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Revista Teias

versão impressa ISSN 1518-5370versão On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.21 no.63 Rio de Janeiro out./dez 2020  Epub 08-Fev-2022

https://doi.org/10.12957/teias.%y.54029 

Docência, currículo, didática, aula: fantástico arquivo político da diferença

TÁTICAS PANDÊMICAS: ideologia e o fazer docente

PANDEMIC TACTICS: ideology and teaching

TÁCTICAS PANDÉMICAS: ideología y enseñanza

Jonatas Conde Y Martin Puga1 
http://orcid.org/0000-0002-9593-9875

Leandro de Carvalho Moraes2 
http://orcid.org/0000-0002-2104-7516

1Professor de Sociologia (SEEDUC/RJ); Doutorando em Educação (ProPEd/UERJ)

2Professor de História; Mestre em Educação, Cultura e Comunicação (PPGECC/UERJ)


Resumo

Este escrito trata de apontamentos críticos acerca do período histórico pandêmico, ideologia, tecnologia e o fazer docente. Tem como pressuposto que o avanço conservador e reacionário, para além da pandemia de Covid-19, exige uma mudança tática no fazer docente. O mote é a tática da “estética da live”, enquanto produção de um comum partilhado possível, organizado por um posicionamento político, ético e estético contra-hegemônico em interação com as juventudes.

Palavras-chave: ideologia; tática; fazer docente

Abstract

This writing is about critical notes about the pandemic historical period, ideology, technology and teaching practice; assuming that the conservative and reactionary advance, in addition to the pandemic of Covid-19, a tactical change in the teaching profession is necessary in this context. Our motto is the “live aesthetics” tactic, as the production of a possible shared common, organized by a counter-hegemonic political, ethical and aesthetic position in interaction with youth.

Keywords: ideology; tactic; teaching

Resumen

Este escrito trata sobre notas críticas sobre el período histórico, la ideología, la tecnología y la práctica docente de la pandemia; asumiendo que el avance conservador y reaccionario, además de la pandemia del Covid-19, es necesario un cambio táctico en la profesión docente en este contexto. Nuestro lema es la táctica de la “estética en vivo”, como producción de un posible común compartido, organizado por una posición política, ética y estética contrahegemónica en interacción con la juventud.

Palabras clave: ideología; táctica; enseñando

INTRODUÇÃO – (NEO)LIBERALISMO, PANDEMIA E EDUCAÇÃO

Virada de ano. Ásia. China. Começamos a ouvir os primeiros relatos. Imagens surgem em multiplataformas, viralizando em nanosegundos, compartilhadas em um, dois toques em dispositivos digitais. Dados iniciais de uma doença não conhecida. Teorias conspiratórias ao longo do globo, toda sorte de silogismos rasteiros. Enquanto isso no Brasil, num primeiro momento, dizíamos que o “negócio tava esquisito lá, mas que se isso viesse pra cá não ia pegar”, “bebemos geosmina durante semanas, jamais esse vírus vai dar certo aqui”, “Dengue, zika, chicungunha, corrupção... jamais o corona vai nos pegar”, “nossa, em 10 dias levantaram um hospital pra milhares de pessoas? Doideira, hein?”. Dissemos isto por desconhecimento, por uma espécie de negação pré-carnaval, pela estética do deboche, por achar que estava tão distante de nós. Quanto mais chegavam notícias e imagens de outros países, e principalmente, quando atingiu no geral o “bastião da civilização ocidental”, isto é, a Europa, foi que começamos a perceber a gravidade da situação. No dia 11 de março a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou a pandemia de Covid-19, doença provocada pelo novo coronavírus que ocasiona síndrome aguda respiratória grave (SARS-CoV-2).

A partir disso, em âmbito mundial, se criou uma falsa polêmica entre as medidas de contensão da Covid-19 em diversas áreas da vida social e as políticas econômicas vigentes, isto é, o estabelecimento de uma ordem de grandeza: “temos de salvar a economia e os empregos. Não se pode fazer isolamento ‘social’. Isso vai gerar mais desemprego, e mais mortes porque não terão o que comer.” Como se a economia fosse tão mais importante quanto a própria vida. Este silogismo tacanho e raso, se expressa em especial no Brasil pelo bolsonarismo e suas linhas auxiliares: grupos e partidos (neo)liberais, setores do protestantismo e catolicismo, o agronegócio, setores do empresariado e a pequena-burguesia.

Não obstante a pandemia do novo coronavírus, tais pensamentos e práticas reacionárias e conservadoras se colocam em tempos em tempos de maneira estática na política institucional; embora nas relações cotidianas, de certa maneira, sempre se manteve as mais variadas formas de conservadorismos. Toda vez, pela paranoia sociopolítica e econômica, que se sentem “ameaçados” por políticas públicas mais distributivas ou o mínimo fortalecimento das garantias legais da vida coletiva e individual, estes grupos reacionários adquirem energia cinética por processos de fascistização. Vemos isto ao menos desde 2013, com o paradoxo das chamadas Jornadas de Junho, mais recentemente.

Em tempos bolsonaristas, com a máquina pública sendo basicamente extinta e o que resta é rearticulada entre grupos de interesses ligados ao capital em conjunto aos mais nefastos grupos conservadores evangélicos e católicos, a educação se tornou de fato uma arena de disputa diversa que coloca em xeque algumas conquistas provocadas com muita luta do campo progressista, desde o processo pré-promulgação da Constituição de 1988; além do fato inconteste que nos governos do Partido dos Trabalhadores (ao menos no setor da educação), vinculados, obviamente, às políticas macroeconômicas que resultaram não somente na construção de universidades e institutos federais, mas principalmente, ao aumento expressivo do acesso de estudantes, junto ao crescimento das transferências de verbas aos estados e municípios em suas redes de educação pelo FUNDEB.

IDEOLOGIA E EDUCAÇÃO

A partir de reeleição de Dilma Rousseff em 2014, o forte entrave reacionário e conservador expressado por movimentos políticos, surge com mais força. Um deles é o Movimento Nacional Escola Sem Partido. Tal embuste do senso comum se caracteriza pela falácia de que a educação brasileira em todos os seus níveis de ensino é lotada pelo “esquerdismo”, e que, portanto, está sendo pensada, gerenciada e, na ponta, o próprio conteúdo lecionado, por comunistas e “esquerdopatas”. As relações que tal grupo tem com setores já historicamente institucionalizados na sociedade brasileira (setores da igreja católica, algumas igrejas evangélicas chamadas neopentecostais), além de parlamentares coadunados à bancada da bíblia, da bala e do boi, faz com que qualquer iniciativa que alargue ou melhore as políticas públicas em educação sofra retrocessos. Um contrassenso em si mesmo, visto que este movimento requer para si a ideia de liberdade individual, mas se coloca como guardião da moral e dos costumes cristãos que deve se espraiar a todos os indivíduos – a contradição tão propalada: liberal na economia e conservador nos costumes”. Também por estabelecer que o alunado não tem a mínima capacidade cognitiva de construir e expor críticas, posicionamentos e visão de mundo, de forma autônoma. Somente, por essas duas críticas, por ora, a este movimento, já demonstra o quanto de pernicioso este grupo é, e o quanto sua ideologia e suas práticas se produzem em manifestações conservadoras, moralistas e proto-fascistas.

Os pensamentos dominantes nada mais são do que a expressão ideal das relações materiais dominantes; eles são essas relações materiais dominantes consideradas sob forma de ideias, portanto a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante; em outras palavras, são as ideias de sua dominação. (ENGELS; MARX:1998, p.48)

Depois do golpe jurídico-parlamentar-empresarial de 2016 (o Impeachment de Dilma Rousseff), tendo mais legitimidade para tanto, com a voracidade dos setores do capital financeiro na Educação, o que se viu nestes últimos anos, foi a participação ativa de grupos do chamado terceiro setor, tais como o Instituto Ayrton Senna, Todos Pela Educação, Instituto Lemann, Fundação Roberto Marinho, Instituto Itaú Cultural, entre outros; jogando assim, os holofotes na íntima relação entre o setor privado neoliberal, pela cartilha parasitária, associando-se ao poder legislativo e ao executivo federal, entre outras frentes, para praticamente redigir a reforma do Ensino Médio e a Base Nacional Comum Curricular.

As relações entre os grupos empresariais de educação e seus lobbys pela federação, somados aos movimentos de direita fazem pressão; tem voz e voto, atualmente, junto ao Ministério da Educação e as secretarias Estaduais e Municipais de educação e seus conselhos, basicamente em todo território nacional. Esta estratégia de política-cultural de ocupação de espaços faz com que todas as ações ligadas à educação, tende a passar pelo crivo moralista e conservador, corporativo e tecnicista, alterando a abrangência, os orçamentos, as políticas públicas, o controle social e o acesso da educação; além do fetiche associado a OCDE, PISA e outros organismos internacionais.

Assim, comparando-se a BNCC brasileira com a “Nova Agenda de Competências Para a Europa” editada pela Comissão Europeia (2016, p. 2), as diferenças emergem em desfavor aos nossos estudantes. A expectativa europeia é a de que os futuros cidadãos e trabalhadores, a partir das competências de base, desenvolvam com espírito crítico outras competências mais elevadas voltadas ao empreendedorismo, mundo digital e à cultura financeira. Para tanto, espera que o futuro cidadão e trabalhador – livre, autônomo, democrático, despido de preconceitos, criativo, responsável e consciente de si e do mundo em que se insere – seja capaz de rejeitar todas as formas de discriminação e exclusão social, reconhecer a importância e os desafios colocados pelas Artes, Humanidades, Ciência e Tecnologia “para a sustentabilidade social, cultural, econômica e ambiental” do seu país e do mundo, lidar “com a mudança e a incerteza num mundo em rápida transformação”, “valorizar o respeito pela dignidade humana, pelo exercício da cidadania plena, pela solidariedade com os outros, pela diversidade cultural e pelo debate democrático” (Portugal, 2017). O perfil de aluno esperado pela BNCC apenas aparentemente é o mesmo. A incorporação desigual das expectativas europeias em nossa BNCC, considerando-se as influências que a União Europeia exerce a partir de acordos firmados em diversas instâncias supranacionais, cria um futuro cidadão e trabalhador brasileiro, incapaz, por exemplo, de reconhecer os desafios colocados, sobretudo, pelas Artes e Humanidades, e também pelas diversidades cultural, de gênero e de sexo, tantas são as pressões exercidas pelos integrantes e simpatizantes do Movimento Escola Sem Partido e de segmentos religiosos fundamentalistas às disciplinas de Artes, Filosofia, História e Sociologia e às questões ligadas a gênero e diversidade sexual. Os direitos de aprendizagem dos alunos brasileiros, ainda que garantidos de forma democrática, acabam por constituir um perfil de aluno ao fim da escolaridade infantil e fundamental pouco competente e hábil para conviver num mundo que se torna digital e financeirizado. As restrições aos conteúdos por ventura ideologizados, assim como às questões filosóficas, sociológicas, de gênero e sexo impedem que se abram ao mundo fora dos seus locais de trabalho de forma livre, ativa, criativa, consciente de si e do mundo em que se inserem. (GAMA, 2018)

O próprio modelo neoliberal preconizado e gerenciado - mais ou menos de acordo com os últimos governos - há trinta anos no Brasil, bem como o desenvolvimento avassalador de novas tecnologias de informática, de informação e comunicação em contexto de globalização, fez com que se agravasse a luta de classes: privatizações, concessões, superávit primário, reformas da previdência, reforma trabalhista, desemprego, precarização do trabalho, sucateamento do serviço público, “PEC do Fim do Mundo”, a ode ao individualismo pelo ideário do empreendedorismo etc. Tudo isso intensificado ainda mais depois do golpe de 2016, o Governo Temer, e que se aprofunda ferozmente agora no proto-fascista Governo Bolsonaro.

Tragédia e farsa. A pandemia de Covid-19 só deixou mais escancarada, mais à vista, mais evidentes as contradições e limites do Estado e capitalismo brasileiro. O isolamento sanitário e a quarentena, de fato, se deram, num primeiro momento, a partir do posicionamento e decretos de algumas autoridades governamentais em contradição às ideias lunáticas do Governo Federal; mas, no geral, efetivamente, para setores da classe média e das elites, pelas relações sociais de produção. Nessa altura, com mais de seis milhões de casos confirmados e mais de 176.000 mortes1 em dados oficiais, já se sabe quem mais morre (morreu) em decorrência do novo coronavírus, já se sabe onde há maior risco de contágio e transmissão: trabalhadores e trabalhadoras informais, precarizados2, em maioria negros e negras, pardos que se deslocam das periferias e favelas a seus respectivos trabalhos em transporte público3 que, por sua vez, está lotado. Efeito cascata da descentralização da tragédia com a dita reabertura gradual da economia.

Nesta conjuntura, entretanto, a contingência da pandemia colocou diversos debates em evidência. Não só as relações entre o público e privado, raça, gênero e classe, estado/governo/direito, mas, sobretudo a ciência e a educação. A ciência, por motivos óbvios – mesmo com o negacionismo científico. Já a educação — que a partir do fato da supressão presencial em evitar a transmissão de Covid-19 – evidenciou, ao que nos parece, um paradoxo: a inequívoca contribuição em sentido geral da educação e a instituição escolar à socialização (em consensos e dissensos), bem como a organização socioeconômica familiar; porém, no contexto atual, a educação mediada por dispositivos tecnológicos, pela virtualidade, promovendo uma aceleração dos processos de aprendizagem e a artificialidade do fazer docente, além da disjunção da organização socioeconômica familiar.

A rotina se torna outra, a percepção do tempo muda, vêm à tona as contradições nas relações familiares, questões de renda e trabalho, Internet, celular, computador? Sabemos que filhas e filhos da classe trabalhadora, em ampla maioria, não têm acesso, além de setores da classe média. E as funções, para todos os efeitos, que se sobrepõem em demasia, precarizando as formas de organização familiar, no qual responsáveis absorvem de maneira acrítica o papel docente? E a lógica de mercantilização digital acelerada da educação, do fazer docente e da didática nestes tempos pelos governos e conglomerados de tecnologia?

Contra qualquer possibilidade de castração da luta política e da autonomia, justamente por entender que o docente está na “linha de frente”, aqui sugerimos algumas reflexões a respeito do papel e função do professor, principalmente enquanto educador; isto é, um intercessor, propondo reflexões críticas e mudanças táticas.

TECNOLOGIAS DO ENCLAUSURAMENTO E VELOCIDADE

A educação vive, ao menos, desde a ditadura empresarial-militar sintomas de Lesão de Esforço Repetitivo (LER). A educação – em sentido mais amplo da categoria – está, cada vez mais, relacionada às lógicas das tecnologias privatistas e produtivistas: para controle de corpos, na mistura desenfreada entre o público e o privado. Tudo isto, seguindo a cartilha dos governos altamente empresariais que gerenciam o Estado. A educação segue, assim, pensada e tratada como um negócio, um mero empreendimento.

[...] é a expressão das relações sociais de produção capitalista, sua materialização política e espacial que está na base da produção e reprodução do capital. (...) é a forma reificada dessas relações, mas também do amadurecimento das contradições que lhes são próprias. É a unidade de contrários, não apenas pelas profundas desigualdades, mas pela dinâmica da ordem e da explosão. (IASI, 2013, p. 41)

Contudo, em tempos de várias ações repressivas de autoridades dos governos nas suas três esferas e conservadorismos de correntes político-religiosas às manifestações políticas, educacionais, sociais, culturais e artísticas, pensar o espaço da educação, da escola, é relevante para construção de novos canais de diálogo e fortalecimento de ações coletivas no pertencimento e atuação de resistências nos espaços públicos da Educação.

Pois bem, a educação – através do ensino enquanto política pública - atualmente se configura muito além de uma das formas de expressões de produção e reprodução social. Mesmo podendo ainda se caracterizar como projeções de realidade da sociedade pelo aspecto material e ideológico, (considerando a interculturalidade e regionalidades), é “[...] ao mesmo tempo o local e o meio, o teatro e a arena dessas interações complexas” (LEFEBVRE, 2011, p. 58), que promovem transformações da vida cotidiana que modificam a realidade individual, familiar e coletiva às relações sociais de maneira radical. “A ‘Educação’ é obra a ser associada mais com a obra de arte do que com o simples produto material” (LEFEBVRE, 2011, p. 52)4, isto é, uma mediação entre mediações, entre pessoas e agrupamentos sociais que realizam esta obra em condições históricas, que produzem a educação por meio das interações conjuncionais – conflituosas ou não - das relações sociais.

Por isso, vale ressaltar que a maneira que organizamos a nossa percepção, não é de todo condicionada naturalmente, mas também historicamente, como nos lembra Benjamin (1994, p. 169): “No interior de grandes períodos históricos, a forma de percepção das coletividades humanas se transforma ao mesmo tempo que seu modo de existência”.

Essas aparências assumem a posição conceitual de ideologia. É a operação da cópia; que por este tempo histórico, altamente tecnologizante, produz a cópia da cópia: produção em massa de simulacros. “O que é válido hoje é o ‘pragmatismo’ pedagógico, é o treino técnico-científico do educando e não a sua formação de que já não se fala.” (FREIRE, 1999, p. 142). Uma espécie de binômios: preparação para o mercado de trabalho/mão de obra barata, empreendedorismo/lucros em curto espaço de tempo. Uma miopia educacional-ideológica que produz a dificuldade de percepção mais nítida, evidente das relações sociais e matérias do cotidiano.

Entretanto, para além da crítica de Marx e Engels à ideologia, surge a “derivação” de Gramsci – antes de Lefebvre - já apontava que na condição histórica da classe trabalhadora, bem como os avanços tecnológicos que permitiram o acesso a informação, a produção de linguagens artísticas num contexto maior de profusão cultural (rádio, cinema, revistas e jornais), a ideologia surge como chave de pertencimento para a luta política no contexto da luta de classes, que agora, além do chão da fábrica e no campo, era manifestada no plano da cultura, da educação, da arte, da vida cotidiana. Certamente que, nas contradições de cada período histórico, em movimento dialético, surgem outras derivas, fraturas que irrompem; justo porque as condições sóciohistóricas já não dão mais conta do desejo pulsante em intervir nestas próprias condições.

Essas derivas que temos apontado são as “dobras” formuladas por Deleuze (2010, p. 199- 200): “Neste sentido, há dobras por todo o lado, mas a dobra não é universal. É um ‘diferenciador’, um ‘diferencial’”. Aquilo que se bifurca, se metamorfoseia; isto é, a partir de encontros, sejam quais forem, se estabelecem acontecimentos. A educação é uma dobra em si mesma. Entendendo que, principalmente a prática da educação, é, em última análise a representação-pensamento do meio – não o início, muito menos o fim – mas o próprio meio; ou seja, a maneira pela qual todo processo se deu, (os acontecimentos), até este ponto para algum outro ponto (a educação em si). Daí, as bifurcações que a educação potencializa na medida em que ela é jogada ao mundo.

Como, neste momento de crise sanitária, socioeconômica e política, de distanciamentos podemos fazer valer essas dobras, essas bifurcações, os processos que a educação promove no ambiente escolar como um todo? Como que se pode equalizar, equilibrar aquilo que desejamos, queremos de fato, com a percepção de que não podemos ter tudo o que queremos? Como resolvemos, (se é que dá para resolver), determinadas interdições provocadas pela pandemia?

Talvez pelas comoções5. O ato de mover-se junto. A mediação-movimento no ato educativo que a docência propõe é exatamente a produção do espaço para além dos espaços físicos e didáticos específicos. Funda, coletivamente, um lugar realmente equipado para a simbiose das teorias e práticas da educação; pois permite ao docente explorar as possibilidades do fazer educativo, despertando interesses e desejos. Neste caso, o ambiente escolar (presencialmente) é, evidentemente, lugar privilegiado do ato criativo-educativo. Porém, pela contingência sanitária, se fez necessária dar um passo atrás na utilização de táticas junto aos tipos de plataformas e aplicativos de internet e dispositivos computacionais, com todas as críticas que podemos ter. Vejamos.

Uma das críticas principais que nos aparece é a condição alienante da educação mediada pelos dispositivos de comunicação e a internet. Isto é, os usuários (nós) de tal aparelho celular, ou computador, numa plataforma ou rede social são homogeneizados, regulados no geral, por forças tecnológicas que impelem modalidades e adaptações de comportamentos projetados pelo próprio sistema – padronizados por avatares, ícones, quantidade de caracteres, emojis, quantidade de cliques, etc., posto em deslocamentos de espaços e tempos a cada clique, a cada postagem, a cada atualização de página; vida contingenciada pela velocidade. Um sistema de verticalidades contínuas que decorrem num espaço virtual; um entrelaçamento, um conjunto de partes e pontos formando um espaço de fluxos virtuais. Esse espaço de fluxos virtuais seria na realidade, um subsistema dentro da totalidade-espaço, já que para os efeitos dos respectivos atores (usuários, plataformas, redes sociais, as empresas tecnológicas etc.) o que conta, sobretudo, é esse conjunto de pontos adequados às tarefas produtivas hegemônicas, características das atividades econômicas que comandam este período histórico. Como nos lembra Santos (2000, p. 105) “[...] o sistema de produção que serve desse espaço de fluxos é constituído por redes – um sistema reticular -, exigente de fluidez e sequioso de velocidade”.

Do aparato hegemônico deste sistema, a disciplina é palavra de ordem: assistir a live tal, postar foto de máscara, compartilhar o comentário do fulano, dar “coraçãozinho”, subir e descer ad eternum o feed de notícias, entrar na plataforma X para dar aula virtual se não toma falta e é descontado do salário. O poder disciplinar cada vez mais se exacerba. O governo do indivíduo e do corpo produz, justamente, um corpo dócil, individualizado em seu comportamento e modo de vida domesticado, também, através dos espaços da virtualidade, atualmente.

O que parece mais interessante, do ponto de vista da história do sujeito moderno, é que, embora “o poder disciplinar” de Foucault seja o produto das novas instituições coletivas e de grande escala da modernidade tardia, suas técnicas envolvem uma aplicação do poder e do saber que “individualiza” ainda mais o sujeito e envolve mais intensamente seu corpo”. (HALL, 2014, p. 26)

“Tiro, porrada e bomba” na favela. Mais uma morte de um jovem negro. “Não tenho o que comer em casa. Não tenho celular com crédito, muito menos wi-fi”. “Meus pais estão desempregados”. Pedalar 70km, trabalhar 12h por dia. Auxílio emergencial. Violência doméstica. “Não dá pra estudar assim”. “Já tenho que dar conta de ser mãe, trabalhar cuidando da casa e pra fora, agora tenho que dar conta de ser ‘professora’”? “Não consigo criar uma rotina de estudos”.

Confrontam-se aqui dois procedimentos: um deles bem material, constituído de elementos físicos, paredes, limiares e níveis, todos precisamente localizados; o outro, imaterial, do qual as representações, imagens e mensagens não possuem qualquer localização ou estabilidade, já que são vetores de uma expressão momentânea, instantânea, com tudo aquele que esta condição pressupõe em termos de manipulação de sentido, de interpretações errôneas... (VIRILIO, 2008, p. 17)

A educação neste período pandêmico, ao menos, esbarra no sentido empresarial. Quer dizer, uma empresa de empresas, isto é, um autogerenciamento gerenciado por meta-dados, empresas de tecnologia e redes sociais, pessoas reais, inteligência artificial, robôs; circulação de mercadorias, num fluxo randômico de usuários recortados em duas linhas - superfície e subterrânea – o presencial, o físico e a virtual, as simulações e simulacros, respectivamente, com todas as produções de identidades, todos os antagonismos de classe e produções estéticas, enclausurados nas armadilhas do espaço-tempo em geral.

Não esqueçamos que, ao lado das técnicas de construção, está a construção das técnicas, o conjunto de mutações espaciais e temporais que organizam incessantemente, com o campo do cotidiano, as representações estéticas do território contemporâneo. O espaço construído não o é exclusivamente pelo efeito material e concreto das estruturas construídas, da permanência de elementos e marcas arquiteturais ou urbanísticas, mas igualmente pela súbita proliferação, a incessante profusão de efeitos especiais que afetam a consciência do tempo e das distancias, assim como a percepção do meio. (VIRILIO, 2008, p. 16)

Os efeitos especiais os quais Virilio aponta nos fazem perceber que, condicionados aos celulares e computadores, às plataformas de internet, redes sociais etc., de alguma maneira, esses efeitos tornam a nossa própria existência um corpo residual por estar naquele espaço virtual; justo porque o tempo, pelas técnicas de velocidade, geram projeções de realidades. Mesmo se estando em casa, com isolamento sanitário (ou não), com outras funções e papeis cumpridos na organização familiar, estas projeções de realidade se acumulam, se sobrepõem, e em muito se tencionam, visto que são provocadas por uma outra rotina de convivência, e, também, intermediada pela proliferação de tecnologias de informação e comunicação.

Além da utilização em massa de dispositivos, principalmente de telefones celulares (smartphones) que conduzem os indivíduos a outras realidades, passam a quase suplantar as relações presenciais, da relação com os outros indivíduos e vários espaços físicos. “De fato, há muito a transparência tomou o lugar das aparências” (VIRILIO, 2008, p. 19). De hyperlink a hyperlink, clique a clique! Segundo Virilio (2008, p. 23), “[...] a grandeza primitiva do vetor da velocidade reassume sua função na redefinição do espaço sensível: a profundidade de tempo (da teleologia ótico-eletrônica) suplanta a antiga profundidade de campo da topologia.” As vias de acesso relacional deixam de ser fortemente físicas e passam a ser de interrupção, de duração, de entre-espaços, na medida da velocidade da luz (pelos dispositivos), na ocorrência de rastros, traços, tanto no campo da virtualidade como no espaço físico presencial.

Passamos a ter a capacidade de entrar no espaço virtual, visitando infinitas possibilidades de lugares, acessar inúmeros dados, performar nosso modo de vida em redes sociais na instantaneidade de um toque na tela. Camadas, hyperlinks, layers, incrustações, sobreposição em sobreposição, num jogo de percepções e representações em um tempo outro: da distânciavelocidade.

Diante desta súbita facilidade de passar sem transição ou espera da percepção do infinitamente pequeno para a percepção do infinitamente grande, da imediata proximidade do visível para a visibilidade do que está para além do campo visual, a antiga distinção entre as dimensões desaparece: a decupagem dimensional da geometria arcaica, que afirmava que o ponto corta a linha, que a linha corta a superfície e esta última, por sua vez, recorta os volumes, perde uma parte de sua eficácia prática. (VIRILIO, 2008, p. 24)

DAS TÁTICAS E AUTOCRÍTICAS: A “ESTÉTICA DA LIVE” COMO FAZER DOCENTE

A pandemia, com o maquinário tecnológico de comunicação e informação, fez dobrar o espaço sobre si mesmo, multiplicando as camadas de enunciados que se apresentam nas relações de trabalho e estudo em educação sob as telas de vários dispositivos. O tempo, em relação a estas dobras, é provocado por interrupções e enclausuramento, já que as tecnologias desempenham um papel de alterar o próprio tempo (cronológico e histórico); ou melhor, a percepção desse tempo se altera como se prolongasse de maneira extenuante, em nossas próprias casas, a jornada de trabalho e estudo – que de fato acontece: “[...] uma distorção do dia astronômico que traz consequências tanto para a organização do espaço urbano quanto para o espaço da arquitetura, já que a janela tende a ter precedência sobre a porta” (VIRILIO, 2008, p. 65). Ou seja: da organização familiar, da casa, da organização do trabalho e estudo, das formas de lazer, da própria vida social.

Não somos de todo entusiastas, como se percebe, das tecnologias de comunicação e informação como instrumental geral da vida social, muito menos para a educação, no que diz respeito à educação a distância ou formas hibridas como a semipresencial. Não podemos simplesmente aceitar o mantra de inovação tecnológica sem estabelecer, antes de tudo, a crítica aos modos alienantes circunscritos pelos algoritmos e suas programações – gerando uma aparência de real domínio sobre os dados, as interações digitais - bem como a concentração, em oligopólios empresarias de tecnologia e serviços de software, hardware, Big Data, oferecendo tais serviços ao Estado, e contratados de maneira no mínimo suspeita, num passe de mágica, na velocidade de um clique, pelos governos de plantão nestes tempos de crise sanitária pela Covid- 19, por exemplo. Além do fato, concreto e objetivo, das profundas desigualdades e antagonismos socioeconômicos e regionais em relação ao direito e acesso aos serviços públicos como projeto de exploração e manutenção racista e classista ao conjunto da população brasileira (negros, nãobrancos, brancos pobres) ao longo do processo sócio-histórico brasileiro – do modo de produção escravista ao capitalismo periférico e dependente. E também, pelo processo contínuo de aculturação: uma espécie de liberdade assistida e tutelada, incluindo o que se chama de cultura digital e lógica do empreendedorismo, atualmente; que, segundo Moura (2019, p. 76), “[...] pode servir para dificultar, amortecer ou diferenciar o processo de mudança social. Isso porque a estrutura social tem mecanismos diferentes daqueles que atuam no plano cultural”.

No caso específico do Brasil, queremos dizer que enquanto se realizou intensa e continuamente o processo de aculturação, pouco se modificou o nível econômico, social e político a situação do negro portador das culturas africanas. Em palavras mais simples, esclarecedoras e objetivas: a aculturação não modifica as relações sociais e consequentemente as instituições fundamentais de uma estrutura social. Não modifica as relações de produção. No que diz respeito à sociedade, no seu relacionamento interétnico, podemos dizer que há um processo constante daquilo que se poderá chamar de aculturação. Uma interação que leva a que muitos traços das culturas africanas e afro-brasileiras realizem uma trajetória permanente de contato com a cultura dominante, aparecendo isso como uma realidade no cotidiano do brasileiro. No entanto, do ponto de vista histórico-estrutural, a nossa sociedade passou por apenas dois períodos básicos que foram: a. até 1888, uma sociedade escravista; b. de 1889 até hoje, uma sociedade de capitalismo dependente. (MOURA, 2019, p. 76)

Entretanto, com o distanciamento físico e presencial provocado pela pandemia, foi colocada a tarefa de não só entendermos as especificidades deste período histórico, com todas as suas contradições e paradoxos, mas, efetivamente, enquanto professores/educadores, o que fazer a partir daquilo que está sendo posto. O passo atrás que falamos, passa pela percepção tática, na medida do possível, de utilizarmos algumas plataformas virtuais a fim de minimamente recuperar, obviamente de outra maneira, algum tipo de contato, algum tipo de afeto, algum tipo de vínculo interpessoal, mesmo no plano da virtualidade.

Tomamos como tática ao fazer docente, neste contexto, para além das críticas expostas até então, a necessidade de se fazer presente, de mostrar o rosto, mostrar uma parte de nossas casas, a estante de livros; mesmo sendo por intermediações de fibra ótica, wi-fi, aplicativos e plataformas, 4G, webcam, microfone, telas touchscreen e toda sorte de mecanismos empresariais cibernéticos de controle de dados. Ou, na possibilidade real que estes tempos reacionários pressupõem: a desconfiança de que nossas aulas-virtuais, nossa “cara”, nosso forma e estilo de aula, nossos “livros subversivos” na estante, quadros e pôsteres na parede, possam percorrer todos os cantos da internet e redes sociais – seja pelo afã mínimo de saudade do contato e pelo conteúdo discutido nas relações do currículo e o que acontece em nosso cotidiano, seja pelo simples contrário ideológico que a juventude do outro lado da tela possa ter. Assim como nós estamos em nossos lares, em nossas organizações familiares específicas, a juventude discente também está. Sofremos os diversos atravessamentos materiais e objetivos. Somos atravessados por miríades de afetos subjetivos e psicológicos, intra-lares ou extra-lares.

O que estamos fazendo é assumir em parte, para a nossa forma docente, o que a juventude de maneira em geral tanto gosta, para além da pandemia de Covid-19, mas que veio com força desde março deste ano: a “estética da live”; ou seja, não iremos fazer shows patrocinados por cervejarias, muito menos dar dicas de como se vestir ou se maquiar, ou palestrar sobre algum tema, conceito, etc., mas, utilizar dessa forma de interação, produzindo este espaço (virtual) junto com a alunada que pode se fazer presente ali. Não só trocando e debatendo o conteúdo em si, mas, também, criando um afeto que se aproxime da experiência física-presencial de uma sala de aula, de pertencimento mínimo ao fazer docente e discente, do ver e ouvir – mesmo que, às vezes, só fique o ícone-letra ou fotografia da alunada exposta na tela, sem vídeo, microfone fechado (para não gastar o pacote de dados pré-pago de internet) – de ler, em compensação, o fluxo de escrita em comentários atravessados no chat.

Este movimento performático-educativo se apresenta como tática na produção de imagens e espaços coletivos de um comum partilhado possível, intervindo no meio social produzindo meio ambiente e panos de fundo sociopolíticos e estéticos. Ações-táticas de atoseducativos, de incidência e provocação na ligação do individual no imediato-político, isto é, em coletividade, em coautoria. Quase um tipo de cinema com interatividade mais alargada.

O movimento com certeza vai continuar presente na imagem, mas com aparição de situações ópticas e sonoras puras, liberando imagens-tempo, não é mais o movimento que conta, ele só está ali a título de index. A imagens-tempo não significam de modo algum o antes e o depois, a sucessão. A sucessão existiria desde o início com lei da narração. A imagem-tempo não se confunde como que se passa no tempo, são novas formas de coexistência, de colocação em série, de transformação... (DELEUZE, 2010, p. 158)

O fazer docente, o ato educativo, a educação em si, os modos de fazer estão sempre numa relação de autoria coletiva, de composição coletiva; que unifica e conduz epistemologias e pedagogias que reconhecem as diferenças, mas que criam condições de engajamento mútuo, em seu auto-aperfeiçoamento, a fazer-se a si mesmo numa autorrealização, de entrega de si; isto é, cria uma relação familiar no contexto microcósmico das aulas pelas turmas, gerando a confiança entre o educador e o educando, criando autonomia no processo de aprendizagem, para a apreensão crítica da realidade de acordo com as intensidades e tempos particulares dos sujeitos; o equilíbrio na formação dos saberes.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: DAS TÁTICAS COLETIVAS

O que expressamos aqui, depois de uma análise conjuntural em relação à pandemia de Covid-19 e as críticas concernentes à utilização das tecnologias de informação e comunicação é fruto, não só da tarefa imposta pelo momento sócio-histórico, mas pela autocrítica nossa, que nos fez, taticamente, dar esse passo atrás, reavaliando nosso fazer docente, nossa didática, entendendo que para além do estatuto de dominado, uma vez que estando sob a égide das normativas impostas pelas burocracias e aparelhos ideológicos de dominação da sociedade capitalista - não aceitamos passivamente essa condição. Pelas artes do fazer, lembrando Certeau (2017), criamos astúcias, subvertemos, ressignificamos produtos e técnicas do modo de produção hegemônico; aplicando sentidos diferentes, produzindo gestos, manipulando as estratégias disciplinares das instituições e das tecnologias “internéticas”.

As táticas são procedimentos que valem pela pertinência que dão ao tempo – às circunstâncias que o instante preciso de uma intervenção transforma em situação favorável, à rapidez de movimentos que mudam a organização do espaço, às relações entre momentos sucessivos de um “golpe”, aos cruzamentos possíveis de durações e ritmos heterogêneos etc. (CERTEAU, 2017, p. 96)

Atos de criação. Certeau, por sua vez, em nossa concepção, certamente leu e atualizou em certo sentido, neste conceito de tática, o grande teórico revolucionário Vladimir Ulianov. E seguindo essa contribuição, quando produzimos o espaço da aula virtual com a “estética da live”, é gerado um senso de cooperação, que envolve desde uma relação de melhoria da saúde mental, produzindo demandas - seja ela qual for: uma gargalhada qualquer, o atravessamento de vozes nos comentários ao abrir os microfones, o chat, a discussão em si, a despedida da aula - ao próprio entendimento, a nosso ver, de que a alunada são pessoas em formação, filhos e filhas de trabalhadores e trabalhadoras, que estão se defendendo e defendendo “o seu”. Ou seja, uma rede de interações, nodosidades que nos lembram, que no sentido mais alargado dos termos: “[...] a produção, o objeto externo do consumo, o consumo, o objeto representado da produção; cada um deles não apenas é imediatamente o outro, nem tampouco apenas o medeia, mas cada qual cria o outro à medida que se realiza”. (MARX, 2011, p. 48)

A apreensão que fazemos de uma filosofia da práxis, das discussões da educação, do relacionamento e produção do espaço (virtual) coletivo é motor de uma visão de mundo que coloca a classe trabalhadora como enunciado revolucionário; a sua maneira, com seus modos de vida, produzem um protagonismo de esquiva, que escapa às tentativas de tutela ideológica, tanto da forma estado, quanto do dogmatismo dos iluminados das ortodoxias em todo espectro ideológico. Se “[...] apresenta sobre a forma de um poder constituinte que se revela alternativo às formas de poder existentes. A alternativa é a obra dos sujeitos independentes, isto é, constitui-se no plano da potência, e não somente no poder.” (LAZZARATTO, NEGRI, 2001, p. 36)

É evidente, portanto, o quanto a vida experenciada pelos estudantes, é instrumentalizada pelas relações familiares e dos territórios que habitam. Não só por aquilo que os pais e responsáveis, na educação informal, estão inseridos, (religião, ideologia etc.), mas, também pela vivência de residirem em espaços da cidade extremamente violentos, são as contradições e paradoxos nos dias de hoje. É por isso, que a escola necessita ser a arena da alteridade. A docência precisa ser a interseção mesmo de sujeitos epistêmicos. A comunidade escolar deve ser a agência coletiva de (des)equilíbrios potenciais em conflito e confronto. As aulas, o ringue, do comum partilhado, pelas sensibilidades ali presentes; produzindo, portanto, éticas que intermeiam a produção de diferenças.

Por isso, humildemente, somos intercessores nessa obra coletiva. “O essencial são os intercessores. A criação são os intercessores. Sem eles não há obra.” (DELEUZE, 2010, p. 160) A ocupação de ser professor e educador se manifesta na constante tentativa de promover encontros, através das intercessões de modos de vida – seja na confecção mesma de uma aula virtual (ou presencial), seja na construção de uma verve estético-político no fazer docente. Certamente, que tais indicativos do que é, em nossa compreensão, ser professor e educador, permanece de alguma forma num nível de certa utopia. Mas o que é utopia se não a produção mesma de desejos e encontros?

O educador/professor é um agenciador de uma educação cujo destino não está somente na própria educação, mas na experiência social: uma educação que ostensivamente toma partido nos entremeios das relações sociais, que intercede dissensos e consensos, que faz acirrar esteticamente a percepção da luta de classes; não esconde seu viés instrumental, nem seu caráter transitório, nômade; que potencializa um conjunto de experiências a partir das relações contextuais, comunicacionais, opostas, fraturais. Parafraseando, trata-se de transpassar o que Ernst Fischer (1979) discorre em A necessidade da arte: “[...] a função da arte não é a de passar por portas abertas, mas é a de abrir as portas fechadas".

Interpretar o mundo não basta somente, mas manipulá-lo, criá-lo, nos tornando cocriadores deste mundo, realçando um sentimento de força coletiva, operando a construção de uma alternativa de sociedade. O fazer-se existir, reconhecendo nas relações sociais, coletivas – na alteridade radical – sabendo que as juventudes são corpos em formação, indóceis em sua performatividade geracional. Contudo, estamos falando do Humano – esse ser ambivalente biopsicossocial que produz subjetividades numa relação estético-política que extravasa institucionalidades, seja no trabalho, na igreja, na escola, na internet, na rua. Subvertemos determinados dogmas e doutrinas porque as conhecemos, porque a ética de tom (neo)liberal construída para vivermos em coletividade também não nos basta. Criamos linhas de fuga, dobramos discursos, relemos e atualizamos aquilo que está escrito; produzimos uma linguagem própria de acordo com os espaços que transitamos intervindo neles de maneira tática em um cuidado si, de nós, dos outros. Mesmo com as tentativas de mais engessamento crítico, despolitização e falta de coletividade, sempre haverá a esquiva, o “pendular” desviante, tático, daqueles modos de vida que não se contentam em ser “domesticado” – e para todos os efeitos, contra aquela velha máxima: se não se tem destino, qualquer direção pode parecer tão boa quanto qualquer outra. Sabemos nossa direção, criamos nosso destino.

1Atualizado em 6 dez. 2020.

4Neste parágrafo tomamos emprestado em paráfrase o brilhante ensaio de Henri Lefebvre, O direito à cidade, substituindo a palavra cidade por educação. Justamente por entender que o mesmo projeto de reificação e produção de uma cidade seguindo a lógica mais capitalista empresarial possível, ocorre também com a educação.

5Pela etimologia, do latim commovere, isto é, mover conjuntamente, mobilizar, movimentar, agitar, perturbar. Produzir comoções tamanhas que causem deslocamentos de sentidos, aquilo que desperte a crítica, o interesse, o debate. Ocupar-se de si mesmo e do coletivo; é neste sentido que procuramos atuar.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 01 de Agosto de 2020; Aceito: 01 de Novembro de 2020

Informações dos autores

Jonatas Conde Y Martin Puga

Professor de Sociologia (SEEDUC/RJ); Doutorando em Educação (ProPEd/UERJ)

E-mail: jonatasmartinpuga@gmail.com

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9593-9875

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/0519561006161025

Leandro de Carvalho Moraes

Professor de História; Mestre em Educação, Cultura e Comunicação (PPGECC/UERJ)

E-mail: leandro.hist@hotmail.com

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2104-7516

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/6448200562648230

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