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Revista Teias

versão impressa ISSN 1518-5370versão On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.21 no.63 Rio de Janeiro out./dez 2020  Epub 08-Fev-2022

https://doi.org/10.12957/teias.%y.53646 

Docência, currículo, didática, aula: fantástico arquivo político da diferença

POÉTICA DO ARQUIVAR: didáticas dos despropósitos entre a arte e a natureza

THE POETICS OF ARCHIVING: didactics of inanity between art and nature

LA POÉTICA DEL ARCHIVO: didáctica de la inanidad entre arte y naturaleza

Antonio Almeida da Silva1 
http://orcid.org/0000-0002-6373-1957

Antonio Carlos Rodrigues de Amorim2 
http://orcid.org/0000-0002-0323-9207

1Universidade Estadual de Feira de Santana. Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE-UEFS). Linha Culturas, diversidade e linguagens

2Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)


Resumo

A poética do arquivar busca apresentar outras possibilidades, sentidos e práticas educativas sobre o conceito de arquivo; assim, a escrita deste artigo vai abordando como a prática de arquivar instaura uma poética com o fazer artístico contemporâneo. Como pensar o conceito de arquivo em torno da arte contemporânea e expandir as possibilidades educativas e curriculares? Apresentamos a figura do professor como um colecionador dos despropósitos que inventa um jeito particular de criar um arquivo. Partimos da ideia de alguns pensadores pós-estruturalistas, desde a literatura à filosofía, para pensar em outras práticas através do conceito de arquivo. Entendemos que a prática de arquivar reinventa novos espaços didáticos a partir das relações entre as imagens, servindo como uma membrana de conexão, criando zonas interfronteiriças de experimentação curricular por meio das imagens, natureza e a arte.

Palavras-chave: arquivo; arte; currículo; ensino de biologia

Abstract

The poetics of archiving seeks to present other possibilities, meanings, and educational practices related to the concept of archive; thus, the writing of this article approaches how archiving establishes a poetics with contemporary artistic practice. How can one think about the concept of archive in contemporary art and expand educational and curricular possibilities? We present the teacher as a collector of inanity who invents a particular way of creating one archive. We started from the idea of some post-structuralist thinkers, from literature to philosophy, to think about other practices through the concept of archive. We understand that archiving reinvents new didactic spaces based on the relationships between images, serving as a connecting membrane, creating cross-border areas of curricular experimentation through images, nature, and art.

Keywords: archive; art; curriculum; teaching biology

Resumen

La poética del archivo busca presentar otras posibilidades, significados y prácticas educativas relacionadas con el concepto de archivo; así, la redacción de este artículo aborda cómo el archivo establece una poética con la práctica artística contemporánea. ¿Cómo se puede pensar en el concepto de archivo en el arte contemporáneo y ampliar las posibilidades educativas y curriculares? Presentamos el profesor como un coleccionista de inanidades que inventa una forma particular de crear un archivo. Partimos de la idea de algunos pensadores postestructuralistas, desde la literatura hasta la filosofía, para pensar sobre otras prácticas a través del concepto de archivo. Entendemos que el archivo reinventa nuevos espacios didácticos basados en las relaciones entre imágenes, que sirven como una membrana de conexión, creando áreas transfronterizas de experimentación curricular a través de imágenes, naturaleza y arte.

Palabras clave: archivo; arte; curriculum; enseñanza de biología

INTRODUÇÃO

Eu me arrumo como posso.

(Georges Perec— Penser/ Classer)

Propomos uma escrita sobre o processo criativo de arquivar, inventando novas possibilidades para pensar esse gesto em diferentes práticas educativas que experimentam a relação com a arte e o ensino de Biologia em virtualidades1. A proposta deste artigo é trazer algumas refiexoes que apontam alguns (des)caminhos para a ideia de arquivo, e assim, pensar a sala de aula de ciências como um espaço criativo que permita a instauração de novas práticas de composição e arranjos de seus arquivos. Partimos da ideia de alguns pensadores, tais como: Borges (1970, 2007), Aby Warburg (2010), Foucault (2004, 2009), Derrida (2001), para apontar ao leitor outras abordagens sobre o conceito de arquivo. Também apresentamos algumas práticas educativas inspiradas em artistas contemporâneos.

Temos como ancoragem uma pesquisa de doutorado da qual trazemos algumas refiexões sobre o arquivo de imagens de produções artísticas contemporâneas que capturam e ao mesmo tempo são capturadas pelas forças da natureza, mais especificamente aquelas que trazem consigo certa apreensão poética e ao mesmo tempo inusitada da natureza. Tais obras desses artistas ajudaram a compor a tese de doutorado2Laboratório dos despropósitos: vestigios ecológicos entre arte e ciências, defendida em 2018, na Faculdade de Educação da Unicamp.

Nosso objetivo é o de apresentar ao leitor uma escrita sobre a processo de arquivar e ao mesmo tempo trazer algumas possibilidades de experimentações entre a ideia do arquivo e sua relação com a natureza, que, ao nosso ver, podem instaurar sentidos outros para a didática e para o currículo. Em um primeiro momento, a pesquisa debruça sobre as poéticas de arquivar e num segundo momento, de um jeito muito poético, o texto aborda os processos de arquivar trazendo o personagem colecionador dos despropósitos, como o próprio professor que busca ressignificar sua prática através do gesto de colecionar, organizar e propor diferentes práticas educativas com os alunos da licenciatura em Biologia da Universidade Estadual de Feira de Santana – Bahia, para criar um arquivo de imagens sobre arte e natureza.

Que tipo de arquivo se inventa ao aproximar e se misturar com a arte? Como apresentar outras propostas sobre o gesto de arquivar atravessadas pela arte e a natureza? Como pensar o conceito de arquivo em torno da arte contemporânea e expandir as possibilidades educativas e curriculares no ensino de Biologia? Trazemos uma prática e uma escrita-artigo que busca discursar sobre as inúmeras vontades, que vão desde rastrear, coletar, colecionar, relacionar, para, assim, criar um arquivo de imagens e práticas que acontecem por meio da relação e experimentação sobre os conceitos de arte e natureza. Para tanto, somos escritos/escriturados por uma figura-personagem, menino-biólogo, professor-pesquisador-artista “colecionador de despropósitos”, que cria, que inventa outras didáticas pela experimentação com as imagens. Este personagem inscreve-se nas experiências e experimentações e escreve este artigo em virtualidades.

O menino colecionador veio de longe com seus despropósitos didáticos, trazendo seus residuos originados nos indicios da arte, das ciências e da filosofía. Agora faz rastros poéticos nos modos de arquivar. O colecionador tinha um desejo inédito de agrupar coisas impressentidas de valor e de conhecimento. “Meu serviço eu cuido de tudo quanto é mais desnecessário [...]” (BARROS, 2010, p. 213). Buscava na arte contemporânea vestigios distorcidos da natureza para compor um acervo didático.

Com essa intimidade com as subversões didáticas, o menino virou professor e adquiriu esse modo vivente de colecionar experiências coloquiais com as imagens. Ele buscava uma intimidade nas práticas didáticas e, a partir disso, extraía do currículo “riquezas íntimas”. Para o menino, as imagens “[...] jamais poderiam ser evocadas fora da paisagem”. (BARROS, 2010, p. 213).

POÉTICA DO ARQUIVAR

A escrita desse artigo brota da invenção de um hábito natural que leva o professor-pesquisador a capturar diferentes (des)objetos de práticas interfronteiriças, sem um território definitivo, que atravessavam os limites estabelecidos entre a arte, a natureza e a ciência. Alguns desses (des)objetos estavam em formato de imagens fotográficas, outros eram instalações, desenhos, pinturas etc., mas todos eles apostavam em nossas possibilidades de pensar em outras práticas educativas.

“As práticas abrem-se a dissoluções das estruturas curriculares, agitam-se para o inédito e o imprevisto quando se experimentam diferentes formas de ensinar e dialogar com o inusitado”. (SILVA, JOVE, 2019, p. 31).

A poética do arquivar é entendida para além do método de seleção e organização das imagens sobre arte e natureza, mas principalmente é meio de experimentação3 alimentada através das produções artísticas que abordam o tema da natureza. Além disso, a poética tem como proposta ser um arquivo-laboratório cujo ambiente é voltado para experimentação em diferentes espaços em tempos diversos. A experimentação como o fio condutor, que escapa das regras, da precisão e da eficácia dos arquivos tradicionais.

A estética de arquivar instaurou, na prática de pesquisa (a que este artigo é tributário) de um personagem, o menino professor, uma poética interessada no registro, na documentação, na classificação; mas, ao mesmo tempo, inventava novos modos de existência através da repetição e ordenação diferenciada, numa experimentação carregada de outra percepção de natureza, fazendo reverberar modos criativos de coabitar.

O processo de registrar e arquivar faz extrair do mundo diferentes práticas, o que sugere articular outras diferentes coisas: imagens de artistas que abordavam a natureza e seus hibridismos, artistas da Land Art, artistas que trabalham com a cultura popular, artistas que exploram a biotecnología, outros que experimentam o corpo, entre outras propostas.

Por meio do procedimento de seleção e organização de produções envolvendo diferentes relações com a natureza, estas imagens passam a formar outra coisa, aproximando diferentes naturezas e ao mesmo tempo ressignificando e pondo em relação imagens/obras que talvez jamais estivessem juntas.

Dessa forma, o colecionador inventa maneiras outras de estar junto, em que a coisa e seu acontecimento ocupam diferentes nichos, onde as coisas seriam guardadas, o arkheion4.

Para Derrida o arquivo é uma grande trama interligada, articulando saberes diversificados. O colecionador ao selecionar as coisas, deixa vazar sua subjetividade em cada conteúdo a ser organizado; assim, a estrutura técnica abre espaço para relação e o acontecimento.

A ideia de arquivo é bastante trabalhada em Derrida (2001), abordando o conceito de “mal de arquivo”, ameaça a todo poder principado, põe uma perturbação nas concepções centralizadoras e arcônticas5. O autor nos apresenta em seu texto o sentido paradoxal da palavra arquivo. A constante tensão entre a manutenção e conservação da memória, nesse sentido, o arquivo estaria mais próximo de um documento que se encarrega de guardar as verdades e está a todo momento a se pôr em prova ou provar algo. Assim como Derrida, apostamos em outras apropriações do termo arquivo.

Em nossas investigações com a arte, apresentamos ao leitor um encontro com os arquivos imagéticos sobre as poéticas do arquivar, para aqueles interessados a se abrigar nas ruinas e escombros expositivos, sujeitos estes contaminados por nossas afecções, por nossas experimentações larvais, sujeitos que se interessam por nossas inclinações às inutilidades e aos despropósitos.

Anos de estudos

E pesquisas:

Era no amanhecer

Que as formigas escolhiam seus vestidos6. (BARROS, 2007, p. 63)

O uso do termo despropósito se encontra na poética de Manoel de Barros (2010), que busca na inutilidade das coisas sua matéria de poesia. Manoel de Barros, como o próprio colecionador dos despropósitos, o poeta cria e experimenta com a linguagem e com a natureza, inventa uma poética que peregrina na natureza por meio de seus escombros e vestigios larvais.

O colecionador dos despropósitos é o guardião dos acervos artísticos que dizem sobre a arte e a natureza, tal qual O guardador de águas (BARROS, 2004), que coleciona os inutensílios, que extrai das palavras e imagens uma inauguração de mundos. Inventando, assim, uma didática agroval.

Agroval, termo utilizado por Manoel de Barros, no Livro de pré-coisas, que diz sobre os lugares onde se cultiva e germina a vida. Quando adjetivamos a palavra didática com a formação neológica agroval, estamos deslocando o termo didático para um lugar de criação e germinação de práticas educativas.

O agroval como um substrato privilegiado para que diferentes práticas possam acontecer em constante comunhão, que não se dá na anulação das hierarquias entre os seres e seus modos de associação, mas pela incorporação e fusão, numa condição constante de buscar a indiferenciação através de agenciamentos diversos, continuos e incertos do próprio ato educativo de colecionar.

A didática agroval inventa uma prática de arquivar que instaura uma poética sobre o fazer artístico contemporâneo por meio das imagens sobre natureza. A escrita aqui tem especial interesse em apresentar o gesto agroval de colecionar como um gesto de pensamento de práticas entre arte e natureza no âmbito do arquivo.

Fonte: Arquivo pessoal, 2017.

Figura 1 Arquivo dos despropósitos em DNA 

PROCESSOS DIDÁTICOS DO ARQUIVAR

A metodología para montar um arquivo-laboratório, coágulo da experimentação e do experimento, é singular: parte e se instaura no encontro com obras e práticas artísticas, em diferentes espaços e lugares, que dizem ao colecionador algo inusitado sobre natureza. Dentre inúmeros encontros e achados, faz-se um arquivo e com o arquivo experimentam-se criações a partir de perturbações, variações nas imagens compondo-as em um acervo. O arquivo não pertence ao colecionador e nem pertence especificamente a alguém, está aberto a todos que queiram inventar práticas e criar novos arquivos.

“No final das contas, o ato criativo não é executado pelo artista sozinho; o espectador põe a obra de arte em contato com o mundo exterior ao decifrar e interpretar suas qualificações internas, acrescentando assim sua contribuição ao ato criativo”. (MARCEL DUCHAMP apudRENNÓ, 2012, p. 41).

O desafio apresenta-se em pensar um espaço arquivo-laboratório na sua complexidade e despropósito, transitando em suas múltiplas dimensões curriculares, escapando desse lugar apenas de tradição, espetáculo ou especulação para o lugar da experiência e do experimento com os processos, matérias, materiais e propostas das diferentes coisas reunidas. De modo que o leitor, espectador, visitante, possam inventar, eles, também, outras existências para as imagens, que possam abrir novas fendas para as práticas de ensino de ciências.

“É como se aquilo que estivesse por longo tempo situado numa zona de sombra [...] ganhasse visibilidade”. (VAINER, 2005, p. 254).

Mas essa forma de pensar as ciências nas propostas artísticas era algo próprio do menino que colecionava despropósitos, que talvez os cientistas e os artistas não estivessem tão interessados nessas questões obliquas; mas a produção dos artistas convidava o menino professor a inventar outras possibilidades didáticas com as ciências.

Nesse despropósito didático traçavam-se caminhos inéditos em busca de coisas que lhe afetam, um desejo de aproximar-se do mundo das artes, de investigar, de relacionar, de criar, move o corpo de um menino colecionador em busca de afetos. Afetos trazidos pela Land art, pela Bioart, pelas performances das visceras e carnes, do designer das plantas, animais e microrganismos. O desejo de compor e ser contaminado pelas práticas de alguns artistas levou o colecionador biólogo a percorrer um longo caminho de encontros e achados em diferentes lugares do mundo, em busca de produções artísticas atravessadas pelo inusitado da natureza.

De certa maneira tudo que afetava o colecionador era matéria e argamassa para que ele compusesse seu inventário de práticas inúteis, em busca de “existências mínimas” (LAPOUJADE, 2017) e rastros que escapam nas diferentes obras de arte. Existências entre a biología, a química e a geografía, que nem mesmo elas se dariam conta.

As existências mínimas “[...] possuem seu modo de ser, intrínseco, incomparável” (LAPOUJADE, 2017), como existências que estão em vias de se efetivar, ou que já se efetivaram, porém, estão silenciadas, existências capazes de modificar e nos modificar. Modos de existências criam práticas corporais, ficcionais e virtuais.

Assim, “[...] existimos pelas coisas que nos sustentam, assim como sustentamos as coisas que existem através de nós, numa edificação ou numa instauração mutua. Só existimos fazendo existir. Ou meihor, só nos tornamos reais se tornarmos mais real aquilo que existe”. (LAPOUJADE, 2017, p. 99).

Nesse sentido, o gesto de arquivar busca criar um gesto em processo e inacabado de criar “[...] atos, mudanças, transformações, metamorfoses” (LAPOUJADE, 2017, p. 61), que afetam os seres e os processos educativos e os fazem existir de outra maneira. Com isso, poderíamos pensar o ato de arquivar como práticas curriculares. Assim, o currículo seria como um lugar ex-cêntrico em relação, lugar onde seria possível imaginar o encontro entre diferentes possibilidades educativas. Cada coisa, objeto e ¿magern apresentam sua dimensão educacional, poética, estética e política nessa participação correspondente no acervo.

As propostas trazidas pelos artistas7 cujos encontros foram intensivos, buscando práticas que exploram naturezas nas mais variadas possibilidades para extravasar noções da vida e do sujeito antropológico, quando a ideia de ser contemporâneo já não corresponde muitas vezes ao desejo da forma humana, mas tende a admitir os múltiplos feixes do existir, em que diferentes formas de se ocupar uma multiplicidade de mundos.

Assim, “[...] em meio à falência do antropocentrismo a que assistimos nas últimas décadas, em dominios vários, da filosofía à ecología, seres que antes pareciam reclusos à esfera subjetiva ganharam um outro estatuto, uma nova vida”. (PELBART, 2016, p. 391).

Vidas que preexistem às configurações acelerantes e métodos homogeneizantes da vida. Humanos e não humanos, artistas e coisas reivindicam modos de existências singulares. Um arquivo imaginario onde todas as conexões são possíveis.

Entes invisíveis, impossíveis, virtuais, que pertenciam ao dominio dito da imaginação, do psiquismo, da representação ou da linguagem, atravessaram alegremente a fronteira entre sujeito e objeto e reapareceram numa outra chave ontológica. Já não somos os únicos actantes do cosmos – proto-subjetividades pululam por toda parte, e mesmo aquilo que parecía mero objeto de manipulação tecnocientífica, como a natureza, salta para o proscênio, reivindicando meios de expressão próprios. (PELBART, 2016, p. 391).

Um arquivo que busca organizar um inventário dos seres/obras de arte e seus diferentes modos de existência, uma arte de eco-existir. Vidas que precisam ser coisa, obra, para que conquistem o direito à existência, pois aínda que existam, sua existência não está dada, é preciso constantemente que ela seja instaurada, como afirma Pelbart (2016). Para esse autor, a instauração não é um ato solene, cerimonial, institucional, como quer a linguagem comum, mas um processo que eleva o existente a um patamar de realidade e esplendor próprios – “patuidade8”, diziam os medievais. (PELBART, 2016, p. 393). Diferentes movimentos no gesto de colecionar e acumular.

Para essa perspectiva de pesquisa, o mínimo gesto de colecionar e arquivar envolve uma estética e uma ética muito diferentes do mero acumular. O ato ou gesto de acumular não cria passagem e aresta, está muito preenchido e não há espaço para circular. Não há passagem de ar quando os seres-imagens ja estão dados como prontos, e não há mais espaço para inventar.

O acumulo é nada mais que amontoar coisas, formas fechadas entre si, presas ao hilemorfismo, estágio em que os estados da matéria são separados das suas formas de vida. A normativa de um amontoado é reduzir a vida a objetos e a retirada dos processos vitais.

O fenômeno da acumulaçãocoagula os movimentos de deslocamento, sedimenta e lhes impõe formas, funções e ligações; de certa forma são organizações dominantes e hierarquizadas, organizadas exaustivamente para extrair qualquer abertura e variação. É o exagero sem variação, é o excesso sem relação, um amontoado de corpos adaptados a uma única função: a de reprodução sem variação. Um amontoado de corpos anestesiados nos quais o excesso de rotina impede qualquer variação.

Quem acumula muita informação perde o condão de

adivinhar: divinare.

Os sabiás divinam. (BARROS, 2001, p. 53).

Acumular diz sobre uma vida produtiva que não produz nada de novo, é instrumento de captura da falta, por isso se excede, pois não para de inventar sua própria armadilha: há de preencher a todo momento a sua falta de vida. “Agrada-me pensar o arquivo em modo ampliado, à sorte das relações e da invenção”. (ARAUJO, 2017, p. 28).

Já o ato de colecionar cria aberturas para um estilo de vida, que também é urn movimento nômade, pois permite um eterno descolar sem se fixar em um hábitat, gera e instaura um hábito. Uma coleção que se torna meio de si mesma para abrir os espaços-ecossistemas para a vida em sua multiplicidade.

Nossa prática de pesquisa aproxima-se também das estratégias do pensador alemão Aby Warburg que apostava na interpelação entre diferentes campos do conhecimento para compor um acervo de imagens que produzem pensamentos. Aby Warburg criou um método de arquivar dinâmico, criando espaços capazes de reunir, de fomentar e de prover diferentes acessos através da criatividade e imaginação.

Fonte: Arquivo pessoal, 2017.

Figura 2 Laboratório como chão I 

Para Warburg (2010), um potente acervo inventa uma boa vizinhança, que seria a capacidade de criar relações entre vizinhos distintos, fazendo se relacionar diferentes uns com outros, despertando cumplicidades, correspondências e conivências. Nessa “Lei da boa vizinhança”, o colecionador cria relações cada vez mais complexas em suas dimensões constantes e mutantes.

Onde existiam fronteiras entre os pensamentos, os arquivos de Warburg estabeleciam vínculos, pontes, alianças entre coisas distantes. As imagens como rizomas de nossos próprios olhos, elas são, ao mesmo tempo, os refiexos e rastros dos fiuxos e refluxos dessa longa aventura das coisas e dos humanos.

DESPROPÓSITOS

Assim, a coleção de obras de arte, que compuseram nosso arquivo, experimenta-se em outras práticas didáticas por meio da relação entre a arte e a natureza; não é um acúmulo ou aglomerado de imagens, pois o exercício de colecioná-las é habitado por uma dispersão viva e criadora no gesto de um colecionador. Por isso é uma coleção que se abre para novas sensações e disposições, inventando territórios que nada mais são que espaços de circulação. Um arquivo de produções artísticas prontas que disparam uma experimentação continua, fazendo com que o arquivo funcione como um conjunto de ambientes, que inventa novas vidas através de um diálogo com os espaços e as materialidades da natureza.

No caso do arquivo dos despropósitos, o arquivar procura escapar de qualquer estado de conservação, não quer pensar organização como uma medida, ou até mesmo algo linear e sem rupturas, pois não deseja conceber os objetos como uma massa amorfa. Mas, sim, agrupar figuras distintas que estabelecem relações múltiplas entre si. Um princípio instigante que inventa uma ordern e ao mesmo tempo faz passar ali o caos, afirmando sua heterogeneidade, pois tenta reunir forças distintas de práticas diversas. Se, para Foucault (2004), o arquivo não é algo congelado, estático, mas um sistema de discurso múltiplo e móvel, feito de diversas carnadas, embaralhar as carnadas, destacar sua ruidosidade é o que nos intéressa.

Dialogando com Foucault, pensar em uma poética do arquivo é criar movimento e inventar novas relações entre as imagens e práticas que atravessam as questões sobre a arte e as ciências.

Para Foucault (2009), arquivos são como espaços de passagem, de repouso, espaços, também, onde as coisas aproximam-se, que vivem ao mesmo tempo juntas, são maneiras simultâneas de estar, associar-se e produzir novas relações. A poética do arquivo busca eliminar as distâncias, produzir vizinhanças, aproximações entre o próximo e o distante, assim, tal poética produz entrelaçamentos, encontros com o outro e com si mesmo.

Ainda pensando com Foucault, os arquivos permitan unir vários espaços “[...] que são em si próprios incompatíveis”, os arquivos como um lugar fora do tempo que se abre a diferentes espaços e tempos. Os arquivos são espaços da heterotopia, atuam muitas vezes como uma contracultura, são lugares inquietos, pois criam novos arranjos e combinações (im)prováveis. O arquivo como um lugar dos contrassensos, onde podem viver juntas as (con)tradições.

O arquivo, pois, se apresenta como um imenso espaço fronteiriço, onde diferentes coisas se agrupam, se ressignificam. Aprendemos com esse autor a pensar as coleções de imagens como “relações de vizinhança” que, quando dispostas em um arquivo, criam espaços heterogéneos que não se estabelecem na relação de sobreposição, mas de composição, de aproximação dos mais inusitados elementos, “justapor em um só lugar real vários espaços, vários posicionamentos que são em si próprios incompatíveis”. (FOUCAULT, 2009, p. 418).

O menino colecionador instaurava um pequeno despropósito no ato de colecionar, tinha uma potência de abrir gestos no currículo de ciência/biologia, que instaura na contemporaneidade uma estética e uma poética de arquivar, cujo desafio é inventar diferentes arranjos, ou melhor, um lócus para a proliferação de seres heterogéneos.

Assim, o método de arquivar permite que diferentes naturezas habitem num mesmo espaço e num mesmo tempo. Apostamos em um arquivo que leva ao limite a ideia de “viver juntos”, mesmo que isso possa diluir as fronteiras membranosas do ser para entrar em estágio de devir.

Propomos pensar a própria experimentação como um movimento de deformação, desformação, dissolução, composição das práticas curriculares engessadas monocromáticas, centralizadoras, que impossibilitam uma prática transversal, que impedem maiores possibilidades de contato e contágios entre diferentes campos do conhecimento.

Pensar o currículo tal qual propõe Silva e Jovè (2019), em movimento, num estágio difusão, reinventando novos arranjos e se abrindo para multiplicidades e se deixando experimentar pelos elementos diversos das práticas cotidianas.

“Um currículo que dissolve em outras práticas culturais e se deixa experimentar na liquidez das próprias relações sociais, cada vez mais fluidas, rizomáticas e globalizadoras”. (SILVA, JOVÈ, 2019, p. 29).

Assim, com ajuda dos filósofos e artistas, acende-se uma metodología da pesquisa que deriva em didática e currículo, faz-se arquivo e reinventa-se a cada nova espécie/obra encontrada. Arquivo de artistas que são experimentações em outras naturezas em diferentes nichos e espaços. Um arquivo inconcluso e aberto aos afetos, uma vontade de pensar as imagens de arte e natureza pelas arestas.

Um arquivo movimentado pelas ideias de alguns artistas, alunos, poetas, filósofos, cientistas e naturalistas. Todos eles convidados a compor com o conjunto de es cri tas-imagens, a produzir encontros entre imagens e práticas distintas para pensar um arquivo para um museu aberto.

Deslocamos neste artigo o sentindo de arquivo, este não somente subordinado às instituições, mas, também, a todo acervo de obras dispostos na natureza, nas ruas, nos diferentes espaços da cidade, laboratórios, escolas, internet entre outras possibilidades de produzir práticas com a arte.

De acordo com Arantes (2015), a questão do arquivamento tornou-se algo tão corriqueiro e banal, parece ser uma estratégia para lançar atenção para acontecimentos que não poderiam, em meio à cultura do excesso, ter sido ‘deletados’.

No presente exercício de narrar as experiências de organizar um arquivo como um espaço fronteiriço entre diferentes coisas e seres, trazemos a figura do personagem colecionador dos despropósitos.

O colecionador dos despropósitos é um sujeito que buscar capturar o inusitado para compor um acervo que inventa certas pré-didáticas9, a ideia de uma pré-didática também dialoga com a expressão didática agroval. Termos esses criados para trazer outras possibilidades didáticas que buscam germinar práticas de experimentaçãocom o currículo.

Pré-didáticas, “de dentro para fora” em que o ato de conhecer está ligado ao próprio ato de se aventurar, de descobrir, através da curiosidade e da criatividade.

No poema Educação pela pedra, o poeta João Cabrai de Melo Neto (1996), nos ensina que para aprender sobre algo é necessário frequentá-lo. Assim, nosso personagem busca frequentar as diferentes imagens sobre arte e natureza para compor uma poética do arquivo. O personagem “colecionador de despropósitos” é o próprio professor-pesquisador, que tem o hábito natural de colecionar e organizar práticas distintas, construindo uma ‘ponte’ e um ‘desvio’ entre os diferentes acervos e práticas educativas. O professor/colecionador inventa um currículo das práticas com o inusitado, arrastando o ensino de biologia para outras virtualidades. O inusitado era o que mais interessava ao menino professor que tinham hábitos de colecionador, isso impulsionava a busca dos rastos de aprendizagem dando às imagens de natureza outras visibilidades. Separar, organizar e classificar eram os pequenos gestos ainda não totalmente consolidados que abriam para o arquivo uma pequena diferença.

Essas pré-didáticas são também, aqui, nominadas de didáticas dos despropósitos, trazem de certa maneira novas incontingências para o currículo. As pré-didáticas nos ensinam que o gesto de colecionar, separar e organizar também é uma prática curricular, uma forma de re-territorializar e inventar outros espaços educativos.

O gesto do menino-pesquisador-colecionador dos despropósitos não somente garimpa, seleciona e reúne as obras de arte, mas também cria os encontros necessários entre seres distintos, que talvez nunca estivessem juntos.

O menino colecionador busca, no hábito de juntar coisas desconexas, o exercício de pensar um arquivo que possa germinar, posto que são virtualidades, formas de diferentes coisas estarem juntas, antigo e contemporâneo, realidade e fantasia, imaginação e razão, ciência e arte, que essas possibilidades possam estar dispostas nas prateleiras das bibliotecas imaginárias de Borges10sem que, no entanto, uma anule a outra.

Tal proposta se aproxima, também, da ideia de arquivo, que para Borges (1970) é um espaço de fricção, pura imaginação, são labirintos que criam diferentes espaços e tempos ligados pelos fios da curiosidade.

Nesse sentido, o colecionador de naturezas ínfimas11 aposta no conceito arquivo para reunir, organizar e principalmente criar relações e experimentações sobre os acervos de imagens de obras de arte contemporânea que tentam representar a natureza de forma distinta.

O menino colecionador ao compor imagens inventa um arquivo propenso às naturezas distorcidas, essa visão obliqua permite inventar outros modos de acessar formas inéditas de vida.

O menino que se aproximou dessa nova propagação, observando essas naturezas distorcidas, quis registrar e colecionar seus gestos. Seguindo-a por toda parte, o jovem colecionador aprendeu com ela a arte prática da profanação e inventou algo distinto, que nomeou de Laboratórios dos despropósitos12. In-ventava nos olhos do menino o ato de colecionar. O vento era uma dispersão das formas rígidas da organização, da classificação e da construção do pensamento científico, que de certa forma desfazia as trincheiras postas pelo pensamento científico, onde já não fazia mais nenhum sentido armazenar imagens, separá-las ou empilhá-las em árvores genealógicas sem construir relações.

De inicio, o ato de colecionar e classificar era para o colecionador dos despropósitos uma espécie de (ante)proposta metodológica, que encurvava no desafio de desobedecer à obcecada e inquietamente prática de apropriar-se das imagens para fins da mera conservação e memória. Assim, a coleção de obras sobre arte e natureza permitía criar um espaço aberto e imprevisivel sobre o acervo. O colecionador inclinado às práticas estrábicas da ciência desarrumava espaços rígidos, tais como o laboratório, a ponto de este espaço expressar o corrompimento dos erlenmeyer e a profanação dos tubos de ensaio. Esse estilo de enxergar nas obras de arte outros desejos dilacerava as formas naturais, rompía com os conceitos e normativas das ciências canônicas. Uma das suas experimentações com a ideia de arquivar foi construir os Laboratórios dos (des)propósitos. (Laboratório como Chão, Chão como laboratório, Corpo como laboratório, Laboratório entre a Terra e o Cosmo). Para o menino-professor-pesquisador e colecionador estes laboratórios eram como espaços de agenciamentos com as imagens de arte e ciência que experimentam outros modos de pensar e praticar ciência e educação.

Nesses laboratórios, as obras de arte poderiam interagir por justaposição – tudo depende da disposição das imagens para tal situação. A ruptura das práticas não estava na deformação ou contaminação nas imagens, pois o que interessava não era sornente a visualidade, mas o tratamento dado a cada processo e experimento realizado nas imagens, a ideia, sobretudo. Isso já era uma obra de arte. O mais importante para a composição do nosso acervo seria, então, a postura em relação à imagem e ao desejo de fazer, ou meihor, o deixar fluir uma simbiose e uma contaminação de diferentes práticas curriculares, em destaque a relação entre a arte e a ciência.

De inicio, o ato de colecionar e classificar uma obra de arte era apenas o de apresentar ao leitor/expectador um acervo de práticas artísticas e sua relação com a natureza; aos poucos essa (ante)proposta metodológica se encurvava no desafio de desobedecer à obcecada e inquietamente prática de apropriar-se das obras para fins de ilustração ou mero acervo. Ao debruçar-se sobre o acervo percebemos uma possibilidade vibrante de explorar as infinitas relações e experimentações com as imagens em espaços e situações inusitadas, isso já abría o currículo para as práticas mais inusitadas. Daí a ideia de arquivo se abría para infinitas composições com o chão, com o corpo, com os laboratórios, com a sala de aula e com o próprio cosmo.

A proposta do menino era pensar em práticas com o conceito de arquivo influenciadas pelo nomadismo dos artistas, abertas a experimentar os arquivos imaginários de tão reais, tal como nos apresenta Borges (2007), ao transitar pela enciclopédia chinesa Empório Celestial dos Conhecimentos Benévolos, quando o autor nos permite pensar outras formas de existência para as coleções.

Para o colecionador dos despropósitos, a prática de colecionar imagens contaminadas de natureza é a todo tempo afetada pelas propostas de artistas que colecionam a natureza sobre a perspectiva da inutilidade e do abandono. Entre o discurso e a obra, o colecionador vai aprendendo e dando força à materialidade do arquivo. Assim, o arquivo surge por meio dessas forças pioneiras, de diferentes artistas que experimentam a arte de colecionar e inventam maneiras de arquivar.

Assim, o pesquisador, colecionador de (des)propósitos, busca pôr em coabitação práticas de ciências, fotografías, compostes (in)orgânicos dispostos na natureza, tubos de ensaio, placas de Petri, microscópios, entre outros instrumentos presentes nos laboratórios. Tais incidências inusitadas tentam de alguma forma associar-se através de simbioses trazendo virtualidades e outras perspectivas para as práticas de ciências/biologia, apostando numa horizontalidade entre objetos, seres e práticas educativas.

É na heterogeneidade que as imagens-arte e as imagens-ciência se misturam e se recombinam em processos de metamorfoses.

O arquivo como um museu onde o espectador também é curador, onde diferentes formas de vida possam estar juntas e ensaiar conexões e desconexões e experimentar devires. Um espaço eco-estético em que os diferentes artistas circulam e se avizinham. Talvez seja preciso pensar o arquivo-museu como espaço “sem paredes” (MALRAUX, 2006), um espaço sem qualquer tipo de enquadramento, que permite uma experiência através do imaginário: um arquivo-museu ainda por vir.

Ele é espaço de produção de sentidos e de imagens que dialogam com o espectador, cuja experiência é singular, onde as imagens escrevem uma narrativa repleta de histórias e carnadas de vida, interrogando e confrontando o olhar. “Museu é um confronto de metamorfoses”. (MALRAUX, 2011, p. 10).

Fonte: Arquivo pessoal, 2018.

Figura 3 Laboratório Poéticas dos Despropósitos I 

Fonte: Arquivo pessoal, 2017.

Figura 4. Laboratório como chão II 

DESARQUIVANDO IDEIAS EM CONSIDERAÇÕES

Inspirado na proposta de museu imaginário, o pesquisador-colecionador, gérmen do menino que viralizou, foi desafiado a pensar um laboratório-museu-arquivo, um espaço que é também um arquivo imaginário. Para Hélio Oiticica (2011), o “Museu é o mundo”, e existe somente na experiência cotidiana entre o visível e o invisível, entre o acessível e o inacessível, entre arte e não arte, entre a arte e a emoção. Onde colecionador, público e espectador deslocam-se em direção ao objeto e à ¿magern, podendo, muitas vezes, o objeto deslocar para os espaços públicos “readymade13”. Um museu que instala o mundo.

Poderá esse espaço, tal como sugere Manuel Castells (2010), constituir-se como novos conectores temporais e espaciais, e contribuir para a reinvenção do mundo?

“O museu-rizoma ou museu-conector de tempos e espaços guarda e amplifica as multiplicidades, e oferece “N” possibilidades de conexões: conexões que se fazem, se rompem, se refazem e que se abrem para outras conexões”. (CHAGAS, 2011, p. 120).

Deslocar o conceito de museu e de laboratório, compondo-os, implica a valorizaçãodas articulações entre diferentes vidas animais, vegetais, minerais, objetos, fotografías e formas indefinidas. Um laboratório-museu que experimenta romper a dicotomia entre a obra de arte e o colecionador/observador, onde o visitante não é conduzido pelos espaços, mas conduz a si mesmo pelas experimentações e afetos produzidos. Onde o observador não somente contempla a obra, mas é forçado a confrontar e criar nossas possibilidades de existência. Obra-espectador, espectador-obra num movimento de captura, uma dobra de um sobre o outro.

Fonte: Arquivo pessoal, 2018.

Figura 5. Laboratório Poéticas dos Despropósitos II 

Os movimentos dos artistas nos diferentes laboratórios instauraram um devir nômade no colecionador, e esse personagem desestruturava sua centralidade em meio às imagens e materialidades da ciência, abrindo-se para a diferença. O arquivo dos despropósitos ao mesmo tempo que organizava as imagens, também escava seus desejos e vontades, que de certa maneira, poderíamos dizer que o pesquisador já era um derivado das obras dos artistas que o atravessavam a cada vez que acessava o sensível dos laboratórios.

De alguma maneira geral poderíamos dizer que o ato de coletar, reunir e organizar seres distintos era uma prática laboratorial de um arquivo das coisas inúteis, um exercício de uma (des)funcão14 científica. Foi se dando conta de que estávamos inventando um dispositivo de guardar e organizar essas coleções. Não era uma organizaçõo que tinha como intensão a conservacão e preservacão das coisas, mas permitía que as imagens e as produções dos diferentes artistas pudessem movímentar possibílídades de pensar outras práticas de ciência e da natureza.

O processo de registrar e arquivar faz extrair do mundo diferentes práticas curriculares, o que sugere articular outros diferentes campos de conhecimento, como a ciência, a filosofía e a arte. Tais práticas curriculares encontram no método de arquivar e experimentar diferentes maneiras de perceber o contemporâneo. Assim, o colecionador dos despropósitos experimenta através dos processos artísticos novas estratégias de mediação cultural, dando possibilidades de ampliar o repertório e potencializar possibilidades para além da metodología e da didática.

É nesse movimento de produzir um arquivo de imagens que o menino-professor-colecionador captura as potências para pensar as rachaduras nas práticas didáticas das ciências e da arte. Experimentar na arte um modo de escrever filosofía, pensar a arte e as ciências como potências abertas ao devir criativo.

Para o menino, o mínimo gesto de colecionar e arquivar era um gesto pré-didático, agroval, que instaura na prática do professor um estilo de vida, abrindo-se para novas sensações e disposições metodológicas. Tomamos essas derivas, no currículo, nas metodologías do arquivar para produzir rasuras e fissuras nos continentes-acervos uniformes, organizados, enquadrados e com rotas definidas pela objetividade e razão, para agenciar arquivos-arquipélagos movediços, dinâmicos, desprovidos de origem e centro, ricos nas intensidades.

Com esse mínimo gesto de reunir coisas des comparadas, nossa pesquisa inventava algo muito próximo de um arquivo/laboratorial que propõe ao currículo a abertura às práticas transversais e interdisciplinares. E o gesto de selecionar as imagens, a descoberta de novas práticas trazidas pela arte, arrastavam diferentes concepções de natureza para seus (des)limites.

1 Ensino de biologia que existe e se realiza em um plano aínda não atualizado e nem percebido, numa aposta ao currículo aberto às diferenças e às práticas poéticas e estéticas.

2Nesse artigo recuperamos a noção de arquivo e do colecionismo disponível no capítulo 4 na tese de Doutorado. Ver a tese: http://repositorio.unicamp.br/jspui/bitstream/REPOSIP/332709/1/Silva_AntonioAlmeidaDa_D.pdf. Disponível em 5 nov. 2020.

3A experimentação como um gesto de produzir novas metodologías dentro e fora do currículo escolar. A experimentação não envolve um método a ser seguido, e ela acontece de diferentes formas e envolve processos diversos. E uma maneira de pro liferar pensamentos mais abertos às diferenças, buscando criar e formular um problema, afirmando as singularidades.

4 Derrida (2001) faz referência ao termo como: domicilio, endereço destinado ao abrigo dos magistrados, local onde os documentos oficiais eram guardados. Arkheion seria o lugar onde os documentos seriam guardados.

5Para Edmund Husserl, é o caráter dominante e unificador de uma experiência vivida.

6Por motivos estéticos, optamos por não seguir, no poema, as normas de citação.

7Artistas como: Rodrigo Braga, Marcelo Moscheta, Thiago Rocha Pitta, Walmor Corrêa, Bené Fonteles, Ligia Clarck, Juan Calle, Giuseppe Penone, Raquel Nava, Helen Pynor, Jason Briggs, Gina Pane, Alexis Rockman, Damien Hirst, Walter Mason, Andy Goldsworthy, Charley Harper, Raquel Nava, Mark Dion, Zeger Reyers, Uli Westphal, Patricia Piccinini, Stelarc, Dustin Yellin, Cal Redback, Chiharu Shiota, esses são alguns dos mais de 100 artistas que compõem o acervo do Laboratório dos despropósitos.

8Como explica Souriau (2015): é presença, um esplendor de um universo apresentado no seu pleno poder de nos emocionar, de nos transformar, um dado que não pode ser repelido.

9A ideia de uma pré-didática também dialoga com a expressão didática agmval. Termos esses criados para trazer outras possibilidades didáticas que buscam germinar práticas de experimentaçãocom o currículo.

10 Aqui fazemos referências aos contos de Borges (1970), imaginando mundos-bibliotecas com seus labirintos misturando magia e realidade.

11O colecionador de naturezas ínfimas dialoga com Manoel de Barros no poema 0 guardador de aguase Fernando Pessoa em O guardador de rebanhos.

12Laboratório de experimentação com as imagens de arte e natureza.

13Ready-made de Duchamp é justamente o deslocamento do objeto do local de origem para espaços dos museus de arte.

14Permitir que funcione de outra maneira.

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Recebido: 01 de Agosto de 2020; Aceito: 01 de Novembro de 2020

Informações dos autores

Antonio Almeida da Silva

Universidade Estadual de Feira de Santana. Programa de Pós-graduação em Educação (PPGE-UEFS).

Linha Culturas, diversidade e linguagens

E-mail:almeida.uefs@gmail.com

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6373-1957

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/0439748570650475

Antonio Carlos Rodrigues de Amorim

Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)

E-mail:acamorim@unicamp.br

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0323-9207

Link Lattes: http://lattes.cnpq.br/3988331743668197

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