análise de Bulbul:

Me permita neste ponto discordar. Acho que tem uma expressão de um teatro jovem como o Nós do morro. Tem em São Paulo também, se não me engano a Companhia dos crespos. Tem uma expressão jovem interessante. Agora, eu vejo as peças deles, sou sempre convidado. Eu percebo que o público dessas expressões é o público negro, dessa nova juventude. (ZITO, 2011)

Zito (2011) analisou as novas produções teatrais de companhias negras ganhadoras de notabilidade pelo fato de formarem um público negro assistindo espetáculos produzidos por negros. Em uma perspectiva decolonial, Zito (2011) explicou sobre a busca constante de uma juventude negra evidenciando seus próprios conhecimentos e rompendo com as imagens desgastadas construídas pelos não-negros sobre as populaçãos afro-brasileiras.

Os diálogos entre Bulbul e Zito culminam em outros questionamentos da História do Brasil. Sobre isso, Renata Moreira lembra o documentário Abolição (1988), produzido e roteirizado por Bulbul e questiona o cineasta sobre a efetivação da liberdade, a que ele assim responde:

No dia 13 de Maio ela [Princesa Isabel] assinou a lei que dizem que é magna, mas o pior foi no dia 15 de Novembro de 1889 que ninguém parou para esclarecer esse negócio, aquela República que foi um golpe militar naquela época em cima da Monarquia. Os militares que fizeram a República sem o povo e quem é o povo? Setenta por cento eram os negros, eram africanos que estavam aqui. Os índios nem se falam. E tinha um povo que seria dizimado, sem emprego, sem família, sem assistência e hoje continua a mesma coisa. Você sobe na favela, vai para o interior. Hoje, o meu povo continua sendo dizimado. (BULBUL, 2011)

A análise histórica de Bulbul faz inter-relações com a afirmação anterior na qual não há teatro negro se esse não questiona o status quo e, consequentemente, não produz imagens autorais. Nas palavras de Zózimo, essas imagens são colocadas em cheque na própria reconstituição da História, quando o cineasta questiona sobre o processo de Proclamação da República não ter integrado os negros na sociedade brasileira. Zito complementa a análise de Bulbul, procurando fundamentações na cinematografia nacional e na trajetória do próprio cineasta:

Eu acho que a novidade do Zózimo no cinema e a minha admiração do Zózimo nasce daí: [...] [Ele] Sai dessa maré de só querer ser brasileiro. Eu acho que a pressão que nós sofremos é a de assumir a nossa negritude. Como eu falava antes. Ninguém nega sua ascendência italiana, sua descendência espanhola, sua descendência alemã. É até objeto de orgulho. Mas a ascendência negra ainda é uma atitude de provocação na sociedade brasileira. [...] Quer dizer, assumir a ascendência negra ainda é quase uma atitude de provocação na sociedade brasileira. A história do negro no cinema não começa com Zózimo, mas a história de negros se assumindo como negros no cinema brasileiro começa com Zózimo. (ZITO, 2011)

Se a História não contada dos negros após a Proclamação da República dizimou a população negra sem desenvolvimento econômico e social, como nos ensina Bulbul, esse apagamento também se daria nas questões culturais, nas quais muitos negros não se reconheceriam pertencentes às matrizes afro-brasileiras (ZITO, 2011). Por isso, Zito reconheceu em Bulbul a ousadia de posicionar-se como negro e, ao mesmo tempo, o pioneiro das epistemologias negras por meio de novos olhares cinematográficos.

Em seguida, Joel Zito questiona Bulbul sobre o processo de criação de seu primeiro curtametragem, Alma no olho (1973). A História não contada, mais uma vez, mescla-se à análise crítica do cineasta carioca:

Esse filme é uma continuação na minha cabeça de Compasso de espera que eu fiz com o Antunes [Antunes Filho]. E naquela época, o filme ficou preso pela censura. Por que o filme ficou preso? Porque o meu personagem era um comunicador, que trabalhava numa agência de publicidade. Eu não sou o empregado, eu não sou o escravo. E namorar uma menina branca que vem pedir emprego, a Renneé de Vielmond [...] Os militares que chamaram a atenção: Não existe isso [...] O filme foi parar no Rio de Janeiro e ao invés de ficar com medo, foi dando uma... [Faz gestos com os braços representando coragem] e eu estava lendo na mesinha de cabeceira Alma no exílio, de Eldridge Cleaver, preto americano... aquela coisa da formação dos panteras negras americanos. Aí o Alma no Olho eu comecei a rabiscar.

A partir das dificuldades vivenciadas ao interpretar o protagonista Jorge, publicitário e poeta e par romântico da jovem branca de classe média Christina, personagem de Renée de Vielmond, a cinematografia brasileira traz, pela primeira vez, a questão do negro quando esse ingressa na classe média brasileira. A partir do filme Compasso de espera (1969), de Antunes Filho, Zózimo encontra motivação para continuar produzindo outras imagens das negritudes. Nessa militância negra por meio de cinema vai encontrando fundamentações literárias em Eldridge Cleaver, ativista político e líder do movimento dos Panteras Negras nos Estados Unidos, entre o final da década de 1950 e início da década de 1960. A busca pela existência é uma necessidade para além da simples sobrevivência e aceitação dos processos opressores. Nesse sentido, a relação entre as questões raciais e culturais mobilizaram as populações negras a encontrarem referências em outras diásporas, como Cleaver foi para Bulbul.

De certa maneira, a reescrita histórica das diásporas se desenvolve nas palavras de Paul Gilroy (2001), ao utilizar a metáfora do Atlântico negro, por meio de discussões produzidas por intelectuais afro-americanos fundamentados nas denominadas artes negras. Esses diferentes artistas engajaram-se nas lutas da “emancipação, autonomia e cidadania” (GILROY, 2001, p. 64), proporcionando críticas às ideias de nacionalidade e, ao mesmo tempo, resgataram a memória histórica ancestral por meio dos encontros diaspóricos. Em diálogo com outras diásporas, Bulbul foi incentivado a criar um espaço para a exibição dos seus filmes: “Não passa porque você não quer. Compra uma sala e exibe os teus filmes. O africano falou isso na minha cara”. (BULBUL, 2011).

A partir dessas provocações, Zózimo é impelido a criar o Centro Afrocarioca de Cinema quando participa em 1997 do Festival Pan-africano de Cinema e Televisão de Ouagadougou (FESPACO) em Burkina Faso, na África. O cineasta brasileiro constatou a diferença para os grandes eventos de cinema, pois no caso do FESPACO há uma participação dos povos negros do país. A partir daí, Bulbul sente a necessidade de fazer algo pelo Cinema Negro brasileiro. No entanto, somente em 2007 o Centro Afrocarioca de Cinema é inaugurado, após a participação de Bulbul no Encontro de cinema latino-americano em Toulouse, na França, ao presenciar a exibição de filmes em pequenas salas: “[...] percebi que não precisava de um lugar imenso, para fazer uma sala de cinema, e voltei com a ideia de colocar em prática a realização de um espaço destinado a exibir os nossos filmes, filmes de cineastas pretos e pretas do Brasil e da África”. (BULBUL, 2014).

Ao encontrar uma antiga carpintaria na Lapa, Zózimo vislumbrou ali o local ideal para criar o Centro Afrocarioca de Cinema. Em grande parte Bulbul e Biza Vianna, figurinista e esposa do cineasta, participaram da reforma do espaço. Nesse contexto, Bulbul, ainda em 2007, inicia os encontros de Cinema Negro Brasil, África e Caribe, com o objetivo de construir novos olhares entre experientes e novos cineastas negros. Além dos encontros anuais de Cinema Negro, outra importante conquista para o Afrocarioca de Cinema foi tornar-se um Ponto de Cultura1 no ano de 2011, possibilitando a formação cultural e técnica de novos cineastas por meio de seminários e oficinas.

Após a morte de Bulbul2, Biza Vianna tornou-se a diretora executiva do Afrocarioca de Cinema e dos encontros do Cinema Negro. Para Vianna, os encontros de cinema têm como um de seus principais objetivos preservar a obra bulbuliana enquanto referência para a cultura negra cinematográfica. Sob sua direção, Vianna potencializou o Afrocarioca de Cinema fomentando minicursos, imersões e oficinas voltadas ao cinema e ao audiovisual afro-brasileiro. Em 2014, o cineasta Joel Zito foi convidado para ser o curador do VII Encontro de Cinema Negro Brasil, África e Caribe Zózimo Bulbul3 . Tendo por referência os anseios de Bulbul, Zito considerou aquela edição do Encontro de Cinema Negro fundamentada em três eixos: o protagonismo de jovens negros cineastas, a visibilidade ao cinema criativo produzido pela juventude negra e a exibição do Cinema Negro em respeito às suas múltiplas diversidades. Tais objetivos também vão ao encontro da análise de Joel Zito no programa 3 a 1 do canal Brasil em 2011, quando esse evidencia a potência de uma juventude negra ressignificando as artes afro-brasileiras.

Fonte: https://www.facebook.com/CentroAfroCariocadeCinemaZozimoBulbul/photos/?ref=page_internal

Figura 1 Abertura do 11º Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul 

A partir da evidência do protagonismo da juventude negra na sétima arte, o encontro também passou a oferecer cursos de formação ministrados por importantes cineastas africanos e caribenhos como Guy Desirée, Mansour Sora Wide, Newton Aduaka, Cheick Oumar Sissoko. Entre os brasileiros estavam Joel Zito, Biza Vianna, Luciano Vidigal, Anderson Quack e Viviane Ferreira.

Mercer (1994) considera importantes os diálogos promovidos pelo Cinema Negro porque renovam as funções da crítica do cinema independente. Além disso, as oficinas e formações, de acordo com Mercer (1994), integram diferentes modos de desenvolver o Cinema Negro e oportunizam aos cineastas negros o encontro com diferentes pares e, também, diferentes públicos, capazes de formar comunidades específicas com interesse em explorar novas estéticas negras. Dessa maneira, evidencia-se a construção do Centro Afrocarioca como um espaço de educação decolonial onde negros aprenderão com outros negros a reelaborar seus pensamentos, tendo por referência outras possibilidades imagéticas.

Essa perspectiva se evidencia nas inserções de diferentes gêneros cinematográficos nos Encontros de Cinema Negro em diálogo com outras linguagens artísticas. Essa ideia se tornou realidade na edição de 2015, a partir do Ciclo de Palestras sobre “Cinema e Literatura” com a participação do dramaturgo de peças infanto-juvenis Aldri da Anuciação, da escritora Ana Maria Gonçalves e da escritora Conceição Evaristo.

Por meio da literatura, compreendemos as dimensões das epistemologias afro-brasileiras em consonância com outras linguagens. O jornalista Uelinton Alves (2015) lembrou-se de diversos intelectuais negros do século XIX, entre eles Teixeira e Sousa autor do livro “O filho do pescador” e considerado o primeiro romancista brasileiro. Alves (2015) também recordou Cruz e Souza, criador da escola literária simbolista brasileira e do jornalista José do Patrocínio, responsável por oficializar o documento promulgador da República no Brasil.

A escritora e doutora em Linguística Conceição Evaristo (2015) trouxe para o debate o papel da Literatura Brasileira, ao construir o corpo da mulher negra cristianizado pelo pecado. Logo, esses corpos precisam ser enunciados por uma hiperssexualidade, a exemplo do livro “O cortiço”, de Aluísio Azevedo e “Gabriela cravo e canela”, de Jorge Amado.

Evaristo (2015) questionou a simbologia da construção literária na concepção do homem branco e, por consequência, critica as branquitudes e suas construções de verdade sobre as populações negras. As reflexões de Evaristo vão ao encontro das palavras de bell hooks (2018) ao analisar as formas e as maneiras pelas quais as branquitudes silenciaram as pessoas negras, por meio de representações eurocêntricas e cristãs para atender os processos coloniais.

As análises de alguns desses intelectuais e artistas no Centro Afrocarioca de Cinema evidenciam a tendência e a necessidade de construir novas epistemologias pautadas em diferentes expressividades. Como afirma Mercer (1994), essas demandas do verdadeiro renascimento da criatividade negra são atravessadas por uma variedade de mídias, pela literatura, pela música, pelo teatro, pela fotografia e pelo cinema.

Essa inter-relação de diferentes linguagens foi enunciada e problematizada no Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul, no ano de 2018, quando a curadoria desse evento, desde o ano anterior, passou a ser assumida pela professora, historiadora e pesquisadora Janaína Oliveira. Em entrevista ao Canal Curta, Oliveira apresentou os objetivos do Encontro de Cinema Negro daquele ano:

A gente está fazendo esse ano uma edição que é um diálogo entre a tradição e a contemporaneidade [...] sessões que a gente tentou agrupar, que a gente viu que tinha um debate LGBTI, trazendo essas reflexões de gênero, trazendo perspectivas diferentes [...] filmes produzidos por mulheres negras é o foco. Nesse sentido é importante destacar um filme que a gente convidou para participar que é uma homenagem à Marielle Franco feita por um coletivo de cineastas negras. Em termos de cinema nacional, será a primeira vez que haverá uma homenagem às pioneiras do Cinema Negro brasileiro. A gente fala muito da figura do Zózimo, [...] mas tem no final dos anos de 1990 e início dos anos 2000 um grupo de mulheres que também está fazendo filmes. (OLIVEIRA, 2018)

O reconhecimento dessas cineastas, de acordo com as palavras de Oliveira, efetivou-se com a homenagem e o debate “As pioneiras do Cinema Negro nacional”, conduzido por Viviane Ferreira com a participação das cineastas Adélia Sampaio, Carmem Luz, Viviane Ferreira, Janaína Refem e Iléa Ferraz.

Iléa Ferraz lembrou o início da sua carreira em 1991 com seu primeiro curta-metragem Dura. A cineasta explicou sobre o número diminuto de produções e a falta de referências cinematográficas negras causadas pelas poucas verbas públicas de financiamento. Ao romper com as limitações do passado, a cineasta falou da satisfação em ter adquirido financiamento público para a produção do filme Enquanto viver, luto (2017), curta-metragem sobre as violações de direitos humanos e de violência contras as mulheres negras.

A autoanálise de Ferraz condiz com as dificuldades da maioria dos coletivos negros para produzir seus filmes. Apesar do crescimento considerável nos últimos anos, o Cinema Negro se efetiva, em maioria, pelo autofinanciamento, realidade a ser modificada pela comunidade negra, de acordo com a cineasta.

Refem (2018) recordou da sua relação com o rap e o cinema como potências para se comunicar e, também, para responder suas questões existenciais. A linguagem cinematográfica foi analisada pela cineasta como meio de intensificar a música e mostrar a atuação de rappers mulheres.

Fonte: https://www.facebook.com/437488289648778/videos/317553775685134

Figura 2 Fragmento do debate “Pioneiras do Cinema Negro” 

Carmen Luz (2018) começou sua exposição lembrando sua trajetória artística iniciada na dança, no teatro e na literatura, pois considerava o cinema uma linguagem quase impossível de realizar devido aos escassos recursos financeiros:

[...] De maneira radical, quantas peças, quantos filmes foram autofinanciados. Posicionamento de urgência. Eu preciso fazer! Baixa em mim um Procópio Ferreira. Se não tivesse me autofinanciado, eu não estaria aqui. Por enquanto, parece que sou a segunda mulher negra brasileira a fazer um filme de longa metragem, documentário. É por isso que devemos lutar por uma historiografia que levante a nossa história, de fato. A urgência de fazer é tão grande no meu último longa que tentei um concurso, não consegui e entrei em um financiamento de dança e ganhei um dinheirinho assim, fui fazer um vídeo. A história era tão necessária que eu tive que fazer o que fiz. (LUZ, 2018)

De acordo com Carmem Luz (2018), autofinanciar os filmes significa a possibilidade de atender a urgência de sua existência enquanto mulher negra. Nesse sentido, há uma preocupação da cineasta em construir uma história dos fazeres do Cinema Negro feminino e das maneiras como as mulheres negras adentram e resistem na cinematografia nacional. Diante das dificuldades, novas formas de fazer o Cinema Negro pelos olhares femininos se enunciam e trazem novos questionamentos:

Tem um caminho pra pensar. Como é que a gente faz filmes urgentes? Isso eu aprendi com Zózimo: Se você tem que fazer alguma coisa, faça! Precisamos saber que filmes que queremos fazer e qual a urgência desses filmes. Foi assim... Como minhas colegas, eu luto todos os dias pra que a gente tenha acesso aos financiamentos, porque é nosso direito, obviamente, é a coisa pública. É o dinheiro dos nossos impostos. E mais que isso, é a maneira fundamental para erradicar paulatinamente com a escrotidão que nos colocam em termos imagéticos. (LUZ, 2018)

Luz (2018) apresenta-nos um dos fundamentos do Cinema Negro: a urgência. Mas, também, a necessidade de construir em meio à urgência uma epistemologia referente às produções. Para a cineasta, não basta apenas pleitear os financiamentos públicos, mas é necessário saber quais imagens serão produzidas. Ao continuar sua reflexão, recorda uma importante referência para relacionar sua difícil e orgulhosa trajetória enquanto cineasta:

Queria saudar uma cineasta que foi uma grande mulher de cinema, cineasta, atriz, a gente vê essa mulher em papéis tradicionais que é Maria de Alves [...] Essa mulher, como eu também, ela foi muito es-cu-la-cha-da, porque ela ousou fazer filme, ela ousou pegar numa câmera. Então esse caminho da destruição sobre o nosso lugar de poder fazer cinema, de fazer vídeo, não é pequeno assim. [...] No meu caso, eu fui completamente desestimulada a fazer os filmes que fiz. Eu fiz, porque eu não podia deixar de fazê-los [...] O meu cinema talvez nasça disso: dessa urgência absoluta de ter que dizer uma coisa e assumir qualquer guerrilha para fazer [...] Agora, a gente não vai deixar de fazer porque se tem um caminho forte da branquitude, e falar que a gente não vai fazer. [...] Então, essas coisas é que talvez a urgência, a necessidade, a “brodagem”, a “brodagem” faz com que a gente não se sinta só. O cinema para mim além de urgência é “brodagem”. A política da “brodagem”. (LUZ, 2018)

Ao rememorar a atriz e cineasta Maria de Alves e as dificuldades dessa para posicionar-se na cinematografia nacional, Luz (2018) mescla essa trajetória às suas próprias experiências. Essa constatação a leva a compreender a existência de um projeto no qual as mulheres negras não encontram espaços para serem cineastas. Por isso, a necessidade de lutar para as imagens serem ditas e vistas pelos olhares das comunidades afro-brasileiras. Por meio das urgências e das necessidades estabelecessem-se outras perspectivas políticas não enunciadas pelos órgãos governamentais. Assim, a “brodagem”, neologismo da palavra inglesa brother permite fazer o cinema unidas umas às outras. Uma pedagogia da brodagem.

Em uma perspectiva decolonial, as cineastas negras vão criando novos saberes conceituados na ausência, na urgência e no companherismo (brodagem). Nesse sentido, os conhecimentos ainda não evidenciados são sentidos e construídos por cada uma dessas cineastas como uma necessidade a ser modificada. Em um primeiro momento, pelas linguagens artísticas mais próximas às suas existências e, posteriormente, em uma perspectiva de agrupamento por meio do cinema.

Por último, a mesa-homenagem contou com a participação de Adélia Sampaio, a mais antiga cineasta negra a realizar um longa-metragem no país: Amor maldito (1984). O filme narra a história do relacionamento da executiva Fernanda4 e da ex-miss Sueli5 . Sampaio problematiza sobre os caminhos necessários para as mulheres negras tornarem-se cineastas:

Temos que ter cuidado em impactar a cor, o sábio é quem faz calado, porque pega de surpresa. As coisas só foram sendo feitas porque eu peguei a dinâmica do ajuntamento pra fazer. Não podia ficar pendurados naquelas tetas, tinha que fazer. É preciso pegar um nicho político. Tem Ancine de branco. Vamos criar uma Ancine de preto... Tem caminhos para chegar, chegar de uma maneira que a gente não tenha que vender nossa dignidade. (SAMPAIO, 2018)

Adélia Sampaio (2018) apresenta o silêncio como outra forma de fazer cinema. Essa estratégia pode ser interpretada como outra tática de guerrilha, diferente daquelas enunciadas por Carmem Luz, mas com o mesmo intuito: fazer cinema, não importando as circunstâncias e as conjunturas. Afinal, para combater o opressor, muitas vezes é necessário silenciar para, quando menos esperar, fazer o enfrentamento imagético. Sob os olhares de mulheres negras, constrói-se uma contramemória, uma celebração da negritude exaltando a diversidade e a complexidade de “[...] um autorreconhecimento coletivo que traz clareza e compreensão, que possibilite a reunião e a reconciliação” (HOOKS, 2018, p. 258).

DO MOVIMENTO NEGRO PARA A ESCOLA: ENSINAMENTOS E APRENDIZAGENS DESENVOLVIDOS NO CENTRO AFROCARIOCA DE CINEMA ENQUANTO CONSTRUÇÃO DE PEDAGOGIAS DECOLONIAIS

As epistemologias desenvolvidas e praticadas por diferentes ativistas, intelectuais e artistas no Centro Afrocarioca de Cinema garantem aos participantes desse espaço aprendizagens acerca do Cinema Negro, tendo por fundamentação, em primeiro lugar, a ancestralidade como mobilizadora constante da existência e de suas condições enquanto negras e negros.

Esse espaço cultural e formativo, parafraseando Miranda e Riascos (2016), nos suscita a reelaboração das nossas memórias coletivas. No entanto, elas não devem apenas ficar restritas às instituições voltadas à preservação da cultura africana e afro-brasileira. Por isso, a exigência da Lei n. 10.639/2003, ainda hoje pouco aplicada nas escolas da educação básica do país, convoca os educadores a compreender como as diferentes expressividades do Movimento Negro trazem novos conhecimentos e inspiram os currículos escolares em uma perspectiva decolonial.

Isso exige o reconhecimento das epistemologias produzidas e reconceituadas pelas populações afro-diaspóricas tanto pelos formadores de professores quanto dos docentes da educação básica. Conscientes dessa responsabilidade legal e pedagógica, os professores das diferentes etapas do ensino devem encontrar nas linguagens artísticas negras as fundamentações para a produção de currículos e didáticas decoloniais.

Miranda (2013) considera a necessidade de ampliar as fronteiras epistêmicas do educar no contexto escolar, pois existe uma constante pedagogia capaz de ser produzida no meio midiático. O Centro Afrocarioca de Cinema Zózimo Bulbul ressignifica essa pedagogia imagética, pois tem trazido novas formas criativas de integrar cada vez mais a juventude negra e as mulheres negras enquanto construtoras de seus saberes específicos às suas condições geracionais, de gênero e de sexualidade.

Dessa forma, apreendemos das linguagens artísticas desenvolvidas no Centro Afrocarioca de Cinema a capacidade de propiciar à educação escolar a produção de “[...] novos letramentos para recolocarmos a dimensão humana como ponta de lança para uma cultura, uma linguagem, um pensamento que abrigue estratégias sensíveis” (MIRANDA, 2013, p. 103).

O primeiro dos conhecimentos que o Centro Afrocarioca de Cinema nos ensina é o caráter memorial da ancestralidade. Desde Zózimo, e continuando com diferentes cineastas, curadores, artistas e intelectuais, há uma constante busca por fundamentar-se em outras imagens ainda não vistas e não ditas por meio de referenciais africanos.

Os conhecimentos ainda não enunciados e não visibilizados encontram outras possibilidades de respostas ao dialogar com outras expressões artísticas presentes na trajetória de muitos formadores do Centro Afrocarioca. Dessa forma, compreendemos a não dissociação entre diferentes áreas do conhecimento artístico.

Por fim, o cinema é a linguagem artística capaz de relacionar imagens com outras expressões. Esse elo entre a sétima arte e as outras linguagens artísticas está presente, principalmente, nas obras das cineastas negras. A grande parte delas tem a música, o teatro e a dança enquanto inspirações para a produção de imagens autorais e questionantes, em grande parte, de suas condições de mulheres e negras.

A atuação dessas diferentes cineastas em outras linguagens artísticas apresenta-nos conhecimentos nos quais as mulheres seguem os traços ancestrais enquanto guardiãs da memória africana e afro-diaspórica, ao inter-relacionarem diversos saberes transformados em imagens por meio do cinema.

Nesse caso, compreendemos as maneiras de ser e de produzir conhecimentos por meio de imagens intrínsecas às trajetórias de cada uma delas. Esse posicionamento revela a indissociação entre o ser e o conhecimento, revelando outra concepção de paradigmas no qual “[...] não há hierarquias entre conhecimentos, saberes e culturas” (GOMES, 2012, p. 102).

Os conhecimentos produzidos e exibidos por meio da sétima arte no Centro Afrocarioca de Cinema já eram buscados pelos professores, como evidenciamos nos comentários do site do encontro de 2013. Nessa sessão, um interessado questiona o Centro sobre a divulgação antecipada em escolas públicas. Uma professora de sociologia comenta sobre a intenção de ver filmes sobre a História e Cultura Afro-brasileira para enriquecer suas aulas. Os responsáveis pela produção do encontro de Cinema Negro respondem a esses interlocutores que há algum tempo convoca as escolas para fazerem inscrições no evento e se compromete em enviar a programação antecipadamente, por meio dos contatos dos interessados, a partir do próximo encontro.

O interesse dos professores em fundamentar suas práticas pedagógicas nos conhecimentos oferecidos no Centro Afrocarioca de Cinema possibilita também aos estudantes terem referências nos “[...] valores do contínuo civilizatório africano em que há vínculos de sociabilidade e solidariedade” (SOUZA, 2011, p. 10).

Na continuidade dessa atenção às diversidades das negritudes participantes no Centro Afrocarioca de Cinema, os Encontros de Cinema Negro trazem nos últimos anos, em maior quantidade, as sessões infantis de filmes6 com personagens negros, atraindo uma quantidade de professores e estudantes às exibições. Ao voltar-se para a representatividade das crianças negras enquanto protagonistas, o Cinema Negro favorece maiores possibilidades de sensibilizar desde a tenra idade para o encontro com as ancestralidades afro-brasileiras e africanas.

À GUISA DE CONCLUSÃO

Quando trazemos para o campo do currículo a necessidade de pensar e praticar as determinações da Lei n. 10.639/2003, os professores formadores e os professores da educação básica devem ter como referência as diversas expressividades do Movimento Negro, pois esse foi o responsável por pleitear os saberes da ancestralidade africana e afro-brasileira.

O Centro Afrocarioca de Cinema Zózimo Bulbul, portanto, é uma referência na qual os educadores podem repensar o currículo, exercitando a atenção aos conhecimentos produzidos pelos diferentes intelectuais e artistas negros responsáveis por formar as novas gerações.

Dessa forma, compreendemos esse espaço fundamentado na pedagogia decolonial, por ser uma importante referência imagética para jovens cineastas negros, mulheres negras e também para o público LGBTQI, nas relações existentes entre raça e sexualidade. Nesse sentido, os professores da educação básica podem encontrar e se encontrar nesse espaço cultural de referência da cultura negra carioca, no intuito de repensar a história africana e afro-brasileira. Afinal, “[...] através do cinema, a mensagem chega mais rápido, sem barreiras de linguagem” (BULBUL, 2014).

O Centro Afrocarioca de Cinema também tem se voltado para estabelecer compreensões das negritudes por meio de outras linguagens produtoras de imagens em diálogo com a sétima arte, como a literatura, com o intuito de suscitar outros pensamentos, agora elaborados pelos dizeres de autoras e autores africanos e afro-diaspóricos. Da mesma forma, as cineastas homenageadas no encontro de 2018 suscitam novas imagéticas ao inter-relacionarem imagens em diálogo com a música, a dança e o teatro.

Currículos e didáticas da formação de professores e da educação básica podem se constituir decoloniais quando encontram nessas expressividades uma importante maneira de desenvolver os assuntos pertinentes à História e à cultura afro-brasileira. Assim como nas formações do Centro Afrocarioca, nossas escolas devem proporcionar conhecimentos inspiradores da revisão e do questionamento das imagens.

Promover ensino e aprendizagens para professores e estudantes serem autores de suas existências e vivências na escrita, na dança, na música e nas produções imagéticas suscitará ao público escolar novas relações com o mundo, em especial às crianças negras. Se Zózimo-criança estava inserido em um ambiente educacional racista na década de 1950, hoje, por meio do Centro Afrocarioca de Cinema Zózimo Bulbul temos a oportunidade de ensinar cada vez mais aos infantes, em seus processos educacionais, outras formas de se verem e viverem para continuarmos a contar as histórias dos griots potencializando orgulho e pertencimento.

1Pontos de Cultura eram projetos financiados institucionalmente pelo antigo Ministério da Cultura (MinC) e implementados tanto por instituições governamentais e não governamentais.

2Ocorrida em 24 de janeiro de 2013.

3A partir do ano de 2013, o nome do encontro passa a ser Encontro de Cinema Negro Zózimo Bulbul - Brasil, África e Caribe.

4Interpretada por Monique Lafond.

5Interpretada por Wilma Dias.

6Alguns dos filmes infantis exibidos nos Encontros de Cinema Negro no ano de 2017 e no ano de 2018 foram: Órun Àiyé, de Jamyle C e Cíntia Maria; Nana e Nilo e o tempo de brincar, de Sandro Lopes; El reflejo, de Everlane Moraes; Lá do alto, de Luciano Vidigal; Esconde esconde, de Don Felipe e Luciana Bollina; Histórias de Nana e Nilo, de Sandro Lopes; Eu sou o super-homem; de Rodrigo Batista; A piscina de Caíque, de Raphael Gustavo da Silva; Fábula de Vó Ita, de Joyce Prado e Thalita Oshiro.

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FILMES

ALMA no olho. Direção: Zózimo Bulbul. Rio de Janeiro - RJ, 1974. 12 min [ Links ]

AMOR MALDITO. Direção: Adélia Sampaio. São Paulo - SP, 1984. 76 min [ Links ]

ANICETO do Império. Direção: Zózimo Bulbul. Rio de Janeiro - RJ, 1981. 15 min [ Links ]

ABOLIÇÃO. Direção: Zózimo Bulbul. Rio de Janeiro - RJ, 1988. 150 min [ Links ]

COMPASSO de espera. Direção: Antunes Filho. São Paulo - SP, 1969. 98 min [ Links ]

ENQUANTO viver, luto. Direção: Iléa Ferraz. Brasil, 2017, 34 min [ Links ]

Recebido: Julho de 2020; Aceito: Julho de 2020

Informações do autor

Fábio José Paz da Rosa

Universidade Estácio de Sá

E-mail: fabiojp83@yahoo.com.br

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0672-191X

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/2231168975092887

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