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Revista Teias

versão impressa ISSN 1518-5370versão On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.21 no.63 Rio de Janeiro out./dez 2020  Epub 08-Fev-2022

https://doi.org/10.12957/teias.%y.53968 

Docência, currículo, didática, aula: fantástico arquivo político da diferença

FORMAÇÃO CONTINUADA E PEDAGOGIA DECOLONIAL: o M. A. R. e o samba

CONTINUING EDUCATION AND DECOLONIAL PEDAGOGY: the M. A. R. and samba

FORMACIÓN CONTINUA Y PEDAGOGÍA DECOLONIAL: el M. A. R. y samba

Erica Pereira dos Santos Nascimento1 
http://orcid.org/0000-0003-3591-6804

Victória Guimarães Souza2 
http://orcid.org/0000-0001-9311-7723

1Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

2Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro


Resumo

O presente artigo visa tratar da necessidade de formação continuada com base no pensamento decolonial, tendo como objetivo relatar a experiência oriunda do curso elaborado pelo Museu de Arte do Rio (MAR) a partir da exposição O Rio do Samba: resistência e reinvenção, na qual o samba da Estação Primeira de Mangueira foi o condutor para que professores refletissem sobre questões que estão presentes no cotidiano escolar. A pedagogia decolonial é nosso ponto de partida, pois acreditamos que é preciso mais que um pensamento “outro”. É necessário adotar uma prática “outra”, e essa ocorre quando educadores agem de forma insurgente, incorporando ao currículo conhecimentos subalternizados, para que sujeitos que foram silenciados pela colonialidade possam ser protagonistas da história. Acreditamos que professoras e professores carecem de formação continuada para exercer uma educação multicultural, antirracista e decolonial. O curso realizado no MAR possibilitou que esses educadores, de diversos segmentos, da rede pública e privada de educação, fossem estimulados a criar possibilidades outras para suas próprias práticas a partir dos versos do samba-enredo.

Palavras-chave: formação docente; decolonialidade; museu

Abstract

This article aims to address the need for continuing education based on decolonial thinking, aiming to report the experience arising from the course prepared by the Museum of Art of Rio (MAR) from the exhibition O Rio do Samba: resistance and reinvention, where the samba from Estação Primeira de Mangueira was the driver for teachers to reflect on issues that are present in school daily life. Decolonial pedagogy is our starting point, as we believe that more than one other thought is needed, it is necessary to adopt a different practice, and this occurs when educators act in an insurgent way, incorporating subordinate knowledge into the curriculum, leaving subjects who have been silenced by coloniality can be protagonists of history. We believe that teachers need continuing education to exercise multicultural, anti-racist and decolonial education. The course held at MAR made it possible for these educators, from different segments, from the public and private education, to be encouraged to create other possibilities for their own practices based on the sambaenredo verses.

Keywords: teacher education; decoloniality; museum

Resumen

Este artículo tiene como objetivo reflejar la necesidad de una educación basada en el pensamiento descolonial, con el objetivo de informar sobre la experiencia derivada del curso elaborado por el Museo de Arte de Río (MAR) a partir de la exposición O Rio do Samba: resistencia y reinvención, donde el samba de la Estação Primeira de Mangueira fue el motor para que los maestros reflexionaran sobre temas que están presentes en la vida diaria de la escuela. La pedagogía decolonial es nuestro punto de partida, ya que creemos que se necesita más que un “otro” pensamiento. Es necesario adoptar una práctica “otra”, y esto ocurre cuando los educadores actúan de manera insurgente, incorporando conocimientos subordinados al currículo, para que sujetos que han sido silenciados por la colonialidad puedan ser protagonistas de la historia. Creemos que los maestros necesitan educación continua para ejercer una educación multicultural, antirracista y decolonial. El curso realizado en el MAR hizo posible que estos educadores, de diferentes segmentos, de la red educativa pública y privada, se animaran a crear otras posibilidades para sus propias prácticas a partir de los versos samba-enredo.

Palabras clave: formación de profesores; descolonialidad; museo

INTRODUÇÃO

Neste artigo optamos por utilizar teorias pós-críticas do currículo em diálogo com o pensamento decolonial para abordarmos a formação docente continuada. Entendemos ser esta uma escolha possível, diante da necessidade de um currículo e uma prática comprometidos com outras formas de ser, agir e conhecer, distintas daquelas indicadas pelo etnocentrismo europeu. Concordamos com Walsh (2005) sobre a necessidade de enfatizar a construção insurgente e criativa de formas outras de ser e de pensar, combatendo a monocultura, a homogeneização e a hegemonia da identidade eurocentrada.

Diante disso, acreditamos que ao adotar a perspectiva da decolonialidade estamos tentando elucidar questões que as teorias críticas não conseguiram responder. Esse movimento, chamado de giro decolonial por Maldonado-Torres (2016), é um dos elementos da decolonialidade, que faz com que os conhecimentos subalternizados possam ser incorporados ao currículo e à produção de conhecimento.

Para o pensamento decolonial é preciso pensar e agir sob crítica ao hegemônico, mas sobretudo por um modo “outro”1, que conteste saberes historicamente eurocentrados. É mais que “dar voz” aos oprimidos, mas promover sistemas de afirmação de lugar, fala, e igualmente, escuta. É preconizar histórias contadas por lugares, vozes e sujeitos que o hegemônico tratou de apagar.

O campo da educação, historicamente, é marcado por situações de disputa de narrativas. Disputas essas marcadas pela modernidade/colonialidade da versão única da história, a narrativa dos vencedores. Com a predominância de uma práxis colonial que marca nossos currículos, a história e cultura brasileiras não são contadas pelos negros e índios que aqui viveram e vivem, mas sim por uma única cosmovisão válida, aquela pautada a partir da visão europeia. Paulo Freire (2005) fala sobre os espaços que devem ser criados para que possamos reaprender, e a partir desse movimento iniciar a construção de uma pedagogia decolonial. Um grande desafio para a formação docente majoritariamente euro/usa cêntrica2.

Como poderão os oprimidos, que hospedam o opressor em si, participar da elaboração, como seres duplos, inautênticos, da pedagogia de sua libertação? Somente na medida em que se descubram “hospedeiros” do opressor poderão contribuir para o partejamento de sua pedagogia libertadora (FREIRE, 2005, p. 34).

O sistema educacional do Brasil reproduz estruturalmente características hegemônicas na formação dos professores. Tais práticas, aproximadas ao colonial, tendem não somente perpetuar, mas ampliar desigualdades e exclusões sociais. Entretanto, neste universo crítico, há indícios de resistência na prática de professores/as, que seguem lutando diariamente por uma pedagogia que represente estudantes, territórios e suas identidades. Na pesquisa-ação realizada por Candau (2016, p. 807), a autora compartilhou sobre a existência cotidiana de formas outras e insurgentes “[...] de organizar os currículos, os espaços e tempos, o trabalho docente, as relações com as famílias e comunidade”, mas estas continuam pouco apoiadas de modo mais sistematizado.

A partir destas reflexões, reconhecemos potencial nas formações que privilegiam a interculturalidade crítica e decolonial. Dessa forma, consideramos visibilizar e refletir a partir da proposta de formação para professores/as no curso ofertado pelo Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR), um convite para pensar práticas a partir do samba-enredo da Estação Primeira de Mangueira do ano de 2019, História pra ninar gente grande3, o MAR abriu portas para formação de professores. O encontro promoveu trocas entre práticas, reflexões, questionamentos, reconhecimentos e transformações, corroborando com a construção de um pensamento “outro” para a organização de projetos, currículos e didáticas inclusivas de perspectivas interculturais.

PEDAGOGIA DECOLONIAL E FORMAÇÃO CONTINUADA

Historicamente, inibindo formas de conhecimentos existentes, a herança do saber europeu /colonizador firmou-se como cultura do poder verdadeiro, chegando a criminalizar4 o que é outro, o não-europeu, impregnando a ideia de classificação entre bom e mau, aceito e não aceito. Um dos eixos fundamentais desse padrão de poder é a classificação social da população mundial sobre a ideia de raça, uma construção mental que expressa a dominação colonial (QUIJANO, 2005).

Da mesma forma entendemos que a desigualdade social presente na sociedade “[...] não pode ser entendida sem se tomar em conta os nexos com a herança colonial e as diferenças étnicas que o poder moderno/colonial produziu” (OLIVEIRA, CANDAU, 2010, p. 23). Entendemos ser a escola um local onde as relações de poder estão sendo questionadas, pois professores e alunos buscam modificar a hierarquização de saberes, produzindo mudanças significativas com base na interculturalidade, agindo no combate a colonialidade do poder e do saber, nas mais diversas formas, inclusive, que podem estar diretamente relacionadas aos enfretamentos do campo da educação quanto à existência, frequência e potência das diversidades manifestas nas salas de aula e que, porventura, não se sabe o que fazer com elas.

Nesse sentido, o distanciamento do pensamento ocidental precisa ser assumido perante o fato de que existem problemas modernos para os quais não existem soluções modernas, no entanto, sem desconsiderar as ricas contribuições do pensamento ocidental. Essa distância nos leva à aproximação dos conhecimentos subalternos silenciados pela modernidade (RIBEIRO, 2018, p. 1064).

A partir desse momento, pensar a difusão de uma pedagogia à luz do pensamento decolonial, por práticas pedagógicas insurgentes para promover e aprofundar debates na relação entre educação e interculturalidade.

Hablar de interculturalidad supone pues situarse en una visión política distinta de carácter pluralista que revisa y reinterpreta lo político, lo social, lo étnico, lo cultural y lo lingüístico y que busca articular las diferentes sociedades étnicas […]. La interculturalidad en la educación aparece más bien estrechamente ligada al nuevo espíritu de equidad y calidad (LÓPEZ, 2007, p. 25).

Propor participação e representação pluralista na tomada de decisões, negociação, busca de consenso e respeito à dissidência entre pessoas e povos. Evidenciando demais formas de conhecimento subalternizadas pela colonialidade.

O conceito de colonialidade introduzido por Aníbal Quijano na década de 1980 foi entendido por Walter Mignolo como “[...] o lado mais escuro da modernidade”, cuja principal teoria é de que a modernidade surge na Europa, com base na construção da civilização ocidental, e que esta escondeu seu lado mais escuro, a colonialidade, mostrando ao mundo apenas suas vitórias.

Do modo como foi constituída a modernidade europeia, a hegemonia epistêmica, política e historiográfica ainda é presente em nossas relações cotidianas, como amarras sob as quais a matriz colonial de poder é construída e opera (MIGNOLO, 2017). À vista disso, contrapondo à lógica hegemônica, o semiólogo e teórico cultural argentino-norte-americano Walter Mignolo introduz o conceito de diferença colonial, apresentado como um novo lugar do pensamento. O pensamento construído com e a partir dos sujeitos e experiências invisibilizados pela colonialidade (do poder, saber e ser).

A cultura colonialista e o fetichismo cultural apoiadas na noção de progresso hierarquizaram o saber e a invenção do que é outro (não-europeu) – por conseguinte, a construção do conceito de raça e manifestações do racismo. O discurso de dominação e diferenciação foi ampliado sob a invenção do saber legítimo, único/científico, em negação aos saberes diversos e originários que constituam a identidade indígena e afrodiaspórica. Associados ao misticismo e ao irracional, a consecução desses processos se deu de forma violenta.

A colonialidade do ser cerceou indivíduos em sua liberdade e identidade, rejeitando racionalidade e história não europeias, bem como classificando como maléficas as manifestações culturais e tornando invisível o que é outro. Julgando como sub-humanidade manifestações epistêmicas e culturais dos povos não-europeus.

Para a superação do poder colonial há um conjunto de contribuições teóricas do grupo Modernidade/Colonialidade5 que questionam a geopolítica do conhecimento e as práticas hegemônicas que firmam desigualdades e exclusões sociais e, por conseguinte, o posicionamento que favorece pela afirmação de narrativas outras, processos de reconhecimento, autoestima e empoderamento social como agentes transformadores para (re)pensar a sociedade, o político e a democracia.

Con esta perspectiva, no partimos del problema de la diversidad o diferencia en sí, ni tampoco de la tolerancia o inclusión culturalista (neo)liberal. Más bien, el punto medular es el problema estructural-colonial-racial y su ligazón al capitalismo del mercado. Como proceso y proyecto, la interculturalidad crítica, como dicen los epítetos al inicio, “cuestiona, profundamente la lógica irracional instrumental del capitalismo” y apunta hacia la construcción de “sociedades diferentes […], al otro ordenamiento social” (WALSH, 2012, p. 65).

O prisma do pensamento decolonial implica em fazer um entrelaçado de teoria-prática por uma ótica de ultrapassagem da colonialidade epistemológica e pedagógica eurocentrada e monocultural, que mantém sua hegemonia nos países que foram submetidos a processos históricos de violência colonial, como o Brasil.

Dessa constatação cotidiana surge a emergência de práticas pedagógicas sob a perspectiva da interculturalidade crítica (WALSH, 2012). Uma pedagogia que compreenda a realidade do poder colonial presente nas relações escolares, que tencione a história contada e afirme as identidades inferiorizadas. Uma pedagogia de engajamento, conhecimentos e aprendizagens político-sociais

[...] a partir das ruínas, das experiências e das margens criadas pela colonialidade do poder na estruturação do mundo moderno/colonial, como forma não de restituir conhecimento, mas de reconhecer conhecimentos “outros” em um horizonte epistemológico transmoderno, ou seja, construído a partir de formas de ser, pensar e conhecer diferentes da modernidade europeia, porém em diálogo com esta (OLIVEIRA, CANDAU, 2010, p. 23).

Ao reconhecer conhecimentos “outros”, na perspectiva da diferença cultural, a partir das experiências e histórias marcadas pela colonialidade, estimula-se a emergência do pensamento crítico “outro”, na perspectiva da decolonialidade do poder, do saber e do ser. Trata-se de introduzir epistemes invisibilizadas e subalternizadas nos processos educacionais. Tomar contato com a realidade e seus condicionantes sociais e históricos. Reconstruir o ser, o poder e o saber de forma radical. Valer-se da perspectiva da interculturalidade crítica com a forma da pedagogia decolonial para dar um giro epistêmico, promovendo o pensamento de fronteira, tornando visíveis outras lógicas e formas de pensar visando o estabelecimento de lugares epistêmicos do pensamento-outro (BALLESTRIN, 2013; WALSH, 2006).

Oliveira e Candau (2010) assinalam ainda o persistente caminho de requisições à área da educação, por parte dos movimentos negros, até a promulgação da Lei n. 10.639/036 que se tornou um marco social para o reconhecimento da igualdade e valorização das diferenças nas concepções política, cultural e histórica. Neste sentido, a Lei n. 10.639/03 é um ponto a partir do qual é possível caminhar em rota de profundas mudanças interpretativas no campo do conhecimento histórico no Brasil, que parecem ainda não terem chegado substancialmente às salas de aula.

A História do Brasil é acompanhada à sombra do racismo e de tantas outras negações da diversidade. No entanto, são tempos de denúncia e anúncio de potencialidades dos sujeitos com o advento das Leis n. 10.639/03 e n. 11.645/08 que tornam obrigatório, respectivamente, o ensino de história e cultura africana/afro-brasileira e indígena na educação básica. As políticas de reconhecimento das diferenças favorecem a visibilidade de outras lógicas históricas, em oposição à lógica dominante eurocêntrica, além de pôr em debate a descolonização epistêmica.

A proposta intercultural para o currículo, projetos e didáticas não é a tentativa de aproximação entre culturas nas suas múltiplas formas de existir, mas sim, a máxima a emergência da transformação estrutural da sociedade que atravessa e está atravessada pelo papel social da escola. Mais do que inclusão de determinadas temáticas curriculares supõe repensar enfoques, relações e procedimentos em uma perspectiva “outra”. A proposta de uma pedagogia decolonial e de interculturalidade crítica requer a superação tanto de padrões epistemológicos hegemônicos no seio da intelectualidade brasileira quanto à afirmação de novos espaços de enunciação epistêmica.

É nesse sentido que a interculturalidade não é compreendida somente como um conceito ou termo novo para referir-se ao simples contato entre o ocidente e outras civilizações, mas como algo inserido numa configuração conceitual que propõe um giro epistêmico capaz de produzir novos conhecimentos e outra compreensão simbólica do mundo, sem perder de vista a colonialidade do poder, do saber e do ser. A interculturalidade concebida nessa perspectiva representa a construção de um novo espaço epistemológico que inclui os conhecimentos subalternizados e os ocidentais, numa relação tensa, crítica e mais igualitária (OLIVEIRA, CANDAU, 2010, p. 27).

Com interesse nos conhecimentos distintos ao da modernidade ocidental, a linguista norte-americana, radicada no Equador, Catherine Walsh reflete sobre os processos educacionais e contribui para a compreensão das possibilidades decoloniais no âmbito pedagógico. A produção de Walsh, que tem por experiência e referência as lutas dos movimentos sociais indígenas equatorianos e afro-equatorianos em sua narrativa, colabora na proposição de conceitos como: pensamento-outro, decolonialidade e pensamento crítico de fronteira e propõe que, por decolonialidade, podemos vislumbrar a reconstrução radical do ser, do poder e do saber historicamente silenciados.

Conforme afirma Walsh (2010), para garantir a visibilidade da “[...] história que a história não conta” é necessário pensar uma práxis baseada na criação e na construção de novas condições sociais, políticas, culturais e de pensamento. Uma pedagogia que promova a transgressão da lógica que negou aos oprimidos o protagonismo de suas histórias.

Essa ideia vem se construindo como força política, epistemológica e pedagógica e faz referência às possibilidades de um pensamento crítico a partir dos subalternizados pela modernidade europeia capitalista e um projeto teórico voltado para o repensamento crítico e transdisciplinar, em contraposição às tendências acadêmicas dominantes de perspectiva eurocêntrica de construção do conhecimento (WALSH, OLIVEIRA, CANDAU, 2018, p. 3).

Para que este movimento ocorra na educação, para romper com práticas homogeneizadas, é preciso mais que uma mudança de conteúdo, mas sim a realização do giro epistêmico de modo a valorizar o pensamento de fronteira como conhecimento válido. Educar na pluralidade para a interculturalidade e valorização das identidades. “Um processo que engendra, convida à aliança, conectividade, articulação e inter-relação, e luta pela invenção, criação e intervenção, por sentimentos, significados e horizontes radicalmente distintos” (WALSH, 2016, p. 72).

Nesse sentido, a formação docente e o currículo constituem um projeto que precisa de modificações, e muitas dessas se deram por meio de políticas motivadas inicialmente pela obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira, africana e indígena em todo sistema de ensino nacional. Entretanto, é preciso saber o que ensinar, e para qual projeto de sociedade se ensina.

A formação inicial do professor no Brasil ainda é vista por nós como problemática e algumas lacunas persistem por toda história da educação brasileira. Por isso, a formação continuada, além de seu caráter de aperfeiçoamento profissional é importante para preencher esses hiatos.

Em pesquisa realizada por Marques (2017), entrevistas mostraram que professores que se graduaram anteriormente à implantação da Lei n. 10.639/2003 não cursaram disciplinas que objetivamente auxiliariam na prática pedagógica para a educação das relações étnico-raciais. Os professores também ressaltaram ausência de estímulos das secretarias de educação para garantir que eles tivessem acesso a cursos sobre o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.

Por outro lado, estudos do multiculturalismo apontam ausência de neutralidade do currículo e a necessidade de privilegiar as diferenças culturais que estiveram negligenciadas, além da emergência de uma prática pedagógica na perspectiva de interculturalidade crítica (WALSH, 2007). Quijano discute essa questão, através da ideia de que:

A incorporação de tão diversas e heterogêneas histórias culturais a um único mundo dominado pela Europa, significou para esse mundo uma configuração cultural, intelectual, em suma intersubjetiva [...]. Em outras palavras, como parte do novo padrão de poder mundial, a Europa também concentrou sob sua hegemonia o controle de todas as formas de controle da subjetividade, da cultura, e em especial do conhecimento, da produção do conhecimento (QUIJANO, 2005, p. 121).

Tendo em consideração que a colonialidade do saber impôs a lógica eurocêntrica como universal, concebemos, igualmente, o currículo como campo de disputa na busca por afirmação de identidades. Essas reflexões nos levam a questionar os processos formativos do professor e as identidades construídas a partir dessas disputas:

No caso da educação e da formação de professores em sociedades desiguais, excludentes e multiculturais como o Brasil, adotar o multiculturalismo crítico como horizonte significa incorporar, nos discursos curriculares e nas práticas discursivas, desafios a noções que tendem à essencialização das identidades, entendendo-as, ao contrário, como construções, sempre provisórias, contingentes e inacabadas (CANEN, OLIVEIRA, 2002, p. 61).

Diante do exposto, entendemos como necessária a formação continuada dos docentes em espaços onde possam ser debatidos temas que são caros ao currículo, mas que muitas vezes são negligenciados pela falta de conhecimento do docente sobre o tema ou pela carência de estímulo pelos sistemas educacionais.

Ações e práticas que aqui definimos como “insurgentes” / decoloniais que se opõem à lógica hegemônica de referência eurocentrada, “[...] transformam-se no lugar e espaço a partir do qual a ação, militância, resistência, insurgência e transgressão são impulsionadas” (WALSH, 2016, p. 72). São as pedagogias das brechas e fissuras do poder moderno / colonial a marcar nossas relações em sociedade.

A pedagogia e o pedagógico aqui defendidos não se limitam ao campo da educação formal e espaços escolarizados, mas acrescentamos os movimentos, organizações da sociedade civil, projetos, museus e ações de gritos e grietas como posicionamento de um chamamento radical em vias de favorecer a superação do sistema mundo hegemônico. Grietas, recorrentemente utilizado por Catherine Walsh, traduz-se por brechas, para a autora, brechas decoloniais de lugares e possibilidades da práxis de enfrentamento à matriz colonial de poder (WALSH, 2016). Práticas pedagógicas de engajamento, reconhecimento, afirmação e transformação.

O M.A.R. COMO ESPAÇO DE FORMAÇÃO

A sociedade brasileira possui diversas manifestações culturais. Cabe também aos museus valorizar o patrimônio cultural e fazer disso uma forma de democratizar o acesso e o contato com culturas outras, ou seja, os museus devem estar a serviço de toda a sociedade e do seu desenvolvimento. Comprometidos com a gestão democrática e participativa, eles devem ser unidades de investigação e interpretação, de mapeamento, documentação e preservação cultural, mas também um espaço de troca de conhecimento e de educação não formal. O museu tem como desafio transformar a ciência em algo acessível ao público.

O termo educação não formal não pressupõe a inexistência da formalidade ou que seu espaço não seja educacional, como reiteram Von Simson, Park, Fernandes (2001, p. 9): “A educação não-formal caracteriza-se por ser uma maneira diferenciada de trabalhar com a educação, paralelamente à escola.”, ou seja, não significa classificar o museu e a atividade nele realizada como sendo meramente recreativa, mas ao contrário, deve-se considerá-la essencialmente educativa.

Neste sentido, o museu firma-se como lugar para contribuições na formação continuada de professores (PARK, FERNANDES, 2005). Em exposição amplamente divulgada, O Rio do samba: resistência e reinvenção, o Museu de Arte do Rio oportunizou-nos experienciar o lugar do “nós” carioca, do “nós” brasileiro, do (nós) negro, do nós da reinvenção do cotidiano e foi assimilando identificação e gerando empatia por todos os retratos e versos a serem apreciados em sua instalação.

Os objetos em museus são alvo de inúmeras leituras e interpretações que tornam o seu significado dinâmico, desafiando a tradicional dicotomia entre o sujeito e o objeto, e, neste sentido, os objetos possuem uma vida social que sempre os acompanha. O autor insiste ainda que os objetos existentes nos museus – pela sua capacidade de representar tradições, ideias e valores – desempenham um papel fundamental na representação social (SEMEDO, LOPES, 2005, p. 16).

A exposição foi elaborada a partir de três momentos: 1) da herança africana ao Rio negro; 2) da Praça XI às zonas de contato; e 3) o Samba Carioca, um patrimônio. As narrativas visibilizadas pela curadoria privilegiavam aspectos sociais e culturais do gênero, que teve sua história contada desde o século XIX até os dias de hoje.

A realização da exposição e encontro de formação cujas temáticas foram o samba História pra ninar gente grande e a exposição O Rio do samba: resistência e reinvenção colocam-se em oposição à proposta de educação hegemônica, no que se refere à reprodução de uma visão positivista e eurocêntrica que foi e ainda é mola propulsora de múltiplas desigualdades intra e extramuros escolares. Se há uma história contada pelos vencedores, há também uma história contada pelos vencidos. É a partir da exposição e atividades em questão que:

[...] se problematiza a história, a vivência de grupos sociais. Nela é que o visitante de um lugar o torna um atrativo/problema para se pensar um pensamento esclarecedor, uma compreensão prazerosa. Assim vai buscar retomar ideias, reviver as concepções de vida apreendidas na sequência dos dias que seguirem à visita (MENESES, 2009, p. 43).

Em seu programa educativo institucional, o MAR elabora uma agenda de atividades que visa contemplar a relação de suas exposições e o cotidiano escolar. A Escola do Olhar tanto pensa nas visitas escolares, quanto na multiplicação de experiências que professoras/es em formação podem promover, gerando assim simetria entre os atores de espaços de educação formal e não formal. Reiterando que o espaço do museu:

[...] a partir da década de 1970, se aliava ao respeito à diversidade cultural, à defesa do patrimônio cultural de minorias étnicas e dos povos carentes e à integração dos museus às diversas realidades locais. Há com isso, uma modificação significativa na relação cotidiana entre os profissionais de museus, as exposições e o público. A educação através dos museus passou a ser compreendida a partir do diálogo com o público e de práticas museais interagindo com esse (MACHADO, 2005, p. 147).

O SAMBA E AS PRÁTICAS PEDAGÓGICAS

A formação ocorreu na manhã de um sábado de sol do mês de abril. O curso foi ofertado de maneira gratuita aos participantes que registraram interesse via e-mail institucional do museu. Os professores tiveram acesso às informações sobre a formação através do site e das redes sociais do MAR. Segundo o setor educativo do MAR, foram registrados mais de 100 e-mails solicitando inscrição. Em função do espaço disponível, apenas os 20 primeiros foram selecionados.

Dos selecionados, 18 compareceram. O grupo era composto por professores/as da rede pública municipal, estadual e da rede privada de ensino das cidades do Rio de Janeiro, São Gonçalo, Nova Iguaçu e Niterói que trabalhavam desde a educação infantil até o ensino médio. Um grupo majoritariamente feminino e que leciona nas áreas de Arte e História.

O proposto pela Escola do Olhar foi desinvisibilizar perspectivas, versões e sujeitos historicamente subalternizados pela história. Reverberando mais uma vez a potência do samba e da cultura popular como fenômeno social e estético. Algumas questões interessantes atravessaram a formação, tais como: “Tornou-se o samba (campeão de 2019) uma reação ao colonialismo presente na sociedade? Ou a reação ao colonialismo tornou o samba da Mangueira o campeão de 2019?”

A formação com os/as professores/as tem início com visita à exposição O Rio do samba: resistência e reinvenção. A curadoria da exposição privilegia experiências a partir dos versos de História pra ninar gente grande. O samba-enredo, por sua vez, carrega trechos que provocam a enunciação de partes ocultadas à história oficial.

O samba destaca não só a força de trabalho e resistência negra e indígena, mas igualmente religiosidades e culturas subalternizadas. O samba sublinha protagonismos de figuras perseguidas pelo Estado, como Luísa Mahin, que articulou levantes e revoltas de escravizados na região da Bahia no início do século XIX, relativizando a versão contada em grande parte dos livros. Desnaturalizando a libertação do povo escravizado exclusivamente pelas mãos de Isabel, “[...] com versos que o livro apagou”, o samba-enredo História pra ninar gente grande se mostrou como material pedagógico de grande potencial para o decolonial (NASCIMENTO, 2020).

Se a história oficial é uma sucessão de versões dos fatos, o enredo proposto é uma versão “outra”. Ao rechaçar a ideia de uma história única, “entrou” na avenida e inquiriu “páginas ausentes” na história. Deslocando e dessensibilizando a participação dos índios e negros na construção da história do Brasil, narrativas essas que foram deslegitimadas por gerações.

Após breve apresentação das motivações subjetivas ali reunidas, recebeu-se a orientação para o primeiro momento da formação. Estavam à frente das atividades dois profissionais de educação do museu. Ambos reiteraram a importância daquele movimento de formação, tanto por parte do MAR, que marcava o retorno às atividades da Escola do Olhar7, quanto por parte dos professores/as que se mostravam sensíveis à proposta de (re)aprender e ensinar a partir de um samba-enredo que marcava questões de identidade da história insistentemente reproduzida na escola.

As atividades foram planejadas e realizadas destacando paráfrases do samba-enredo:

A escola que a escola não conta.

Quais versos o livro apagou desde 1500?

Eu quero um país que não está no retrato.

Tira a poeira dos porões; São verde e rosa as multidões.

A escola que a escola não conta

Na primeira atividade os participantes cantaram o samba e, em seguida, foram interpelados a descreverem, com base em seu cotidiano escolar, a escola que a escola não conta. O educador do museu esperava com isso que o grupo socializasse práticas escolares. Os relatos estavam imbricados, muitos expunham que inúmeras vezes não têm apoio estrutural e material para a realização das atividades as quais se propõem. De forma expressiva, professoras e professores reforçaram situações de desgaste e esforço emocional na tentativa de ofertar não apenas o conhecimento curricular, mas afeto, o que faz com que a relação professor-aluno-aprendizagem de fato aconteça, ou não.

Após a troca de experiências, o grupo registrou a “[...] escola que queriam contar” em um uniforme escolar da Rede Municipal do Rio de Janeiro que, posteriormente, ocupou a exposição O Rio do samba: resistência e reinvenção.

Fonte: Autora. Escola do Olhar, MAR, 2019.

Figura 1 Participante produzindo atividade 

Fonte: Autora. Escola do Olhar, MAR, 2019.

Figura 2 Resultado da atividade 

Quais versos o livro apagou desde 1500?

Para esta proposta, os educadores do museu distribuíram folhas soltas de materiais frequentemente utilizados para fins pedagógicos. Eram impressões de livros e materiais didáticos, reportagens, troca de e-mails e/ou artigos acadêmicos de diversas áreas do conhecimento. Materiais cuja mensagem emitida deveria ser observada de forma sistemática e crítica.

Não é tarefa fácil reconhecer em material tão recorrente algo que, na verdade, é uma versão única e excludente da história. É preciso educar o olhar para não recair nas armadilhas cotidianas da colonialidade do saber.

Após observação, cada participante deveria realizar uma intervenção na redação impressa no material recebido. A intenção da intervenção era chamar a atenção para o que havia sido identificado nas entrelinhas do que estava registrado naqueles documentos.

Esperava-se que as professores e professoras participantes realizassem uma leitura atenta sobre a história registrada e a intenção dessa escrita. Quem é o protagonista da história desde 1500? Como é construída nossa autoimagem de brasileiros? Quais são os personagens destacados? Quais os esquecidos? Com que propósitos? Somos um país descoberto ou na verdade tivemos nossa história saqueada? A que personagens as narrativas dos materiais disponibilizados promovem contorno heroico? Há espaço para histórias outras e de protagonismo afro-diaspórico e indígena?

Fonte: Autora. Escola do Olhar, MAR, 2019.

Figura 3 Atividade proposta 

Fonte: Autora. Escola do Olhar, MAR, 2019.

Figura 4 Atividade proposta 

Eu quero um país que não está no retrato

Tendo em mãos cartões postais da cidade do Rio de Janeiro de diferentes épocas da história, o grupo foi convidado a reelaborar criticamente as imagens dos lugares que, atualmente, são as mais convidativas paisagens turísticas e ao mesmo tempo, pouco ou nada frequentadas por grande parte da população fluminense.

A interação e o diálogo entre os participantes no manuseio dos postais favoreceram reflexões e identificações. Mais uma vez, o que sistematicamente é posto e moldurado reforça distinções e hierarquiza espaços de uma cidade partida entre quem é aceito ou não em determinados lugares/tempos/espaços.

A (re)construção de “[...] um país que não está no retrato” passa por debates e construções coletivas para engajamento de políticas que promovam igualdade e aprofundamento democrático em diversas cidades.

Quando o foco das ações está na redução das desigualdades sociais é preciso pensar os retratos plurais que compõem, por exemplo, o Rio de Janeiro, para além do cartão postal da capital. Propostas com vistas a promover a integração entre a população e demais cidades como Japeri, São Gonçalo, Duque de Caxias, Itaboraí, Nova Iguaçu etc.

Fonte: Autora. Escola do Olhar, MAR, 2019.

Figura 5 Atividade Proposta 

Fonte: Autora. Escola do Olhar, MAR, 2019.

Figura 6 Atividade Proposta 

Tira a poeira dos porões

Fazendo referência aos porões dos navios da diáspora negra, os educadores do museu dispuseram uma grande folha em branco no chão e, ao lado dela, algumas canetas coloridas. Mais uma vez cantou-se o samba e retomou-se a reflexão sobre seus versos.

O grupo visualizou o material e interpelou o educador museal sobre a próxima atividade, pois haviam elaborado mentalmente muitas possibilidades a partir do material disponível. Estavam todos muito empolgados com a simplicidade dos materiais disponíveis frente à intensidade das reflexões geradas a partir dos mesmos. Os participantes teciam elogios à pedagogia proposta no encontro, quando então o educador museal solicitou que elas manuseassem aquele grande papel e elaborassem uma dobradura que formasse um barco e registrassem o que para o grupo havia ocorrido no interior dos navios que traziam a população negra para ser explorada e escravizada. Palavras como preconceito, violência, tristeza, negligência e dívida histórica foram as mais frequentes.

Após refletirem sobre a desumanização feita no interior das embarcações e a maneira brutal com que homens e mulheres de todas as idades foram tratados, o educador museal convidou o grupo a dar um giro visual atento à exposição do piso em que estávamos.

“Vidas negras importam” era uma das primeiras situações possíveis de serem observadas a partir dos painéis que expunham algumas das muitas mentes brilhantes e autoras de músicas e poesias que contornam a vida cultural da cidade do Rio de Janeiro e da história do samba.

Fonte: Autora. Escola do Olhar, MAR, 2019.

Figura 7 Participante executando atividade 

Fonte: Autora. Escola do Olhar, MAR, 2019.

Figura 8 Atividade Proposta 

São verde e rosa as multidões

Para o último momento da formação, o educador do museu apresentou-nos um grande tecido pintado por ele nas cores da Mangueira, escola autora do samba-enredo, e colocou os professores como parte da multidão enaltecida na música. Convidando participantes para o encerramento do encontro a partir de dois gestos concretos: manifestar-se enquanto multidão e avaliar os personagens reverenciados em monumentos e praças do entorno da localização do museu e trazendo a própria Praça Mauá como possibilidade de ser rebatizada em uma devida homenagem àquele espaço e atores. Assim foi feito.

Insurgente, o grupo ocupa o pátio a frente do museu. Considerando os aprendizados e a representatividade daquele momento, posicionou-se enquanto “multidões” e rebatizaram simbolicamente por Praça Tia Ciata o endereço do museu.

Hilária Batista de Almeida, conhecida por Tia Ciata, é mencionada nas rodas de samba como a “mãe negra” que cedeu o espaço de sua casa e sua vida para ver o gênero musical crescer no Brasil enquanto ainda era proibido. Vinda da Bahia durante a diáspora, Tia Ciata, torna-se dama do samba e uma das figuras mais influentes da cultura negra carioca do século XX. Tia Ciata e sua relevância foram ali visibilizadas, dentre outros nomes propostos pelos participantes, como Dandara, Dona Ivone Lara, Clementina de Jesus e Leci Brandão.

Tia Ciata foi eleita para “rebatizar” a Praça Mauá sob o argumento da proximidade geográfica de sua casa com o espaço geográfico do Museu de Arte do Rio. Atualmente, à Rua Camerino, número 5, no Centro, encontra-se a Casa da Tia Ciata, espaço cultural que mantém viva a memória da veterana do samba.

Fonte: Autora. Escola do Olhar, MAR, 2019.

Figura 9 Participantes engajados na atividade 

Fonte: Autora. Escola do Olhar, MAR, 2019.

Figura 10 Conclusão da atividade proposta 

A (TRANS)FORMAÇÃO DE PROFESSORES/AS NO MUSEU

Considerando a temática abordada no curso ofertado pela Escola do Olhar, acreditamos que a formação continuada é um local necessário para construção de uma pedagogia decolonial, empenhada na descolonização do saber e do ser, na luta por uma escola intercultural e antirracista. Por isso, acreditamos que museus são responsáveis na formação estética e social de seus frequentadores, e devem estar em consonância com a diversidade cultural.

O curso e atividades relacionadas apresentaram-se como brechas e possibilidades de contestação a situações coloniais presentes no contingente curricular hegemônico. Para que esse movimento ocorra com maior expressividade na educação, resultando no rompimento com a colonialidade do ser e do saber, convêm alterações curriculares, práticas e formações potencialmente decoloniais que corroborem a realização do giro epistêmico a fim de garantir o direito de todas e todos à validade de suas próprias narrativas e subjetividades enquanto cidadãos e brasileiros.

A formação continuada tem o potencial de promover sensibilidade e comprometimento de professores e professoras com uma postura prática em atenção às brechas decoloniais do tempo presente. Propostas como as da Escola do Olhar, que recorrem à cultura popular para pensar estruturas sistemáticas de exclusão, como as que vigem em muitos currículos, são caminhos de enfrentamento e visibilização da correlação entre os principais conceitos de uma educação antirracista com a perspectiva da interculturalidade crítica.

Com o objetivo de contribuir para a formação técnico profissional dos docentes envolvidos, mas, especialmente, na formação político social na promoção de uma educação intercultural, as práticas propostas pelos educadores museais fomentaram no grupo a viabilidade de uma pedagogia outra, não apenas coloquial e simples em materiais e participação, mas desde suas próprias trajetórias e interesses. Situações, ou melhor, “[...] brechas decoloniais” para a ressignificação do ideal, do real e do possível frente às demandas encontradas no trabalho cotidiano.

Vislumbramos e concordamos com Walsh (2013) que a “[...] decolonialidade não é uma teoria a seguir, mas um projeto a assumir”. Enfatizando, portanto, a necessária formação ético-política como resposta a uma sociedade que ainda vive a sombra do preconceito – de classe, de raça e de gênero.

Assim, compartilhamos, com esta reflexão, a importância da formação continuada e da pedagogia decolonial. Uma responsabilidade que, além de coletivizada entre pares, deve ser tratada como responsabilização política. Entendemos por tal posicionamento dar a conhecer lógicas historicamente negadas e oprimidas, visibilizando e promovendo o protagonismo dos povos historicamente subalternizados. Formações cujas dinâmicas transitem entre identidade e identificação. Que desafiem a (re)construção de olhar para as contingências existentes em nossa prática: “[...] na luta é que a gente se encontra” (ESTAÇÃO PRIMEIRA DE MANGUEIRA, 2018).

1O grupo Modernidade/Colonialidade recorre ao uso do “outro” na intenção de não enaltecer um conhecimento ou perspectiva, mas sim uma mudança de lógica.

2Uma ampliação da expressão eurocentrismo, pois reconhece que os Estados Unidos ocupam um papel central na ciência e seu conhecimento, assim como o Europeu, estão vinculados à ideia de progresso, de modernidade.

4Por exemplo, o Código Penal Brasileiro de 11 de outubro de 1890, pelo Decreto número 847, Capítulo XIII com a Lei de Proibição da Capoeira. Lei revogada somente em 1937, que previa pena de prisão de dois a seis meses aos praticantes da luta de influência africana e indígena.

5O grupo Modernidade/Colonialidade é um dos mais importantes coletivos de pensamento crítico ativo na América Latina. Compartilham noções, raciocínios e conceitos, o que lhes confere identidade própria. Formam uma rede multidisciplinar e multigeracional de intelectuais, entre eles: Enrique Dussel, Walter Mignolo, Aníbal Quijano, Arturo Escobar, Santiago Castro-Gómez, Ramón Grosfoguel, Catherine Walsh, Edgardo Lander, Nelson Maldonado-Torres.

6A Lei n. 10639/03, que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, incluiu no currículo oficial da rede de ensino básico a obrigatoriedade da presença da temática História e Cultura Afro-Brasileira e Africana.

7O Museu de Arte (MAR) do Rio de Janeiro vem sendo afetado pelo desmonte na área cultural causado pela Prefeitura do Rio de Janeiro. O corte de verbas reduziu drasticamente o quadro de funcionários e inviabilizou a realização de atividades, como aquelas ofertadas pela Escola do Olhar.

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Recebido: 01 de Agosto de 2020; Aceito: 01 de Novembro de 2020

Informações das autoras

Erica Pereira dos Santos Nascimento

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

E-mail:nascimento.eps@gmail.com

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3591-6804

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/8469007266079523

Victória Guimarães Souza

Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

E-mail:victoriags@outlook.com.br

ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9311-7723

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/3418192828393528

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