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Revista Teias

versión impresa ISSN 1518-5370versión On-line ISSN 1982-0305

Revista Teias vol.21 no.63 Rio de Janeiro oct./dic 2020  Epub 08-Feb-2022

https://doi.org/10.12957/teias.%y.56242 

Ensaios

MULHERES EM LUTA: a dimensão educativa do engajamento político

WOMEN IN STRUGGLE the educational dimensions of political engagement

MUJERES EN LUCHA: las dimensiones educativas del compromiso político

Hamilton Harley de Carvalho-Silva1 
http://orcid.org/0000-0002-5007-3334

Kimi Tomizaki2 
http://orcid.org/0000-0001-8804-8188

1Instituto Vladimir Herzog

2Faculdade de Educação da USP


Resumo

O objetivo desse artigo é discutir os sentidos do engajamento de mulheres pobres na luta pelo acesso à moradia digna, tendo em vista colocar em evidência as dimensões educativas inerentes à militância política, que se materializam em processos de ressocialização e socialização política provocados pela própria dinâmica dos movimentos políticos e que conduzem à ressignificação, por parte dessas militantes, do seu modo de conceber o mundo e seu lugar nele. Para realizar tal discussão, de caráter teórico e metodológico, nos apoiaremos nos resultados de uma pesquisa de doutoramento sobre a militância de mulheres no Movimento dos Trabalhadores Sem-teto (MTST) na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), que lançou mão de entrevistas em profundidade, observação e participação em atividades do MTST, tendo em vista compreender o engajamento político em uma perspectiva processual, na qual são consideradas tanto as disposições relacionadas à origem e trajetória sociais das militantes, quanto a importância dos laços e retribuições de cunho interpessoal e afetivo desenvolvidos no âmbito da militância.

Palavras-chave: socialização política; militância; mulheres

Abstract

The purpose of this article is to discuss the senses of the engagement of poor women in the struggle for access to decent housing, with a view to highlighting the educational dimension inherent to political militancy, which materializes in processes of resocialization and political socialization provoked by the very dynamics of political movements and which lead to the resignification, on the part of these militants, of their way of conceiving the world and its place in it. To carry out such a discussion, of a theoretical and methodological character, we will rely on the results of a research on the women's activism of the Movement of Homeless Workers (MTST) in the Metropolitan Region of São Paulo (RMSP), with a view to understanding political engagement from a procedural perspective, in which both the provisions related to the origin and social trajectory of the militants, as well as the effects of interpersonal ties and remuneration are considered and affective developed within the scope of militancy.

Keywords: political socialization; militancy; women

Resumen

El objetivo de este artículo es discutir los sentidos del compromiso de las mujeres pobres en la lucha por el acceso a una vivienda digna, con el fin de resaltar la dimensión educativa inherente a la militancia política, que se materializa en procesos de resocialización y socialización política provocados por la propia dinámica de los movimientos políticos y que conducen a la resignificación, por parte de estos militantes, de su forma de concebir el mundo y su lugar en él. Para llevar a cabo dicha discusión, de carácter teórico y metodológico, nos basaremos en los resultados de una investigación sobre el activismo de las mujeres del Movimiento de Trabajadores Sin Hogar (MTST) en la Región Metropolitana de São Paulo (RMSP), que utilizó entrevistas en profundidad, observación y participación en las actividades del MTST, con miras a entender el compromiso político desde una perspectiva procesal, en la que se consideren tanto las disposiciones relacionadas con el origen y trayectoria social de los militantes, como los efectos de los vínculos interpersonales y la retribuciones afectivas desarrolladas en el ámbito de la militancia.

Palabras clave: socialización política; militancia; mujeres

INTRODUÇÃO

O objetivo deste ensaio é discutir os sentidos do engajamento de mulheres pobres na luta pelo acesso à moradia digna, tendo em vista colocar em evidência as dimensões educativas inerentes à militância política, que se materializam em processos de ressocialização e socialização política provocados pela própria dinâmica dos movimentos políticos e que conduzem à res significação, por parte dessas militantes, do seu modo de conceber o mundo e seu lugar nele. Para realizar tal discussão, de caráter teórico e metodológico, nos apoiaremos nos resultados de uma pesquisa sobre a militância política de mulheres do Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST) na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP).

A discussão sobre os sentidos da militância das mulheres pobres na luta por moradia digna exige que se considere, em primeiro lugar, que essas continuam, em sua maioria, sendo as únicas responsáveis pelo trabalho doméstico, ainda que exerçam atividades remuneradas fora do lar, situação que se agrava entre as famílias socialmente vulneráveis, nas quais a monoparentalidade feminina é mais frequente. Além disso, as mulheres sofrem diretamente os efeitos da divisão social do trabalho, que produziu historicamente, tanto na dimensão material quanto simbólica, uma distinção valorativa entre homens e mulheres, que se estrutura a partir de dois princípios básicos: o princípio de “separação”, que designa a existência de trabalhos de homens e trabalhos de mulheres, e o princípio “hierárquico” segundo o qual o trabalho do homem teria maior valor do que o trabalho da mulher. Evidentemente, tal distinção valorativa impacta de maneira importante tanto os salários das mulheres quanto a seu papel nas tarefas domésticas (HIRATA, 2004; HIRATA, KERGOAT, 2007).

No que tange especificamente à questão da moradia, vale a pena destacar que essa é uma dimensão absolutamente central na vida das mulheres pobres que, em função do déficit habitacional dos centros urbanos e da especulação imobiliária, são obrigadas a viver em bairros periféricos nos quais, apesar do alto valor dos aluguéis, não se tem acesso facilitado aos direitos fundamentais. Além do fato de que as enormes distâncias que precisam ser percorridas entre as casas dessas mulheres e seus locais de trabalho, combinadas à péssima qualidade do transporte público, afetam diretamente o desempenho de suas atividades produtivas e reprodutivas (CARLOTO, 2005; SARTI, 2011; SOUZA, 2009; GOHN, 2011, 2012; KOWARICK, 2000, 2007; CALDEIRA, 2000; TELLES, CABANES, 2006; TELLES, 2010).

Diante deste quadro, é possível compreender porque, apesar dos obstáculos não negligenciáveis, os movimentos de luta por moradia são constituídos majoritariamente por mulheres, que ocupam inclusive posições de liderança com maior frequência do que em outros movimentos políticos. Mais quais seriam os sentidos e especificidades da militância das mulheres pobres na luta por moradia digna?

Antes de tratamos desse caso específico, é preciso esclarecer que o engajamento político na defesa de causas coletivas trata-se de um fenômeno complexo e multifacetado. De acordo com Pudal, o engajamento político ou o militantismo:

É um processo extremamente complexo, no qual se combinam diferentes histórias: a história das origens sociais e das socializações específicas daqueles que militam; do sistema escolar e de seu lugar na sociedade; dos próprios recursos físicos, intelectuais e psicológicos desses sujeitos; também dos contextos de investimentos militantes; e, finalmente, a história dos riscos e das etapas de uma carreira militante. Desse ponto de vista, as análises “biográficas” tornam-se cada vez mais complexas: elas devem - do meu ponto de vista - associar a prosopografia (biografia coletiva, ou melhor, biografias coletivas, “famílias de trajetórias”) com o “singular”, no qual podemos considerar tipos de investimentos sociais e psicológicos variáveis segundo os indivíduos. A dificuldade é assegurar as duas extremidades dessa “linha explicativa” (o coletivo e o singular), sobretudo, quando as fontes que permitem o acesso ao mais “singular” são raras e delicadas para se analisar. (PUDAL, 2009, p. 133)

A partir desta perspectiva de interpretação do fenômeno do engajamento político, poderíamos dizer que as reflexões que serão apresentadas neste ensaio se alinham com um conjunto de pesquisas que, desde os anos 1970, têm buscado compreender a lógica dos investimentos individuais nas chamadas “causas coletivas”. Pesquisas essas que, diante da emergência e diversificação dos chamados “novos movimentos sociais” (movimento ambientalista, movimento LGBTQ+, movimento negro, movimento feminista), cujas bandeiras e repertórios de ação muitas divergem dos padrões dos chamados “movimentos políticos tradicionais” (identificados, sobretudo, com partidos políticos e sindicatos) tenderam a abandonar a polarização entre (i) as abordagens centradas na posição ou no pertencimento de classe como determinante da participação política e (ii) as abordagens que concebem as redes de sociabilidade surgidas na militância, ou que conduzem a ela, como motivadores centrais para o surgimento e a continuidade do engajamento político. A resposta a essa dualidade, do ponto de vista teórico e metodológico, tem se materializado em uma tentativa de integração dessas duas posições, ou seja, uma abordagem que busca, na compreensão dos processos de engajamento individual, considerar que, de um lado, as disposições individuais para o engajamento político guardam relação com as desigualdades de condições sociais de origem e dos respectivos capitais (econômicos, culturais, escolares, simbólicos, políticos) possuídos pelos agentes sociais e, de outro, que os laços interpessoais e as “redes préexistentes” são de grande importância para a adesão e continuidade do engajamento em movimentos políticos. Assim, pretende-se, nesta perspectiva, analisar a ação militante a partir de um modelo processual ou sequencial e, ao mesmo tempo, considerar a constelação de fatores que tornam possível o engajamento, em vez de reduzi-lo ao reflexo de normas, papeis e constrangimentos estruturais (AGRIKOLIANSKY, 2001; FILLIEULE, 2001, 2003, 2005; SEIDL, 2008; OLIVEIRA, 2008; SAWICKI, SIMEANT, 2011; GOHN, 2011, 2012).

Em diálogo com essa perspectiva teórica e metodológica, temos discutido a militância política e seus efeitos a partir das duas dimensões educativas (distintas entre si, embora complementares) que estão implicadas nos processos de engajamento: de um lado, os processos de socialização anteriores, especialmente relacionados à socialização primária capazes de constituir determinadas disposições para a luta coletiva; e, de outro lado, as ressocializações provocadas pela própria militância política. Neste ensaio, interessa-nos discutir mais especificamente essa última dimensão educativa da luta política e seus efeitos sobre o modo como as mulheres sem-teto ressignificam suas concepções sobre a organização do mundo social e sobre seus lugares em seu interior.

Dessa forma, poderíamos dizer que o engajamento é resultante de uma articulação entre os processos de socialização anteriores, constitutivos do habitus, e as novas experiências proporcionadas pela militância política, que se desdobram em processos de ressocialização e, portanto, de reconfiguração do hábito primário. A noção de habitus, retrabalhada em relação a suas origens aristotélico-tomistas, desempenha, na obra de Bourdieu, um papel de mediação entre o individual e o social, mais especificamente, refere-se a uma “subjetividade socializada”, ou seja, uma estrutura de personalidade constituída a partir das marcas legadas pela experiência biográfica em um dado contexto social.

O habitus como toda arte de inventar, é o que permite produzir práticas em número infinito, relativamente imprevisíveis (como as situações correspondentes), mas limitadas, todavia, em sua diversidade. [...] Porque tendem a reproduzir as regularidades imanentes às condições nas quais foi produzido seu princípio gerador ajustando-se ao mesmo tempo às exigências inscritas como potencialidade objetiva na situação tal como é definida pelas estruturas cognitivas e motivadoras que são constitutivas do habitus, as práticas não se deixam deduzir nem das condições presentes que podem parecer tê-las suscitado nem das condições passadas que produziram o habitus, princípio durável de sua produção. Só se pode explicá-las, portanto, com a condição de relacionar as condições sociais nas quais se constituiu o habitus que as engendrou e as condições sociais nas quais ele é posto em ação, ou seja, com a condição de operar pelo trabalho científico a relação desses dois estados do mundo social que o habitus efetua, ao ocultá-lo, na e pela prática. (BOURDIEU, 2009, p. 92-93)

Alguns críticos defendem que a noção de habitus, anunciada pelo sociólogo francês como uma “ponte” entre as dimensões objetivas e subjetivas da realidade social, seria demasiadamente rígida e determinista para cumprir esse papel. No entanto, é preciso destacar que, embora o habitus tenha uma natureza durável, ele é também mutável, portanto, passível de ser reconfigurado mesmo na fase adulta, dependo da magnitude e importância das experiências, em termos de alteração do modo de vida e de atuação no mundo, as quais os sujeitos são confrontados, como por exemplo, a militância política. Não à toa os militantes do Partido Comunista Francês, cujas trajetórias são analisadas por Pudal, descreveram sua entrada para a vida política como um “segundo nascimento” (PUDAL, 1989).

O MTST E SUA DIMENSÃO EDUCATIVA

O Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), que se constituiu em meados dos anos de 1990, tornou-se nos últimos anos um dos mais proeminentes movimentos populares brasileiros, que se reconhece como um movimento que organiza, territorialmente, trabalhadores e trabalhadoras nas periferias dos centros urbanos e que, para além da luta por moradia, busca transformações sociais mais profundas para combater as desigualdades sociais e econômicas. Em linhas gerais, o termo “sem-teto” designa, para o MTST, todo indivíduo, grupo ou família que não possui requisitos mínimos de acesso aos programas de crédito imobiliário, inclusive públicos, ou de aquisição de imóveis e que, por essa razão, sequer se configuram como demanda de mercado e/ou das políticas habitacionais, sendo relegados a condições impróprias de moradia e habitabilidade, e vivendo a experiência do nomadismo urbano provocado pela especulação imobiliária (MTST, 2013; BOULOS, 2012; GOULART, 2011; MIAGUSKO, 2012).

Neste sentido, podemos afirmar que os militantes do MTST, em sua maioria, além das condições precárias de moradia, têm baixa ou nenhuma escolaridade; escassa participação no mercado de trabalho formal; salários reduzidos, além de enfrentarem inúmeros problemas para acessar serviços e equipamentos públicos. Considerando tais características seria de se supor que esses indivíduos tivessem dificuldades significativas para atuar politicamente; primeiramente, por motivos objetivos e concretos, tais como as limitações impostas pela falta de tempo e pelas jornadas exaustivas de trabalho; em segundo lugar, pela ausência de determinados capitais (sociais, culturais e simbólicos) ou experiências acumuladas, que alguns estudos apontam como elementos fundamentais à participação no campo político (CANÊDO, 2002; OLIVEIRA, 2008; SEIDL, 2008).

Contudo, é importante reconhecer que a experiência da organização coletiva, tanto no Brasil, como em outros países, também já foi protagonizada por atores que não dispunham de tais capitais, como o movimento operário e as ligas campesinas. Desde seu surgimento, o MTST tem conseguido mobilizar um expressivo número de participantes em ações ainda muito estigmatizadas e criminalizadas no Brasil, tais como ocupações de terrenos e prédios, bloqueios de vias públicas, o que muitas vezes redunda em confronto direto com forças policiais, demonstrando, assim, que organizada em movimentos políticos, mesmo a população mais vulnerável possui significativa capacidade de mobilização e de suscitar mudanças sociais por meio do tensionamento político. Contudo, é preciso igualmente reconhecer que, assim como as periferias das grandes cidades são caracterizadas pela heterogeneidade social, também a militância do MTST é heterogênea, apresentando variados níveis e intensidades de engajamento, assim como um leque variado de práticas, atitudes e comportamentos militantes.

Assim, encontramos no interior do MTST, por exemplo, militantes que demonstram possuir menor interesse sobre assuntos relacionados ao “mundo da política” ou menor “competência política” (entendida aqui como a posse de conhecimentos e informações sobre o funcionamento do sistema político), seja pela carência de capitais específicos (sobretudo capital escolar) ou por uma percepção negativa das instituições políticas, dos partidos e dos “políticos profissionais”. Entretanto, por tratar-se de um movimento de caráter eminentemente político, que empreende esforços na formação de seus militantes, fornecendo-lhes subsídios para que se reconheçam como alijados dos direitos sociais e políticos e lutem para alterar tal situação, o envolvimento direto da militância do MTST com questões de ordem política torna-se inevitável, o que se desdobra em reconfigurações importantes nas opiniões, comportamentos e atitudes dos sem-teto.

Assim, no contexto da luta de mulheres por moradia no MTST, observa-se a existência de uma dimensão educativa multifacetada inerente à própria militância que se expressa em dois grandes eixos: (i) o acesso a determinadas informações e conhecimentos sobre organização da mundo social, sobretudo dos mecanismos econômicos, sociais e políticos que garantem a reprodução das desigualdades no Brasil e no mundo; e (ii) a experiência da participação nas ações promovidas pelo movimento, como ocupações de terreno, construção de barracos, assembleias, grupos de discussão, confecção de faixas e cartazes e manifestações públicas.

Nesse cenário, a luta coletiva que, em geral, se apresenta para essas mulheres em momentos de aprofundamento de sua condição de vulnerabilidade, como situações de despejos ou períodos prolongados de desemprego, emerge como única alternativa de enfrentamento da precariedade e da pobreza. O que provoca, por sua vez, por meio da assimilação de determinadas formas de interpretar o mundo e reivindicar seus direitos, uma espécie de conversão, um “segundo nascimento na luta”, constituindo outros sentidos à sua existência individual e coletiva a partir dos processos de formação vivenciados no interior do movimento, bem como pelos laços de solidariedade e redes de apoio que se desdobram da participação política (TOMIZAKI, CARVALHO-SILVA, SILVA, 2016).

No caso das mulheres do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto, as interações e os processos de formação assumem variadas formas, entre as quais, gostaríamos de destacar a vivência nas ocupações como um marcador importante de suas “novas vidas”, agora pautadas pelo pertencimento a uma coletividade, cuja unidade se sustenta no compartilhamento das mesmas experiências sociais de precariedade e pobreza, nos mesmos desafios cotidianos e no objetivo comum de conquistar melhores condições de vida, trabalho e lazer. Contudo, essa conversão a esse “nós coletivo”, dada as circunstâncias de vida dessas mulheres e seus parcos capitais (econômicos, culturais, escolares e sociais), é parte de um processo de politização muitas vezes poroso e contraditório, mas que não chega a minimizar as profundas mudanças nos modos como essas mulheres passam a conceber seu “novo lugar no mundo”, agora como lutadoras, como costumam se denominar.

Vale destacar, a experiência de viver em uma ocupação foi apontada pelas mulheres entrevistadas como o mais importante processo de aprendizagem no âmbito da militância política: de um lado, é na ocupação que elas se apropriam e compreendem os princípios que norteiam a atuação política do MTST, bem como de sua forma de organização, seja internamente à ocupação ou externamente em relação à vizinhança da área ocupada. De outro lado, esse período da militância também é fortemente marcado pelo estabelecimento de potentes redes de solidariedade que, para muitas mulheres, significam uma das poucas experiências de segurança e apoio que tiveram ao longo de suas vidas, levando os companheiros, mas, sobretudo, as companheiras da ocupação ao status de sua “verdadeira família”. Outro aspecto que também precisa ser destacado dessa experiência diz respeito à coletivização da responsabilidade pelo funcionamento da ocupação, que se materializa na formação de grupos que assumem diferentes frentes de trabalho: comunicação, cozinha coletiva, segurança, cuja atuação se baseia fortemente no debate coletivo, o que para muitas mulheres significará a primeira oportunidade de exprimir suas opiniões, de falar em público, de se sentir engajada na formulação de alternativas e soluções para os problemas e de poder votar nas propostas que considerar mais adequadas. Trata-se, na maior parte das vezes, da primeira oportunidade de uma vivência democrática, de ouvir e ser ouvida e poder fazer escolhas e opções informadas por um debate coletivo. Finalmente, vale destacar que, uma vez alteradas suas concepções de mundo e de si mesmas, essas mulheres empreendem também novas formas de conceber o futuro de seus filhos e filhas e sua educação, permeadas agora pela noção de justiça e luta social e política.

REFERÊNCIAS

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Recebido: 01 de Novembro de 2020; Aceito: 01 de Dezembro de 2020

Informações dos autores

Informações dos autores

Hamilton Harley de Carvalho-Silva

Instituto Vladimir Herzog

E-mail:hamilton.harley@.gmail.com

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5007-3334

Link Lattes: http://lattes.cnpq.hr/3993600649484227

Kimi Tomizaki

Faculdade de Educação da USP

E-mail:kimi@usp.br

ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8804-8188

Unk Lattes: http://lattes.cnpq.hr/6681809582902921

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