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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.21 no.62 Rio de Janeiro jul./sept 2020  Epub 09-Feb-2022

https://doi.org/10.12957/teias.%y.54396 

Entrevista

“SOU MAIS ATIVISTA, MILITANTE DA ÁREA DO QUE PROPRIAMENTE PESQUISADORA EM EDUCAÇÃO”: Zélia Amador de Deus e educação antirracista

"I AM MORE OF AN ACTIVIST, A MILITANT IN THE AREA THAN I AM A RESEARCHER IN EDUCATION": Zélia Amador de Deus and anti-racist education

"SOY MÁS ACTIVISTA, MILITANTE EN LA ZONA QUE INVESTIGADOR EN EDUCACIÓN": Zélia Amador de Deus y educación anti-racista

Lucimar Rosa Dias1 
http://orcid.org/0000-0003-1334-5692

Mailsa Carla Pinto Passos2 
http://orcid.org/0000-0003-1204-4505

Tatiane Cosentino Rodrigues3 
http://orcid.org/0000-0002-4402-2805

1Universidade Federal do Paraná

2Universidade do Estado do Rio de Janeiro

3Universidade Federal de São Carlos


Resumo

O texto apresenta entrevista realizada com Zélia Amador de Deus, dada a sua importante participação em diferentes momentos históricos do Brasil no que diz respeito à construção de políticas públicas dirigidas ao campo educacional. O objetivo foi trazer as memórias dessa importante ativista como ela prefere se nomear para a seção temática Raça e Cultura, considerando que o contexto em que nasce a proposta se relaciona à história do GT 21 Educação e Relações Étnico-Raciais da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), que surge em 2001. Para compreender o sentido dessa produção faz-se necessário ouvir esta mulher que explicita como sua trajetória de vida e a produção científica desse campo estão entrelaçadas e são produtos de uma ação política ativa de muitos negros e negras brasileiros. Consolidar um Grupo de Trabalho em uma Associação de Pesquisa desse porte só é possível porque, ao lado dessa, há uma árdua produção de políticas afirmativas. As memórias de Zélia nos possibilitam compreender que a pesquisa é sempre uma implicação política, acadêmica e teórica.

Palavras-chave: ações afirmativas; Movimento Negro; igualdade racial; educação para as relações étnicoraciais

Summary

The text presents an interview with Zélia Amador de Deus given her important participation in different historical moments in Brazil about the construction of public policies directed to the educational field. The objective was to bring the memories of this important activist as she prefers to name herself for the dossier Race and Culture considering that the context of it relates to the history of GT 21 Education and Ethnic-Racial Relations of the National Association of Graduate Studies and Research in Education (Anped )that emerges in 2001. To understand the meaning of this production it is necessary to listen to this woman who explains how her life trajectory and the scientific production of this field are intertwined and are products of an active political action of many black Brazilians. Consolidating a research group into a research association of this size is only possible because next to it there is an arduous production of affirmative policies. Zélia's memories allow us to understand that research is always a political, academic, and theoretical implication.

Keywords: affirmative actions; Black Movement; racial equality; education for ethnic-racial relations

Resumen

El texto presenta una entrevista con Zélia Amador de Deus dada su importante participación en diferentes momentos históricos en Brasil con respecto a la construcción de políticas públicas dirigidas al campo educativo. El objetivo era traer los recuerdos de esta importante activista ya que prefiere nombrarse a sí misma para el dossier Raza y Cultura considerando que el contexto de la misma se relaciona con la historia de GT 21 Educación y Relaciones Étnico-Raciales de la Asociación Nacional de Estudios de Posgrado e Investigación en Educación (Anped) que surge en 2001. Para entender el significado de esta producción es necesario escuchar a esta mujer que explica cómo su trayectoria de vida y la producción científica de este campo están entrelazadas y son productos de una acción política activa de muchos brasileños negros y negras. Consolidar un grupo de investigación en una Asociación de Investigación de este tamaño sólo es posible porque junto a él hay una ardua producción de políticas afirmativas. Los recuerdos de Zélia nos permiten entender que la investigación es siempre una implicación política, académica y teórica.

Palabras clave: acciones afirmativas; Movimiento Negro; igualdad racial; educación para las relaciones étnico-raciales

COMEÇANDO A CONVERSA...

Era uma tarde de sábado em tempos de pandemia, então estávamos juntas e separadas por um aplicativo que nos possibilitou estabelecer uma conversa agradável e dinâmica com Zélia Amador de Deus. Nessa entrevista, a professora emérita da Universidade Federal do Pará reflete sobre vários aspectos da igualdade racial no Brasil, relembrando vários momentos em que participou diretamente da construção de políticas afirmativas, discutindo o papel do Movimento Negro na constituição dos avanços e do papel que a educação ocupa nessa tarefa e, além disso, apontou as demandas contemporâneas das lutas por igualdade racial.

Zélia Amador de Deus foi a nossa escolhida para ser a entrevistada desse número, que dialoga diretamente com a seção temática. A expressão que intitula a entrevista resume como a pesquisadora se pensa em relação à educação e como nós, organizadoras desse dossiê, acreditamos que se faz a luta para a educação das relações étnico-raciais na sociedade brasileira. Não é possível construir uma ação efetiva nesse campo sem o compromisso da militância e do ativismo político. Zélia Amador de Deus — seu nome poético indica a força que essa mulher negra paraense carrega em sua trajetória de décadas de luta em prol do bem-viver, pelas políticas de ações afirmativas e seu combate incansável ao racismo. Zélia, para seus amigos e amigas. Professora Doutora Zélia Amador de Deus fez graduação em Licenciatura Plena em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Pará, em 1974; mestrado em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais, em 2001; doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Pará, em 2008. Já foi Vice-Reitora da UFPA (1993 a 1997), cofundadora do Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará (CEDENPA, 1980). Também foi ex-Presidente da Associação Brasileira de Pesquisadores Negros (ABPN). Além disso, ocupou espaços representando o Movimento Negro nas estruturas de governo, na Comissão Técnica Nacional de Diversidade para Assuntos Relacionados à Educação dos Afro-Brasileiros (CADARA) e o Grupo de Trabalho Interministerial de Valorização da População Negra, que foram importantes na construção das políticas brasileiras com recorte racial. Saberemos mais detalhes da trajetória dessa grandiosa pesquisadora e imprescindível proponente da afirmação negra no Brasil, no decorrer da entrevista. Vale mencionar que conversar com Zélia é uma aventura prazerosa, pois na conversa há sempre bom humor, densidade e reflexões aprofundadas sobre o tema. Nesses tempos de isolamento social, nossa conversa ocorreu por um aplicativo de webconferência, mas com sua amabilidade e simpatia parecia que estávamos juntas em uma sala tomando café, o que aliás de fato aconteceu... a conversa foi regada a um bom café de lá e de cá. As questões trazidas por Zélia são fundamentais para manter a memória de que a luta por educação antirracista vem de longa data, com algumas conquistas e novos desafios. Explicamos que tínhamos três questões centrais para a conversa e a conversa começou. Apresentemos a primeira:

Zélia, como pesquisadora do campo das relações raciais no Brasil, qual seria o seu balanço das pesquisas em educação nesse campo nos últimos anos, após a alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação incluindo o Art. 26-A e 79-B (Lei n. 10.639) que obrigava a educação a incluir a história e cultura afro-brasileira e africana?

Eu sou mais ativista, militante da área do que propriamente pesquisadora. Entre as atividades do Cedenpa nestes 40 anos há produções que a gente vem fazendo para os professores. O Cedenpa desde que foi criado trabalha com os professores e, quando fazíamos palestras, cursos eles pediam material. Um dos primeiros materiais que produzimos foi a cartilha Raça Negra pela liberdade; depois fizemos o livro A Escola e Racismo: aspectos da questão do negro em Belém; então nós sempre trabalhamos como educação, mas não como pesquisadora e sim na militância.

Você se refere a um trabalho ativo antes da alteração da LDB. Você poderia contar para as/os leitoras/es sobre como era?

Sim, desde os anos 1980, passamos a realizar o Encontro de Negro do Norte-Nordeste que acontecia todos os anos. Primeiro, era Encontro de Negros do Norte e Nordeste, depois passou a ser Encontro de Entidades Negras do Norte-Nordeste. Mas, a participação era pessoal, tinha pessoas de entidades e tinha também quem não era de entidade nenhuma. Nós conseguimos fazer dez encontros e o de Recife em 1988 foi um encontro específico para discutir educação. Nós discutimos o encontro inteiro, tínhamos muitas propostas. Defendíamos a afro-pedagogia, havia várias propostas que tratavam do ensino da história e cultura afro-brasileira, do ensino da história dos negros do Brasil. Nós tínhamos uma proposta de educação para o Brasil. Toda a década dos anos 1980 foi atravessada por esta organização e o último encontro que a gente fez foi em Manaus, em 1990.

O que temos hoje como alteração da LDB incluindo a cultura afro-brasileira é uma proposta que nasceu nesses Encontros do Norte-Nordeste?

Essa proposta vinha acompanhando o Movimento Negro há muito tempo, então era natural que ela aparecesse em um encontro voltado só para a educação. Talvez Marta Rosa Queiroz, que atualmente é da Universidade Federal da Bahia, tenha esse relatório. Seria muito bom revermos esse relatório.

E as cotas raciais para o ensino superior também foi pauta do encontro?

Naquele encontro eu não me lembro das cotas raciais. As cotas raciais vão aparecer, aliás, vão reaparecer, porque eu acho que elas já estavam na Revista Quilombo de Abdias do Nascimento. Ali já tem a proposta das cotas raciais. As cotas aparecem com mais intensidade no relatório do GTI (Grupo de Trabalho Interministerial de Valorização da População Negra), que foi instituído em 1995 pelo Fernando Henrique Cardoso em resposta à primeira grande Marcha Zumbi contra o Racismo, pela Cidadania e pela Vida, realizada no dia 20 de novembro de 1995 em alusão aos 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares. Havia mais 300 mil negros e negras em Brasília e, nesse mesmo dia, o presidente recebeu lideranças desse movimento e instituiu o GTI. No documento da Marcha já tinha a proposta das cotas. O GTI foi composto por oito ministérios: Justiça, Cultura, Educação, Esportes, Planejamento e Orçamento e Relações Exteriores, Saúde, Trabalho e oito pessoas da sociedade civil, ligadas ao Movimento Negro: Abgail Páschoa, o Vovô, a Dulce Maria Pereira, João Jorge, Hélio Santos, o Joaquim Beato, a Vera Regina Santos Triumpho e eu — cada um representando uma região; Hélio assumiu a coordenação da sociedade civil e o Ministério da Justiça coordenava. Pelo governo era o José Gregori que estava responsável pela discussão dos direitos humanos. O GTI se dividiu em grupos e eu e Vera ficamos responsáveis pela educação. Nós pensamos em fazer um seminário, porque quando nós conseguimos nos organizar no GT, estavam saindo os Parâmetros Curriculares e havia um caderno que trataria da diversidade, que aparecera como transversal, ou seja, não teria disciplina, mas teria que atravessar todas as disciplinas. Então conversamos com a pessoa que coordenava essa parte dos Parâmetros e resolvemos fazer um encontro de forma apressada, porque, se não, o documento seria aprovado sem nós termos conseguido apreciar. Convidamos para este seminário pesquisadores do país que trabalhavam com o negro e educação — naquele momento era assim que chamávamos. Foi difícil conseguir que o MEC assumisse os custos desse seminário, e eu acabei conseguindo negociar apoio das universidades, porque eu estava na reitoria da UFPA e conhecia vários deles. Então, uma parte do custeio foi do MEC e outra das universidades. Conseguimos trazer para este seminário Petronilha Beatriz Gonçalves da Silva, Nilma Lino Gomes, Luiz Alberto Gonçalves, Kabengele Munanga, Maria de Lourdes Siqueira, Maria José. Foi uma correria, tínhamos apenas dois dias. As pessoas não receberam diárias, conseguimos com muito custo interferir no texto dos Parâmetros para melhorar um pouco o que havia. Se não fosse esta nossa mobilização ele ficaria muito pior. Pelo menos conseguimos publicar depois o livro “Superando o Racismo na Escola”, organizado por Kabengele. Este, sim, ficou muito bom e abordou o tema da diversidade étnico-racial como nós gostaríamos. Se não tivesse o GTI o material iria ser aprovado e, se saiu um pouco razoável, foi porque corremos para interferir e colocar minimamente algumas questões em que acreditávamos.

Além desta ação qual outra você considera um marco para a educação produzida nesse período?

Nós, do GTI, vivíamos nos gabinetes cobrando políticas o tempo inteiro. Nós fomos várias vezes ao ministro Paulo Renato [Sousa] cobrando ação. Estávamos mais organizados, já tínhamos a proposta de cotas, embora ele não quisesse nem ouvir falar em cota, mas nós éramos muito enjoados. Vivíamos nos gabinetes, não parávamos, vivíamos nos gabinetes de fato. Por isso, ele criou um projeto para responder a nossas insistências: foi o Diversidade na Universidade, que era fazer o que já fazíamos no âmbito do Movimento: os cursinhos pré-vestibulares. Para nós, isso não era importante, porque o Movimento Negro no Brasil inteiro já se virava e fazia os cursinhos preparatórios para colocar as pessoas na universidade. Nem era o que queríamos, mas foi o que nos ofereceu e, assim, nós tentamos melhorar o que tínhamos e, para isso, chamamos a Jeruse Romão.

Qual era o problema do programa Diversidade na Universidade? Por que você diz que tentaram melhorar?

Nós conseguimos trazer a Jeruse para Brasília e ela deu uma certa arrumada, mas era difícil, porque o problema era de concepção, era muito fechado. O princípio era que se considerava que o vestibular era a coisa mais democrática do mundo, e o que acontecia é que as pessoas não conseguiam acessar. O problema, portanto, era das pessoas que não tinham formação suficiente para alcançar a universidade. Era essa a característica do programa. O projeto era para impedir as cotas, porque eles diziam que as cotas iam colocar gente despreparada na universidade. Sendo assim, o investimento foi em cursos preparatórios. Por isso, curso preparatório para negros, indígenas e carentes. Cotas não, se não vai entrar gente despreparada na universidade, por isso, acreditavam que tinham de preparar as pessoas para poderem entrar na universidade sem precisar das cotas. A ideia da meritocracia era o que fundamentava a perspectiva da política. A Jeruse conseguiu melhorar o edital, incluiu, além dos cursos preparatórios, publicações, ampliou um pouco, mas nem tanto, porque não havia espaço suficiente, porque o ministro Paulo Renato fazia parte da esquerda branca que não acreditava na questão de raça. Era classe e não raça, por isso ele exigiu incluir os carentes a participar do curso, porque não podíamos fazer um programa só para negros e indígenas. É a hipocrisia da branquidade brasileira. Quando se começou a falar de cotas, as pessoas começaram a se lembrar que tem branco pobre, até então não se falava do branco pobre; quando se falou de cotas para negros começou a preocupação com o branco pobre. Então, não pode ter cotas para negros se não atender antes o branco pobre, isso faz parte de todas as camadas e dimensões do racismo brasileiro. O branco de classe média, que nunca tinha se preocupado com o branco pobre, volta sua preocupação para eles.

Além desta ação quais outras você destaca como parte da ação do GTI em prol da educação?

Continuamos trabalhando e, em 2000, veio o período preparatório para a Conferência de Durban, a Terceira Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Formas Correlatas que ocorreu em 2001, na África do Sul. Nesse processo, o grande lance foi que conseguimos colocar no relatório brasileiro para Durban a proposta de cotas. Esta foi a nossa grande vitória. Não foi fácil colocar o tema de cotas no relatório. Era uma equipe grande: Procuradoria Geral da República, Ministério do Trabalho, Ministério das Relações Exteriores, enfim, era muita gente para negociarmos, mas conseguimos. Não foi fácil colocar. Outra ação interessante foi o Seminário Internacional Multiculturalismo e racismo: o papel da ação afirmativa nos estados democráticos contemporâneos, organizado pelo Departamento de Direitos Humanos, em julho de 1996, na Universidade de Brasília, coordenado pelo Jessé de Souza. Foi um espaço muito importante, pois se debateu o tema das cotas, a proposta de cotas. Teve participação de outros países e foi neste Seminário que, pela primeira vez, um chefe do Estado brasileiro no seu discurso de abertura admite a existência do racismo e da discriminação racial no Brasil. Até então, o que o Estado brasileiro difundia era a existência da democracia racial. Neste Seminário foi a primeira fez que o presidente disse que tem de ter políticas afirmativas para eliminar o racismo. Isso ocorreu no discurso de abertura feito por Fernando Henrique Cardoso (FHC). Enfim, eu diria que a nossa ação, nesse período do GTI, em relação à educação ficou em torno dos Parâmetros Curriculares, da inclusão das cotas no relatório brasileiro para Durban e na realização do Seminário que enfatizava o compromisso do governo com as ações afirmativas.

A que você atribui o fato de Fernando Henrique assumir o racismo brasileiro naquele momento?

Ele foi orientando do Florestan Fernandes, participou como pesquisador do projeto Unesco, era conhecido pelos convidados internacionais como um estudioso da questão e as conclusões do projeto Unesco não foram o esperado, ou seja, não se constatou a tão falada democracia racial. Ele sediava o Seminário de caráter internacional para discutir ações afirmativas, estava entre vários acadêmicos brasileiros e estrangeiros especialistas no tema, então, não tinha muita saída. Ficaria muito desconfortável para ele não assumir o racismo no país, tendo sido orientado pelo Florestan que dizia que o “brasileiro tem preconceito de ter preconceito”. Então, ficaria bastante difícil moralmente que ele repetisse a ideia da democracia racial. No período preparatório à Conferência nós não conseguimos trazê-la para o Brasil, por causa das tensões políticas, e ela acabou acontecendo no Chile, em 2000, mas ele [FHC] teve que admitir [o racismo brasileiro] durante a conferência mundial para a comunidade internacional toda.

E depois dessas ações quais outras você ressaltaria como importantes para o campo da educação?

Acho que o GTI acabou tendo importância para criar no MEC um grupo de docentes que, mais tarde, vai conduzir toda uma movimentação com a entrada do governo Lula e aprovação da Lei n. 10.639, em 2003, e a constituição da Comissão Técnica Nacional de Diversidade para Assuntos Relacionados à Educação dos Afro-brasileiros (CADARA), em 2005. Ela tinha como objetivos elaborar, acompanhar, avaliar e analisar políticas públicas educacionais voltadas para o cumprimento da Lei n. 10.639/2003 e do Parecer CNE/CP n. 003/2004. Os membros eram designados pela Secretário de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD/MEC), que foi criada em 2004, e muitos vinham dos Núcleos de Estudos Afro-brasileiros e, se não me engano, a CADARA existiu até 2013. Eu fiz parte da CADARA. Bem, mas foram esses movimentos que promoveram a discussão no MEC e acabaram por fortalecer, mais tarde, a mudança da SECAD para SECADI, que passou a ser Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão, em 2011, e que infelizmente no governo atual foi extinta. Mas, mesmo com essas estruturas a questão racial ainda é, como posso dizer, ela não passa tranquilamente. Pois, na estrutura, havia a diretoria de alfabetização, a diretoria indígena e uma diretoria que tratava da questão negra, mas ela não era diretoria para discutir a questão racial, era uma diretoria para a diversidade. A questão racial é, digamos assim, maquiada, escondida no termo diversidade, como se a diversidade estivesse presente só em nós e a branquidade não fizesse parte da diversidade humana. A discussão de raça começa nesses governos, no Estado, nessa lógica. Como se nós fôssemos os diversos que temos que alcançar um certo parâmetro de normatividade, que é dado pela branquidade. Nós é que fizemos a mudança de perspectiva lá dentro. A CADARA teve uma importância grande no sentido de rever essa perspectiva, mesmo assim só no final é que conseguimos trocar o nome para coordenação étnico-racial. A nomeação não era um detalhe, é uma luta até na forma de nomear as diretorias e coordenações dos órgãos, nas estruturas de governo. Eu fiz parte da CADARA como representante da sociedade civil por toda a existência dela (2005-2013). Por isso que eu gosto de me dizer ativista, sou militante. Foi muito bom, embora com muito trabalho, tudo que conseguimos foi com muita luta e nós somos bons de luta. A CADARA foi importante para criar políticas de efetivação da Lei n. 10.639/2003, Plano de Ação.

A inserção de um nome no Conselho Nacional de Educação representando o Movimento Negro foi resultante da CADARA?

Isso surgiu ainda no GTI; surgiu a proposta de um nome para o Conselho. Mas, nós só conseguimos efetivar como um trabalho do Conselho Nacional de Combate à Discriminação Racial, que foi criado depois da Conferência de Durban com a presidência do Ministério da Justiça; depois surgiu o Ministério dos Direitos Humanos e José Gregori foi o ministro, e este Conselho começou a funcionar, com participantes de vários ministérios. Ele era composto por governo e sociedade civil e eu não fazia parte deste Conselho, mas depois da Conferência eu fui convidada a trabalhar no Ministério do Desenvolvimento Agrário (2001 a 2003), que tinha assento no Conselho. O presidente do INCRA, Sebastião Azevedo, me nomeou como suplente dele e, como ele nunca ia, eu passei a representar o Ministério nesse Conselho. Pela sociedade civil tinha representantes de negros, que foi a Vania Santana, indígenas Grazilene Kaingang, e a agenda sobre sexualidade era o Luiz Mott; o Ivair Santos estava pela Secretaria de Direitos Humanos, Hélio Santos. Enfim, muitas pessoas da luta, e foi nesse Conselho que surgiu a proposta para termos um nome no Conselho [Nacional] de Educação e eu lembro que fui eu quem escrevi a proposta da Resolução para o MEC. Eu e Vera, da Bahia, nós nos sentamos e escrevemos e apresentamos ao Pleno, e foi aprovada e vieram conosco os indígenas, nós ampliamos para os indígenas. Havia uma forte pressão para que a questão da sexualidade entrasse, mas eu sabia que se colocássemos esse tema, não passaria, nós não tínhamos o acúmulo que temos agora sobre esse tema. No final, acabou o mandato do Fernando Henrique, o Conselho foi destituído e não conseguimos fazer a discussão. Ele já tinha a proposta redigida. Hoje eu penso que é importante ter diretrizes para a temática LGBTT, mas naquela época não havia esta discussão como hoje.

Muito bom ouvir a história da educação para as relações étnico-raciais viva e feita na participação ativa de uma mulher negra tão importante como você. Acredito que seja muito importante para as gerações que estão chegando acompanhar a trajetória das lutas. Este balanço que você trouxe apresenta as tensões, as negociações necessárias e possíveis para as conquistas no campo educacional. Para encerrar, nos apresente quais são, na sua perspectiva, as demandas atuais para o campo da educação.

Quando você trabalha com governos, com o Estado, você tem que negociar, mesmo com o governo Lula, por exemplo, o que nós queríamos era um Ministério, e recebemos uma Secretaria chamada de Secretaria Especial, mas sem orçamento. A gente tem que fazer o possível, nem sempre é o que queremos. O Estatuto Racial da Igualdade, não é o dos nossos sonhos, saiu mutilado, mas foi o que conseguimos. O Plano Nacional de Implementação nós tivemos uma trabalheira para elaborar e não conseguimos que ele se tornasse uma Lei. É material riquíssimo de políticas públicas e só foi realizado por militância. Nesse momento, nós temos que garantir, principalmente, a continuidade do projeto de cotas raciais. Ele está para acabar, vai até 2022. Nós temos visto pessoas falando que tem de acabar, que só precisamos de cotas sociais. É necessário que nos organizemos para que o projeto se mantenha, pelo menos, por mais uma década. Será uma tarefa árdua e se nós não nos organizarmos para isso, será bem difícil manter. A universidade ficou bem melhor nos últimos tempos com as cotas, sem dúvida nenhuma. Avançou, inclusive, do ponto de vista epistemológico, considerando a decolonialidade, e isso é em decorrência das cotas. Precisa muito mais, porque novos sujeitos chegaram à universidade, mas os professores... grande parte deles continua com suas metodologias, continua trabalhando com os mesmos alunos de classe média e, em relação aos professores, ela continua muito branca na docência, mesmo com o projeto de 20% de negros no serviço público, isso não deu conta de empretecer, em relação aos docentes. Penso que seria papel dos sindicatos a discussão de novas metodologias de ensino para trabalhar com os docentes, para trabalhar com os novos sujeitos da universidade.

Quais as experiências humanas que negros e negras dão para a educação brasileira?

São muitas as contribuições. A Petronilha construiu uma contribuição muito grande para que todos os professores possam discutir a educação. O documento das Diretrizes Curriculares é documento fantástico, de uma abrangência enorme. O Edital UNIAFRO, que fortaleceu os NEABs, impulsionou a educação continuada para a formação de professores para trabalhar a partir da mudança curricular com a Lei n. 10.639/2003. Tivemos extensão, especializações e isso ajudou a disseminar a importância desses conteúdos no cotidiano da escola.

E para acabar esta rica conversa, que mensagem você deixaria para os/as jovens pesquisadores/as em educação para as relações étnico-raciais?

Difícil, mas é pensar que a educação é importantíssima no processo de formação das mentalidades. A educação não faz revolução imediata, não transforma de uma hora para outra, mas ela é um instrumento importantíssimo para a mudança das mentalidades.

Comentários finais das entrevistadoras

Zélia finaliza assim o nosso encontro, rememorando a centralidade da educação na ação do movimento social negro no Brasil, desde o seu surgimento. O conjunto de proposições e denúncias construídas ao longo das últimas décadas problematizam a escola como instituição que ainda discrimina, principalmente, os alunos negros e perpetua o racismo, veiculando valores preconceituosos nos livros didáticos e na abordagem omissa da história oficial, por não contemplar a luta e resistência negras. Daí a centralidade da educação e a percepção, por este movimento, de que a luta pela democracia não pode acontecer separada da luta contra o racismo.

Dessa forma, o que denominamos hoje como educação das relações étnico-raciais se traduz em uma proposta de democratização e de diretrizes essenciais para a educação nacional.

Além da estratégia de atuação direta nos encontros nacionais, comissões, partidos e marchas, o Movimento Negro sempre agiu, como nos conta Zélia, nas articulações e diálogos insistentes nos gabinetes do Congresso Nacional, pautando obstinadamente a centralidade do enfrentamento ao racismo. Assim, a atuação do Movimento Negro desafia os modelos estritos de análise dos movimentos sociais clássicos. Para compreender esse movimento social é fundamental reconhecer uma forma plural de mobilização e que confere sentido à insígnia “nossos passos vêm de longe”. Somos resultado, assim, também dos seus passos, Zélia!

Em sua entrevista, são rememorados também eventos importantes das décadas de 1980 e 1990 que tiveram impacto direto na ação governamental dos primeiros anos de 2000, como a criação da SECAD, SEPPIR, da Comissão Técnica Nacional... (CADARA) e do processo de fortalecimento das políticas de ação afirmativa. As conquistas, ainda que parciais, ou aquém das proposições provocaram mudanças importantes e que alimentam, nos tempos de hoje, a resistência e luta para a retomada democrática.

São essas conquistas que também nos permitem pensar uma nova forma de produzir pesquisa, com outros referenciais, com pesquisadoras e pesquisadores de diferentes origens e pertencimentos étnico-raciais. Hoje podemos pensar que, para muitas educadoras e educadores, a indissociabilidade entre “ser ativista” e “ser pesquisador/a” se concretiza diariamente em nossas ações.

Lutamos juntas nesse momento, pelo direito à vida!

Recebido: Junho de 2020; Aceito: Julho de 2020

Informações das autoras

Lucimar Rosa Dias

Universidade Federal do Paraná

E-mail:lucimardias1966@gmail.com

ORCID: http://orcid.org/0000-0003-1334-5692

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/3476684741346049

Mailsa Carla Pinto Passos

Universidade do Estado do Rio de Janeiro

E-mail:mailsappassos@gmail.com

ORCID: http://orcid.org/0000-0003-1204-4505

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/9865045321306211

Tatiane Cosentino Rodrigues

Universidade Federal de São Carlos

E-mail:tatiane.cosentino@gmail.com

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-4402-2805

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/8361431964064731

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